BERGSON E OS DUALISMOS1



Débora Cristina Morato PINTO2


RESUMO: Este artigo apresenta introdutoriamente a maneira como Bergson aborda o dualismo ontolñgico num dialogo critico com a tiadi9ño moderna. A proposta de reconstrupño da metafisica em novos termos exige a passagem pela coloca9ño tradicional dos principals problemas filosñficos, em especial o dualismo moderno, cuja origem é cartesiana. Para diluir as antiteses do pensamento conceitual, a filosolia da bergsoniana estabelece um procedimento dualista, a dissocia9ño analitica da expeiiéncia determinando seus dom:nios distintos em natureza. Somente a no9ño de durapño permite a reconciliapño entre tais elementos, pensados entño como ritmos do tempo. Nossa intenpño é mostrar como se esquematiza tal percurso nas duas piimeiras obras de Bergson.

PALAVRAS-CHAVE: Bergson; dualismo; matéria; durapño; imagens.


Bergson e a Filosofia Contemporñnea


Bergson é um autor contemporñneo menos pelo periodo em que viveu do que pelo fato de sua lilozoiia procurar romper e se contrapor ao que ele delimita como “pensamento tiadicional” a histñria da filosofia ocidental de Platfio até o séc.XIX. Seu alvo privilegiado consiste na filosofia dita modeina, que se constitui no séc.XVII e impulsiona a ieflexño dos dois séculos seguintes. Tal periodo pode ser situado pelas diretrizes que Descartes, uma espécie de pai da modernidade em filosofia, tra9a, cujo legado atravessa os debates posteriores. Assim, Bergson é um autor contempoianeo acima de tudo pelo espirito e pelo sentido de seu pensamento, ao piocurar desconstiuir a ontologia delineada a partir do séc.XVII. Mais explicitamente, a principal "deficiéncia” da velha ontologia, e assim da velha teoria do conhecimento, consiste em pensar e definir o real através de conceitos e propriedades sustentados por uma nega9ño fundamental a nega9ño do tempo, da temporalidade ou do carater duracional do Ser. Essa negapño se explicita no movimento da histñria da filosofia em suas diversas etapas, e se realiza tanto no nivel da forma do raciocinio (a lñgica espacializante calcada no movimento natural da linguagem) quanto nos conteudos, ou teses filosñficas por ela obtidas nos diversos niveis ou campos da reflexfio (metafisico, ontolñgico, epistemolñgico, ético, etc.). Para Bergson, em linhas gerais, a metafisica tradicional fez a op9ño na sua auiora, a partii do problema colocado pelos pré-socrñticos entre Ser e Devir: escolheu a substancialidade (permanéncia) e a idéia (fixidez) como pilares do seu pensamento, e foi assim “conduzida a procuiar a realidade das coisas acima do tempo, além do que se move” (Bergson, 1959, p.1259). 3 Com efeito, em Platño, a identifica9ño entre Ser e Idéia implica a desqualifica§ño do mundo sensivel cñpia imperfeita de um mundo inteligivel com todas as suas manifesta9ñes de mutabilidade. Esta é a oiigem, para Bergson, do pensamento filossfico calcado no conceito, cujo objetivo primordial seja a busca pela identidade e pela permanéncia. A diferen9a e a mudan9a serño de alguma forma alijadas do campo da filosofia ou definidas ñ luz do idéntico e do imutavel. No contexto de tal abstra9ao do tempo real, o movimento e a transforma9ño, constatados no nivel das coisas sensivets, surgem ao platonismo como apaiéncias ilusñiias, instituindo-se assim a oposi9ño clñssica entre esséncia e aparéncia, o dualismo platñnico. A crltica bergsoniana ao pensamento conceitual dirige-se entao, seja em iela9ño aos modernos, seja aos antigos, ñ desvaloiiza§ño do movente e pñe em questño certas dualidades oiiginadas justamente do desprezo pela temporalidade. Na realidade, a crltica de Bergson é ainda mais radical: o pensamento de indole intelectual ou racional nño apenas esqueceu o Ser, como Heidegger piocurou mostrar (assim como apontou a necessidade de restabelecer o seu sentido), mas determinou-o (e por isso nño deu conta de constatar o esquecimento) como aquilo que ele fundamentalmente nño é em suma, se o ser é tempo, a filosofia determinou-o como espa o, como "nño-tempo", como permanéncia, como a-temporal.

Em rela9ño ñ contextualiza§ño do pensamento de Bergson, isto é, ñ explicita9ño da sua contempoianeidade, a proximidade de inten9ñes com Merleau-Ponty merece ser citada, pots trata-se de uma aproximaRao que faz emergir a dimensño da filosofia modeina cujo papel é central na constitui5ño do percurso bergsoniano o dualismo de origem cartesiana, que perpassa inclusive o pensamento oposto, o empirismo, tornando impensñvel o problema da rela9ño entre espirito e corpo. Dessa forma, a empresa de Bergson de supera9fio do dualismo, que é consequéncia e condi§ño da sua critica radical ñ filosofia da tradi9ño, aproxima-se (e mesmo a inspira) da reforma da ontologia almejada por Merleau-Ponty. Jd na Fenomenologia da Peicepqâo, na estiutura9ao do livro, o trabalho critico desse ultimo se explicita a percep9ño, a apreensño do sentido imanente ao "mundo sensivel” sS pode ser pensada d luz da superaqño do "pensamento objetivo", isto é, da filosofia moderna explicitada em coirentes que se opoem, como intelectualismo e empirismo, correntes condicionadas por um mesmo movimento ou gesto teñrico que é justamente a separa9ao entre duas substñncias instituida pot Descartes: ‘o pensamento objetivo sñ conhece no9oes alteinativas... define conceitos puros que se excluem: a no9ño da extensño, que é a de uma exterioridade absoluta entre as partes, e a no9ño do pensamento, que é a de um ser recolhido em st mesmo" (Merleau-Ponty, 1994, p.80). De fato, na matriz da filosofia moderna (e de suas consequéncias) nos temos de um lado a natureza, ou o mundo natural fechado em st, cuja verdade é a da extensao, a res extensa, geometricamente explicdvel em que as partes sño exterioies umas as outras, e de outro, o espirito, as sensa9ñes internas ao sujeito, também fechadas em st, que configuram uma realidade qualitativa oposta ñ matéria extensa em suma, o pensamento, aquilo que podeiñ atribuir sentido ao sensivel. Este ultimo responderd por atos de significa9ño exteiiotes ao piâprio mundo signilicado, e torna-se assim inexplicavel o fundamento da aplicabilidade como as duas realidades, fechadas em si e ontologicamente diferentes, podem se comunicar? O iesultado, apontado jñ por Husserl, sera a dita "filosofia da representa9ño", aquela que pressupñe na interioridade do pensamento a piesen9a de “idéias", que de alguma forma sño imagens do mundo natural, o que significa fazer do problema da correspondéncia uma questño ao mesmo tempo essencial e insoluve1: “era o ‘objetivismo', era a prisño de Descartes aos prejuizos galileanos' que o levava a decodificar o mundo por meio de uma oposi9ño entre duas regiñes de seres e, assim, a normalizar a representa9ño” (Moura, 2001, p.211).4

A passages pela fenomenologia tern apenas o intuito de apontar um movimento que se explicita na filosofia bergsoniana mesmo que deteiminando outras consequéncias (conhecemos a famosa critica de Merleau-Ponty a Bergson, que considera sua filosofia ainda presa ao “prejuizo" da interioridade): realizar um estudo da consciéncia ou da subjetividade que escape aos preconceitos herdados da tradi9ño filosñfica e que podem ser unificados pelo pressuposto dualista; em outros termos, a tentativa de pensar na rela9ño entre sujeito e objeto, idéia e coisa, representa9ño e mundo, psiquico e fisiolñgico, alma e corpo, interioridade e exteiioridade, enfim, espirito e matéria, sem cart nas armadilhas do dualismo, sem toma-lo como ponto de partida, resolvendo enfim o seu impasse.



O dualismo como problema: método ou tese de doutrina?


O problema do dualismo ontolñgico é tema de extrema relevñncia para o pensamento de Bergson, e atravessa sua obra. A rela9ao entie alma e corpo ou espirito e matéria se apresenta como problema ao final do Ensoio sobie os da6os imediatos da consciéncia e torna-se objeto central ao livro seguinte, Metéâa e Memofi a, S sem deixar de estar no hoiizonte das obras posteriores. Podemos dizer que Bergson o enirenta através de uma reflexño cujos termos e condi9ñes sño estabelecidos pela anñlise genética da representa9ño, e esta anñlise se constitui ponto a ponto através do embate com o dualismo piñprio ñ filosofia da tradi9ao, especialmente a moderna isto é, pela Eritrea ñ oposi9ño "realismo X idealismo” Tal oposi9ño configura, no vocabulaiio bergsoniano, um falso problema estñ entre aqueles que a tendéncia natural de nossa inteligéncia se coloca ao seguir suas inclina9ñes apropriadas ñ apreensño prñtica do real e aplicñ-las sem critica ao terreno da especula9ño. Assim, a solu9ño positiva do problema alma/corpo sñ pode se desenvolver atiavés da supera9ño desse obstñculo a abordagem em termos realistas e idealistas e sua contraposi9ño insoluvel; o falso problema deve entño ser dissolvido, dando ensejo ñ sua boa posi9ño, conforme a famosa descri§ño do método beigsoniano que nos oferece Deleuze, apontando a primeira regra da intuipño como método: “denunciar os falsos problemas, reconciliar verdade e cria9ño no nivel dos problemas“ (Deleuze, 1999, p.8). Ha, portanto, uma rela9ao intima entre supera9ño do dualismo na metafisica e critica do dualismo epistemolñgico (que diz respeito ao objeto do conhecimento ou ele é mera representa9ño e nada além disso, ou existe a coisa atrñs ou além da representa9ao, cabendo ñ teoria do conhecimento determinar o modo de apreensño da veidade dessa coisa), rela9ño que explicita o dialogo cheio de inversñes com os dualismos tradicionais que atravessa a obra de Bergson.

Assim, o trajeto do Ensaio exige saber se a liberdade humana é compativel com o determinismo da natureza, problema que permanece no horizonte do livio mas nño é resolvido:


quando nos colocamos o problema da apao reciproca entre corpo e espirito, for unicamente porque o haviamos encontrado em nosso estudo sobre os ‘dados imediatos da consciéncia’. A liberdade nos havia aparecido como um fato; e por outro lado, a afiimapño do determinismo universal, que foi colocada pelos cientistas como uma regra de método, era geralmente aceita pelos filosofos como dogma cientifico. A libeidade humana seria compativel com o deteiminismo da natureza? (Bergson, 1959, p.1314).


A possibilidade de combinar dois dominios do real heterogéneos em esséncia torna-se ainda mais complexa na medida em que o pensamento bergsoniano parece encaminhar-se ao dualismo ou ser marcado por uma perspectiva dualista. De fato, muitas das suas analises procuram distinguir dominios da experiéncia que nño sño corretamente diferenciados, isto é, procuram determinar a diferenqa de natuieza nos elementos que compñem a experiéncia humana mista ta1 como determina a segunda regra do método bergsoniano, ainda segundo a descri9ño de De1euze .6 Tal procedimento de diferencia9ño explicita-se pela primeira vez no Ensaio, cujo percurso é dualista, instituindo pares de instñncias opostas através de um processo de diferencia9ño, uma anñlise dissociativa da experiéncia comum. Mais explicitamente, na primeira grande obra de Bergson encontramos uma dissociapño analitica que acaba por distinguii entre matéria e forma da experiéncia, a matéria como nossos estados de consciéncia com suas caracter:sticas rears (o dominio qualitativo, a multiplicidade de interpenetra9ño, a dura9ao pura) e a forma como ato do espirito, ato de concep9ño de um meio vazio e homogéneo o Espa9o, cuja realidade em si (ou “fora do espirito”) permanece enigmñtica no texto. Sobre o espa9o real, o filñsofo sñ pode determinar a apreensao de uma simultaneidade instantñnea entre um objeto ou percep9ao exterior e extensa e um estado de consciéncia inextenso. Em outros termos, o dualismo do Ensaio pode ser pensado como metodolñgico: o reencontro com a verdadeiia experiénera exige a reaiticula9ño teñrica do misto, analisando-se (isto é, separando) de direito duas séries de fenñmenos. Bergson distingue assim o qualitativo do quantitativo, mas em nenhum momento se posiciona sobre o estatuto ontologico da realidade espacial, sobre o dominio da quantidade, e para além disso, mostra através da sua teoria do numero que a idéia distinta de quantidade (assim como a apieensao de vaiios objetos exteriores) tern duas condi9ñes: a forma espacial e a penetra9ño intima prñpria aos estados qualitativos na inteiioridade (que é o fundamento da conserva9ño necessñria ñ justaposi9ño de elementos no espa9o, base da quantifica9ño). Em outros termos, o percuiso do livro, especialmente de seu segundo capitulo, traz a necessidade de reconhecer a existéncia de duas espécies de multiplicidade em nossa experiéncia, a dos objetos materials e exteriores, que formam o numero imediatamente, e a dos estados de consciéncia, que sñ podem ser justapostos e contados por um esfor9o de media9ño simbñlica que os desdobra no espapo, mas a multiplicidade da interioridade psicolñgica surge como a piñpria condi9ño da permanéncia dos objetos e, assim, de qualquer possibilidade de apreensño do multiplo de justaposi9ño, como Bergson bem sintetiza ao final de sua anñlise: “é, portanto, gra9as ñ qualidade da quantidade que formamos a idéia de uma quantidade sem qualidade” (Bergson, 1959, p.82).

Evidencia-se nessa medida o sentido dos dois primeiros capitulos, aqueles que aparentemente mais se aproximam de um dualismo (instituldo via dissocia9ño da experiéncia): a apreensño de uma das dimens0es da experiéncia real que cotidiana e regularmente se oculta pelas necessidades da praxis, e cujo ocultamento é a mola mestra do pensamento conceitual, quer ele se manifeste no senso comum, na ciéncia ou na metafisica. Assim, a presen9a que vat se apresentando e recebendo estatuto de realidade imediatamente acessada e metafisicamente determinada é a interioridade psicolñgica, heterogeneidade qualitativa, cujas caracteristicas configuram seu peso ou densidade ontolñgica e possibilitam a descoberta da dura9ño como estofo do real. Aquilo que pode ser dito existente pelo trajeto teñrico do Ensaio é a dura9ño interna, pots so ela se conserva, se continua, a experiéncia da dura9ño interior se apresenta como pura presen9a. Nessa medida, nao ha no percurso do livro condi9ñes para a afirma9ao da dimensño temporal da exterioridade, e assim da sua permanéncia na existéncia toda a sua conserva9ño depende da interioridade ñ qual ela se simultaneamente a exteiioridade, em suma, é experimentada e pensada como instantñnea, a sua continuidade ou substancialidade dependendo da sua simultaneidade com estados de consciéncia, estes sim permanentes ou continuos pela sua dinñmica de diferenciapño (sua multiplicidade qualitativa). Dessa forma, se o método de investiga9ño no Ensaio é dualista ou opera instituindo dualidades, sua conclusño nao o é categoricamente: eta resulta na afirma9ño da existéncia da duiapño, da multiplicidade qualitativa da experiéncia psicolñgica e da liberdade, impondo como consequéncia o problema do dualismo que Matéra e Memâiia vai tratar de revolver.7 A continuidade da filosofia de Bergson tratara de mostrar que a apreensño dos objetos materiais isolados é relativa aos nossos habitos intelectuais derivados da apreensño prñtica do real, efetivada pela percep9ño que é um processo essencialmente destinado ñ a9ño e elaborada pelo trabalho de abstia9ño da inteligéncia (e da linguagem). E a aplica9ño sem limites e sem critica dos processos intelectuais derivados da praxis aos questionamentos metafisicos que acaba por aiirmar a existéncia e a esséncia da matéria como objeto material.



A superapño do dualismo em Matéria e Memâzia


Se o Ensaio encontrou e exploiou a realidade de uma duiaqño interna, é entño necessñrio sabei se é possivel atribuir dura9ño a exterioridade que, na investiga9ño, apaiece marcada por um “presente que recome9a sem cessar” e sñ alcan9a dimensño temporal através da proje9ño da dura9ño interna pelo eu uma temporalidade que é, assim, exteina â propria exteriofidade. A descoberta da liberdade, prspria ao duracional, restringiu-se ao horizonte da subjetividade humana finita.8

O mundo exterior, que envolve o sujeito, é caracterizado, na expeiiéncia concreta, pela instantaneidade, e descrito, no campo da ciéncia, pelas lets deterministas o mundo material tern a sua dura9ño dependente dos estados de consciéncia e é teoricamente determinado e previsivel. A partir do impasse, Bergson pode operar a recoloca9ño do problema, que se situa ou se desloca para a no9ño de matéria: como repensñ-la? Como escapar dos impasses que marcam a apreensño intelectual da matéria, que contaminam o estudo do esplrito? Como ultrapassar o mateiialismo sem cair no idealismo, sem ter que afirmar a total iedu3ao da matéria as idéias ou representapfies? Como desenvolver a supera9ao deste impasse sem recorder ao "infinito positivo" ou a um expediente externo aos dados do problema e as teses moldadas sobre os fatos? Nesse sentido, o pioblema do dualismo discutido por Bergson é aquele que se configura mais especificamente na filosofia moderna pelas diferentes oposi90es entre sujeito e objeto do conhecimento, entre subjetividade e objetividade, consciéncia e mundo, etc. Mas tal problema resvala em outias duas oposipñes: primeiramente, no par esséncia e aparéncia, na medida em que o filñsofo tern que se defrontar com o dualismo entie a matéria e sua aparéncia ou fenomenalidade, que assombra a modernidade e encontra seu prolongamento na idéia de extensño geométrica como verdade do mundo material, desqualificando as idéias sensiveis ou a apreensño do mundo via sensibilidade; e, em segundo lugar e numa espécie de deriva9fio da primeira, tern que enfrentar a oposi9fio entre fenñmeno e coisa em si, que desde Kant estñ instituida e permeia as discussñes ñ sua época a idéia de que a matéria nño somente é de alguma forma distinta do seu aparecer a consciéncia, que se dñ através das formas da sensibilidade e das categorias do entendimento, mas também de que a “coisa em st" ultrapassa o fenñmeno (em termos kantianos); de que o em st ultrapassa ou excede o para si e constitui uma regiño da realidade de alguma forma inacessivel ñ consciéncia.

A solu9ño de Bergson para o dualismo depende em larga medida da forma através da qual ele define os termos do problema isto é, da sua original posi3ño do problema em termos de imayens,’0 um termo cujo sentido pretende escapar aos excessos da "coisa material" e da "representa9ño espiritual" a imagem é a piesen9a aos sentidos, e permitirñ a descri9ño ingénua e direta da experiencia (ou da percep9ño) da matéria. A estratégia culmina no desenvolvimento da hipñtese para a rela9ao entre corpo e espirito, matéria e percep9ño (ou consciéncia) através de uma dissocia9ño analitica da percep9ño concreta. Trata-se da teoiia da peicepqâo puma, uma investiga ao no campo da teoria do conhecimento, que paradoxalmente vai mostrar a percep9ño como processo cuja finalidade primeira nño é conhecei, e que percorie etapas que explicitam as condiqñes necessñrias para pensar na percep9ño consciente, ou seja, na constitui9ño da subjetividade no universo material, e da sua contrapartida, a no9ño de objeto da experiéncia.

Em suma, o que Bergson desenvolve em Matéria e Memñfia é uma fenomenologia das imagens que constitui uma teoria da perceppño colada aos fatos, teoria ou hipñtese que parte dos dados minimos, depurados da heran9a metafisica inconsciente, e procura extrair as consequéncias, mediante a anñlise racional, das caracteristicas presentes ou inerentes a tars dados, operando uma inveisño fundamental e radical em rela9ño ñ filosofia moderna: estabelece que a percep9ño consciente estñ fundada na a9ño, ou seja, é um processo originado na e pela praxis (entendida como a luta do ser humano em face da matéria em busca da sobrevivéncia), isto é, um processo que nño se caracteriza como conhecimento puro, destinado ñ especula9ño. O que Bergson constrñi, através da teoria das imagens, é uma nova abordagem da representa9ño, evidenciada como processo fundado no corpo e na sua a9ao, isto é, definida como a influéncia eventual de meu corpo sobre os outros, sobre as imagens circunvizinhas. A iepresenta9ño nada mais é que a reflexño da a9ao possivel que se inicia em meu corpo; portanto, hñ nessa definiRao uma diferen9a radical em rela9ño ñ nopño clñssica de representa9ño como cñpia mental do mundo, desdobramento do mundo na interioridade subjetiva (ou na "mente"), que impñe ao problema do conhecimento a questño da correspondéncia entre idéias e coisas um falso problema, diria Bergson. A representa9ño, na filosofia cldssica, foi (sempie) pensada como jñ feita, estñtica, tomou-se o resultado de um processo ignorando-se o pidprio processo, configurando as escolas que tomam a imagem mental como unidade do pensamento, que deve entño ser reconstituido pela sua justaposi9ño o que a reflexño bergsoniana vem mostrar é que essa “unidade" é fruto ou resultado (artificialmente recortado) final de um piocesso, que ela é uma inteirup9ao artificial de um movimento, e que serve ñ vida ou ñ sobrevivéncia porque cria um campo estñvel para a a9ao. Mais explicitamente, nñs nao iepresentamos para conhecer, mas conhecemos porque agimos, e a representa9ño é condi9ño da a9ao mais livre, mais hesitante, menos automñtica, construindo-se a medida que esse tipo de a9ao se desenvolve.

Na continuidade do livro, Bergson procura mostrar como a analise fenomenolñgica das imagens e suas apñes, assim como a sua consequéncia teorica, que é a teoria da memoria (ou antes do reconhecimento), permitem redimensionar o debate "idealismo X materialismo" o dilema moderno por exceléncia. Na verdade, é a prñpria solupño bergsoniana que tern que passar pelas dificuldades que se constroem em torno do problema do dualismo, seja ele o "dualismo vulgar", ou o embate eminentemente filosñfico entre idealismo e realismo que contamina as discussñes contemporñneas ao filñsofo. Nenhuma coloca9ao corrente do problema alma/corpo escapa de considerar o fisico e o moral (on psiquico) como duplicatas um do outro —, paradoxalmente, o problema do dualismo é nño reconhecer a verdadeira diferen9a ou dualidade, é, no final das contas, homogeneizar espirito e matéria, e tomar seus fenñmenos, no estudo da percep9ño e da memñria, como duplicatas uns dos outros (meras tradu9ñes). Assim, os problemas insoluveis da tradi9ño decorrem do pressuposto comum do paralelismo psicofisico, da afirmaRao da equivaléncia entre vida ou série mental e série corporal. Em outros termos, a heran9a metafisica determina para Bergson a ma colocaao do problema: em primeiro lugar, porque idealismo e iealismo se constituem como sistemas de nota9ño distintos, que pregam uma prioridade ontolñgica da uma das metades em que o real é dividido e enuncram o problema em termos insoluveis ou tudo é coisa, ou tudo é reShape1 presenta9ño, ou a realidade é a matéria, a coisa, e a iepresentapño inextensa tern que ser deduzida das “coisas extensas”, ou vice-versa, a realidade é a representa9ño, a idéia inextensa, e a matéria tern que ser deduzida dela, ou das sensa9ñes inextensas projetadas, que milagrosamente produziriam a extensño; esta ma coloca9ño do problema é ietomada pontualmente pelo percurso do livio. A heranpa metafisica também se faz presente na tese que permeia a maior parte das solu9ñes cientificas do séc.XIX para a rela9ño psicofisiolñgica, o paralelismo, e

suas versñes levemente modiiicadas, o materialismo e o epifenomena-

lismo: “a idéia de uma equivaléncia entre o estado psiquico e o estado cerebral correspondente penetia uma boa parte da iilosoiia moderna... sobre as oiigens totalmente metafisicas dessa tese nao hñ duvida possivel. Ela deriva em linha reta do caitesianismo” (Bergson, 1959, p.960).” Todo o percurso de Matéiia e Memâria se constrsi na medida da discussao, filosñfica e cientifica, com as derivapñes inconscientes do paralelismo, um obstñculo que é preciso superai.

Ocorre que o percurso do livro combate a iedu9ño do mental ao cerebral e parece institute um novo dualismo ao diferenciar em natureza perceppño e lembran9a, que dño acesso a matéria e espiito. Assim, ele combate a tese do epifenomenalismo, e seu sustentñculo, o materialismo, insistindo na poténcia independente do espirito que se atesta pela independéncia da memoria em rela9ño ao cérebio. Mas em que medida sua conclusño nño é dualista? Na medida em que as considera9ñes de tensfio e extensao virño atenuar ou mesmo superai tal diferen9a de natureza — que sera entño deteiminada como diferen9a de ritmo ou tendéncia — e rearticulam a prñpria dicotomia monismo/dualismo: um Tempo ou Dura9fio cosmolñgica, a Memoria-Duia9ño que pelo seu prñprio movimento institui fluxos duracionais por meio das diferen9as de contraqño e distensño de seu proprio ritmo. Assim, é o final do livio que colocarñ um ponto final na questño do dualismo ontolñgico, ao diluir as antiteses naturals ao nosso entendimento, operando a conversño teñrica eminentemente metafisica, num percurso que pressupñe entretanto a determina9ño das condipfies do problema operada pelo primeiro capItulo do livro pela sua posi9ño em termos de imagens que desconstrñi passo a passo o dualismo da tradi9ao. Redescrevendo o problema em termos de tempo, Bergson pode solucionar os equivocos da reflexño espacializante, isto é, superar os hñbitos intelectuais, “contraidos na a§ño” e que, estendidos ao campo da especula9ño, “ciiam problemas ficticios”, justamente aqueles cujas "obscuridades aitificiais a metafisica deve comepar por dissipar" (Bergson, 1959, p.168).



PINTO, D. C. M. Bergson and dualisms. Ttons/Foim/Aqao, (Sño Paulo), v.27 (1), p.79-91, 2004.


ABSTRACT: This article is an introductory presentation to Bergson's analysis of ontological dualism and his critical dialogue with the modern tradition. The proposal of metaphysical reconstruction demands a study of Cartesian dualism to dissolve the antithetical positions of conceptual thought. In this way, Bergson’s philosophy makes an analytical dissolution of human experience and determines two domains of reality. Only the idea of duration can solve the tensions of Bergson's dualism.

KEY WORDS: Bergson; dualism; matter; duration; images.



Referéncias bibliograficas


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1 As principals idéias do texto que se segue foram apresentadas no I Encontro de Filosofia Francesa Contemporñnea, realizado no Departamento de Filosofia da USP em maio de 2003.

2 Professora de Filosofia do Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciéneias da UFSCAR.