BACHELARD E A FILOSOFIA


Fñbio Ferreira de ALMEIDA1


RESUMO: Neste breve artigo tento apresentar a compieensño singular de filosofia que aparece na reflexño que Gaston Bachelard dedica a arte e a literature.

PALAVRAS-CHAVE: Bachelard; filosofia; ontologia, intensidade.


Nunca houve isso, uma paging em branco. No fundo, todas gritam, pñlidas de tanto.

Paulo Leminski


Na introdu9ño ñ coletñnea de artigos ActuaJité et posteRtes de C!aston Bochelaid, Pascal Nouvel (1997, p.5) chama a aten9ño para o lugar singular que a obra do filñsofo ocupa na "paisagem da filosofia francesa”: um lugar ao mesmo tempo marginal e central. Nouvel expli- ca estes dois ddjetivos: o primeiro se justifica pela dificuldade, ou quase impossibilidade de situar o pensamento de Bachelard no ñmbi- to de qualquer escola Ou tradi9ño filosñfica estabelecida; o segundo, em contrapartida, pela diversidade da filia9ño que a partir de sua obra se estabeleceu: Georges Canguilhem, Michel Foucault, Francois Dagognet, Louis Althusser... Um outro aspecto, abordado com maior entusiasmo, diz respeito muito mais ao itinerñrio de sua produ9fio, isto é, ao dia e ñ noite de um pensamento que nfio dorme; ñ epistemologia e ñ “filosofia literdrla“ que dividem seu interesse e que, para empregarmos uma expressâo de Gilles Deleuze, configuram a “geografia”

A filosofia como tal, as idéias metafisicas, as intui9fies imediatas de seu pensamento. Estes dois aspectos parecer suiicientes para res- saitar quanto a relaqfio de Bachelard com a propria filosofia constitui um tema aberto e quanto sua importancia nño pode ser menosprezasño uma espécie de entusiasmo, um arrebatamento de primeira apro- xima9ño que é preciso dominar pela instru9ño; e é preciso, antes de tudo, instruir-se para pensar. A posi9âo do filosofo é, entño, dfidlXo.


Diante de uma gravura de A. Flocon, a razño deve ausentar-se para que o filosofo finalmente se instrua, se deixe instruir, nño pelo belo,

Bachelard? Penso que esta pergunta nño encontrar ia boa resposta, nfio pelo sublime, nño pelo génio, mas pela ferramenta que singra a

fundamentalme nte porque tal suporia como que a elabora9ño de uma “imagem do pensamento”, o decalque de uma representa9ño da refle- x ño filosofica. .. uma representa qño qualqu er do mesmo. Mas, roubando novarnente a expressâo de Deleuze, esamos agora dante de um matéria, pela forma que penetra e fere a natureza. Eis o Spice do que podemos chamar de instruqño literâria, o devaneio, que da vazfio BS imdgens e que faz com que etas jorrem de uma consciencid sonhado ra. E nestes instances que se revela a figura singular do leitor que, “pensamento sem imaqes”

Deste modo, talvez um ponto de partida mais do que se contrapor, subverte os personagens do Theating se nos apresentasse melhor st perguntñssemos antes como se dñ a filosofia em Bachelard. Esta mudan9a tern aqui efeitos decisivos: indi- ca que nño é uma metafisica que estñ em jogo, mas uma ontologia; a clareza e distin9ño cedem lugar ao trñgico; ao inves de um pensamento extensivo, um pensamento intensivo. Parece ser neste sentido que

PLllOSOpLJCum tr£ldicional: o sujeito, a rC[zño, a verdade, a obriq, o tu-

tor, Deus.

Nño men os provo cativa é d perspective geral de todd epistemologia bachelardiana, que se anuncia jñ nos primeiros part grafos de O rovo espiiito clenti/Eco.


Canguilhem reconhece em Bachelard um estilo filosofico rural” Com efe ito, em todos os solos por que percorre seu pensamento encontraremos sempre um pensamento “nño fixado”, com o filosofo de ue a “polifilosofia” depararemo-n os, enfim, si, julgñ Id sem idéias preconcebidas, mesmo a margem de todas as obriga9ñes demasiado estritas do vocabulario filosolico. A ciencia cria, corn efeito, filoso-

O objetivo central deste breve artigo é, entño, sublinhar esta peculiaridade da reflexño de Bachelard, da qual o canter filosofico parece surgir quase como um efeito colateral. Isto nño significa, evi- dentemente, que a filosofia seja algo negativo, algo do que se deva lugs OU que se deva evitar; trata-se antes de reconhecer um novo estatuto ñ reflexño filosofica, estatuto este que se evidencia, por exemplo, pela famosa anedota segundo a qual Bachelard afirmava que, ñ fia. O filñsofo deve, portanto, tornar flexivel sua lingudgem para traduzir o pensamento contemporñneo em sub versatilldade e mobilidade (Bachelard, 1937, p.3).


Eis que também neste dominio a filosofia se subordina. Ela ago- ra e como que requisitada por um pensamento mans autentico que, no caso da epistemologia, é a ciéncia. Realidade, obj etiv idade, racionalidade sño idéias que surgem e continuamente se transformam companhiados filosofos, preferia a dos poetas.' Esta preferencia se na prñpria ciéncia ou, recorrendo ñ expressfio de Bachelard, no interior manifesto, de modo um pouco rnais austero, também em seus escritOS,COIhO no prefñcio ao livro Trdité du flour, do gravador Albert Flocon:

Mas o filñsofo ja manifestou bastante, numap ñgi na, seu erttt1S18SITlO metafisico.Ouer agoia se instruii, quer seguir linha por linhd o relato de um buril animado, um buril vivo, um burtl criador dc vida. Ouer participar da consci0ncia dd ferramenta, da consciñncid do artesño que oscolhe a materia justa de sua a9ao (Bachelaid, 1994, p. 75).


da cité screw tjiiqoe e da rela9ño entre seus “atores”. A filosofia como tal perdeu aquela clñssica e presun9osa autonomic. Mais uma vez nfio hñ pressupostos: ñ preciso instruir-se.

Vñrios momentos da obra de Bachelard, senño todos em maior ou menor medida, nos dño testemunho deste modo de ser do pensa- mento Contudo, e talvez nfio por acaso, é particuldrmente nas ulti- mas obras que isto se evidencia, e muito mais em seu ultimo livro A cLama de uma vela. Talvez nfio por acaso também, é neste periodo que o termo poéiiCñ dS8Hme uma preponderñncia e um vigor inéditos. E diante da singularidade desta base final da produ9fio bachelardiana que Jean Lacroix (1973, p.17), justamente a respeito dos livros A poé tJca do espaqo, A poétJca do deyaneJo e tambem do A chama de uma

veJa, pode afirmar.

Estes ultimos livros fornecem a chave para todos os demais, incluilldo os epistemologicos, e introduzem , para alem de toda propedeutica, a uma verdadeira pedagogic do espiiito. Desapaiece toda psicanalise e o homem se re ve 1a como cnador, como fonte e oiigem, como criadoi de mundos tanto do mundo da ciéncia como do mundo da arte. E ele o ser que responde a todas piovocapñes, particulaimente a do instante, mediante a criapao; o set que recupera a voca9ño da filosofia que, desde os pré-socraticos , foi sempre uma vocapâo de desvelamento: o set cuja missño é lutai sem cessar contra o sonho do mundo e seu propiio adoimecimento.

Esta passages, do belo texto GostoR Bechelaid, o homem e a obra, abre caminho para respondermos ñ questño que neste momento se colocam no horizonte deste desvelamento. “Somente as crises da razño instr uem a razño”, afir ma Bachelard em O enyajamento iacionalista (p. 34). Também é bastante conhecida a exigéncia de que a razfio retome sua fun9ño de turbuléncia e agressividade, e ainda, no ensaio sobre Lautréamont, “poeta do musculo e do grito”, lemos:


E pieciso aceder ao humano para se assenhorear dos gritos dominantes. E pela via de um berro poético que os perceberemos acontecer em Oe cantos de Moldoioi. Aqueles que enxeigam nestes cantos uma maledicéncia teatral se enganam. Trata se de um universo especial, um universo ativo, um universo gritado. Neste universo a energia é uma estética (Bachelard, 1995, p. 115).


E importance notar que este canter tragico que a ontologia ba- chelardiana dssume nao confere, como se pode perceber tanto no tex- to O suiracionalismo como no La utieamont, qualquer tom sombrio e e impoe como central, a saber: o que confere ao adjetivo poética" nem sequer vestigios de pessimismo a seu pensamento. Aliñs, ao con uma consistencia deste tipo, uma colora9ño até certo ponto inusitada, uma vez que nño se deixa limitar pela perspectiva geral de uma esté- tica? Penso que uma resposta a ost a questao passa necessaria mente pelo carater ontologico que, sob o signo do poético, o pensamento assume, isto é, pelo desvelamento originñrio que, como atesta LacroiX, a filosolia entño retoma como sua fun9ño. Este sentido ontologico da no9ño de poética se refere efetivamente a um “desperta r das fontes”.” Deste redo, Uma poética, corno ontologia, nño pretende responder â pergunta traditional “o que é o ser?” ; trata-se muito mais, no sentido heideggeriano mesmo do termo, de um desvelamento do ser. Porém onde se esconde o ser? Pergunta inevitâvel ñ qual podemos dat umñ resposta lacñnica: em tudo. Sabemos que o ser se diz de vñrios mOdOS trñrio: parece ser justamente para evitar esta remota, mas possivel impressño, que as metamorfoses descritas nos Cantos de Maldoioi sfio privilegiadas, por exemplo, em rela9ño ñ classica metamorfose kafkiana. “Em Kafka, o ser é deñado ñ sua miséria extreme” (Bachelard, 1995, p.19 20). E continue: “as metamorfoses de Kafka se colocam sob um signo negativo. Elas explicam melhor por antitese a dinamogenia que um leitor atento recebe ao ler os Cantos de MaJdorof'. Lautréamont é dinñmico, alegre, vivaz, enfim, ascensional no sentido nietzchiano do termo, ao passo que Kafka é desesperado, atordoado, é a renuncia e o decaimento. Poderiamos entño dizer, para ementar aquela "peda- gogia do espirito” de que hfi pouco nos Malaya Lacroix, que enquanto Kafka se rende a seu ambiente, a seu Umwelt e a todo um estado de e que esta é sua dissimulaQfio. OS

Para além, portanto, de toda estética e até mesmo da propria

obra de arte, a no9âo de poética se firma, na obra de Bachelard, pela via de uma ontologia que nño prescinde deste decisivo acento trñgico. E esta poética que, por sua vez, retira do pensamento a obriga9ño de empreender a busca monotone de identidades perfeitas eu/pensa- mento, sujeito/objeto, autor/obra, significante/significado. O pensa- mento intensivo se coloca em busca justamente do oposto: a diferen- pa, e esta é sua tarefa infinite. Esta busca da diferen9a nos remete a um tema fundamental da pedagogic que emerge da obra bachelardiana e que se evidencia particularmente em seus trabalhos epistemologicos, embora possa ser tornado como uma espécie de valor que perpassa toda a sua reflexño, a saber: o tema da "socializa9ño"

Certamente um dos momentos em que o sentido desta idéia se explicita de modo particular, é quando sño abordados os "racionalismos regionais”, no capitulo VII de O racionaJismo apJicado.


Desde que as consideremos um pouco mans de perto, veremos que as funpñes filosoficas da ciencia se multiplicam. Poucos pensamentos ha que sejam filosoticamente mais variados que o pensamento cientifico. O papel da filosolia das ciéncias é recensear esta variedade e mostrar o quanto os filosofos se instruiriam se quisessem meditar sobre o pensamento cientifico contempo- rñneo (Bachelard, 1977, p. 158).


Note se que nfio pode haver medita9ño em estado de solidño, na tranquilidade asséptica de um aposento burgues. O método agora nño per mite uma volta do sujeito para si mesmo; pensar é 1an9ar-se no

/ora, ñ exterioridade do mundo “E na reflexño que aparecem as rears garantias de objetividade. Mas esta reflexño mo pode limitar-se a um empenho do sujeito. Ela é essencialmente cNturaJ. O homem nño estñ sozinho diante do objeto cientifico” " (Bachelard, 1977, p. 160).

Se na epistemologia este canter "social", ou "cultural” da ativi- dade cientifica é tño manifesto, poder-se-ia objetar que, peso menos no que diz respeito ñ imagina9ao poética e ao devaneio literârio, este vinculo com o exterior esmaece e ainda vigora um certo cartesianismo. Sem duvida at um privilégio da solidño, do siléncio, mas ha que se estar atento ao fato be que esta solidño é uma solidâo De Jeitura. O leitor so se tornarñ autñnomo com o poeta, quando o olho que le se retira da pfigina. "Ajudado pela imagina9ño dos outros, men devaneio ultrapassa meus proprios sonhos”, declare Bachelard. A figura de um sujeito solidamente constituido estñ, também nesie dominio, comple- tamente banida. Nesta solidño literfiria (talvez possamos dize-to no plural: soliDâes literaiias) nño é a certeza do eu que estfi em jogo, mas o acontecimento subito da imagem poética e a apari9ño coriscante do leitor, do sonhador. O importante é notar-se que, mesmo este fenñme- no, apesar de sua primitividade e singularidade, estd submetido fun- damentalmente ñ instru9ño. “A vela nño ilumina um quarto vazio, eta ilumina um livro“ (Bachelard, 1996, p. 54).

Em Bachelard, talvez possamos afirma ie agora, a filosofla se dñ como estudo, ou antes, no intensidade do estudo, da leitura e, por finn, somente por finn, do pensamento, isto é, uma espécie de sensibilidade para as "funqñes filosñficas” que os diversos "saberes" carregam e uma disponibilidade do espirito para atender is suas soIicita90es. Po- deriamos assumir o risco de dizer, entño, que Bachelard é um filosofo que nño filosofa; um filosofo para quem este serta um hñbito que acarretaria a estagna9ño e a imobilidade do espirito. Bachelard parece ser antes um filosofo que estuda, que e que quer assim a filosofia. Somente pelo estudo é dado ao espirito agir. Deste modo, a filosofia perde sua autogenia o que significa o nño-cartesianismo senño esta perda? ela necessita que o pensamento, que a medita9ño sejam excitados, e os motivos para ta1 so vém de !oio, da pluralidade de tudo aquilo que é exterior ao proprio pensamento.


.for—se o tempo quando, escievendo, etc precise uma folha isentd.


Estes versos de Paulo Leminski vem ao encontro do ultimo capi- tulo do livro A clams de omo ve!a, intitulado mo Kempe ct mon papiei klwc“ Neste ultimo capitulo de seu ultimo livro, Bachelard aproveita a bela imagem de uma mesh de trabalho sob a aconcheyante luminosdade de uma vea - umaredoma, na quad se expeHmentd tanto a retidño austere da razño como os vños mais ousados da imagi- na9ño para recensear todo o seu trabalho intelectual. Diante de uma

pñgina em branco, sobre esta mesa e sob esta luz, e diante destd vlda que e um verdadeiro Album de idéias e imagens, afirma: "Sim, é•. Nesta solidño que se pode escrever! Depots, talvez, poder-se-ia pensar. Piimum sci1!beie deinde, philosophaii, diz um chiste de Nietzsche“. Porém este entusiasmo é apenas passageiro e, subito, o tilosofo cdi em st: “Mas estamos demasiado so para escrever. A pagina branca estñ branca demais, demasiado vazia de inicio para que comecemos a existir ver- dadeiramente como escritor. A pñgina em branco impñe o siléncio. Eta contradiz a familiaridade da lñmpada” (Bachelard,1996, p. 109). Nño existe, portanto, uma pfigina em branco, mas apenas esta palidez que berra convocando para a instru9ño, ou enfim, para a “reconstru9ño do espirito” Ao filñsofo cabe apenas responder a este chamado.


ALMEIDA, F. F. de. Bachelaid and philosophy. Tians/Foim/A qâo, (Sño Pau- lo), v.26 (2), p.85-92, 2003.


u ABSTRACT: In this short article I try to present the peculiar understanding of philosophy that turn up in the reflection that Gaston Bachelaid devotes to the art and science.




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1 Doutorando em Filosolia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rua Sño Francis co Xavier, 524, CEP 20 550 013. Rio de Janeiro - Brasil.