A HIPOTETICA LINGUAGEM IDEAL DE PLATAO
Maria Carolina ALVES DOS SANTOS1
RESUMO: Para que um discurso sobre o espetaculo do mundo transcendente seja acolhido como totalidade inteligivel e coerente, urge desvencilhar-se da arbitrariedade do dominio de trémulos contornos do sensivel, esfera de opini0es apenas. E o que prop0e Platño, na esteira das reflexñes dos primeiros pensadores: para suprir deficiéncias que causam a elisño da realidade e transformar a linguaqem num veiculo de intelec9ao auténtica dos conceitos essenciais de um pensar filosofico, ele a coloca no centro de uma especula9ño rigorosa. Tal como seus antecessores Heraclito e Parmenides, Platño revela \oyod›i\fo ao empenhai-se na consiru9ño de uma nova estrutura discursiva, diferente daquela do homem cornum, desencadeando no campo da Filosofia uma ievolu9ao que se tornara indispensñvel: elabora um modelo fundador — principio de uma ordern peimanente propedeutica ñ constru9ño de uma linguagem formal e abstrata — ieferente a entes que os homens, na maioria, pot si mesmos nao conseguem visualizar. Somente nela poderñ reverberar a verdade universal das For mas que, ao empiestarem seus nomes a infindavel série dos particulates sensiveis, os clariiica e lhes confere significa9ño. Com as teorias que a partir das Foimas desenvolve e expfie nos DiaJo9os, o filosofo visa a induzip o leitor a pieparar-se para opoiar metodicamente a conversao de sua alma ao plano desses seres ideais, supra-sensiveis, e apreender, assim, a realidade que tudo fundamenta e toina coqnoscivel.
PALAVRAS-CHAVE: Platño; discurso; metafisica: teologia; linguagem dos mistérios; dialética.
Discurso sobre o divino: dos pensadores originarios e de Platao
A rigorosa busca de uma enunciaqño adequada aos discursos de ordem filosofica, como precau9ao ao despreparo do grande publico quanto ñ inefabilidade natural a seu objeto, tern geniais precursores entre os pensadores originñrios. Detentores que foram de um \otos verdadeiro, no sentido enfñtico do termo, remontaram aos mais inabalivers elementos da antiga mitologia para colher a substñncia de suas hem articuladas tramas discursivas. Estabelecem, desde os piimordios, indissocifivol unidade com a tradi9âo, onde alicer9am uma verdade "metafisica” embiionñria, que se desdobra em uma dualidade, para assim, também nela, manter-se velado o aspecto do divino
Com tra9os inovadores proprios de um discurso original, os pensadores inaugurais reafirmam a presen9a do divino oculta no interior do mundo, traduzindo-a como jogo de potencias constitutivas dos fun damentos da natureza, os primeiros principios (dppor). E cinzelam para estes um corpus de no9ñes e proposi9ñes que se inscrevem num horizonte teorico, cujos contornos se vfio delimitando com a separaRao paulatina entre o verdadeiro e o falso. Fazem reverberar profundd
\oyo1r\(o, ao falar dessa grandeza monumental em linguagem que valoriza o segredo, a fim de depurar os leitores e suscitar a adesfio dos ja "iniciados” Como os deuses, as d ppm sño invisiveis (â6e \o), indestrutiveis, situam-se em dominio de dificil apreensño, incomparavelmente superior ao das coisas provisorias e visiveis (here pd) da experiéncia ordinñria: o que este escondido é ontologicamente superior ao aparente (Gernet, 1976, p. 406). Por ndtureza, os principios mo estño abertos ñ linguagem e ñ visâo; e, nao sendo imediatamente visiveis e nem diretamente legiveis, esquivam-se a uma leitura ingéniia: instaura-se, entño, nitida rupture entre as possibilidades do iilosofo e as do leitor nao-especializado.
O \tyos mitico de Platño no Fedio (246e-247e), que rememora a vida pré-empirica da alma reportando-se is visñes dos seres imortais “em sou pedestal sagrado” — e que, pela nitidez da descri9ño desses vislumbres, segundo a let de Adrastéia sS pode pertencer a um verdademo filosofo — é depositñrio da antiquissima tarefa iniciñtica, similar ñ dos primeiros pensadores. Para que a Filosofia pudesse sair vitoriosa desse enfrentamento, na linha de contato com leitores desprovidos de um codigo apropriado ñ sua decifra9ño, Platño propñe o discurso como lugar da media9ño entre elos e a verdade. Faz resplandecer na trama discursiva dos Dialogos, muitas vezes imageticamente, valores ultimos e divinos, vinculando-os ao tecido ainda vivo de uma tradi9ño ieligiosa mais que milenar: inspirado nas regras de siléncio dos rituais de iniciaqño as palavras sacramentais (TO \cyo3cuO), refere-se as coisas mais altds Cautelosamente, fazendo vigorar em seus escritos a mesma espécie de proibi9âo {ñwoppevo) de trair um mistério revelando-o aos nño-iniciados: entreabre apenas as portas que encerram “as coisas mais sérias” (Ta ouoU6orOTOTo) e maiores (+d Phnom) (Platao, Oarta VII, 343a). Permite assim, ao "grande publico”, um olhar velado sobre etas somente, nesse momento em que busca a legitima9ño conceitual da mais alta Forma, o Benn divino, fonte de possibilidade de todas as outras Idéias:' esbo9a a partir deste fundamento uma "teologica" metafisica da luz."
Por um saber das coisas ocultas
Heraclito e Parménides, as mais radiosas figuras entre os construtores da filosofia primeira, aliando formidavel esfor9o de compreensao rational ao sopro mistico-poético que flui do vocabulñrio das seitas e confrarias, proclamam a sabedoria grega do Ser dissociando as coisas ocultas das que sño d›orepd.
O poema heraclitiano de grande envergadura, propositalmente escrito com enigmñticas senten9as no hermético estilo aforistico (Spengler, 1947, p.156), “nada diz (oboe \eyer) nem nada esconde (oboe pUn+er), apenas indica (fi\\a oevo(ue I)” {Herdclito, Mr. 93). “A natureza”, afirma, “ama (1r\eiu) dissimular-se {rpñu+eo8ni) aos nossos olhos” (Heraclito, Ft. 123), numa eterna tensño de contrñrios: este movimento proiundo que suporta os fenñmenos conduz, de modo incessante mas ordenado segundo uma lei, “aquilo que discorda ñ concordia e também inversamente, estabelecendo uma harmonia muito superior ñ visivel” (Herñclito, fir. 54).4 Aos olhos dos que “sabem ver” a dispersfio do Ser nao ocorre, as partes estruturais da d›Unrs revelam-se, isto sim, em continua intera9ao, subsistindo como totalidade unitaria. O imponente poema de Parmenides, ora reduzido a fragmentos, relata com sua maquinaria fantñstica a mistica viagem da alma em dire9ño ñ luz (cfs d›aos) e seu encontro, além dos portñes do Dia e da Noite, com a deusa capaz de instrui-la em todas as coisas: “tanto no ñnimo inabalñvel da rotunda {eñrB Leos) verdade, como na opiniño dos mortars (§po+m'r 6S{os), da qual toda verdadeira convicqño esta ausente” (Herñclito, Mr.1). A mensagem entfio recebida é a da bifurcaWho (Taylors) entre duas vias (Herñclito, Ft. 2)," a da unidade, esfera perfeita e imovel, realidade que, nño encontrada em parte alguma desta terra, é a unica que pode ser pensada; e a da pluraliddde, do devir e do erro, apreensivel em sua mobilidade fluidica pela optica ilusñria e sem alcance dos sentidos, cuja dicotñmica incompatibilidade cabe, ao homem que sabe, apontar (Herñclito, Mr. 8).
Postulados da embrionñria “metafisica-teolñgica”
Parménides e Heraclito, no alvor dessa nova manifesta9fio da inteligéncia humana, o espirito filosofico, assim como estranhas personalidades de entño — videntes extñticos, poetas cantadores, profetas inspirddos, magos purificadores — dominam a ante de deslocar-se para bem longe do caminho trilhado pelo homem comum, o mundo enganador das aparéncias, e de transporter-se para a dimensao do invisivel. Nas cren9as e prñticas religiosas desses individuos de exceao, o tema das coisas ocultas é integrante dos ritos de celebra9ao dos grandes e indiziveis Mistérios. Nessa experiéncia perturbadora, estas coisas se revelam ñ alma dos iniciados, envoltas em intense aura de luz, a ’enouve(o: iluminada que esta interiormente pela presen9a de uma divindade, em seu deslumbramento, a alma percebe sua natureza de modo diverso do da maioria dos homens.
Naqueles tempos longinqiios, os primeiros filosofos, inspirados pela clarividéncia superior de um 6of 3mv misterioso, ao penetrar nd ordem do essencial e imutñvel, intuitivamente vño decifrando e nomeando aquelas realidades ultimas. E descrevem-nas enigmaticamente com seu génio dramñtico, veiculando um saber que contrasts com a mera opiniño da multidfio de nño-iniciados, esfor9ando-se por estabelecer postulados axiomaticos, o euro+ pp entfio nascente.
Herñclito dfirma a existencia da “bela harmonia invisivel, muito superior ñ que é visivel” (Heraclito, Mr. 54), cujas sonoridades primordiais da lei soberana que a rege “amam ocultar-se”” (Heraclito, Mr.
123) dos que possuem “almas bñrbaras e dormentes”, revelando a poucos seu segredo, aos bons somente, aqueles dotados de "alma sutil e vigilante”7 (Heraclito, Fr. 104, 107). Dominado pelo mesmo desejo, ultrapassar o plano das coisas instñveis freqiientado pelo homem comum, Parménides recorre as belas palavras da deusa em seu Poema para alertar contra a ambiguidade das ingénuas convic9ñes dos mortais, que a lingua grega chama de 6o{o: “alastem -se dessd Via da eiiância, da inconcebivel e ergonosa poténcie do Nño-Ser (ohr clues)” Desta somente se podem desviar gra9as ao socorro da divindade, que a ele proprio conduziu ñ unica via que torna concebivel uma auténtica investiga9ño, a da imutñvel ’A\ 8e re' (Parménides, Mr.2).
O "livro” filosñfico como transgressño do "segredo"
E, embora fosse grega a tendéncia ñ preservaqño desse saber augusto das coisas ocultas, os misticos e os profetas, bem como os filñsofos, experimentaram inelutñvel necessidade de quebrar a disciplina do segredo e, ainda que de modo alusivo, comunicar vislumbres dessas expeiiéncias extraordinarias. O filosofo de Eléia sabe que os conhecimentos veiculados por ele sño inacessiveis ñ maioria, mas acaba por desvelar ao leitor-ouvinte, em versos, o que recebeu por inspiradio divina, seguindo a tradi9ño que faz deles a forma apropriada ñ revela9ño profética; e, ao descrever a surpreendente apari9ño da deusa, que é a Verdade em st mesma," galopando numa fabulosa carruagem, pronunciando de modo axiomfitico, mediante teses dicotñmicas e contraditñrias, a absolute unidade do Ser (Platfio, Sof. 244e; Pats. 128a; Aristoteles, Metdl. A3, 948a), franqueia-a a contesta Oes de ordem especulativa,
Do outro lado do mundo gteqo, em Efeso, outro filñsofo também
nño silencia sobre o que apreendeu da grandeza criadora do Aoyos, “Tendo se colocado ñ escuta”, obliquamente, numa linguagem delirante e enigmñtica, teceu fragmentos sobre essa let suprema e divina
"que tudo governa” (TCt ono 6ror roñrvt) (Herficlito, Mr. 72). Desvenda aos neñfitos o seu jogo secreto e incessante, a tensño dos contrarios, ao atribuir nomes que diferenciam as coisas subsumidas por eld, fazendo justi9a ñ natureza de cada uma: apesar de explicito desprezo ñ multidño, e da busca reiterada do isolamento (ele também “ama esconder-se”), ao escrever seu "livro" e confiñ-lo ao templo da deusa Artemis, Heraclito quis que ele fosse preservado da destrui9ño para revelar-se ñ posteridade em toda a sua magnitude.
A linguagem prépria para falar do divino
Valende-se da prerrogativa de todo filosofo, de comunicar publicamente somente o que considers oportuno, e a quem julga em condi9ñes de entendé-to, tefl£l Platño falddo Sobre a matriz das teses que professa a um circulo restrito, aqueles que se dispuseram ñ longs e intensa prepara9ño matematico-dialética ministrada na Academia?' A questfio é polemics. Afirma-se, por um lado, haver uma Brad sao indireta que atestaria a existéncia de um pensarnento esotérico, obra puramente dogmñtica, reser vada a discipulos mais proximos e comunicada oralmonte: seriam doutrinas nño -escritas (â y polo bOJ{1OTO), das quais as teses dos Dialogos constituilldm mero reflexo Paradoxalmente, diz Reale (1997, p.3), signatC[rio desse paradigms hermenñutico, que embora estejamos de posse de tudo que Platño escreveu, baseando-se somente nesses escritos nfio conheceremos tudo que pensou. Cherniss (1944), crltico declarado desta linha interpretative, por outro lado, defende que o pensarnento platñnieo exposto nos textos dos Dialogos esta completo. Seja como for, é fato que o principio iluminador de snas teses para ser minimamente apreendido requer solida nor6e r a, além de qualidades intelectuais naturals. E exigéncia proposta ao futuro guardiso da cidade ideal (Rep. VI e VII) e aos disci pulos da Acad81TlIa, um programs de estudo de disciplines com yrau
carater absoluto, totalizador, e a ela se refere eomo o piimeiro eaminho da investiga9ño; e a nega9ño, o fato eontrârio, a mo-existéncia, é a via ilusñria do nao-ser. Esse ensinamento, a piimeira tese paimenidiana, erige um ponto de par tida iriecusavel, que devera constituii base solida para toda a filosofia: tudo o que permanece fora do dominio do ser, o que nño é, e incompreensivel, impensavel, nenhum sistema pode dat conta dele (Coidero, 1984, p. 184).
t
rogressivo de
abstrapâo, que culmina na dialetica. Seria
esse, Liz
Claudin
(1990, p.
97), o sentido
exato la condena ño da Matta
Vñ ñ
publiciddde
dada a
certos ensinos fiiosofiCOS: sua correta
assimila9ño
demands
talento
pessoal e
especial forma9ño e cuja
reprodu9ño
esses "verdadeiros pre-
to da cogni9ao plena de seu edificio filosoflco: o método dialético, na mas determinantes do pensamento platñnico que permanecem esotéricos de algum modo, uma vez ilustrados mediante vivas metñforas ou pelas incontaveis narrativas miticas que utiliza, nfio acabam sendo entrela9ados ao exotérico sob multiplas formas? E, se nfio se pode dizer que a obra platñnica seja totalmente exotérica e, como qualquer outra da mesma ordem, apreensivel por todo tipo de leitor, as amplitude e complexidade de seus movimentos de ascensao e doutrinas e os principios fundamentais, aquilo que constitui sua “alma”, descensfio (Fedio, 265c-265e), a custa de muito esfor9o, faculta a alma vislumbrar, com nitidez cada vez maior, o Benn. Apesar das peremptornas precau9ñes contra a escritura, devido ñ consciencia de suas limita9ñes diante da vivacidade e da eficâcia da transmissño oral do saber manilestas em discutidas passagens do Fedio (274b e sq.) e da Cdstd vJ1 (342a-344d)' 2 —, nao se pode concluir que Platao seja francamente hostil ao grande publico que o livro iria eventualmente atingir uma vez impresso. Ao escrever de forma alusiva, ieferindo-se as privilegiadas intui90es sobre as “coisas de maior valor”, usa pedagogicamente paawas envoltas em espesso simbolismo, para estimular a imagina Lapidar a linguagem por ela mesma
Por conhecer bem a ambigua natureza da escritura — Platño sabe que por essa media9ño a filosofia pode tomar corpo e se legitimar, expressando-se de modo consistente, ou se dissolved numa vagueza enganadora, como os discursos dos retñricos e sofistas — ele medita sem descanso, ao longo de sua obra, sobre seus equivocos, competenera e possibilidades. A rela9ño que estabelece com a escritura, nessa
Ingenuo seria, diz Hegel, considerar que um filosofo esteja de posse de seus pensamentos como coisas exteriores. “A idéia filosofica o posse de tal maneira” que, para explicitar o objeto de sua investigaWho, nño lhe resta senño regrar-se por eta: assim, embora Platño nunca fate em pessoa not Dialogos — "sempre dâ a palavra a Socrates ou a outros, e nao se sabe qual deles expñe realmente a sua opiniño” —, “a filosoiia platñnica reflui de sua obra com toda clareza” (Hegel, 1972, pp. 398—400)." Sob esta perspectiva, os aspectos conceituais ou axiomente paradoxal e desconcertante (Vegetti, 1992, p. 387): a um sñ tempo a critica e a rejeita por suas imprecis0es e lhe confere fun9ño fundamental, intelectual e cultural, em sua vida de escritor. Ao transpor por escrito as bases de original filosofia, a hipotética teoria das Idéias (Bréhier, 1967, p.108) — entidades extralin@isticas, inequivocas, incorporeas, imutñveis, divines, que iluminaridlTl 0 discurso com sua claieza natural —, busca viabilizar a plena inteligibilidade do texto filosofico.
Assim, embora aquele gesto critico de condena9ao da escritura seja ressaltado e difundido pelos comentadores, mais do que este de sua reiterada utiliza9ño — nño morreu Platño escrevendo? — nfio parece ser suficiente reivindicar-the um lugar entre os partidarios incondicionais da oralidade, atirma C. Gaudin (1990, p. 11). Nño se esfor9ou ele, infinitamente, por haurir da linguagem escrita todas as suas possibilidades, e fazer dela a via articuladora de um dizei original, ou be um dizer do original? E exemplarmente filosofica a postura platñnica de fazer da linguagem — condi9ño de possibilidade de um discurso verdadeiro e universal — um problems preliminar, questionando rigorosamente a eficñcia deste instrumento por meio dele mesmo Tal como os lapidadores, que usam do proprio diamante para facetñ-to, Platfio uti liza-se da linguagem mesma no polimento de sua te:‹tura, para que eta possa assinalar aos concertos see lugar na hierarquia ontologica, e revelar, em filigrana, o entrela9amento dos intrincados caminhos que conduzem aos fundamentos das teses que defende. E assim que o pai dos Dialogos, responsñvel pela riqueza substantial dos \SJor que veiculam, tenta fazer valer, por meio dessa investiga9fio, nño so urna filosofia especifica, a sua, mas a Filosofia em si mesma.
Da dimensâo mutñvel do sensivel, de onde se origins a escritura, Platño faz brotar, de modo inaugural, lampejos do ser mais alto, o divino imanente as estruturas imutaveis e inteligiveis, tentando fazer desta sua linguagem filosofica peculiar o lugar do evento da Verdade E ao expor, diante do olhar daquele leitor que melhor se preparou, a vastidño deste estavel mundo ideal, tal ccmo relata o mito do circuito das almas do Pedro (Platâo, 248a-249c), remete-o ñ sua situaqâo originñria, pré-empirica, Resgatarâ assim, quem sabe, visualiza9fies primordiais das Essñncias, indica90es daquilo que constitui a pré-historia de sua alma: sua beta humanidade, de irnortal oriyem e inviolavel destino, junto ñqueles seres divinos existences desde sempre. Escritor exceptional, um dos mais polñmicos de todos os tempos, n°ao deve, etc também, a vitalidade de seus textos as rememora90es da fonte propria do saber, dialeticamente conduzidas pelos questionamentos mctodicos de Socrates {Platño, Pedro 276e-277a}? O sentido u1:imo dos escritos platñnicos, assim como essa fonte que os alimenta, parece jamais se exaurir, a considerar as incont/aveis interpreta9ñes e cornentñrios, a partir dos quais o platonismo tern sido plasmado no decorrer da Historic da I'ilosoiia (Holy, 1974, p.8-10).
Para que um texto sobre o esperñcalo do mundo transcendence seja acolhido como totalidsde inteligivel e coerente, precise desvencilhar-se da arbitrariedade do dominio de trémulos contornos do mundo sensivel, esfera das opiniñes. E o que prop0e Platao na esteira dos primeiros pensadores: para suprir deficiéncias que acarretam a elisfio da realidade e transformar a linguagem num veiculo de intelec9ño dos concertos de um pensar filosofico, ele a coloca no centro de uma especula9ño rigorosa. Assim como seus antecessores, Heraclito e Parménides, revela \oyoQr\in ao empenhar-se na constru9ño de nova estrutura de vocabulario e de discurso, diferentes dos do homem comum, desencadeando, no campo da Filosofia, uma revolu9ño que se tornara urgente (Havelock, 1996, p. 281):'4 Platao elabora um modelo fundador, principio de uma ordem requerida como preludio a edifica9ño de uma linguagem formal e abstrata, referente d entes que a maioria dos homens, por si, nao consegue contemplar (Platfio, Rep., 493e494a)."Somente nela podera reverberar a verdade universalizadora das Formas divinas, uma 8eopio intelectualmente sistematizada, contendo a infindñvel série dos particulates sensiveis, aos quais aquelas Idéias emprestam seus nomes: o filñsofo quer induzir o leitor a “ver”, assim, a possibilidade de operar a conversao de sua alma ao plano inteligivel medidnte a dialética e convened-lo da suprema realidade deste fundamento de tudo.'"
Transparéncia e univocidade na linguagem primordial Originalmente, na festa dos tempos imemoriais, imagine-se que a palavra trazia em st a propria substñncia do real indicado, afirma J. Starobinski (1984, p.41-2). Dada sua necessidade expressiva, como (for d›Jrov+o, o homem transmuta essa forma vital na cria9ño de uma lingua transparente, univoca, exata na manifesta9ño do sentido das coisas. Imerso no seio de uma natureza tida como divina, tocado pela harmonia circundante, arquiteta como fruto dessa rela9ño uma inguagemparadisiaca, cujaimediaticidade épropiaâcelebra âo das esséncias, tornando-as presentes: num ato original e caracteristico, realiza a revela9ño do mundo. A separa9ao gradativa, ocorrida entre homem e natureza, teria determinado a perda dessa sua dimensño transcendente, desencadeando a dissocia9ño entre o uso sagrado e o profano. Exaurida, deixa paulatinamente de ser guardiñ do sentido, tornando-se equivoca, imprecise, polissémica, ancorando-se entño no dominio sensivel. O ato comunicativo passa a trazer os vestigios dessa linha separatñria que se estabeleceu entre os dois planos: por sua precariedade e vulnerabilidade, em rela9ño ao ato outrora numinoso da comunicapño, instala-se a desconfian9a a respeito do alcance e valor da linguagem.
O ser real da linguagem
Se em tempos arcaicos houve uma lingua unica, religiosa, capaz de invocar o sobrenatural e nomear o existente segundo sua natureza propria, Platño exerce tarefa pioneira na culture ocidental, ao tentar criar um género de linguagem similar e inédito ao mesmo tempo, cuja nuan9a decisiva é o poder de referencia e de integra9ao ñ blurs verdadeira de cada coisa, invisivel, atemporal e divina. Esse esfor9o tern inicio no CrdtiJo e se estende por toda a sua obra. E piofundo o impacto causado na historic da filosofia ocidental, a concep9ao do imenso horizonte de significa9ñes transcendentes, universals e permanentes, ao qual se reporta esse discurso filosofico inaugural para autenticar suas formula9ñes: dele resultaram vigorosas teorias sistematizadas em torno de uma intui9ño original, o Bern divino. A visualiza9ao dessa comunidade "organicamente" ordenada de seres inteligiveis, em conexño com os sensiveis pela media9ao de nomes que lhes atribuem significado de maneira regente e fundante (Parain, 1942, p. 4i); a profunda vincula9ño estabelecida entre as coisas palpaveis com as ef6 existentes no rouos uorj+os é o novo \oyos capaz de expressar os mais altos vños do espirito filosofico de Platao." Diz a fiepuhJ‹ca:
ha fundamentalmente um grande nñmeio de coisas belas (uo\\ñ uo\ri), Anna pluialidade de coisas boas e de toda outra espécie (not u‹›\\/i riy‹i0« i«i e KOOTO OUT(OS), das quais enunciamos a existencia e distinguimos ma linen:i
O filñsofo celebra um tempo inaugural para o pensamento humano, um codigo canonico hipotético de valores estñveis que minimizam as ambiguidades da linguagem. Consegue imprimir maior retidño na relaqño entre a multiplicidade dos seies constitutivos da via fenoménica e as palavras, referindo-as nao as coisas concretas mas a esséncias impalpñveis e divines, abstra9ñes que as significam, as Formas: garante nño sñ a possibilidade de nomea9ao, como a de dtribui9ño e de defini9ño da realidade sensivel em sua totalidade. Com essa hipotese, método de pesquisa, de explica9ño e de justifica9ño do mundo do devir, fundamento da linguagem "ideal" da Filosofia auténtica, presente em todos os Dialogos, do Fédon is Leif, com pequenas variadoes — em ultima anñlise, como solu9fio da questño das rela9ñes do Um e do Multiplo — com tra9os fortemente teologicos, come9a a Metafisica , diz M. Heidegger (1968, p.42).
SANTOS, M. C. A. dos. Plato's hypothetical ideal language. Tians/Foim/
Ohio, (Sño Paulo), v 26 (2), p.93-107, 2003.
ABSTRACT: For a discourse on the spectacle of the transcendental world to be received in its comprehensible and coherent totality, its needs to get rid of the arbitrariness of the dominion of tremulous shapes of the sensitive, which is merely the sphere of opinions. This is what Plato suggests, following the course of reflection of the first thinkers: in order to compensate the deficiencies that entail elision of reality and to transform language into a vehicle of authentic intellection of the fundamental concepts of philosophical thinking, he sets it into the center of a rigorous speculation. In the same way as his predecessors Heraclitus and Parmenides, the philosopher reveals \oyod›t\io at exerting himself to build a new discursive structure, different from that of common man and thereby stirring, in the field of philosophy, a revolution that had become indispensable: he elaborates a founding model
— the beginning of a permanent order as the prelude to the edification of a formal and abstract language that refers to entities that the majority of humans cannot visualize by themselves. Only through it will the universal truth of the divine Forms be able to shine, which, at lending their names to the endless series of sensible par ticulars, clarifies them and confers them signification. Through the theories he develops based on them and exposes in the Dioiogues, the philosopher aims at inducing the reader to prepare himself to methodically operate the conversion of his soul to the level of these super-sensitive ideal beings and grasp, thus, the reality that rounds and turns everything cogmzable.
KEYWORDS: Plato; discourse: metaphysics; theology; language of the mysteries; dialectics.
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