CONHECIMENTO E IDENTIDADE HISTORICA EM SARTRE



Franklin LEOPOLDO E SILVA1



RESUMO: O presente texto procure acompanhar alguns aspectos da re constru9ño sartreana das relapñes entre individuo o historia, tentando mostrar que a fenorrienoloqia e o materialismo dialético comparecem nessa proposta de conhecimento e que é a convergencia das duas perspectivas que per mite, contomplando adequadamente a universalidade e a sinqula ridade, descrever e comproender dialeticamente o modo histoiico de produ9ño da identidade individual.

PALAVRAS-CHAVE: Dialetica; identifica9ño; individualidade; universalidadc; historia.



Um dos grander problemas que incidem na compreensño da liberdade em Sartre refere-se ñ condi9ño peculiar do para-si, que podemos definir de maneira bastante simplificada como o sujeito separado de st mesmo. Essa separa9ño é constitutiVd fi 0 para-si a vive como uma diñspora. Com essa expressño Sartre quer indicar que o para-si é a sua propria separa9ño, fazendo-se a si mesmo por via da separa9ño que rnantém de st. 'rudo isso estâ implicado na expressño para st: o para mo significa apenas a direqño do fazer-se sujeito, propria de um ser que tern o seu ser fora be st. Além do movimento para si, o pane indica também a separa9ño implicita nesse movimento O sujeito, separado de st, vat em dire9ño a si mesmo: esse movimento, por ser constitutivo, jamais serf completado; consequentemente nño uma distinpño real entre a busca de si e a separa9ño de st. Pots é claro que, se o sujeito Mosse st mesmo e nfio um set para si rnesmo, ele mo ser buscaria, apenas gozarid sua identidade na plena positividade. Entâo, temos que admitir que a possibilidade de identificar-se é inseparavel da propria condi9ño de diaspora. Mas como pode ser pensada a identidade na separa9ño? Como o para-st pode viver sua condiqño subjetiva numa situa9ño permanence de diaspora, pois a separa9ño nño pode ser superada a nño ser por uma coagula9ño do para-st numa representa9ño de si mesmo vista como em-si e portanto vivida no regime da ma-fé? Se admitirmos que a identidade do para-si é a sua verdade, o conhecimento dessa verdade tern de enfrentar os problemas derivados dessa constitui9ño da identidade na separa9ño, ou do si-mesmo na diferen9a pela qual a ipseidade se constroi. Diante do canter processual dessa ipseidade, que como vimos nño significa apenas movimento (de constitui9ño do processo) mas também separa9ño (dos “elementos” integrantes do processo), como falar ainda de identidade, no sentido habitual de caracteriza9ño objetiva da subjetividade, ou mesmo de consciéncia de st na acep9ño de posse vivencial e intelectual de st mesmo? E essa a questño que tentaremos examinar, ao menos em alguns de seus aspectos.

O primeiro deles é o do piojeto como conhecimer to de st. Relaciona-se com a questao da identidade do para-si como a sua verdade. Sabemos que o para-si é o ser que tern o seu ser fora de st, que é o que nño é e nño é o que é. Essa constitui9ao dialética do sujeito estñ expressa na no9ao de projeto: o para-si é o que projeta ser exatamente porque o modo de ser no futuro coincide didleticamente com o nao-ser no presente O projeto é aquilo que o para si estñ para-ser e ele vive o seu ser na expectativa implicada no projeto de ser. Conseqiientemente o projeto é uma maneira pela qual o para-si vem a saber de si, isto é, um modo de o sujeito compreender-se na sua condi9ño de serpara. Desde logo se pode notar entño que a possibilidade do conhecimento de si repousa na consciéncia que o sujeito tern de st mesmo como possibilidade. Nño sendo o para-si uma entidade iealizada, definindo-se antes pela possibilidade, tudo que ele puder conhecer acerca de oi mesmo estara comprometido com essa possibilitaqâo, ou seja, com essa transi9ño do projeto ñ sua realiza9ño, processo nunca completado, uma vez que nunca sera totalizado. Isso significa que a propria possibilidade nño pode ser definida como o trñnsito do projeto ñ sua realiza9ño, pots, sendo o projeto elemento definidor do para-st, ele se define realmente pela possibilidade. Por mais paradoxal que possa parecer, o que o para-si tern de real refere-se muito mais ao possivel do que ao reaJizado. Ora, o possivel é aquilo que ainda nfio é real: e o conhecimento do para-si refere-se ao que nño é real na medida mesma em que a condi9ño humana de diaspora faz com que a reaJiddde humana esteja exatamente ali onde nao a encontramos: na possibilidade de sua realiza9ño. Isso mostra que o conhecimento da condi9ño humana exige uma rela9ño entre verdade e possibilidade que ioqe ñ logica tradicional: pois a verdade nño estñ na realidade entendida como o real acabado, feito, mas na efetua9ño das possibilidades enquanto projetar-se, ser-para. Isso requer que pensemos na vida do para-st como a eletoaqâo de possibilidades mais do que como iealizaqâo de possibilidades. A diferen9a é que o para-st vive de seus projetos nño apenas no sentido de alimentar-se deles para a sua sustenta9ño existential, mas sobretudo no sentido de viver o processo de efetua9ño ou efetiva9ño das possibilidades como um processo de totaliza9ño nunca totalizado. E como se a e/etividade se referisse mais ao possivel do que ao real.

A dimensño dd possibilidade adquire esse alcance e esse significado porque a primeira de todas as possibilidades, ou a possibilidade de todos os possiveis, é a liberdade originñria O que quer que possamos atingir de real, o que isso tern de intrinsecamente mais importante é que livremente o escolhemos como uma possibilidade a realizar, e de certa forms vivemos o futuro antes que ele venha a ser real ao projetarmos nosso ser a partir da escolha dessa possibilidade. Assim, aquele enunciado: o que é possivel ainda nfio é real, que para uma logica criticista possui tanta relevñncia, adquire em nosso contexto um outro significado. Pois o primeiro compromisso que assumimos é com a possibilidade, e nela nos lan9amos, nos projetamos: nos a vivemos e nño apenas a calculamos probabilisticamente, porque, como dissemos, a efetividade do processo pelo qual o para-si vem a reconhecer-se é o da efetua9ao das possibilidades. Ora, a verdade do para-si esta pois nesse processo, portanto nesse projeto. Pots é no projeto que encontramos o processo de busca da identidade, e se ha uma reciprocidade entre verdade e identidade do para-si, so a compreenderemos nesse percurso de efetua9âo de possibilidades.

E é a isso que denominamos existencia: ex-sisténcia, ek-sisténcia, ou o ente que tern o seu ser fora de si, o ente que caminha na dire9ño de sua entidade, sempre separado dela e sempre tendendo para ela sem nunca alcanqa-la. O ente que existe sem ser, no sentido de viver a auséncia de sua plenitude, de sua positividade, de sua quididdde. A precedéncia da existéncia em rela9ño ñ esséncia nao é apenas uma inversño: tern o sentido da separa9ño constitutiva do sujeito de si mesmo, da proje9âo totalizadora corn.o processo inacabfivel o que possui profundas conse@encias gnosiologicas e éticas. Assim chegamos ñ rela9ño entre trés termos: verdade, identidade e existéncia. Serb preciso articula-los para compreender tudo que estñ implicado na livre escolha e na efetua9ño das possibilidades: a verdade como verb/icapfio e a identidade como idea tilicoqâo. O canter processual (fenomenologico e dialético) se depreende naturalmente desses termos: a verifica9ño como produ9ao dd verdade e identifica9fio como processo de produWho da identidade. Sño dois aspectos de um mesmo processo que basicamente é o de existii, e em cuja origem estñ a liberdade. Assim, o terceiro termo dd alticula9ño, a existéncia, somente fara sentido em rela9ño aos anteriores se existencia puder significar Jlberdade. E importante entender essa significa9ño como mediada pelo podei: pots quo a existéncia venha a significar liberdade é algo quo depende do projeto concreto do existente quanto ñ realiza9fio de suas proprids possibilidades, A descriqño ontofenomenologica da existencia nño comporta apends o projeto existencial como uma proje9ño do para-st em dire9fio ao seu ser, pois o projeto nño é uma vivéncia a priori de possibilidades subjetivas, mas uma anfecjpapâo no processo de temporaIiza9ao do para-st. Essa antecipa9fio, longe de ser abstrata (a mera contralto do tempo futuro no tempo presence) possui um conteudo bem concreto que faz da histñria de cada individuo umd objetiva9ao singular dd historic vivida no regime da reciprocidade de determina9ños, articula9ño que faz da existéncia historica ao mesmo tempo a interioriza9ño da exterioridade e a exterioriza9fio da interioridade. Esse processo pelo qual a consciencia se encarna nas coisas, fora dela, tern que ser descrito por uma ontologia cujo eixo seja a intencionalidade e nfio a substancialidade. E como essa encarna9ño complexs, enquanto proje9ño concreta da consciéncia, constitui o existir como processo historico, a descri9ño ontofenomenolñyica atinge o ñmbito da Historia, e se transfigura em analise das determina9ñes histñrico-materiais. E nesse sentido que se deve entender em Sartre a busca de um método em que a ontologia fenomenologica do para-st na sua rela9ño com o em-si seja superadd e conservada na abordagem materialista historica do regime de reciprocidade de determina90es a partir do qual tornem-se compreensiveis as rela90es entre a liberdade originaria do para-st e o exercicio historico dessa liberdade pelo individuo concretamente inserido num tempo historico, isto é, num complexo de condi90es sob as quais ocorre a sua alto. Em suma, a fenomenologia e o materialismo histñrico constiiuern o modo peculiar da interroga9ño sartreana porque essa associa9ño metodologica aparece como adequada para dar conta da articula9ño entre conduta existencial da subjetividade, experiéncia historica da liberdade e prâxis individual/coletiva. E o que Francois Noudelmann denomina “realismo filosofico” em Sartre.’

HP um texto de Sartre que devemos privilegiar no acompanhamemo dessa articula9ao: Verdade e Exjstenc1a, escrito em 1948, num momento em que se vño tornando mais concretes as implica90es historicas da ontologia de O Set e o Nada, desenvolvidas em ensaios da época e depots explicitadas na Ciitica da Rezâo Diolético. O para-st como nega9ño do em-si assinala um distanciamento que estñ presente no conhecimento. E por isso que a no9ño de verdade nño pode ser tratada de forma exclusivamente objetiva nem exclusivamente subjetivo. Para colocarmos a objetividade plena no dominio do em-st seria preciso que coincidissemos com ele para realize-la: serta preciso que o para-st viesse a se tornar em-st. Também nño podemos conferir ñ verdade um canter totalmente subjetivo porque o ser do para-si, caracterizando-se pela nega9ño, nño serta suporte adequado para uma verdade objetiva para uma concep9ño “realists” da verdade. O lugar da verdade nao é nem o em-st nem o para-si, mas a propria distñncia entre ambos. A realidade com a qual o ser humano se relaciona, as coisas e si mesmo, se constitui nessa distñncia e o conhecimento é uma das formas que eta assume.

Portanto nño muito sentido em dizer que o homem estñ afastado da verdade ou que haveria uma distancia entre o sujeito e a verdade do objeto. Temos de abandonar essa concepqño de sujeito e objeto como coisas ou substñncias que se contrapoem com densidade de ser equivalentes, e que tém de se comunicar ou se corresponded para que disso resulte a verdade. Para a consciéncia intencional, que ndda é em st mesma senño a proje9ño transcendente para as coisas, consciéncia dos coisas, a verdade e originalmente Saver alguma coisa, todas as coisas que aparecem em seu ser.


O que nos faz cies que a verdade se identilica com o Ser é que, com efeito, tudo que é para a realidade humana é na forma da veidade (essas ñrvoes,essasmesas,essaslnoas,essesivosquemeodiamsâoverdads) porquetudoqueé paaohomemsugiu naformadesse'hâ' O mundoé eadeoVwonoverdduoenoaso Osseesquesemanestamdame demxseoeeemcomoverdadeios, e a vezes,depois,sereeamcomo ass OpaasvivenaveradeomoopemenaaguaSate,l996,p52)


Oue tipo de rela9âo entre o homem e a verdade esta suposta ness as asser 9 ñes aparentemente tño otimistas e, dir-se -ia, epistemologicamente ingénuas? Nada que nos fa9a atribuir ao sujeito uma fun9ño contemplative, a partir da qual a verdade lhe serta dada, como uma oferta do Ser ou dos deuses. A verdade é o eJemento do homem, como a ñgua do peixe, porque na verdade o homem se move numa constante tarefa de revela9ño, que inclui tanto o que posso revelar claramente a mim mesmo quanto o que, revelado de modo obscuro, mostra-se depois um engano. Mas todas as apari3ñes sao verdadeiras no sentido originñrio de um desvelamento, processo de sucessño, de afirma9ño, de reitera9ño, de corre9ao de todas essas apartdoes, que manifestam sempre esse haven, ou esse contato primfirio com o Ser. Por ser processo, é historia. JR no plano da identifica9ño das coisas a verdade é inseparavel da historia, esta incorporada no modo como a realidade humana se faz histñrica. “Assim, a verdade nño é uma organiza9ño logica e universal de ‘verdades' abstratas: é a totalidade do Ser na medida em que se manifesta como um Lâ na historializa9ño da realidade humana.” (Idem, p.55) Esse acontecer historico de toda e qualquer verdade é que faz com que o homem viva histoticamen te na verdade como peixe na agua. Histoiicamente significa: num processo constante de desvelamento daquilo que pode acon tecei na rela9ño distanciada entre o em-si e o para-st.

Histoticamente possui ainda um outro significado. A conduta desveladora da verdade, que Sartre chamara de comportamerito verb/icante, por ser historica, se da na esfera da intersubjetividade. Descobrir a verdade significa apontñ-la a outros, apresentñ-la para que a incorporem como o desvelado, assim como eu mesmo incorporo uma verdade ao vé-la pela visño do outro que a aponta para mim. E nesse jogo de objetiva9ao do subjetivo, seja no que se refere ñ minha visfio, seja no que diz respeito a visño do outro, que ocorrem o conhecimento e a verdade. A intersubjetividade é assim essential ñ objetiva9ño da verdade. Podemos mesmo dizer que o juizo pelo qual manifesto a veidade visa sempre ao outro, pretende sempre comunicala ao outro. A cada um basta a visâo; se a enuncio judicativamente é porque desejo passñ-la a outro, quero que ele veja através da minha visño, e mesmo ja foi para isso que exercitei primeiramente a minha prñpria visño: na inten9ño do outro, e na inten9ño da reciprocidade em que, relacionando-nos todos a um mundo comum, apontamos uns aos outros aspectos desse mundo. Assim, o mais freqiiente nao é propriamente a descobeita da verdade: é a sua visño por intermédio da visño do outro, é ver o jñ visto. Sartre procura agregar ñ anñlise heidegeriana do desvelamento da verdade esse elemento intersubjetivo em que o procedimento acontece: o desvelamento é sempre também para-outro.

O ato que precede essa doa9ño da verdade ao outro é manifesta9ao de liberdade: nño sendo a verdade fruto da contemplaqao, é na atividade humana que eta se produz. Na origem esta ligada a um ato absoluto: assim ela é manifestada pela primeira vez, com o total empenho do sujeito, como a rotapfio da Terra para Galileu, que nisso jogou sua vida. E por isso era uma verdade viva, que depois de assimilada e cristalizada num conjunto de crenqas “objetivas” tornou-se verdade morta, simples enuncia9ño do obvio. E preciso remontar a osses instantes originñrios da verdade como ato para aquilatar a sua rela9ao com a liberdade. O fundamento da verdade é a liberdade. Isto significa que, sendo a verdade referida ao ato subjetivo, entendido como algo que emana da liberdade originaria do sujeito, e levando em conta que todo ato se inscreve num projeto pelo qual o sujeito antecipa a si mesmo na sua condi9ao de ser-para, a verdade relaciona-se com a liberdade através do projeto. Toda verdade tern o mesmo canter antecipador do projeto, e é a partir dessa antecipa9ño que devemos entender o processo de revelaqao do Ser. Ora, na conduta interrogante on comportamento verificante, o que mais originariamente se antecipa e se mantém é a questño. Dito de outro modo, a interroga ño e a verifica9ao sño os elementos que mais importam para a conduta cuja finalidade é a busca da verdade. Nesse sentido, a ignorñncia e o fundo sobre o qual se constroi essa busca. Trata-se no entanto de uma ignorñncia que se sake te1 e que por isso cultiva a questño ou a interroga9ño. E a ignorñncia a partir da qual se pode constituir todo saber.


Ouando Socrates diz 'so set que nada sei', essa modéstia é ao mesmo tempo a afirmapño mais radical do homem, pois supñe que tudo estñ potsafer. Assim, a ignorancia nao piovém de uma recusa por parte do mundo, que me ocultaria seus segredos: pelo contrñrio, todo o Ser esta presente a mim desde minha aparipño...” (Idem, p.79)


Todo o Ser estfi presente ñ minha liberdade: o conhecimento da verdade nño apenas remete ao ato livre mas também ao risco nele implicado. Esta é mais uma r£lZño pela qual a verdade nao é contempla9ao de abstra9oes e sim um projeto comprometido, isto é, uma a9ao. Pots a liberdade como fundamento da verdade replica que posso abster-me do compromisso com o conhecimento. Posso permanecer em duvida ou desinteressado. Ao decidir conhecer, decido agir. E como o fa9o a partir da ignorñncia, tenho de estar de alguma forma create de que tudo estñ por saber e de que esse projeto de saber é inseparavel da expectativa do risco. Tomemos, por ex., a possibilidade do erro: trata-se de um risco constitutivo do prsprio saber, Sem a possibiliddde do erro a verdade nño serta possivel e sim necessñria. Nño seria, portanto, um projeto vinculado ñ minha liberdade. Esse é o risco de Socrates, e é o risco do conhecimento entendido como projeto existencial de busca da verdade. Nesse sentido, a verdade supñe d conduta que a interroga interrogando o Ser; o comportamento que a verifies a cada passo. Oue esse percurso seja pontuado pelos erros nño deve surpreender-nos: a verifica9ño da verdade supoe a possibilidade do erro para um ser finito e contingente. Superar o erro e reiterar a verdade é o proprio teor da experiéncia histñrica. Ou seja, o Ser esta presente a nos para que superemos a ignorñncia pela liberdade de projetar o conhecimento. Sendo essa a funqño do para-st, nada mais contraditñrio do que nos acomodarmos na nño-verdade ou na ilusño de agumaimagem coaguada de nos mesmos. Podemosfazélo porque podemos decidir nño saber. la que a liberdade é o fundamento da verdade, esta em nossa liberdade a possibilidade de instaurar a nñoverdade. A md-fé, se a definimos como ado9ño alienada de uma trnagem de st hetero-determinada, é um tipo de instaura9ño livre da nñoverdade. Por isso nao se trata simplesmente de uma mentira, e nño apenas porque o enganador e o enganado coincidem na mesma pessoa, mas principalmente porque na origem da fNa9ño de uma imagem de st, tida como inelutavelmente determinada, esta a livre decisño tomada pelo sujeito de deteiminai-se de Korma anñloga ñquela em que um outro o determinaria. Isto nño significa que nño haja determina9ño externa. O mais importante a notar aqui é a possibilidade de que o sujeito venha a exercer a liberdade no sentido de anula-la: para que isto fa9a sentido é preciso que o ato livre seja sentido como determina9ño externa. A md-fé repousa também nessa possibilidade de viver o processo de auto-identifica9fio como extraposto. E precisamente esse jogo, no caso perverso, entre interioridade e exterioridade, que liga a dimensño subjetiva da conduta de md-fé ñs condiq0es sociais e histñricas que objetivamente a sustentam, e até mesmo a exigem. Isto significa que se trata de uma conduta indissoluvelmente subjetivo e historica, na medida inclusive em que a md-fé é urna maneira de o sujeito objetivar-se diante de st e diante dos outros. A mñfé, como toda condutd, é siqnificante porque opera, age ria constru9ño de uma significa9ño do sujeito. O modo como me conduzo constitui o meu processo de ser para mim e para os outros, e a parte intima” desse processo é apenas o reverso do seu lado histñrico. Ouando pen samos sobre a intersubjetividade na sua dimensdo histñrica, esse compromisso com a verdade como encarna9ño da liberdade de cada sujeito produz o conflito. Em cada processo singular de totalizapâ o, o sujeito projeta sua liberdade. Nessa dinñmica de historializa9ño da individualidade ocorre o choque das liberdades, jñ que o campo prñtico aparece para cada um e para todos como o meio em que se exercerñ a liberdade. As diversas proje9ñes da liberdade limitam—se reciprocamente e este é o motivo pelo qual o empreendimento comm, um projeto politico-revolucionñrio, por ex., corre sempre o risco de se esfacelar no proprio curso de sua realiza9ño ou entño tende para o controle hegemñnico de individualidades que se impñem circunstancial e provisoriamente. A identifica9ño livre com a historic de que participa produz, em cada individuo, vis0es diversas de si e dessa historic, que ele no entanto constroi em comum com os outros. A alteridade historica é ocasiño de dramatiza9ño concrete djs rela9ñes humanas.

Aqui encontramos a liga9âo profunda entre conhecimento e ética. Posso renunciar ao conhecimento, posso rejeitar a verdade sem que isso signifique necessariamente professor o erro Basta que nño queira saber, isto e, que nño queira assumir a responsabilidade pela verdade, pelo desvelamento. Assim, permane9o na ignorñncia do que ha pela saber, o que é bem diferente de permanecer na ignorñncia pura e simplesmente. Estamos no mundo e, como o elemento verdade em que vivemos, ele é sempre ia cognoscivel. Ignorar significa saber que todo esta pot sabei, e isto nos faz responsavel pela nossa ignorñncia, como os interlocutores de Socrates sño responsfiveis pela pseudoverdade em que desejam permanecer. Toda ignorñncia é socrñtica ou: nunca se ignora a propria ignorñncia. Ora, so permanece na ignorñncia aquele que a ignora como tal. Nosso desconhecimento pode ser muito grande, mas a ninguém é dado desconhecer a propria ignorñncia, isto é, nao procurar saber. Mas posso, pela estratégia da md-fé, deter-me no nño-saber, o que é o mesmo que desejar nño saber. E o fa9o por medo da verdade, que é no fundo o medo da liberddde. Assim procede, por ex., aquele que tern os sintomas suficientes para suspeitar da doen9a, mas se recusa, por via de mil estratagemas, a safer que estñ doente, adiando indefinidamente o diagnostico médico, por ex. Nño se trata de uma ignorñncia total, porque se conhece a possibilidade. Mas enquanto estiver restrita ñ possibilidade, a doen9a nño precisara ser enfrentada, nño precisarei decidir como me conduzirei diante dela. Na relaqao entre o medo da verdade e o medo da liberdade nño estñ em jogo uma liga9ño entre duas dimensñes vinculadas extrinsecamente, como o conhecimento e a moral uma utjtude que prevalece quando, recusando a verdade, recuso também a conseqiiéncia de ter que me assumir conforme a verdade conhecida. Nño se trata sequer de uma rela9ao entre conhecimento e modo de vida, como quando dizemos que alguém pode viver ou nfio de acordo com as virtudes que apregoa Sendo o conhecimento uma alto, estando a verdade vinculada ao ato de instaura-la ou de desvelñ-la, nfio se trata de conhecer a verdade e (depois) agir de acordo com ela, como uma prfitica se segue a uma teoria. Ao me conhecer me conduzo e ao me conduzir me conhe9o. Sou o que fa9o e fa9o o que sou. Afinal, é por isso que todo conhecimento é histñrico. A verdade é inseparñvel de uma certa conduta interrogadora e verificante: se é assim no que se refere as coisas, muito mais o sera no que concerne a mim.

A dificuldade presente nessa rela9fio entre verdade e liberdade, ou entre conhecimento e responsabilidade, é que nño me sinto, e de fato nño sou originariamente responsavel pelo que é. Nño crier o mundo nem o desejei assim como é; por que me sentiria responsñvel? E no entanto carrego esse fardo. Apesar de nfio ter dado origem a nada do que é, é como se tudo fosse para mim, porque nao ha um dos meus gestos que nño me revele algo do mundo. Assim, ao querer me colocar como estranho, acabo por me sentir omisso. Talvez seja essa a contrapartida ética da intencionalidade. Todas as coisas sfio para mim a partir da consciéncia que delas tenho, e o modo de ser de minhd consciéncia, por tanto de minha subjetividade, consiste nessa transcendéncia em rela9ño is coisas. Se tudo que sou consiste nisso, como poderia ignorar as coisas e o mundo? Como poderia ignorar a historia? Aquela arvore existe para mim porque, estando fora, minha consciencia é puro gesto de transcended-se em dire9ño a ela. Assim também a opressao, a injusti9a, a gueira, existindo fora, minha consciéncia se transcende na dire9ao do ma1, mas tento interromper essa trajetoria, tento ignorar, porque aquilo de que nño tenho consciencia nao existe. Assim, simplesmente, nño queio saber. Se mo set, nño tenho responsabilidades, nem tenho que tomar posi9ao a respeito. O problems é que vivemos na verdade historica como o peixe vive na agua. E assimcomo o peñe nâo podeignorara eaidade do seu elemento, assim também nfio podemos ignorar a realidade historica e a verdade historica que nos é dado viver. A ninguém é dado ser inocente, por mais que a inocéncia tenha sido proclamada como ideal de conhecimento, desde que Adño e Eva deram inicio ao sofrimento humano ao comerem da firvore do bem e do mal, o que os fez perder a inocéncia, isto é, desde que nño podemos mais alegar o desconhecinew to do bem e do mal, que seria o confiecimento inocente, aquele da verdade alheia ao bem e ao mat.


Inocéncia auséncia de responsabilidades. Um inocente é aquele que nao é responsavel por esse crime, por aquela falta. Alguns seres sño mantidos artificialmente num estado de nño-responsabilidade relativamente ao mundo Assim, esses seres sño a imagem viva do que o homem desejaria ser. Maniacstarn a possibilidade de nao se ter nenhum vtnculo com o mundo. (Idem, p.129)


Esse desejo manifesta uma op9ao moral pela ignorñncia, como se a sabedoria consistisse principalmente em ignorar. Deñemos o saber para Deus que cria e conhece inseparavelmente, e assim deveria ser verdadeiramente o unico responsñvel por tudo. O ideal contemplativo nao aspira a outra coisa: contemplar numa instñncia longinqua o saber e a responsabilidade, igualmente distanciados de mim e de minha liberdade. No ideal contemplativo, a verdade teria a ver com a passividade daquele que a contempla, nunca com sua alto e com sua liberdade. A verdade deixa de ser uma responsabilidade porque deixa de ser uma tarefa. O conhecimento se separa da responsabilidade moral. A insisténcia com que uma certa tradi9ño procure separar conhecimento e moral certamente tern a ver com a configura9ao da responsabilidade. Ouando suponho que as prâticas humanas governamse por critérios que nño podem ser conhecidos teoiicamer te, o que estñ em jogo é tanto a separa9ño entre objetividade e responsabilidade qudnto a associa9ao desta a critérios de discernimento que acentuam o cdrñter flutuante e relativo da responsabilidade moral. Sartre pretende mostrar o vicio inerente a essa demarca9fio que no limite é entre intelectualismo e voluntarismo, indicando que a alao é o ambito em que ocorrem os atos de conhecimento e os atos morais. O modo de estar no mundo representado pela conduta cognitiva nño pode separar-se da conduta moral porque o processo be existir consiste na uniOcaqâO subjetivo dos vñrios modos de conduta. Dito de outro modo, a identdade é SU tétlCd. Essa produqño de sintese decorre do canter dialético da existencia historica. O sujeito nño é, ele se faz, e isto signilica que ele atua na unificaqño sintética de st mesmo. E necessario entño redefinir a identidade como o mod.o pelo qual o sujeito se produz. Nño la identidade: ela é o si do para-si no processo do fazerse, que o pard-st é esse constants chegai a st mesmo, que nunca se completa. Dito de outro modo, o conhecimento da identidade e o conhecimento dos meios de sua produQño historica, pois é na trama historica concrete que se efetiva a liistoricidade como possibilidade ontologies. TemporalizaQko S historiza9ño formam afinal o mesmo processo no fazer-se do individuo histñrico. Assim, essa indissolubilidade de fato entre individuo e historic nfio per mite que o conhecimento dO individuo e da historic seja separado da alto, pois todo individuo é dqente bistorico e a historic é sernpre o ñmbito da d QUO.


E curioso notar que, embora a ciencia moderns tenha se constituido contra o ideal contemplativo tal como era definido na Antiguidade e na Idade Média, a ideologia objetivista e a neutralidade cientifica derivadas da racionalidade técnica tarnbem encorajam a separa9âo entre conhecimento e iesponsabilidade moraL O cientista é responsñve1 pela verdade enquanto circunscrita ao ñmbito teorico e cientifico, como se tudo que ultrapassasse esses limites nño dissesse mais respeito ñ verdade, ou pelo menos ñquela verdade estritamente técnicoracional. O objefivismo cientificista se coloca nesse sentido como uma atitude decididamente anti-historica, qualquer que seja o peso da re feréncia ao progresso historico na forma9ño da ideologia cientiiicista. Com isto fica inviabilizada qualquer reflexâo acerca da ética do co nhecimento. Ora, nunca se enfatizarñ suficientemente como essas duas dimensñes ética e conhecimento estfio unidas em Sartre. E a sepa— radio indevida que faz aparecer "um tipo de homem que escolLe ser abstrato, isto e, sokei o verdadeiro segundo sua estrita Korma de instrumentalidade e sem desvelamento. (...) O |homem1 abstldto £fiC'Jocina, nño porque nño veja, mas peie mo ver. (...) Assim pode comecer tudo, ignorando tudo” (idem, p.135). O homem abstrato, mesmo se refinadamente teorico, estñ inteiramente afastado da verdade como projeto existencialmento escolhido e historicamente definido. E essa a diferen9a que Sartre quer ressaltar com a oposipfio entre iociocinai e ver. O raciocinio nesse caso seria a sistematiza9ño abstrata de verdades jñ vistas, aquelas que foram em algum momento vivas, mas que morreram e foram jogadas na vala comum das cren9as tornados triviais ou ideologicamente inquestionadas. O canter revelador que outrora eventualmente possuiram congelou-se em mera instrumentalidade. Aquele que apenas raciocina, portanto, nem sequer pelos olhos do outro. Incapaz de visño, apenas usa o ja visto, serve-se mecanicamente daquilo que mo é capaz de compreender. Assim se constitui o conLeclmento no seu sentido mais degradado: um quadro mecñnicoinstrumental de idéias mortas.

Ora, assim como se pode degradar o conhecimento das coisas a esse ponto, da mesma forma se pode degradar o conhecirnento de st. Ainda mais se levarmos em conta que a consciéncia, antes de ser conhecimento, é existéncia. Entenda-se por isto que somente se pode tematizar a consciéncia surpreendendo-a como consciéncia temfitica das coisas nos modos intencionais. Ou seja, somente de maneira indireta pode-se apreender a consciéncia. E essa focaliza9ño oblique somente apreende algo quando se orients p.elo fazer-se sujeito do individuo concreto através do projeto fundamental do para-si que é tornarse esse st pane o qual se dirige. E claro que o tornar-se totalmente si mesmo do para-si implicaria deixar de ser para si e transformer-se em em-st, ou em em-st-para-st. Esse anelo de sedimenta9ño ontologica mo pode ser alcan9ado, e o desejo de aproximar-se dessa situaqfio definitive é causa de grandes problemas éticos. O para-st nño pode totalizar-se sem deixdr de ser para-st. Assim como a histñria nño pode totalizar-se sem deixar de ser historia como devir e torniqr-se puro ser, assim também o para-st nño pode realizar-se no seu st para o qual ele tende sem perder o movimento que o define como projeto e temporaliza9ño. E portanto em rela9âo ao conhecimento de si mesmo quo a verdade como projeto da liberdade aparece com traqos ainda mais nitidos do que no piano do conhecimento das coisas. Até porque esse projeto da verdade de si mesmo esta obrigatoriamente presente em todo desvelamento da verdade viva das coisas. HP de se encontrar um modo de inteligibilidade em que a fenomenologia das descri9ñes objetivas e a dialética do compromisso entre sujeito e objeto venhdm d convergir, superando duas posi9ñes redutivistas: o objetivismo naturalista e o idealismo conceitudlista.

A liberdade estñ na origem do projeto de st do para-st. Mas nesse caso, quad seria essa verdade da qua a liberdade é fundamento? Pelo que vimos, mo pode ser nenhumC[ C istaliza9ño objetivo do si do para-si. Essa verdade portanto so pode estar no movimento do para-st para tornar-se st-mesmo. E um movimento governado pela liberdade, entendendo-se que a liberdade nega os sucessivos estagios em que o para-si se deteria em seu movimento para consolidar-se em-st. A liberdade portanto, embora originfiria, nao é um estado ou um predicado, mas sim um movimento. E o prñprio movimento indicado no para do para-st. Como esse movimento constitui o ser do para-si de modo a que ele nunca seja constituido, o prñprio para-st se define pelo movimento que o faz ser. Esse movimento é a a9ao da liberdade ou o agir da consciéncia livre na historia. A liberdade é o fundamento da verdade do para-si enquanto essa verdade se constitui na histñria. A esse projeto de ser que se constitui para realizar-se na historia Sartre chama blstorialidade on histoiielizeqâo. “Chamarei historialidade o projeto do para-st a respeito de si mesmo na historia. 7 Esse projeto pelo qual o para-si se historializa estñ sempre em rela9ao de tensño com a historiciza9ño do mesmo projeto, isto é, com a maneira pela qual ele se tornarñ objetivo quando inserido no processo historico. E como se a dimensño “objetiva” da historia traduzisse a decisño subjetivo nos termos da estrutura maior do “espirito objetivo”. Isto quer dizer nfio apenas que a liberdade da consciéncia deve haver-se com a adversidade prñpria da facticidade, corno também que ela corre o risco de ser subtraida a si mesma e traida na esfera das determina9ñes objetivas. Essa ausencia de saber que fa9a a ponte entre o projeto subjetivo e a historiciza9ño desse projeto constitui o fundo de ignorñncia do para-st acercd de si mesmo, e a partir da qual tudo esta pot se sabe . Implica também o risco inerente ao projeto que o para-si faz para st mesmo tanto a partir do que sabe de st quanto a partir do que ignora acerca de st mesmo. Nño possiDilidade de qualquer testemunho onisciente de si acerca de st. 0 projeto, ou a sucessao dos projetos, forma o processo de revela9ño que constitui a dimensño histñrica da consciéncia que o sujeito tern de st mesmo. Sua verdade e sua identidade. Assim, a verdade do sujeito brota diretamente da liberdade pela qual ele se institui como tal ao constituir seus projetos, ao escolher-se como aquilo que virñ a ser e que ja é no modo de nño-sé-lo ainda. E que de fato nem sabe se sera. A responsabilidade pela verdade de st nño corresponde um poder de conduzir-se segundo o rigor de um projeto.

Este tern muito de um lan ar-se, e pouco de um dirigir-se linearmente numa dire9ño preestabelecida. Como vimos, o para do para-st indica dire9ao, mas indica igualmente separa9ao, de modo que hñ uma distñncia avassaladoramente contingente na travessia das media90es que levam o sujeito ao encontro de si mesmo, on ñ realiza9ño do seu si. A liberdade historica defronta-se com a adversidade e a opacidade do mundo. Dat a enorme complexidade inerente ao projeto de verdade do para-si: a sua identifica9ño como constru9ao concreta da identidade. Sabemos que o processo de identifiCa9ao e de verifica9ño de si mesmo é histñrico porque a historic é o elemento da liberdade. Mas isso é apenas um come9o modesto diante da tarefa de constituir compreensivamente essa identidade. Dat a relevancia da compreensño da propria conduta interrogante como a ignorñncia a partir da qual se estrutura o compromisso com o saber e com a verdade, como projeto fundamental da verdade sobre si.

A compieensâo refere-se sempre a um processo e é a antitese do saber absoluto, seja no sentido idealista do espirito absoluto, seja na acep9ño de uma histñiia realizada. Desse modo, quando falamos em unifica9ño sintética como produ9ño da identidade historico-individuat, nño se deve entender por isso que a produ9ao de sinteses seja uma finaliza9ño do processo ou uma concilia9ao definitiva das oposi9ñes que constituem o movimento dialético. A› unifica9ño sintética das diferen9ds deve permitir pensar na totalizapño das oposi9ñes como algo que nño se encerre numa totalidade fechada. Dat a diferen9a entre totaliza9ño e totalidade Assim como a totaliza9ño nño é redu9ño do processo a uma totalidade acabada, também a unifica9ño sintética nño é a redu9ño da multiplicidade ñ unidade. A inteligibilidade exige totaliza9ño e unificd9ño; mas precisamente porque se trata de inteligibilidade de um processo dialético, esse tipo de conhecimento mo pode aspirar nem ñ totalidade nem a unidade. De nada adianta conceber a historia como dialética e postular um conhecimento historico segundo cñnones analiticos. E a propria inteligibiliddde que deve tornar-se dialética para corresponded ñs exigéncias de compreensfio do processo objetivo. No conhecimento da histñria, e no conhecimento do indivlduo na historia, o que esta em questño é sempre a totalidade, que no entanto somente se da no modo da totaliza9ao. Por isso nunca se trata de agregar partes para formar urn todo, mas de compreender a permanéncia das oposi9ñes, das diferen as e dos conflitos como elementos de uma totalidade sempre em curso de totaliza9ño. “Se a totaliza9ao é realmente um processo em curso, ela se opera por toda parte. Isso quer dizer, ao mesmo tempo, que um sentido dialético do conjunto prñtico (...) e que cada evento singular totaliza em si mesmo esse conjunto na infinite riqueza de sua singularidade.” (Sartre, 1985, p.26) E preciso compieender a articulaqâo de senUdo entre a totalidade e a singularidade. Nño se pode perder de vista o sentido da totalidade: isto significa, precisamente, recusar para uma totalidade um sentido absolutamente dado, que isto equivaleria a atiibuii uma significa9ao fechada a um processo aberto. Mas se o sentido do con junto é inseparñvel da Korma como ele se totaliza, é preciso compreender a fun9fio que desempenham na forma9ño do sentido totalizante as “partes” que constituem essa totalidade em curso. Ora, tars “partes” sño denominadas singularidades exatamente porque sño capazes de totalizar. Trata-se de algo mais do que a dimples rela9ao entre o particular e o universal O evento singular totaliza singularmente a totalidade: isto significa que o sentido da totalidade nño é independence dessas totaliza9ñes singulares, que uma visño analitica consideraria parciais, mas que numa abordagem dialética devem ser compreendidas como totalidades dentro da totalidade. E pela totaliza9ño singular que se define o sentido da totalidade, e ao mesmo tempo a produ9ño singular de totalidades define o processo de totaliza9âo. A rigor nño se pode falar, portanto, nem de pastes extiapoite nem de um todo formado de partes. Trata-se antes de uma sintetiza9ño (mo de uma sintese) de dois percursos de um mesmo processo: totaliza9ñes singulares como movimentos diversos de forma9ño da totalidade. A complexidade que afeta a descri9ño sartreana!desse processo advém da dificuldade de se compieender a articula9âo das mediapñes entre individuo e totalidade socio-historica. Sendo um individuo um agente historico, ele nño pode ser considerado como Uma parte; sendo a histñria um processo, ela nfio pode ser considerada um todo. No entanto, mo bastaria intro duzir alguma dinñmica nessa rela9ño. E preciso considerar uma reciprocidade ativa na maneira pela qual o individuo produz a totalidade e a totalidade produz o individuo. E por essa razfio que nas duas instñncias deve-se falar em totaliza9âo. Pois o individuo produz a si proprio ao produzir a totalidade, e a totalidade produz o individuo na medida em que é afetada por ele. E nesse processo que o individuo se identifica na sua singularidade pela totalidade na qual estñ inserido e que contribui para produzir, ao mesmo tempo em que essa totalidade se forma pela a9ao das totalizapñes singulaies que ocorrem por diferencialto. O homem nño é um império num império, mas é um processo dentro de um processo. Pois de alguma maneira se pode dizer que a incompletude do para-st, de cada para-si, é uma representa9ao singular da incompletude constitutive da totalidade em curso. Isto nño significa de forma alguma que o individuo apenas reflete necessdriamente a realidade total: a sinyularidade individual é irredutivel. O que Sartre recusa é associar essa irredutibilidade a uma ininteligibilidade do individual ou das rela9ñes entre o individuo e a totalidade. Uma inteligibilidade dialética por assim dizer plenamente conscience de seu prñprio alcance, efetivamente senhora de seus proprios procedimentos, com seus poderes criticamente estabelecidos deve ser capaz de desvendar a rede de media9ñes que constitui a expressño singular do universal. A inteligibilidade dialética consiste “no esfor9o de descobrir no seio do proprio evento as intera9ñes que constituem a singularidade do processo a partir da singulariza9ño das circunstñncias. E pot via do piojeto que os condense que os campos mediadores recebem um novo estatuto de eficacia” (idem, p.59).

Se o “realismo” de Sartre replica sobretudo nessa considera9ño da totalidade como totaliza9ño e do singular como singulariza9fio, é claro que esse canter processual terñ também de estar presente no conhecimento, o que afasta definitivamente qualquer pretensño de totalizacño teorica. E essa uma conseqiiéncia da concep9ño de verdade como o “elemento” : o saber consiste muito mais em saber que ht o que saber, isto é, o que podemos vir a saber, do que na realiza9ño do conhecimento na sua presumida integralidade. Assim, quando o materialismo historico se associa ñ fenomenologia na trajetoria sartreana, peimanece a conduta inteirogativa que em O Set e o Nada constitute a dire9ño da ontologia fenomenologica. E a Jenom.enologia que assegurarñ sempre que a descri9ño do movimento dialético nño venha a se reduzir ñ afirma9ño de uma logica do devir. Oposipñes concretes, contradi9ñes concretes, e constitutivas da realidade, nos previnem contra a concep9ño da dialética como o itinerfirio direto rumo ñ concilia9fio de todos os conflitos no absoluto. Uma tal teleoloyia se op0e ao conhecimento real, como a prevaléncia do a priori se oboe ñ constitui9ño da experiéncia. A conduta interrogante se faz inteligibilidade dialética exatamente porque a historic nuncd repousa de suas tensñes. E assim as interroga90es radicalmente antropologicas nunca serfio substituihas por uma ciencia que se constitria como rim conjunto definitive mente coerente de respostss.

Pd£d que o para-st? Para que existe o homem? Pergunta que se volta sobre st mesma porque o proprio para que surge no mundo atra vés do para-si. Ou seja, o homem é o ser em quem o proprio ser este em questao. Portanto a pergunta para que nao pode ser feita a respeito do homem do mesmo modo que seria feita a respeito da natureza. Porque nessa pergunta ja o proprio homem e o seu destino estao originariamente envolvidos. Como se poderia responder ñ pergunta para que a respeito de um ser em quem a liberdade originaria indetermina por principio aquilo para que ele existiria? Mas o canter irrespondivel da pergunta é, também ele, constitutivo do para-st. E o compromisso intimo e direto que o para-si mantém consigo mesmo através de sua liberdade que impede a objetiva9ao, isto é, impede que ele transcenda a sua totalidade e responda a partir da visño exterior de uma totalidade concluida. A impossibilidade dessa totalidade totalizada estñ na historicidade como dimensao concreta da existéncia, que devemos entender como o processo de constru9ño da identifica9ao histñrica de si. O que quer que venhamos a conhecer desse processo e nunca esse conhecimento sera completo jfi sabemos pelo menos que a liberdade é a unica fonte capaz de lan9ar alguma luz sobre a subjetividade e sua intersec9ño com a historic.

O homem é o ser em quern o prñprio ser esta em questño. O individHo é dquele em quem a propria individualidade constitui a mais radical de todas as questoes que sobre ele se possa fazer. E isso porque hñ uma equivaléncia entre as questñes: o que é o indiv/duo? e o que é a historic? Tal equivaléncia aparece, no piano ontolñgico, nño como algo a definir, mas como algo a ser descrito fenomenologicamente como um modo originñrio de existir. E como a historicidade é uma dimensño intrinseca da existéncia, a descri9ao concreta deve coincidir com a encar na9ño historica. Conseqiientemente a pdssagem da historicidade como dimensño estrutural ñ historia na sua efetividade jâ esta de alguma forma contida nas possibilidades da descri9ño fenomenologica dessa encarna9ño. A inteligibilidade dialética (se inteiramente constituida numa antropologia auténtica) conteria e superaria a ontofenomenologia e o materialismo histñrico. Embora Sartre nño tenha realizado esse projeto, nño devernos perder de vista o alcance pretendido. Nño se trata apenas de ultrapassar a ontologia da existéncia na dire9ño de um materialismo historico metodologicamente aprimorado. Trata-se de criar as condi9ñes para uma nova inteligibilidade da historia ta1 como Sartre a entende: nao como totalidade resultada, mas como totaliza9ño resultante de todos os projetos singulares de vida historica, isto é, de totaliza9ñes individuals. E nessa intersec9ño viva entre o universal e o singular que temos de encontrar a compreensño da realiza9ño histñrica do universal concreto.

A efetividade do devir humano esta em que “o processo histfirico sustenta e conduz o homem que o faz” (idem, p.75). O individuo historico é o ser em quem o prñprio ser histñrico estñ permanentemente em questño, a qual se manifesta na coniigura9ño das mediadoes entre ser conduzldo e sustertado pela histñria e, ao mesmo tempo, fazé-la. O ser e o /azer identificam-se ontologicamente pelo primado da existéncia, e historicamente pela inseparabilidade entre sujeito e agente. O sujeito se constitui pelas determina9ñes historicas que o sustentam e o conduzem; ao mesmo tempo, como o efeito concreto dessas determinCtp0es depende do modo singular como cada sujeito as interioriza e as exterioriza, é a a9ao desse sujeito que molda singularmente a sua propria determina9ño. Todo contexto historico se define como rela9ao entre o advento do sujeito e a facticidade que o precede objetivamente. Isto significa que de se levar em conta tanto a precedéncia e a independéncia da facticidade quanto o modo singular pelo qual o sujeito a apreende. Nño ha situa9ño historica que nño se configure pela ressignifica9ao e transcendéncia da facticidade, mesmo quando isso se resume apenas ñ reiteraqño do status quo. Ora, a apreensao singular da facticidade faz parte do processo de identificaRao historica. O significado identitario do sujeito se produz na transfigura9ño histñrico-subjetiva das deteimina9ñes da facticidade. A relaWho entre identidade produzida historicamente e a existéncia como proje9ño da liberdade na facticidade é a prâxis entendida na acep9fio geral de prñtica da subjetividade ou modos de objetiva9ño da subjetividade, em que interagem dialeticamente os momentos constituinte e constituido o razed a historia e o set deteiminedo por eta.

A considera9ño simultñnea desses dois momentos torna inteligive1 a rela9ño dialética entre a liberdade e as condi9oes do seu exercicio que prescrevem de fato os limites da transcendéncia em toda prâxis. O canter dialético dessa rela9ño nos permite compreender porque a Jlvre transcendéncia da facticidade é Jimitada pelas circunstñncias da alto concreta. A prâxis inclui determina90es negatives inerentes ao canter circunstancial da a9ao. Por isso é que podemos sempre “reavaliar” as a9ñes dos outros, dizendo, por ex., que tal individuo ou tal grupo pode ram ter agido de outro modo e eventualmente conseguido melhores resultados. Mas na prñtica concreta as possibilidades e as limita9ñes conjugam-se nos mesmos atos dentro de um processo de totaliza9ño possivel. “Assim os limites da supera9ao sao de um lado os dados superados e de outro as estruturas transcendentes do campo pratico: nño se supera qualquer coisa na diie9ño de qualquer coisa; supera-se Isso na dire9ao daquJJo” (idem, p.93). Essas circunstñncias ' concietas da alto concreta é que defines em cada caso singular o exercicio da liberdade sltuada. E a identifica9ño historica do sujeito é o processo pelo qual ele se ganha e se perde a partir das possibilidades livremente projetadas e que sao realizadas dentro dos limites que deJinem as situaqñes historicas de exercicio de liberdade. Nesse sentido, o projeto que em O Set e o Nada define o sujeito como possibilidade segundo uma ontologia do piocesso e nño do ser, ganha na Ciitica da Razâo DiaJétlca uma dimensño historica correspondente ñ singulariza9ño concrete que é a liberdade na facticidade, prâxis vivida como encarna9ño singular.

HP possibilidades “rears” de ressignificar a facticidade objetivo: a contradi9ño entre possibilidade e realidade é superada, na sua oposi9fio lñgica, pela transcendéncia como processo de temporaliza9âo e historializa9ño. Mas a transcendéncia historica nño é a dissolu9ño da contradi9ño, nem a concilia9ño dos opostos. Se a alto é determlrada pelos obstaculos que eta supera, isso quer dizer que a histñria real nfio ñ constituida por oposi9ñes externas (tese e antltese em rela9ño de complete exterioridade reciproca), mas por um processo de ante oqâo do mesmo, no sentido de uma afirmaqño reciproca dos contraltos, um necessitando do outro para consolidar sua identidade. Num mundo em que cada um existe para o outro, a afirma9ño da identidade se faz pelo encontro dessa identidade em outro. A identidade é histâiico porque as rela9ñes concretes de alteridade se constituem na prâxis, e é nela que o sujeito realize o processo de auto-identifica9ño, ou de encarna9fio singular num contexto de pluralidade contraditoria, isto é, de conflito.

A alteridfide como conflito define o conjunto das praticas humanas “A praxis individual se integra necessariamente no conjunto das prfiticas humanas que ela encarna singularmente e que a encarnam incorporando-a” (Noudelmann, p.123). A rela9ño entre a liberdade originâria e os limited do seu exercicio e a dialética da alteridade, se a entendemos como relapfio encarnada. Sendo a encarna9ño individual scmpre uina totaliza9âo singular, a sua inser9ño no “conjunto das priiticas humanas” é conflituosa. Isto significa que quando esse conjunto for sua vez incorpora a pr/axis individual como totaliZdQño, etc proprio se estabelece como diferen9a entre as prâxis individiiais. A totalidade das diferen9as é processo de totaliza9ño porque é a integrapâo dialética da diversidade. Fusñes de liberdades diversas sfio momentoe do processo, nunca concilia9oes definitivas e supera90es absolutes. Desta forma, a mais estrita individualidade depende, na efetiva9ño prñtica de st, do conjunto de prñticas no qual se insere. E a sua irredutibilidade (o fato de nño ser mero reflexo da totalidade) provém de que totaliza ñ sua maneira esse conjunto do qual depende. Ha portanto uma dialética entre autonomic e dependéncia que decorre simplesmente de nfio ser o sujeito “parte” ou “substñncia”, mas processamento totalizador no interior de uma totaliza9ño historica que o envolve. Essa totaliza9fio histñrica que envolve o sujeito, longe de ser um invñlucro protetor, representa antes toda a espessura da adversidade que o sujeito deve atravessar na realiza9ao da totaliza9ao. O sujeito nunca coincidirñ com a totalidade que o “envolve”, porque tanto a totalidade individual quanto a totalidade historica “envolvente” sño sempre algo a ieolizai. O constante transcended, o choque com a Jacticidade, a transfiguraWho das determina90es mostram que o movimento de totaliza9ño é a impossibilidade da totalidade. E isso deve ser entendido nño apenas como a impossibilidade da totalidade dada mas também como a impossibilidade de finalizar o processo. A incompletude, ou a defini9ño do para-si como o que lhe mite para ser (falta ontologies constitutive), revela aqui como que a sua face historica, na impossibilidade historicamente constitutive de o sujeito preencher o que the falta para totalizar ou totalizar-se.

Isso signifier que a trajetoria do para-si e o fazer-se livremente sujeito historico sño afinal os does aspectos (ontologico e historico) de um processo fatalmente interrompido. Constituidos pela proje9fio de nossas possibilidades e pelo exercicio conflituoso de nossa liberdade, por mais que avancemos na tarefa de !ezei-nos, sempre ficaremos a meio caminho. Talvez também se possa ver nisso um significado da paixâo inuU1: nfio importa quño prolongado, doloroso e torturfinte seja o processo de reden9ño: nunca seremos redimidos.


LEOPOLDO E SILVA, F. Knowledge and historical identity in Sartre. Trans/ Foim/Aqâ o, (Sao Paulo), v.26 {2), p.43-64, 2003.


KEYWORDS: Dialetics; identity; individual; universality; singularity; history.



Referencias bibliogrñficas


NOUDELMANN, F. Sartre: L’incarration lmayinaire. Paris: L'Harmattan, s. d. SARTRE, J.-P. Veidod ¿ Existencia. México: Paidos, 1996

C'ritiquo de Ja roison diaJectique. Paris: Gallimaid, 1985. v. 2.

1 Professor do Departamento de Filosofia da USP.