POLÍTICA CONTEMPORANEA E SOCIEDADE UNIDIMENSIONAL


Sinésio Ferraz BUENO1



RESUMO: O tema principal deste trabalho é a análise de contradições da po- litica brasileira contemporñnea ñ luz da Teoria Critica.

PALAVRAS-CHAVE: Teoria Cntica; fascismo: politica; Adorno; Marcuse.



Na década de 30 os pensadores do que mais tarde se convencionou denominar Escola de Frankfurt propunham como tema de pesquisa os motivos irracionais que levavam ñ deforma9ño da consciéncia, em es- pecial entre proletñrios. Sérgio Paulo Rouanet (1986, p.157) resume a in- terroga9ño da Teoria Critica nessa época como o “enigma da aceita9ño voluntaria, por parte da maioria, de condi9ñes de existéncia que deixa- ram de ser objetivamente necessñrias, tendo em vista o estñgio alcan- dado pelo desenvolvimento das for9as produtivas”. Considerando insu- ficientes as respostas derivadas do marxismo ortodoxo, pensadores como Adorno, Horkheimer e Maicuse incorporaram o instrumental freu- diano no sentido de compreender as condi9ñes subjetivas geradoras da “servidño voluntaria”. Posteriormente, o estudo empirico sobre as ten- déncias fascistas entre a personalidade norte-americana nos anos 40 do século passado levou Adorno (1965) a explicar a consciéncia alienada e reacionñria a partir da existéncia de necessidades regressivas por parte de personalidades desprovidas de individualidade, verdadeiros atomos sociais ansiosos pela identifica9ño irrestiita com a totalidade repressi- va. A alienaQño subjetiva, por sua vez, serta gerada a partir de determi- na9oes materiais, historicamente caracterizadas pela emergéncia do capitalismo monopolista, configura9ño econñmica cuja versño radical encontra expressño no neolibeialismo de nossos dras. Conforme Adorno e Horkheimer (1985, p.47):


E da imaturidade dos dominados que se nutre a hipermatuiidade da socie- dade. Ouanto mais complicada e mais iefinada a aparelhagem social, econñmi- ca e cientifica, para cujo manejo o corpo ja muito tempo foi ajustado pelo sis- tema de piodu9ao, tanto mais empobrecidas as vivéncias de que ele é capaz.


De maneira anñloga, uma questao urgente apresenta-se hoje para a reflexño filosñfica sobre a esfera politica. Trata-se de ensar sobre o se- guinte paradoxo: embora a subordina9ño da politica lñgica do merca- do seja insustentñvel mesmo em termos pragmñticos, na medida em que as consequéncias sociais nefastas do ajuste fiscal sño reconhecidas pelos prñprios orgños responsaveis como FMI e Banco Mundial, como é possivel que mesmo assim o pragmatismo se imponha como horizonte hegemñnico na vida politica? Em outras palavras: como é posslvel que a lñgica do mercado capitalista peimane9a fornecendo as proprias cate- gorias que iegem o pensamento politico em nossos dras, uma vez que a concentra9ño de renda e o empobrecimento cada vez maioi da popula- Rao sundial sao indicadores visiveis da absoluta falsidade dos pressu- postos assumidos pelo Consenso de Washington? Desde que o modelo de progresso ditado pela globaliza9ño econñmica impos-se a partir de um receituñiio comum baseado na apologia da lñgica do meicado como critério exclusivo para a vida polltica, as op9ñes que se apresentam para as escolhas eleitorais, bem como para a defini9ño de estratégias na vida politica, limitam-se, quase todas, a possibilidades restritas aos limites do sfatus quo. Configuia-se de maneiia muito clara a unidimensionali- za9ño das opiniñes politicas, na medida em que a prñpria politica, su- bordinada ao mercado, orienta-se pela lñgica da adapta9ño, recusando pieviamente modalidades criticas, negativas, nao-operacionais de pen- samento, que possam apontar outros rumos para a humanidade.

A op9ño pela Teoria Critica como modelo teñrico que possa oriental nossas reflexñes fundamenta-se na fecundidade que seus referenciais apresentam para a compreensño das contradi9ñes presentes nas rela- 9ñes politicas em nosso mundo. Nesse sentido, a falsa consciéncia de nossos dias estrutura-se sobre condi9ñes materiais similares ñquelas que geraram a personalidade fascista pesquisada por Adorno e Horkhei- mer. Da mesma forma, entendemos que a unidimensionaliza9ño estuda- da por Marcuse na sociedade capitalista dos anos 60 permanece vñlida como modelo teñrico explicativo da sociedade capitalista globalizada.


Atualmente, a hegemonia do capitalismo financeiro, ao impor um modelo extremamente concentrador de renda, piincipalmente aos pai- ses do Terceiro Mundo, nos aponta uma situa9ño histñrica ainda mais grave que aquela observada por estes pensadores. Marcuse (1969, p.23-

4) caracteriza como unidimensional e totalitñria uma sociedade “que parece cada vez mais capaz de atender as necessidades dos individuos através da forma pela qual é organizada”. Ou seja, tratava-se de uma so- ciedade que, por meio do Estado de Benn-estar Social, garantia a uma grande parte da popula9ño o acesso a servi9os estatais de saude e edu- ca9ño de boa qualidade, bem como o acesso a um nivel de renda que possibilitava o consumo de bens essenciais e supérfluos. Entretanto, desde a emergéncia das politicas neoliberais no inicio da década de 90 no Brasil, jñ nño é possivel sequei a satisfa9ño das necessidades bdsi- cas ielativas ao alimento, vestuñrio, saude e educa9ño. Por outro lado, o padrño de vida das elites converge piogressivamente para o consumo de bens supérfluos, ao mesmo tempo em que a caréncia das popula9ñes excluidas é cada vez mais explicitada, mediante o contiaste entre sua precaria condi9ño social e o estimulo crescente ao consumo desses bens pela publicidade. Nesse sentido, estamos hoje, em um pals como o Brasil, expostos a uma unidimensionaliza9ño em certa medida dife- rente daquela observada por Marcuse nos Estados Unidos dos anos 60, pots o marketing e a publicidade expñem a grande maioria da socieda- de a uma extrema violéncia simbñlica, que consiste na exposi9ño a uma realidade que se apresenta como utopia realizada, sem que as necessi- dades basicas da vida sejam atendidas tal como o eram no Estado de Bern-estar. Concoidando com Adorno (1998, p.25), para quem “nño hñ mais ideologia no sentido prñprio de falsa consciéncia, mas somente propaganda a favor do mundo”, Marcuse apontou para a absor9ño da ideologia pela realidade. Essa absor9ño exprime-se pela prescii9ño de atitudes, hñbitos e rea9ñes intelectuais e emocionais por meio das quais os individuos aderem a uma totalidade que, embora pareqa ser si- nñnimo absoluto do progiesso, peimanece sendo repressiva:


"0s produtos doutiinam e manipulam; promovem uma falsa consciéncia que é imune a sua falsidade. E ao ficarem esses produtos benéficos a disposi- Rao de maior numeio de individuos e de classes sociais, a doutrina9ño que eles portam deixa de ser publicidade; toina-se um estilo de vida muito melhor do que antes e, como um born estilo de vida, milita contra a transforma9ño qua- litativa. Surge assim um padrño de pensamento e comportamento unidimensi- onais no qual as idéias, as aspirapñes e os objetivos que por seu conteudo transcendem o universo estabelecido da palavra e da apao sño iepelidos ou re- duzidos a teimos desse universo. Sño iedefinidos pela raeionalidade do sistema dado e de sua extensño quantitativa" (Maicuse, 1969, p.32).


Dessa forma, em um pais com imensas cdréncias sociais como o Brasil, os produtos, notadamente aqueles destinados a satisfa9ño de fal- sas necessidades, permanecem doutrinando e promovendo um estilo de vida heterñnomo, mas altamente desejado por todos. Ao mesmo tempo, dada a concentra9ño de renda e o carater descartñvel que lhes diminui a vida util, esses produtos nño estño disponiveis para a popula9ño como um todo, mas apenas para menos de 10% dela. Disso resulta que o des- conforto emotional subjacente ñ sociedade unidimensional, ou seja, o fato de que a satisfa9fio das falsas necessidades acarreta um estado de "euforia na infelicidade" (Marcuse, 1969, p.26) é ainda maior quando, bloqueada pela pobreza econñmica, sequer essa falsa euforia é possivel. Assim, se o esfor9o de cada um para se adaptar a um mundo falso jñ é enorme nas sociedades capitalistas do Primeiro Mundo, no caso de so- ciedades periféricas esse esfor9o e duplicado, pots o individuo é for9ado a se adaptar a uma realidade que nño fornece condi9ñes para a satisfa- Rao das necessidades heterñnomas que ela cria. A auséncia da "euforia" e a permanéncia somente de uma "infelicidade" a ser camuflada conti- nuamente pela maior parte da popula9ño tende a intensificar os tra9os neurñticos da personalidade autoritñria. Assim, o antiutopismo, o rea- lismo pragmñtico exacerbado, o pieconceito, a liga9ño libidinal com ob- jetos técnicos, e sobretudo a frieza geradora desses comportamentos sintomñticos, sño fenñmenos que entendemos ainda mais intensos em nossos dias, uma vez que as condi§ñes que os geraram nfio sñ permane- cem presentes, como ainda se iadicalizaram nas ultimas décadas.

Nesse sentido, julgamos apropriado o diagnñstico de Adorno sobre a peitinéncia da obra de Freud, Tal-estar nd cu/tura, como referencial para a reflexño politica. Segundo Adorno, a abrangéncia da analise de Freud sobre a psicologia de massas traduz-se na acentua9ño das ten- déncias anticivilizatñrias na sociedade capitalista. A imensa defasagem entre os sacrificios pulsionais feitos por cada individuo para tornar-se civilizado e a mediocridade dos beneficios que a sociedade fornece a cada individuo em troca daqueles sacrificios, potencializa a hostilidade de cada um frente d propria civiIiza9ño. Em termos frankfurtianos, essa hostilidade manifesta-se sob a forma das tendéncias fascistas hñ pouco referidas. Ouando pensamos na conjuntura politica brasileira, os ele- mentos anticivilizatñrios presentes em nossa sociedade podem ser com- preendidos a partir do desconfoito inevitñvel provocado pot uma socie- dade que, por um lado, cultua delirantemente uma suposta boa vida, traduzida sob a forma de apelos ñ vida saudñvel, ao pensamento positi- vo em todas esferas e a necessidade do born humor constante e, por ou- tro, convive com o crescimento do crime organizado, dos grupos de ex- termlnio, com a violéncia no trñnsito e com a infelicidade sufocante de rela9fies de consumo que permanecem irrealizadas para a maioria.



II


Nño podemos prognosticar quanto aos limites do sistema capitalis- ta em sua capacidade fecunda de converter a fiustrapño dos individuos em elementos adicionais para sua ieprodu9ño. Nesse sentido, a "tercei- riza9ño" da assisténcia social sob a forma do trabalho voluntñrio é um exemplo tipico (Oliveira, 2002, p.100-1). No que se refere ñ conjuntura politica, um caso exemplar daquilo que Marcuse denominou "fecha- mento do universo politico" manifesto-se hoje sob a Korma da politica econñmica adotada pelo maior partido de esquerda do Ocidente ao che- gar ao poder no Brasil. Durante a ultima campanha eleitoral, com a es- tratégia politica de "acalmar os mercados" baseada na fidelidade ñ po- litica econñmica do governo anterior que se assentava no controle da infla9ño e no combate ao déficit publico —, visando a manuten9fio da credibilidade da economia brasileira diante dos investidores interna- cionais, do FMI e do Banco Mundial, o discurso radical de esquerda for substituido pelo exercicio de uma modalidade de oposi9fio que é a uni- ca admitida pelo todo unidimensional: aquela que se baseia em "exigir a aceita9ño dos seus principios e institui9ñes e reduzir a oposi9ño ñ dis- cussño e promo9ño de diretrizes alternativas dentro do status quo" (Marcuse, 1969, p.24). A notñvel incoeréncia entre o discurso de oposi- Rao exercido por pol:ticos do PT em campanhas eleitorais anteriores, quando se criticava radicalmente a adesño as politicas neoliberais re- ceitadas pelo "Consenso de Washington", e o exercicio no primeiro ano do governo Lula de uma polltica econñmica atrelada ao neolibeialismo revela, antes de mais nada, o quanto a chamada globaliza9ño econñmi- ca é guiada pela lñgica totalitñiia da unidimensionaliza9ño da realida- de. Nesse sentido, o discurso critico de campanhas eleitorais anterio- res, favorñveis a redistribui9ño de renda, ñ reforma agraria e ñ justi9a social efetiva, com todas as suas implica9ñes no tocante ao conflito ex- plicito entre as classes sociais, foi neutralizado em sua dimensño trans- cendente, e retraduzido de maneira a poder ser aceito pelas institui9ñes e pela “opiniño publica”. A validade teñrica das teses de Marcuse sobre a sociedade unidimensional e sua extrema peitinéncia para a anñlise de nossa conjuntura politica podem ser comprovadas pela similaridade en- tre esta e o processo politico recente ocoirido na Europa Oriental apñs a queda do socialismo. A semelhan9a entre os dois casos ilustra o quan- to a transforma9ño social exige muito mais do que apenas a “vontade polltica” dos membros de um determinado partido politico. Ilustra, igualmente, o poder de logo do status quo capitalista no sentido de neu- tralizar e iedefinir todo conteudo de oposi9ño a seus piñprios termos:


Dentro destes moldes, em toda a Euiopa Oriental, depois da grande vira- da, desenrola-se um espetñculo socialmente tragico e politicamente cñmico. A grande maioiia aspira tño-somente a prosperidade do meicado e a novos em- pregos competitivos. Ninguém nem sequer imagina alternativas sociais e eco- nñmicas. E ninguém quer admitir que a propria miséiia é parte de uma crise universal, que ha muito atingiu também os parses do nucleo ocidental. Espe- ranpas iiracionais na sociedade de mercado passam por cima do fato de que nenhum dos 'Estados em reforma’ do Leste Europeu pode investir capital sufi- ciente para reintegrar a maioria da populapño ao sistema industrial competitivo muito menos a Albñnia. Todo goveino, nño importa de que tendéncia, pode somente executai em seu prñprio povo o surdo veredicto do mercado e, sob a égide do Fundo Monetaiio International (FMI), implementar uma impiedosa politica de 'austeiidade’. O paitido do governo é tornado entño como iesponsñ- vel pela gritante contradipño entre esperanpa e realidade econñmica, e a oposi- Rao é erguida ao poder por meio de protestos de massa, até que as fientes se invertam novamente e o mesmo jogo recomece do inicio, agora com sinais tro- cados (Kurz, 1997, p.257).


A enorme distñncia entre os dois processos politicos, um referente a um pats da América Latina iecém-chegado ñ lñgica neoliberal e que acaba de eleger um ex-sindicalista como presidente da republica, e ou- tro referente aos rumos econñmicos de sociedades recém-chegadas ao prsprio capitalismo demonstra a forma de atra9ño da globaliza9ño econñ- mica e de seu pensamento unico. Pots, em ambos os casos, vale a sentema de Kurz: “todo governo, nño importa de que tendéncia, pode so- mente executar em seu prñprio povo o surdo veiedicto do mercado”. O poder persuasivo do pensamento unico aparece, assim, como originado do poder da prñpria ideologia em sua modalidade contemporñnea, que conforme vimos, segundo Adorno, deixa de ser “falsa consciéncia” para set “propaganda a favor do mundo”. Entretanto, iesta explicar de que modo popula9oes recém-saidas do socialismo, como no caso descrito por Kurz, e uma popula9ño que jñ vem sendo sistematicamente espolia- da hñ pelo menos uma década pela logica financeiia da globaliza9ño econñmica aderem tño facilmente ao canto de sereia do mercado. Reto- mamos, assim, a questño sugerida na introdu9ño deste artigo: como é possivel que, malgrado sua desumanidade objetiva, o pragmatismo eco- nñmico se imponha como unico horizonte a ieger a pratica politica?

Ao recorrermos uma vez mais ñ Teoria Critica, é possivel que avan- cemos um pouco no esclarecimento desse problema crucial. Segundo Adorno (1998, p.20), a transforma9ño do papel da ideologia que comen- tamos hñ pouco implica que “ninguém mais se preocupa com o conteu- do objetivo das ideologias, desde que estas cumpram sua fun9ño”. Mar- cuse (1969, p.70) expressa-se em termos similares, apontando que “as pessoas sabem ou sentem que os anuncios e as plataformas politicas nño tém de ser necessariamente verdadeiros ou certos e, nño obstante, os ouvem e léem e até se deixam oriental por eles”. Ao referir-se ñ mo- dalidade de linguagem que caracteriza a sociedade unidimensional, Maicuse (1969, p.107) acrescenta que a cren9a sobre a veracidade das locu ñes nño é o aspecto decisivo: “o novo toque da linguagem magico- ritual é, antes, o de as pessoas nño acreditarem nela, ou nño se importa- rem com ela, mas nño obstante, agirem em concordñncia com ela”. Aprofundando a questño, Adorno (1991, p.135-6) nos leva a pensar que a explica9ño segundo a qual os meios de comunicapño de massa mol- dam a opinifio publica é insuficiente, pots se as massas se deixam en- ganar por uma propaganda claramente falsa, isso ocorre porque tais mensagens sño adequadas a condi9ñes subjetivas heterñnomas geia- das pela irracionalidade objetiva. A falsidade evidente das mensagens nño impede que individuos atomizados, condicionados ao sacrificio ir- racional e a servidao em face dos lideres, comportem-se de acordo com os slogans sistematicamente prescritos por seus senhores.

Assim, os processos emocionais e cognitivos por meio dos quais podemos explicar a eficiéncia das mensayens publicitarias e politicas parecem resumir-se d seguinte questño: a cien9a na veracidade das mensagens assume canter secundñrio perante a forma com que elas se impñem como modelo de comportamento. Embora os individuos nño creiam efetivamente na veracidade do conteudo da publicidade, da po- litica, e de resto, no conteudo de toda a industria cultural, sño levados, por profundas necessidades emocionais, a agir como se acreditassem nelas. Podemos, entño, sugerir que o pragmatismo econñmico pode dar- se ao luxo de nño cumprir as promessas acenadas durante a campanha eleitoral, promessas nas quais ninguém verdadeiiamente acredita, pots o que importa é que ele corrobore o realismo antiutSpico2 que preside a adesño de cada um fi totalidade. A desumanidade objetiva do ajuste fis- cal, com suas grav:ssimas consequéncias sociais, assume canter se- cundñrio diante do mandamento realista e pragmatico segundo o qual os compiomissos internacionais e a confiabilidade diante dos mercados deve ser obtida a qualquer pie9o.°

O imperativo do sacrificio irracional permanente impñe-se, portan- to, como tra9o decisivo da personalidade fascista. Esta, em sua dinñmi- ca sadomasoquista, caracteriza-se pela tendéncia de identifica9ño com as elites, decorrente de uma identifica9ño incompleta e superficial com a autoridade paterna. A internaliza9ño incompleta da figura do pai, de- corrente de um processo de decadéncia da base econñmica da indivi- dualidade (Horkheimer, 1976, p.149-152), tipico do capitalismo monopo- lista, teve como consequéncia uma rela9ño ambigua frente ao status quo. Os elementos anticivilizatsiios, potencializados por uma socieda- de incapaz de recompensar ñ altura o sacrificio pulsional que cada um iealiza para a ela se adaptar, convertem-se em identifica9ño com os gru- pos ou individuos poderosos e em defesa agressiva dos valores domi- nantes. A percep9ño da realidade objetiva, condicionada pelo realismo antiutñpico, conduz o individuo “a uma adapta9ño que implica resigna- Rao perante a impossibilidade de lograr qualquer melhora essencial, que temos de abandonar todo sonho e moldar-nos até nos convertermos em um acessorio a mais da maquina social” (Adorno, 1965, p.650).

A verdade é que a sociedade capitalista, desde que se tornou mo- nopolizada pelos grandes grupos industriais e financeiros, produziu, juntamente com a domina9ño, os elementos emocionais que garantem sua reprodu9ño. Trata-se de um processo que mantém a sociedade uni- da, nos termos definidos por Horkheimer nos anos 30 e posteriormente reafirmados por Adorno (1995b, p.161): “tendo em conta a divergéncia existente entre aquilo que a sociedade promete a seus membros e aqui- lo que lhes outorga, dificilmente poderia preservar-se o mecanismo se ela nño o tivesse amoldado aos homens até em suas fibras mais intimas a finn de que se conformassem a ele”. Portanto, é dessa forma que a ade- sño ao pensamento unico do mercado permanece garantida mesmo di- ante da distribui9ño cada vez mais injusta da riqueza pioduzida pela globaliza9ño econñmica. A servidño voluntñria impñe-se, independen- temente da veracidade das mensagens politicas, na medida em que o que verdadeiramente importa é o comportamento de sujei9ño exigido pela totalidade. Apos as elei9ñes, o descompasso entre o discurso poli- tico de oposi9ño e uma pratica politica no poder, incoerente com esse discurso, é menos importance do que a sujei9ño subjacente a esse pro- cesso, como comenta Paulo Arantes (2003, p.22): “no final das contas, as conversñes espetaculares de partidos de esquerda pesam bem menos no tiiunfo atual da contra-ievolu9ño capitalista do que o consentimento de massa gerado por tais prñticas materiais”. 0s motivos irracionais que conduzem a esse consentimento inserem-se no referido sadomaso- quismo tipico da personalidade fascista: “a domina9ño so pode perdurar na medida em que os rñprios dominados transformarem suas aspira- 3ñes em algo de odioso (AdornoeHorkheimer,1985,p185-6) Ampara- da por necessidades irracionais geradas por um sistema cuja racionali- dade é igualmente irracional, a ideologia pode aparecer, entño, como “propaganda a favor do mundo”, pois o iealismo antiutñpico garante a adesao ao todo unidimensional.



III


Retomando novamente a interroga9ño proposta no inicio deste aiti- go, percebemos que a unidimensionaliza9ño da politica, entendida como restri9ño dos hoiizontes de mudanpa aos limites do stafus quo, encontra ressonñncia em necessidades heterñnomas geradas material- mente pelo capitalismo e acentuadas atualmente sob a logica da globa- liza9ño econñmica. No interior desse processo, a constata9ño de Francisco de Oliveiia (2003, p.147) sobre as “convergéncias pragmaticas entre o PT e o PSDB”, que levam o governo Lula a radicalizar o programa de FHC, justificam a decep9iio dos intelectuais de esqueida que apoia- ram Lula. Entretanto, essa afinidade, ao corroborar o pragmatismo do mercado, apresenta-se perfeitamente coerente com o realismo antiuto- pico, satisfazendo necessidades regressivas de submissao ao todo. A convergéncia entre “técnicos e economistas doubJés de banqueiros, nu- cleo duro do PSDB, e trabalhadores transformados em operadores de fundos de previdéncia, nucleo duio do PT” (idem), nño é, conforme des- taca o autor, uma questño moral, mas um ponto de partida para que se possa explicai a incoeiéncia de ex-sindicalistas frente aos principios fundadores do PT. Podemos acrescentai que tal afinidade pode ser vista também como parte de um processo material que gera as prñprias con- di9ñes subjetivas que limitam o horizonte da transforma9ño a alternati- vas circunscritas ñ reprodu9ño do que esta instituido. Retomando Mar- cuse (1969, p.24), a sociedade unidimensional “pode, justificadamente, exigir a aceita9a o dos seus princlpios e promo9ño de diretrizes alterna- tivas dentro do status quo”. O fato de que atualmente, sob uma lñgica neoliberal que apiofunda as desigualdades sociais, o termo “justificadamente nao possa se aplicar, ao contrñrio do contexto econñmico analisado por Marcuse, somente aponta a intensidade das necessidades re- gressivas em nossa época.

Ao desenvolvermos este quadro pouco animador sobre as perspectivas de transfoima5ño da sociedade capitalista atual nño pretendemos recaii em uma perspectiva fatalista e passiva acerca do papel da politi- ca nesse processo. Pois a utiliza9ño da Teoria Critica para refletirmos sobre os conteudos a serem assumidos por um pensamento auténtico de esquerda implica, sobietudo, que os limites de uma “sociedade sem oposipño” sejam superados. A prñpria Teoria Critica aponta que o rea- lismo antiutñpico, em sua adesao iriacional ñ oidem existente, contém os elementos que permitiriam a supera9ño dessa ordem. Pois o ñdio la- tente contra aqueles que representam a diferen9a em face dos padrñes sociais (operñrios grevistas, judeus, homossexuais, indigenas e mino- rias em geral) consiste da pioje9ño do desejo iepiimido de destrui9ño da ordem opiessoia. A compreensño da irracionalidade objetiva da ordem social, que poderia denunciar a irracionalidade dos sacrificios subjeti- vos que cada individuo tern de realizar para se adaptar, é perpetuada como tabu para a consciéncia reificada. O sentimento insupoitavel de impoténcia resultante desse processo é expiado pelo preconceito, que "prepara a a ao da exclusño do mais frñgil por aqueles que nño podem viver a sua prñpria fragilidade” (Crochik, 1997, p.23). Ou seja, a defesa agressiva dos valores dominantes, a identifica9ao com as elites, a sujei- 9ño ñ lei do mais forte, encobrem seu oposto: o desejo reprimido de uma sociedade justa que pudesse iecompensar os saciificios requeridos pela adapta9ño, e que permitisse a supeia9ño do estado de impoténcia geral. De maneira perversa, o protesto, cujo alvo legitimo deveria ser a socie- dade de classes, reveite contra a prñpria espeian9a de emancipa9ño: “a raiva se voltou contra a piñpria promessa ela mesma, expressando-se na forma fatal de que essa promessa nño deveria existir” (Adorno, 1995a, p.164)

A servidño voluntñria contém, portanto, sua nega9ño, ou seja, o de- sejo revolucionñrio, que poderia restituir a esperan9a de um mundo jus- to e solidñrio em nome do qual toda crianqa realiza seus primeiros sacri- ficios. Entretanto, como sabemos, uma pedagogia semifoimadora, que se inicia na familia e na escola e se estende ñ industria cultural, encar- rega-se de neutralizar os elementos de oposi9ao, convertendo-os em fa- tores adicionais que iefor9am a reifica9ño. Nño sabemos quais poderño ser os limites histñricos desse processo. Segundo Adorno, a emancipa- Rao nem por isso deixa de ser sua tendéncia imanente: “O sujeito tanto mais é quanto menos é, e tanto menos quanto mais cré ser, quanto mais se ilude em ser algo para si objetivo. Como momento, no entanto, ele é inextingulvel” (1995b: 198).



BUENO, S. F. Contemporary politics and unidimensional society. bans/f’orm/ Aqao, (Sño Paulo), v.27 (1), p.39-50, 2004.


ABSTRACT: The main theme of this paper is the analysis of the contradic- tions in the Brazilian contemporary policies in the light of Critical Theory.

KEY WORDS: Critical Theory; fascism; policies; Adorno; Marcuse.



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1 Professor do Departamento de Filosofia da FFC/UNESP/Marilia.