O INVISIVEL COMO NEGATIVO DO VISIVEL: A GRANDEZA NEGATIVE EM MERLEAU-PONTY1




Luiz Damon Santos MOUTINHO2


RESUMO: Este texto pretende mostrar a critica de Merleau-Ponty ñ ontolo- gia do ser e do nada de Sartre. Contra o modelo da contradipño, tipica dessa ontologia, Merleau-Ponty retoma a no9ño kantiana de giandeza negativa e o seu modelo de oposi9ño real.

PALAVRAS-CHAVE: Merleau-Ponty: ontologia; giandeza negativa; oposipño real.



I


Em 0 visivel e o in visivel, Merleau-Ponty parece concedes um al- cance inédito ao negativo. Em uma nota de trabalho de janeiro de 1960, ele chega a afirmar: “é o negativo que torna possivel o mundo vertical (...) o ser de transcendéncia” (Merleau-Ponty, 1996, p.281). E a negativi- dade, diz ele em outra nota, “que faz que o corpo nño seja fato empirico, que ele tenha significa§ño ontolñgica” e, por isso, a negatividade nño deve ser “minimizada” (idem, p.308). Aquele que se pretende “pela me- tafisica” e “contra a finitude em sentido empirico, existéncia de fato que ten limites” (idem, p.305), vai encontrai no negativo, na medida em que ele o leva para além do fato empirico, a condipño para instalar-se na metafisica. Oue esse tema tenha consumido boa parte das reflexñes de Merleau-Ponty, isso pode ser vislumbrado pelas dimensâes do manus- crito dedicado a desancar a concep9ao saitriana do negativo: trata-se do mais longo capitulo de O visivel e o invisivel, o “Interrogapño e dialé- tica“. Cuiioso é que, nessa retomada do concerto de negativo, e nesse embate contra Sartre, Merleau-Ponty retome um Kant pré-critico (1763), o Kant do conceito de grandeza negativa e oposi9ño real, duas vezes ci- tado nas “Notas de trabalho” (idem, p.314, 318). Essa passagem por Kant, Sartre também a fez, e a anuncia explicitamente, ali mesmo onde a nega9ño parece assumir em Kant, segundo Sartre, um papel posicio- nal. Ha realidades, diz ele, que sño habitadas pela nega ño em sua in- traestrutura, como se a nega9ño se tornasse condi9ño de positividade (Sartre, 1969, p. 57) o que Kant teria sido o primeiro a vislumbrar. Nño é questño aqui para nñs retomar essa leitura.3 Basta-nos apontar alguns poucos elementos dessa leitura de modo a elaborar a no9ño de negativo em Sartre, diante de Kant, e as obje9ñes de Merleau-Ponty, que preten- de retomar, contra Sartre, a grandeza negativa kantiana.


II


E verdade, como nos mostra Lebrun, que a nega9ño torna-se em Kant posicional, que encontramos nele a idéia de que a sombra é “inse- parñvel daquilo que ela ensombrece”, e de ue nisso “Kant difere dos clñssicos” (Lebrun, 1993, p.261). A nega9ño posicional, isto é, ela tor- na-se uma "qualifica9ao para o ser /inito" (idem, p. 259): ainda que a re- alidade enquanto tal seja algo de positivo, a nega9ño adquire o poder de limitar e determinar o grau de realidade, a sua finidade. Lebrun cita Consideiaqâes sobie o otimismo (1759):


se |as realidades] devessem diferir umas das outras enquanto iealidades, preci- saria haver em cada uma algo de positivo que nao estaria na outra: pensaria- mos entño em algo de negativo pelo qual eta se distinguiria da outra (...) Portan- to, uma realidade e uma realidade so se distinguem uma da outra pelas nega9ñes, as auséncias, os limites que afetam uma das duas nño em ielapño â sua natureza (quelitate), mas ñ sua grandeza (9radu) (idem, p. 259-60 e Le- brun, i 993, p.274).


A nega9ño, certamente, nño é uma qualidade; antes disso, ela tern o poder de qualificar, de pñr “pelo prñprio fato de excluir” (Lebrun, 1993, p.259), de modo que os seres do mundo tornam-se "indissoluvelmente rears e negativos“: ”a ‘parte', malgrado o que ela comporta de positivo, nño pode nunca ser despojada de sua ‘parcialidade"' (idem, p.261). Dat porque a caréncia nño se reduz mais, como acontecia entre os clñssicos, a uma mera fantasia, mas se torna, para nâs, “a unica maneira de dis- tinguir a coisa” (idem, p.260). Surge aqui uma ruptuia entre a realidade em st e a iealidade finita e afetada por nega9ñes, isto é, uma ruptuia en- tre o infinito e o finito.

Mas que é afinal uma giandeza negativa? No prefñcio ao ensaio so- bre as grandezas negativas, de 1763, Kant afirma: ”as grandezas nega- tivas nao sño nega9ñes de giandezas, como deixou supor a analogia da

expressño, mas algo em si mesmo verdadeiramente positivo, que é sim- plesmente oposto ao outro” (Kant, 1972, p.16).4 Por negativo, nño se deve entender um negativo-em-st (o que acarretaria uma oposi ño por

contiaditoriedade), mas a simples oposi9ño entre duas realidades posi- tivas (o que nño acarreta contradi9ño): a oposi9ño é dupla, diz Kant: "ou lâgico, mediante a contiadi9ño, ou real, isto é, sein contradi9ño“ (idem, p.19). No primeiro caso, a consequéncia é nada (nihil neyativum iiiepia- esentabile! (o mesmo corpo que estñ em movimento e nño estñ em mo- vimento ao mesmo tempo). No segundo, a consequéncia é algo (nihil privativum, repraesentañile) mas entño o que se opñem sño duas de- termina90es de mesma natureza, contrñrias, nño contiaditñrias. Assim, diz Kant, “a forma motiiz de um corpo que se dirige a uma regiño, bem como um esfor9o igual do mesmo corpo em uma dire9ño oposta, nño se contradizem um ao outro e, como predicados, sño possiveis ao mesmo tempo em um coipo” (idem, p. 19-20). O iepouso é aqui a consequéncia, e ele é algo: eu posso pensar a nño-existéncia de um movimento, mas é impensñvel que ele seja e nño seja ao mesmo tempo. O repouso entño nño é sinñnimo de quietude, de imobilidade; ele é antes iesultante de um jogo de for3as contrñrias, nño-contraditorias. A grandeza sera negativa apenas enquanto estiver ligada a outra grandeza por essa rela9ño de oposi9ño, fazendo desaparecer na outra uma grandeza igual a ela mesma. E sñ quando se referem a um mesmo objeto, opondo-se, que es- sas grandezas sño negativas umas das outras.



III


Ora, certamente o negativo passa a ter aqui um “valor de realidade” (Lebrun, 1993, p.266) ou, como diz Sartre, o negativo passa agora a ha- bitat a realidade em sua intiaestrutura —, mas o que é caiacteristico desse “conceito antidogmñtico" de oposi9ño real é que o negativo sñ aparece “na interse9ño de realidades positivas” (idem, p.272). Ainda vale aqui, portanto, o axioma parmenldico: “a realidade é algo, a nega- Rao nño é nada”. E que, se hñ de um lado uma oposi9ño real, resta que, de outro, justamente orque cada um dos termos pode representar tanto o papel do “positivo" quanto do “negativo”, nño hñ o “positivo em st" nem o "negativo em si". Ora, se nos voltarmos agora a Sartre, vamos en- contras também nele a validade do axioma parmenidico e, mais ainda, o canter posicional da nega9ño. Ocoire que, ao contrñrio de Kant, Sartre nño vai ao ponto de reconhecer uma oposi§ño efetiva, de modo que a nega9ño posicional nao implica ali uma rela9ño real. E uma nega9ño que subjaz ñ deteimina9ño “tinteiro” (“é porque o tinteiio nño é a mesa nem o cachimbo, nem o copo, etc que podemos apreendé-lo como tin- teiro” (Sartre, 1969, p.235). No entanto, essa negapfio (“externa”, na ter- minologia de Sartre) nada mais é que a expressño idealizada pela qual o objeto aparece a um sujeito, sem exprimir nenhuma rela9ao real, ne- nhum conflito, nenhuma oposi9ño entre os seres. Esse nada, diz Sartre, permanece no ar, ele nño remete a uma ielapño real. Tern razño Lebrun em, distinguindo Kant do “dogmatismo" pelo concerto de oposi9ño real, colocar Sartre ao lado deste ultimo: dizer que o tinteiro nño é a mesa, nem o cachimbo, nem o copo, se assemelha antes a Malebranche quan- do falava dos “nadas": “minha mño, dizia ele, nño é minha cabe9a, nem minha Madeira, nem meu quanto... (Lebrun, 1993, p.265 e 1972, p.278).

De onde vem essa nada intramundano que tanto apioxima Sartre dos clñssicos? Ele é apenas um coiielato o que, por sua vez, jñ é sufi- ciente para afastñ-lo dos clñssicos. Um correlato um tanto curioso por- que, de modo inédito, ele remete a um duplo fundamento de um lado, a um ser plenamente positivo, de outro, a um negativo mais originñrio do que ele: em suma, ele remete ao set e ao nada (dessa vez, "nada puro”, distinto do nada intramundano). E aqui, mais que a ontologia do ser e do nada, vamos encontrai a retomada, para além de Kant e dos clñssicos, da contiadiqao. E a partir daqui, do ser, do nada e da contradi9ño, que aque- le nada intramundano e, com ele, a no9ño de /enñmeno, serño pensados.

O em st, diz Sartre, é “plenitude absoluta e inteira positividade”, a tal ponto que a nega9ño dele é inteiramente incapaz de atingir o seu nu- cleo. Pode-se apresentar o ser como pura indetermina9ño, a tal ponto que nada possamos apreender nele; mas isso, cré Sartre, é um puro gol- pe de prestidigitapño, se por esse meio se pretende introduzir implici- tamente a nega9ño na defini9ño de ser para dizer, a partir de entño, que o ser puro é também nada e lazed “passar" o ser no nada. Pois, pode-se negar do ser toda deteimina9ño e todo conteudo; e isto ainda exige a afirma9ño de que o ser é: “assim, que se negue do ser tudo que se quei- ra, nño se poderia fazer que ele mo seja, pelo fato mesmo de que se nega que ele seja isto ou aquilo” (Sartre, 1969, p.60). O ser resiste como positividade e a nega9ño aparece como incapaz de atingi-lo por dentro. Pode-se esvaziar o ser de toda determina9ño possivel, de tudo quanto se queira nño, contudo, de sua identidade consigo mesmo. Aqui, a identidade do ser consigo mesmo exclui qualquer negatividade, qual- quer passages pela alteridade. Essa passagem, essa nega9ao, vem ñ superficie do ser pela iealidade humana, nño por uma dialética prñpria ao ser; tars rela9ñes sño portanto externas, nño internas ao ser. O prin- cipio de identidade implica, pots, “a nega9ño de toda espécie de rela9ño no seio do ser em si” (idem, p. 120). Dat porque, mais que afirmar uma identidade do ser consigo mesmo, Sartre prefere dizer que o ser é maci- 9o, plena positividade, “demais para a eternidade” (idem, p. 34). Assim, o ser nño passa” no nada e o nño-ser se afirma como seu contraditñrio: de um lado, o ser permanece como plena positividade; de outro, o nega- tivo se afirma como pura nega9ño do set.

Ora, mas como pode surgir daqui o fenñmeno? fenñmeno se o set disso que se manifesta permanecer irredutivei as suas diversas ma- nifestasoes, como ser em si. Mais: se na origem desse fenñmeno houver uma rela9ño negativa pela qual a consciéncia do objeto se distinga do

objeto: sñ se pode ser consciéncia de algo se se é, de inicio, nega9ño desse algo. O objeto é para mim, antes de mais nada, o que eu nño sou, ele sñ pode existir para mim se ele é um nño-eu. A nega9ño deve ser dada de inicio como “fundamento a priori de toda experiéncia” (idem, p. 222). Eis aqui a nega9ño do ser. Mas isso nño pode ser tudo: seja do lado do objeto, seja do lado da consciéncia, hñ ainda algo mais. Ouanto ñ consciéncia, ha um minimo recuo pelo qual ela nño se identifica com essa nega9ao que ela é e, por conta disto, ela é consciéncia nño sS do objeto mas também consciéncia (de) si; quanto ñquilo que se manifesta (essa mesa, a cor dessa fruta), ele nño se manifesta sozinho, mas em re- la9ao, em um mundo. Esses dois aspectos também remetem, como sempre, ñ nega9ao, mas desta vez ñ negapao voltada solre si mesma. Como poderia ser diferente? Afinal, se uma nega9ño deve separar o eu do nño-eu, é preciso que o proprio eu esteja separado de si mesmo; do contrñrio, nño haveria para ele "nño-eu", pois ele nño se saberia distinto do objeto. Separado de si mesmo, um pouco além de si mesmo, eis aqui por onde Sartre descortina o "escapamento", o “ultrapassamento de st mesmo”, em suma, a tianscendéncia. Nño se é consciéncia de um obje- to senño em transcendéncia, para além de si mesmo. Assim, o eu é pre- sen9a ao ser enquanto é presenpa a si, enquanto é distñncia a st, en- quanto realiza a dispersño, a multiplicidade no seio de sua unidade enquanto "totalidade".

Dai porque jamais me sera dado apenas um objeto, isto de que eu sou nega9ño, um elemento simples, digamos assim; minha nega9ño, embora localizada diante deste ser aqui, tende a ir adiante, a ultrapas- sa-lo, a transcendé-lo, e pot isto eu estou sempre para além dele. Nas- cem entño as rela9ñes do lado do ser e que vño perfazer o fenñmeno, o mundo, uma nova espécie de "totalidade". Nño se é de inicio nega9ño do "todo", do mundo; o todo é uma determina9ño e enquanto tal remete ñ nega9ño d nega9ño voltada sobre si mesma, origem da transcendén- cia. Portanto, o mundo sñ aparece nesse movimento de ultrapassamen- to. E como a rela9ao entre consciéncia e ser nño é de constitui ao, mas apenas de nega9ño, nada de real pode advir ao ser: negar o ser nño o altera em uma virgula. Toda determina9ño pela qual o "isto" aparece diante "daquilo", do "todo", nño alcan9a o ser.

O ser permanece irredutivel as suas manifesta9ñes, "transfenome- nal", como ser em si, como o contraditñrio que nño "passa" no nada, que nño conhece mudan9a, devir, rela9ño, alteridade (idem, p.33-4). As iela- 9ñes que o para si traz ao set sño portanto externas a ele. E elas sñ se tornaram posslveis porque a nega9ño também se voltou sobre si mes- ma. Tudo se passa como se a nega9ño, para ser pura, devesse se auto- negar; do contrñrio, ela "passaria" no ser, ela se afirmaria como set ne- gativo. E o que exige uma verdadeira contradi9ño: que os contiaditñiios nño "passem" um no outro, nem o ser no nada, nem tampouco o nada no ser, de modo que a exclusividade seja definitiva. O ser é "plena positivi- dade" (idem, p.33) e o nño ser é um puro nño-ser tño exclusivos um do outro, tño purificados, que nao hñ media9ño possivel. Venn daqui, final- mente, desse negativo puro voltado sobre si, a origem do para si e do fenñmeno. O para st se revela como transcendéncia e o fenñmeno como um complexo de rela9ñes nño inerentes ao ser, mas externas a ele. Es- sas rela9ñes nem sño do para si, posto que o para si é apenas transcen- déncia, nem sño do em si, posto que o em st nño tern nenhuma determi- na9ño; nem sño subjetivas, nem sao objetivas, no sentido em que nño tém a realidade do ser em st. Sño apenas maneiras pelas quais o para si, como pura negasño do em si, realiza o mundo. A cor dessa fruta me apa-

rece em relapño, como parte de um fenñmeno, e nessa medida, essa re-

la9ao implica o para si: nño hñ mundo sem para si (e nisto o idealista tern razño). Mas o idealista erra porque nño vé que do para si parte ape- nas uma nega9ño, nño uma proje9ño, nao uma constitui9ño: o mundo nño vem ao ser pelo para si; antes, ao contrñrio, o ser vem ao mundo pelo para st. E, por outro lado, o mundo nño é outro que o em si (nisto tern razño o realista), jñ que o mundo é alguma coisa que acontece ao em st, é um fenñmeno. Mas o realista nño viu que o fenñmeno nño é nada de real, é apenas um nada acrescentado ao em st, uma maneira pela qual o "hñ" é realizado.



IV


Oue Merleau-Ponty tern a notai a essa ontologia do ser e do nada? Se quisermos reencontrar a zona pré-reflexiva de abeitura ao Ser, diz ele, seremos conduzidos, de um lado, a uma coisa que é toda em ato, ab- solutamente estranha a toda interioiidade e que repousa em si sem me- dida comum com nossos "pensamentos"; de outro lado, nada se interpñe entre o ser sujeito e a coisa, o sujeito estñ em ek-stase no mundo, de modo que nenhum "pensamento", nenhuma "imagem", nenhum "ego" se interpñe entre ele e as coisas, esvaziado que ele foi de todos os fan- tasmas com os quais a filosofia o esmagou (Meileau-Ponty, 1996, p.77). O sujeito é aqui pura negatividade (qualquer conteudo implicaria uma forma de positividade e me faria crer que sou res cogitans, coisa) e a coi- sa é inteira positividade (que eu a perceba, isto nño a altera em uma vir- gula no seu ser de coisa). Ora, mas entño, dessa purifica9ño mutua (que, para Sartre, é o que implica uma verdadeira contradi9ño), jd nño hñ, nota Merleau-Ponty, nenhuma intera9ño: entre mim e o mundo nño hñ ponto de encontro, nem ponto de retorno, pois ele é o ser e eu sou nada (idem, p.78). Seja isto diante de meus olhos. Para a "filosofia da negatividade" (idem, p.81), ele me é presente porque nada me separa dele, porque es- tou nele, nño em mim, em minhas representa9ñes; em suma, ele me é presente porque eu sou nada. No entanto, eu nño sou um nada absoluto; enquanto tenho diante de mim isto, eu sou um nada determinado; dir- se-ia que hñ aqui um come9o de positividade, que meu nada é preen- chido ou anulado. Mas essa pseudopositividade de meu presente, nota Merleau-Ponty com rigor, é apenas uma nega9ño reduplicada, nega9ño de si mesma: em um instante, enquanto eu falava, meu presente desa- pareceu e deu lugar a um outro isto (idem, p.79), e assim sucessi- vamente é precisamente isso que Sartre denomina "transcendéncia”. Essa solu$ao, certamente, nao satisfaz Merleau-Ponty. Importa-the notar que nño ha aqui imbrica9ño entre as duas regiñes de ser, nño ha mistura. A transcendéncia de que fala Sartre nño é senño resultado de uma nega9ño ainda mais profunda, pensada até o finn. Ela nño envolve, portanto, mediapao, compromisso, envolvimento. Dat porque, na pena de Sartre, “todos os problemas da filosofia clñssica se volatilizam, por- que eram problemas de ‘mistura' ou de ‘uniño', e mistura e uniño sño impossiveis entre aquilo que é e aquilo que nño é” (idem, p.81-2). Na on- tologia do ser e do nada, a separa9ño deve ser definitiva, mas também, e Merleau-Ponty nño deixa de nota-lo, a uniño é absoluta, sem a minima distñncia e é mesmo por esse duplo jogo que Sartre pode dissolver os problemas da filosofia clñssica. Afinal, se o sujeito é nada é apenas por- que estñ inteiramente consagrado as coisas, sem a minima distñncia, como presen9a imediata ao ser, em ”ek-stase", la fora, junto as coisas: a nega9ño vive do ser que nega. “Estritamente opostos e estritamente confundidos” (idem, p.78), eis o mote sartriano para dissolved as velhas antinomias entre o idealismo e o realismo: o ser me é dado sem distñn- era, o mundo é o proprio ser, o ser esta em toda parte e o realista tern razño, pois o para st nada acrescenta ao em si, em nada o modifica. Nada me separa desse ser que me investe mas, justamente por isto, ele é insuperavel porque é nada: o para si é presen9a imediata ao ser, mas estñ separado dele em uma distñncia infinita; se pretendo apreender o absoluto, sou remetido de volta a mim mesmo, jñ que esse nada, as re- la9ñes, as determina ñes do ser sao devidas ao para si e nisto tern razao o idealista. E justamente ali onde cada um tern razño, o seu adversñrio nao a tern mais, de modo que ambos a tém e nño a tém a um sñ tempo. Faltou-lhes, na sucessño de mal-entendidos que é o debate entre idea- listas e realistas, pensar o negativo iigorosamente. Eis enfim o que se pode concluir de Sartre, arremata Merleau-Ponty. E por isso que essa “filosofia da negatividade absoluta” é, no mesmo movimento, uma “filo- sofia da positividade absoluta" (idem, p.81).

Ora, é verdade que na conclusfio de 0 set e o nada, Sartre coloca o problema de uma nova totalidade, de uma totalidade que envolveria, dessa vez, o em st e o para st. Mas é verdade também que ele se deses- pera dessa questño, relegando-a a "metafisica", fora do escopo da onto- logia, relegando-a portanto as hipñteses provaveis, fora do dominio da evidéncia intuitiva um pouco como Descartes, que relegou ao “obscu- to" a uniño do corpo e da alma la no final das Meditaqâes. E nño é sur- preendente que Sartre tenha chegado a esse resultado: uma vez posto o negativo absoluto e o positivo absoluto, jfi nño ha compromisso possivel entre eles. Ora, mas é justamente essa questño a da totalidade, a da imbrica9ño entre o corpo e a alma, o Eu e o mundo, o Eu e os outros que importa a Merleau-Ponty, e por isso ele pode dizer, em uma nota de trabalho de ievereiro de 1960: “eu tomo meu ponto de partida lñ onde Sartre tern seu ponto de chegada, no Ser ietomado pelo para Si. E nele o ponto de chegada porque ele parte do ser e da negatividade e constroi sua uniño (...). Para uma ontologia do dentro, nño hñ que construir a transcendéncia, ela é de inicio, como Ser duplicado de nada” (idem, p. 290). Mas que pode ser esse “ser duplicado de nada”? Nño sera ele uma “mistura”, isto é, aquilo mesmo que Sartre se empenhou em distinguir? Aqui deve reaparecer o interesse por Kant: para além da contradi9ño que norteou a ontologia sartriana, Merleau-Ponty pretende recuperar a oposi9ao real kantiana. A paitir dela, o “ser duplicado de nada” nño sera mistura (“a estrutura nño é mistura”, diz Merleau-Ponty, e acrescenta: “para mim, o negativo nño quer dizei absolutamente nada, e o positivo também nño (eles sño sinñnimos) e isso nño por um apelo a uma vaga ‘mistura' do ser e do nada” (idem, p.290)). Vejamos isso mais de per to.



V


Em uma inteiven9ño no célebre Colñquio de Bonneval, de 1959, consagrado ao tema do inconsciente, Merleau-Ponty teria afirmado, se- gundo o resumo redigido por Pontalis: “se uma grandeza negativa é uma grandeza de signo contiñrio, se Kant pode dizer que o ñdio é um amor negativo, que o roubo por exemplo é um dom negativo, é preciso reconhecer at uma articula 9a o, uma simultaneidade da piesenqa e da auséncia” (Merleau-Ponty, 1998, p.175; grifos meus). E essa simultaneidade o “Ser duplicado de nada”: o nada nño sera entño o contraditñrio do ser. Mas, que seia ele?

Em uma nota de maio de 1960, Merleau-Ponty (1996, p.31t) afirma: “o sensivel, o visivel, deve set para mim a ocasiao de dizer o que é o nada o nada nño é nada mais (nem nada menos) que o invisivel“. A rela9ño entre ser e nada é agora a rela9ao entre visivel e invisivel com a substancial diferen9a de que o visivel nño é aqui uma presen9a obje- tiva (idem, p.311), um positivo objetivo, e o invisivel uma nega9ño dele, como em Sartre. Isso levaria e sñ poderia levar ao esfor9o de cons- truir a uniño. O visivel nño é nada de objetivo, da ordem do em si, ele é transcendente, e isto significa dizer, na pena de Merleau-Ponty, que ele é carregado de um sentido invisivel. “O visivel é pregnante de invisi- vel”, e de ta1 modo que “para compreender plenamente as rela9ñes visi- veis” (uma casa, por exemplo), "é preciso ir até a rela9ño entre o visivel e o invisivel” (idem, p.269). Dai porque o invisivel nño pode mais ser “o contraditñrio do vis:vel" (idem, p.269) ja que é necessñrio pensar aqui em teimos de rela9ao real, ou, mais profundamente, porque é necessñ- rio pensar a simultaneidade do ser e do nada. E esta simultaneidade que Sartre nño pode pensar: é necessñrio que haja ali uma “posteriori- dade lñgica do nada sobie o ser”, pois o set deve ser posto para entño ser negado (Sartre, 1969, p.50). Posterioridade, de resto, encontrada também em Bergson, e pelas mesmas razñes, jd que se trata, também ali, de uma forma de "ultiapositivismo" (Merleau-Ponty, 1996, p.249).

Na descri9ño de Merleau-Ponty, "o invisivel estñ aJ sem ser objeto” (idem, p.282), a ta1 ponto que os visiveis, no final das contas, estfio "cen- trados nesse nucleo de auséncia” (idem, p.283). E esse mundo carregado de negativo, centrado na auséncia, que Merleau-Ponty denomina um "mundo vertical" (idem, p.281). O visivel replica "uma membrura de in- vislvel”, o invisivel funcionando entao como “a contrapartida secreta do visivel, |de modo que] sS apaiece nele” (idem, p.269). O invisivel nño é um nño visivel no sentido, por exemplo, em que for ou sera visto, ou no sentido daquilo que é visto por outro e nño por mim (idem, p.281, 310). Antes disso, o invisivel é aquilo cuja auséncia "conta no mundo" (idem, p.281). E assim que podemos pensai, até o fim, a simultaneidade de am- bos. Dizer, por exemplo, que o invisivel é apenas um outro visivel "pos- sivel" (aquilo que ora nño vejo), é “destruir a membrura que nos junta a ele” (idem, p.282) e, no limite, sua simultaneidade: hñ que rompei aqui com a posiqño do ser e sua nega9ño posterior, hñ que romper com toda forma de objetividade. Dat porque importa a Merleau-Ponty apontar a membrura por exemplo, nño percep9ao sem imperceppño, e isto por razñes de principio. “Ver é sempre mais que ver", dira ele, “o invisivel do visivel", toda visibilidade compoita, necessaiiamente, "nño-visibili- dade" (idem, p.300), etc. Oue se pense ainda no punctum caecum, o ponto cego inerente ñ consciéncia: o que a consciéncia nño vé, diz Mer- leau-Ponty em nota de maio de 1960, “é por razñes de piincipio que ela nño (...), o que ela nño é o que prepaia a visao do resto (...), é o que faz que ela veja, é sua liga9ño ao Ser, é sua corporeidade, sño os existen- ciais pelos quais o mundo torna-se visivel” (idem, p.301). A alma é como o outro lado, o inverso do corpo, “nño um nño ser absoluto”, ñ maneira sartriana, “por rela9ño a um Ser que seria plenitude e nucleo duro” (idem, p.286). Dat porque a metafora merleau-pontiana de um oco (creux), contra a metñfora do vazio, do buraco ation› (idem, p.249). “A alma estñ plantada no corpo", como o outro lado do corpo, como o invisi- vel por isso, ela nño é um nño-ser ñ maneira do idealismo (idem, p.286). Esse modelo vale para todo o visivel: ele estñ centrado no invisivel,

em existenciais que nño sño "coisas espirituais”, mas apenas “estrutu- ras do vazio” estruturas que Merleau-Ponty procura "plantar (...) no Ser visivel, mostrar que é o inveiso dele” (idem, p.289), como a profun- didade que se cava por trñs da largura e da altura, como o tempo por trñs do espa9o. O invisivel é um invisivel de direito, nño de fato: “o into- cñvel nño é um tocñvel inacessivel”, “o inconsciente nño é uma repre- senta9ao de fato inacessivel: o negativo nño é um positivo que estñ alhures, é um verdadeiro negativo” (idem, p.308): o intocñvel do tocai, o invisivel da visño, sño “o outro lado ou o inverso (a outia dimensionali- dade) do Ser sensivel“ (idem, p.309). Se se diz que os existenciais sao da oidem do inconsciente, é preciso acrescentar que esse inconsciente nño estñ “no fundo de nñs, por trñs de nossas costas”, mas bem “diante de nñs, como articula90es de nosso campo”. Ele nao é objeto porque “ele é aquilo pelo qual objetos sño possiveis”, ele estñ entre os objetos, diz Merleau-Ponty, “como o intervalo das ñrvores entre as arvores", ele é dado originariamente, e dado como nño-presentñvel, como Nichtw:- piasentieibai, do mesmo modo que ”outrem é dado em seu corpo como ausente” (idem, p.234): o invisivel “é o Nichtwprasentieibai que me é apresentado como tal no mundo” (idem, p.269).

Ora, tudo isso remonta a um tipo de rela9ño bastante distinta da- quela pensada por Sartre, em que ser e nada nño se imbricam, nño se conjugam; é preciso pensar antes, como Kant o fizera, “a simultaneida- de da presen9a e da auséncia”, uma rela9ao real pela qual ser e nada, visivel e invisivel, tocavel e intocavel se imbricam um no outro, pela qual um esta em quiasma com o outro, em rela9ño, segundo os termos kantianos, de "oposi§ño real“ (idem, p.314, 318). Dai a necessidade de superar o modelo sartriano da contradi9ño, que se pretende ainda mais radical que o modelo da contiadi9ño dialética. Certamente, também He- gel parece insuficiente a Merleau-Ponty. Em uma nota de trabalho de novembro de 1960, ele afirma que o seu modelo “nño realiza ultrapassa- mento dialético no sentido hegeliano”; seu ultiapassamento, sua trans- cendéncia se realiza sur place, por imbrica9ño (idem, p.318) quer di- zer, por dentro, como se a ele interessasse descrever os existenciais, as juntuias, as membruras, a nervura do real. Mas o debate com Hegel é assunto para outro momento.



MOUTINHO, L. D. S. The invisibel as negative of visibel: the negative grateness in Merleau-Ponty. Aans/Foim7Aqâo, (Sño Paulo), v.27 (1), p.7-18, 2004.


u KEY WORDS: Merleau-Ponty; ontology; negative grateness; real opposition.



Referéncias bibliograficas


KANT, I. Essai pour intioduiie en philosophic Ie concept de yrandeuz né9dtive.

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LEBRUN, G. Kant e o /im da metalisica. Trad. Carlos Alberto R. de Moura. Sño Paulo: Martins Fontes, 1993.

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Notes de come sum L’origine de la géométrie de Husseil. Paris: PUF, 1998.

SARTRE, J.-P. L’etie et ie néant. Paris: Gallimaid, 1969.

1 Este texto é uma versño levemente modificada de uma palestra proferida em maio de 2003, no Depattamento de Filosofia da Universidade de Sño Paulo, por ocasiño do I Encontro de Filosofia Fiancesa Contemporñnea.

2 Professor do Departamento de Filosolia da UFPR.