UMA IRRESISTIVEL VOCAQAO PARA CULTIVAR A PROPRIA PERSONALIDADE

(PARTE II)1



Paulo Eduardo ARANTES2



RESUMO: Estudo da relapño entre os judeus cultivados de Berlim (na figu- ra de Rachel Varnhagen) e a cultura classica alema por meio da anñlise do papel nela representado pela idéia de ”personalidade", senha da ideologia dos mandarins alemñes.

PALAVRAS-CHAVE: Cultura classica alema; Bildung; Rachel Varnhagen; personalidade; mandarins alemñes.


Assim como a idéia de civiliza9ao na Franca setecentista, a idéia de personalidade, na Alemanha, foi antes de tudo um conceito forjado pela 1nte?Jiyents a em busca de uma fonte de distinsao social; nño bastava ser culto, era preciso ter uma personalidade, o que invariavel- mente ocorria quando se era um Gebildete. Também como na Franca (feitas as ressalvas conhecidas), o modelo de tal concerto era o ethos nobre, habilmente convertido em instrumento de combate nas mbos do intelectual burgués. Kant ja o equipara, contrapondo a moralidade da cultura ñ pose e artificio da elite dirigente. O plebeu Fichte, princi- pal ideologo dos Gelehi ten, for mais adiante e, em 1793, advogando junto ao publico alemao a causa da Revolupño Francesa, depois de diluir a presumida superioridade da nobreza hereditaria na usurpa9ño pura e simples, com o seu cortejo de violéncia e lisonja âulica, concluia, triunfante e com uma ponta de arrogñncia: doravante, "o nobre que é apenas nobre e nada mais do que isto, somente sera tolerado nos circulos do respeitavel estamento burgués, onde se reunem lado a lado o universitario, o negociante e o artista, caso mostras de extra- ordinaria humildade” (Rosenberg, t966, p.184). Alguns anos mais, e os escritores libeiais ja se vangloriavam de "serem os ‘verdadeiros nobres', em contraposi9ño aos surrados titulos de barño e quejandos que afinal podiam ser concedidos e cancelados“ (Arendt, 1976, p.73). E que, nesse meio tempo, ñ cultura veto juntar-se a personalidade, rompendo a antiga equa9ño entre aristocracia e nobreza: havia agora uma aristocracia do mérito, interior, pessoal (Rosenberg, 1966, pp.183- 5; Ringer, 1969, p.123). Sempie ds voltas com uma nobreza que the barrava o acesso ñ carreira, ñ que tinha direito pelo talento, a intelligentsia burguesa preferiu o caminho da emula9ño e do mimetismo. “Os intelectuais alemaes", nota Hannah Arendt, sublinhando o lado mais desfrutñvel da posi9ño deles, “embora raramente promovessem lutas politicas em prol da classe média a qual pertenciam, travaram uma batalha amarga e, infelizmente, muito bem sucedida em prol de sua posi9ao social” (Arendt, 1976, p.72). Em 1807, num panfleto do escritor liberal Buchholz contra a nobreza podia-se ler o seguinte: “a verdadeira nobreza nfio pode ser dada ou tomada; pots, como a forma ou o génio, estabelece-se a si mesma e existe por si mesma” o trecho é citado por Hannah Arendt e pode ilustrar os efeitos do feliz mal- entendido mencionado acima por Hauser, combina9ño bem dosada da alguma luta de classe amortecida pela imita9ño do modo de ser do grupo social e, desnecessario lembrar, muita vontade de subir na vida, uma proeza num meio de pequena mobilidade social: esta visto, en- tño, que ao lado daquelas qualidades que nao podem ser dadas nem tomadas, alinha-se agora a personalidade (o que mais se preza nas classes elevadas, a sobra civilizada de antigos privilégios, dentre eles o de pairar muito acima do mundo da produ9ño), cultivada, vé-se logo também, mas sobretudo inata, como manda alias a propria defini9ño de nobreza. “Personalidade inata", eis numa palavra o grande achado da intelligentsia alema, segundo Hannah Arendt, evidentemente apro- veitando a deixa do Wilhelm Meister:


(...) na Alemanha, onde o conflito entre a nobreza e a c1asse média em ascen- sño nunca for travado no campo politico, o culto da personalidade tornou-se o unico meio de alcan9ar pelo menos certa forma de emancipa9ao social (...) Para poderem competir com direitos e qualidades de nascimento (os intelectuais alemñes), formularam o novo conceito de "personalidade inata", que iria obter a aprovapao geral da sociedade burguesa. A “personalidade inata", exa- tamente como o titulo de herdeiro de uma familia antiga, passou a decorier do nascimento, sem ser adquinda pelo mérito. Assim como a falta de historia comum para a formapño da na9ño havia sido artificialmente sanada pela im- plantapño do conceito naturalista de desenvolvimento organico, também na esfera social supunha-se que a natureza proporcionava ao individuo o titulo que a realidade politica lhe havia negado


tudo bem pesado, arremata Hannah Arendt a proposito das “misteriosas qualidades que uma ‘personalidade inata’ recebia ao nascer“, “eram exatamente as mesmas que os verdadeiros Junkei di- ziam possuir” (idem, p.72-3). Concluindo o ciclo ideologico cumprido pelo argumento, caberia acrescentar que a principal dessas “misterio- sas qualidades", confundindo-se alias com o seu suporte, era justa- mente a Cultura, gra9as ñ qual podia o intelectual, aiiemedando-lhe a traditional alega9ño de superioridade em nome de uma vii tus abscñndita, nao rivalizar com a nobreza mas usurpar-lhe em efigie a exceléncia imaginaria (Ringer, 1969, p.87).'

Consinta o leitor um paréntese para lembrar que uma ta1 superposi9ño, tfio consoladora quanto improvñvel, entre aristocracia e vida do espirito nño é aspira9ño exclusiva do letrado alemño, antes acompanha, como uma rnetafora do mundo desencantado, os vñrios ciclos da intelligentsia européia moderna, contemporñneos do desen- volvimento desigual da nova oidem capitalista. Mais particularmente, naquela imagem compensadora, a um tempo voto piedoso e instru- mento na luta pela ascensao social, espelhava-se o mal-estar romñnti- co (nome genuino para a inquieta9ño intelectual da época) diante de uma sociedade indiferente ao destino dos coia9ñes cultivados. Manda entño a lñgica do nosso assunto multiplicar os termos de compara9ño. Veja-se, por exemplo, o caso de Coleridge. E a partir do seu tempo que a idéia de cultura entra decisivamente no pensamento social in- glés, ensina Raymond Williams, cuja li9ao voltamos a acompanhar. Em linhas gerais, explica este ultimo, isso se deu gra9as a “formula- Rao de uma idéia que traduzia valores em termos independentes de ‘civiliza9ño' e, conseqiientemente, num periodo de mudan9a radical, independentes do progresso da sociedade" (Williams, 1969, p.23). Atra- vessamos a Mancha e nño obstante continuamos a respirar um incon- fundivel ar de familia. Com efeito, sño notorios os vinculos de Coleridge com o “periodo goetheano da literatura germñnica”, como dizia Stuart Mill referindo-se ñ peculiaridade da “escola germano-coleridgiana"

Corpo estranho? Mais tarde, resenhando obra de outro germanñfilo, Past and Present de Carlyle, Engels nfio desdenhara bater nessa tecla, afinal també m lison jeira para um herdei ro de esquerda da Biidungsfiiiryertum: assim, aos olhos de seus compatriotas, encharcados de empirismo e espirito pratico, o talhe germñnico do seu ensaismo social alguns consideravam sua prosa abstrusa e sua lingua pouco mais do que um inglés estropiado toinava-o um fenñmeno incompre- ensivel, “nño para nos, alemñes“, acrescenta Engels, “que conhece- mos perfeitamente as premissas do seu ponto de vista” : a par do que, Engels comprazia-se em denunciar a incapacidade da Inglaterra em produzir "pessoas cultas", emboia lhe concedesse a palma do progres- so em matéria de rela9ñes sociais (cf. Engels, 1973, p.190 e ss).' Stuart Mill por certo nño chega a tanto; basta-lhe a observa9ño de que a nova énfase na cultura coisa de alemao vinha com efeito arejar a tradi9ao utilitarista, afinal Bentham dizia, jamais reconhecera no ho- mem “um ser capaz de perseguir a perfei9ño espiritual como um fim” (Williams, 1969, pp.81-2). Coleridge cifrara aquela nova énfase na pa- lavra-chave cultivation, a qual, pela primeira vez, se usava para indi- car uma condi9ño geral, um estado ou habito de espirito “o valor da palavra depende, naturalmente”, continua R. Williams, "da forma do importante adjetivo do século dezoito, culto (cultivated)" (Williams, 1971, p.76). Também aqui a trajetñria nño podia ser muito diferente, com a ressalva de que nesse passo estfi mais prñxima do modelo fran- cés de cristaliza9ño em torno de um nucleo aristocrñtico: "o que fora, no século dezoito, um ideal de personalidade uma qualifica9ño pes- soal para a participa9ao na ‘sociedade polida’ tinha agora, em face da miidan9a radical, de ser redefinido como a condi9ño mesma de que a sociedade, como um todo, dependia” (Williams, 1969, p.82). Feito o reparo, logo voltamos ao contraponto alemfio de cultura e civiliza9ño, como nesta passagem em que Coleridge, depois de sublinhar “a dis- tin9ao permanente e o contraste ocasional entre cultivo (cultivation) e civiliza9ño”, chama a aten9ao para uma ”valiosissima ludo da historic”, a saber, “que uma na9ño jamais podera ser demasiado cultivada, mas pode facilmente transformer-se numa rata supercivilizada” (apud idem)

superciviliza9ño deplorada por Goethe, como se de recordar; ou entfio, neste outro passo, onde uma reminiscéncia kantiana (apenas para dar um nome prñprio a um repudio que for coletivo) desagua na aspiraqño mâxima do neo-humanismo alemño:


em st mesma a civilizapño é um hem misturado e impuro, se nao muito mais uma influéncia corruptora, antes a héctica da doen9a do que o frescos da saude, e a napño que pot ela se distinguir, mais adequadamente se chamaria de povo envernizado que de povo refinado, a nao ser que a sua civilizapño se apoiasse na cu!tivotion, isto e, no harmonioso desenvolvimento daquelas quali- dades e faculdades pelas quais a humanidade so caracteriza (apud idem, p.81).


Chegados a este ponto, deixemo-nos guiar ainda uma vez pelo comentñrio de Raymond Williams que, atr£lVés do anticapitalismo coleridgeano de corte germñnico, manifestamente calcado no ideal de personalidade cultivada formulado nos confins da provincia alemñ, nos conduzira ao limiar de uma nova aristocracia, cuja missño de salva- guarda, nesta época de caréncia, oprimida pelas grandes transforma- 9ñes decorrentes da Revolu9ño Industrial, consistiria em dedicar-se a general cultivation:


(...) contra o mecanicismo (outio lugar comum nos libelos anti-capitalistas da intelligentsia alema, como veremos), a preocupa9ao de acumular riquezas e a proposipño de utilidade como a fonte dos valores, a cultivation erguia se como idéia social diferente e mais alta. Transformou se, em verdade, numa corte de apela9ao, no tribunal perante o qual pudesse ser condenada uma sociedade euro sistema de rela9ñes se fundava no dinheiro. Fiimando-se na idéia do "harmonioso desenvolvimento daquelas qualidades e faculdades que caracte- rizam nossa humanidade”, essa condipño geial cultivation podia ser consi- derada o mais alto estado atingivel pelo homem em sociedade e por ele se inta definir e acentuar aquela "distinpño permanente e contraste ocasional” entre a cultivation e a civilizapño (o progresso comum da sociedade). For nesse espiri to que Coleridge examinou a constitui9ño do Estado e propñs que dentro dele se criasse uma classe para preservai e ampliar a cultivation (apud idem, p.83).


Utopia de intelectual conservador," porém afinado com o seu tempo, marcado pelas sucessivas demandas de institui9ao de um po- der espiritual leigo: no caso, a clericatura imaginada por Coleridge gravitava na mesma orbita do GeJefirter fitcheano, incluido por Carlyle no rol dos seus herois, e daquela nova inteJJiqentsia da qual Hegel, segundo Gramsci, fizera justamente a "aristocracia” do seu Estado substantial (Gramsci, 1968, p.56)4 como se vé, a imagem alemñ ligei- ramente fora de foco, refletida pelos ideologos ingleses devolve-nos ao ñmago de nosso assunto; mas nao atalhemos o seu curso naturalmen- te meñndrico. Alguns anos mais e o filogermñnico Carlyle tornava a insistir no poder enobrecedoi da culture, chamado a constitute uma "classe literaria orgñnica”, uma "‘aristocracia espiritual’, minoria alta- mente cultivada e responsñvel, pieocupada com definir e sublinhar os valores mais altos que uma sociedade deve perseguir” (Williams, 1969, p.102). Outro tanto e Mathew Arnold, ao subscrever as opiniñes de Wilhelm von Humboldt, “um dos mais belos espiritos que jfi existi- Ham”, nño deixa de acentuar nelas a sua tñnica aristocrñtica, lembran- do que “o nosso objetivo, na vida, é o de alcan9ar, por todos os modos possiveis, a perfei9ao individual e, a seguir, procurar criar, ñ nossa volta, uma aristocracia, cada vez mais numerosa, de talentos e de caracteres” (idem, p.137). A imagem utilizada por Raymond Williams para sugerir a coloraqño peculiar da cuJtlvation coleridgeana, a de uma corte de apela9ao, retrata com fidelidade o seu carater afirmati- vo; esse supremo tribunal, evocado pela idéia de uma general cultivation como ultima instñncia a que recorre o sujeito amea9ado de desinte- gra9ño pelo choque da Revolu9ao Industrial, julga de acordo com cri- térios codificados nos primordios da era burguesa por aquilo que Marcuse chamou, em 1937, de “cultura afirmativa”, quando ainda me- ditava nos modos de sua supressño, nao da cultura, mas da sua di- mensao afirmativa, que a eleva, como repositñrio de valores espiritu- ais e morais independentes muito acima do dominio material da civi- liza9ño comandada pelas lets de mercado. A principal caracteristica dessa cultura que tern a idade da burguesia é, portanto,


1...) a afirmapño da existéncia de um mundo universalmente noimativo, que todo homem é chamado a subscrever, que se desenvolve sem cessar ao mes- mo tempo em que seu valor também nño cessa de crescei, e que é fundamen- talmente diferente do mundo real onde se desenrola a luta quotidiana pela vida nao obstante, cada individuo pode realiZar por st mesmo esse universo ‘inte- rior’, sem precisar mudar o que quei que seja no mundo real



(...) o homem culto é aquele para o qual as verdades da humanidade nao ego um grito de guerra mas um comportamento. Tal comportamento implica um savors-vivie: é preciso mostrar harmonia e equilibrio até nos minimos atos quotidianos. A cultuia deve penetrar e enobrecer o que existe, nunca pñr algo novo em seu lugar. Assim, eta eleva o individuo sem livra-lo de sua humilha9âo real (idem, p.1i8).‘


Vinha assim a calhar o idealismo da cultura alemñ: no continen- te, facultava ao individuo bem foimado conviver com a inércia ambi- gua de uma transi9ao para o capitalismo, do qual ia conhecendo ape- nas as desvantagens, para falar como o jovem Marx; na ilha em que tal transforma9ño se processava a todo vapor, servia de repoussoir dos espiritos mais delicados e nostalgicos. De fato, o que mais atraia, na tradi9ño dos mandarins alemfies, aquela nobre estirpe um tanto anñ- mala de intelectuais ingleses era algo analogo ñ forma que trazia inexoravelmente ñ Inglaterra, a Frank a, ñ Italia, os americanos expatriados de Henry Fames, imantados pela “velha cultura européia” (CA. Operosa, 1979).7 Exemplo esclarecedor dessa gravita9ño fora de orbita é o caso limite do inglés germanizado Houston Stewart Chamberlain a sinistra demagogia em que sucumbiria é em grande parte fruto da conduta com que aderiu, levando-as as ultimas conse- quéncias, is clausulas autojustificatorias da cultura alema, como a frase famosa de Wagner, protocolo da cultura afirmativa, segundo a qual ser alemño é fazei algo que traz em st mesmo o seu proprio finn. Chamberlain tomou ao pé da tetra o anticapitalismo apregoado em Bayreuth. Assim explica Adorno seu destino ideolñgico, cujos efeitos incomparavelmente mais barbaros suplantaram de muito o filistinismo natal de que fugira. Escapou-lhes, poitanto, entre outras coisas, a conota9ao imperialista do narcisismo coletivo estampado, por exem- plo, no cliché, que vem de longe, como sabemos, e que coteja a von- tade pura dos alemñes com o vi1 utilitarismo manchesteriano; e no entanto, pondera ainda Adorno, hfi mais do que um grño de verdade nesses estereotipos: com efeito,


(...) nao é menos verdadeiro que a relapño de troca, a extensño do carater de mercadoria a todas as esferas, incluida a do esplrito, na virada do seculo dezoi- to para o dezenove, difundira-se menos na Alemanha do que nos parses capi- talistas mais avanpados. Tal situapao conferiu, pelo menos a produpño espiri- tual, um certo poder de resisténcia. Ela se concebia como algo em si e nao somente como um ser para outra coisa e para outros, isto é, como objeto de troca (Adorno, 1973a, p.98).


Compreende-se entño que um “homem cultivado, fino, hiper- sensivel", como fora Chamberlain no inicio de sua carreira, se deixasse seduzir, tal como seus compatriotas letrados perseguindo d mirages alemñ de uma aristocracia do espirito, pelas vantagens intelectuais do atraso e tomasse como "uma qualidade natural imutfivel o que era resultado de desenvolvimentos sociais desiguais” (idem). Fechemos o paréntese lembrando que a metafora compensatoria da aristocracia de talento e canter também rondou o espirito dos letrados franceses nos primeiros decénios do século dezenove. Veja-se o devaneio de um Vigny, muito proximo da guilda intelectual ideada pelos cenñculos de lena e Berlim, sonhando com um reino espiritual talhado ñ imagem e semelhan9a de um Chatterton, cuja alma reflete, por sua vez, as virtu- des conjugadas da nobreza e da literatura. Sabe-se que nos seus ulti- mos anos Vigny chegou inclusive a projetar um poema épico sobre a inteligéncia, faculdade mental e corpo social hñ quem atribua aos romñnticos o mérito de ter introduzido o heroi intelectual na literature francesa (cf. Brombert, 1966, de quem tomamos o exemplo de Vigny), via de regra muito pouco heroico, timido e invariavelmente tolhido em suas veleidades de mando e energia. Vimos, aliñs, que a mesma at- moslemideologica em que prosperara essa irresistivel identifica9fio com a triste figura de Hamlet também levara Carlyle a celebrar no homem de letras o heroi por exceléncia dos tempos modernos. Nño admira que o dnticapitalismo conservador que entño pairava no ar induzisse no aristocrats em disponibilidade o desamparo de intelectu- al caracteristico do heroi shakespeareano, justamente o que mais fala- va fi imagina9ao dos romñnticos. Ora, na Franca sob a Restaura9ño, uma tal conduite d’ecLec parecia irmanar, e no limite confundir num so ente, protagonista do romantismo yentiJñomme, uma certa nobreza refrataria e a fianja mais avan9ada do intehiger tsia que sobrevivera ao eclipse revolucionario e a asfixia do Império. Ao contrario do que ocor- ria na Alemanha, a idéia de uma aristocracia intelectual nfio era pura- mente metaforica; em linhas gerais, dava sequéncia ao processo de sagra9ao do intelectual iniciado na Idade Clñssica; porém, so depois da Revolu9ao aquela identifica9ao pñde enfim realizar-se. Afinal, qual nobre, antes de 1789, assumiria integralmente sua condi9ño de ho- mem de letras? (Barbéris, t972, t.IV, p.495). Aristocratas depossedees, desmobilizados, Vigny, Chateaubriand, Lamartine, etc., alimentarño seu odio do mundo moderno e burgués enveredando pela carreira das tetras, a unica que a nova ordem iestaurada parecia lhes oferecer (idem, p.492-5). Sartre interpretou essa conversao em termos tars que, ao cabo de tortuoso trabalho de acomoda9ño ideolñgica as exigéncias herdadas da literatura setecentista (autonomia, negatividade, declessement, etc., sño categorias sartreanas colhidas na idade de ouro da intehigentsia francesa, paradigma que, de certo modo, Sartre nunca abandonou), a arte de escrever apaiecia aos olhos daqueles primeiros romñnticos como a atividade natural da aristocracia e a idéia de uma literatura burguesa, vé-se logo, tornava-se um arremata- do contra-senso: ninguém pode escrever a menos que seja nobre de nascimento. Mais ainda, o escritor era um superaristocrata (Sartre, 1972, t.III, p.107-33).8 Todas essas "determina9ñes do Espirito objeti- vo”, como gostava de dizer Sartre, complicarfio a vida ideologica da gera9fio de Flaubert. Dentre etas, pesarñ sobretudo a interdi9ao legada pelo romantismo yentlJfiomme: o adolescente de 1840, filho de notârio ou de médico, vé-se condenado sem apela9ño, “burgués filho de bur- gués, educado na ideologia burguesd, ele pode fazer tudo, menos es- crever: a Arte, dizem-the aqueles nobres um tanto emurchecidos, é o seu unico privilégio de casta, o que resume todos os outros” (idem, p.111). Esta "pauvre rose", continue Sartre, assenhora-se, na forma de um imperativo estético e social, do espirito dos jovens pos-romñnticos: ao mesmo tempo em que, por assim dizer siderados de estesias, vño esquadrinhando as obras dos seus maiores, sentem-se excluidos delas por alguma forma impalpñvel e onipresente, que lhes anuncia sem ces- sar o anâtema que os paralisa: “eles nfio escreverño, a menos que tarefa impossivel arranquem o cora9ño burgués que neles palpita” (idem). Numb conjuntura bem diversa, repetia-se o mal-estar do bur- gués Wilhelm Meister: minha condi9fio burguesa, lamentava este ulti- mo, recusa-me o privilégio fidalgo da personalidade, cujo apelo entry- tanto minha voca9ño de gebildete Mensch nño cessa de me fazer sentir; por outro lado, o mesmo imperativo de déclassement, sem o qual nño vida intelectual, era contrariado pelo interdito, que a leitu- ra das obras romñnticas ia incorporando ao "Espirito objetivo” “tu r*éczJzas point puJsque tu n’es pas arstoc ate”. Seja como toi, malgrado a diferen9a de fuso historico, a analogia do gesto, ou do fantasma, como diria Sartre,’ além de assinalar dois caminhos aparentados em que o fardo da miséria burguesa tornava-se insustentñvel, aproximava a fuga de Wilhelm na "bela aparéncia” do teatro e a "neurone objetiva" da gera9ño flaubertiana descrita por Sartre. Noutras palavras, como na Alemanha do "periodo artistico”, na Franca da gera9ño que conheceu a reviravolta de 1848, a assim chamada aristocracia do espirito voltou a ser puramente imaginaria: Sartre chamou os membros dessa elite burguesa de aristocratas selvagens, visto que ninguém os reconhecia como tars, salvo eles mesmos (idem, p.1t2-3). Uma tal fic9ño nño se sustenta sem dano. Fazia parte daquela "neurose objetiva" a autofla- gela9ño (pratica que a bem-aventurada intelligentsia setecentista des- conhecia, pelo menos em tao larga escala, muito mais propensa ñ auto-deleita9ao, afinal a sua sagia9ño andava em curso), mais preci- samente “its se mepiisent sans savoir au nom de quoi”. E que o heroi romantico, desaparecendo, explica Sartre, deixara-lhes, como unica heran9a, a vergonha deles mesmos, isto é, da classe em que nasce- ram; aquela pobre elite, continua, ao desprezar em st mesma e nos demais o burgués que trazia em si, na verdade por forma do mimetismo ja apontado, interiorizara o olhar de desprezo da finada aristocracia (idem, p.135). Ora, algo semelhante se dera na Alemanha de Goethe, atestando, mais uma vez, a deploravel situa9fio da burguesia local, cujo "atraso”, entretanto, prenunciava o désaiioi da elite intelectual burguesa na Franca pos-48. Vejam-se a proposito, as observa9ñes de Hannah Arendt acerca do carater discriminatñrio do conceito de “per- sonalidade inata”, cristalizado no bojo do movimento de ascensño so- cial da intelligentsia alemñ e com elas retomamos o fio de nossa meada: “em sua febril tentativa de invocar algum orgulho prñprio con- tra a arrogñncia de classe dos Junkei, sem, contudo, ousar bater-se por lideran a politica, a burguesia buscou, desde o inicio, olhar com desprezo nao tanto as classes inferiores, mas simplesmente os outros povos” (Arendt, 1976, p.73). Nño vem ao caso discutir a justeza da pondera9ao final, em que o racismo do periodo imperialista parece suplantar, para efeitos de politica interna, o preconceito de classe. Interessa mais ieparar como a burguesia alemñ, engatinhando, tam- bém interiorizava o olhar de desprezo com que a aristocracia fulminava as qualidades tipicamente burguesas. Nascida em tars circunstancias, nfio admira entño que a no9ao de personalidade carregasse consigo o get me de sua propria degrada9ao ideologica.'°

Observemos um pouco mais de perto essa face mais sombria da idéia que entño se fazia de uma “personalidade cultivada”, face em que se ocultam, amortecidos, os conflitos de classe que nño podiam se declarar abertamente no campo politico e ñ qual alude Hannah Arendt, sublinhando-lhe a voca9ño preconceituosa, anunciada de res- to pelo tortuoso mecanismo de distin ño social por introje9ño da ñtica dominante que se encontra em sua origem. Ja aprendemos a reconhe- cer nessa constela9ño a marca registiada do pats: para aqueles que estavam ñ margem da sociedade aristocratica, a ascensño social parecia depended exclusivamente da “personalidade”, que cabia entfio cultivar a todo custo. No limite, uma aspiraqao perfeitamente filistina, adverte ainda Hannah Arendt: assim, o simples fato de que "na Ale- manha a questño judaica era vista como um problema de educa9ao, ligava-se intimamente a essa atitude e resultou no filistino educatio- nal das classes médias judia e nfio-judia” (Arendt, 1975, p.93)." Tal destino, diria Marcuse em 1937, é o desenlace natural do proprio cara- ter afirmativo da cultura, enaltecido pela deutscfie Klassik. Entre ou- tras coisas, a cultura afirmativa proibe qualquer vinculo com a esfera pratica em que se desenrola o processo de vlda material, considerado um pecado contra o espirito noutras palavras, é vedada qualquer interferéncia entre cultura e civiliza9ño. Na verdade, lembra Marcuse, o utilitarismo nada mais é do que o avesso da cultura afirmativa, em principio alheia ao mundo da produ9fio: ñ medida, entretanto, em que se generaliza a forma-meicadoria, aquele distanciamento é reconduzido a sua verdade, que é proximidade absoluta, de sorte que a indepen- déncia ja é de fato sujei9ño ñ let do valor que se impñe tanto no ambito da produqño quanto no do consumo dos “bens cultuiais” (Marcuse, 1970, p.145). Ja a expressño filistina “bem cultural” é indicio seguro da consuma9ño daquele destino. Em linhas gerais, as observa9ñes de Adorno vño na mesma dire9ao. Também aqui, para o bem e para o mal, o termo Cultura é tornado em sua acep9ao alemñ, onde prevale- ce, desde o tempo dos mandarins, o contraste que a separa do mundo subalterno em que, entregue a st mesma, a vida se repioduz, e natu- ralmente estendida ao conjunto da cultura burguesa, cujo canter afir- mativo os humanistas alemaes teriam sido os primeiros privilégio do “atraso” a pñr em evidéncia, e na linha de frente do combate ideolo- gico. Analogamente, Adorno assinala na sua auto-suficiéncia, sem a qual serta inconcebivel o grande surto filosñfico e artistico da Idade Classica, o principio mesmo de sua degrada9ño: "uma cultura que se absolutiza ja se tor nou semicultura”. Numa palavra, fetichismo e filistinismo andam juntos. Neste sentido, os escritos de Wilhelm Dilthey, os quais, lembra Adorno, “mais do que quaisquer outros, tornaram o conceito de uma cultura do espirito enquanto lim em st mesma parti- cularmente grato ao gosto da alta burguesia alemñ, ao mesmo tempo em que o colocavam nas maos dos pedagogos", sao exemplares: malgrado toda a doutrina do autor, insiste Adorno, sua fraseologia caracteristica torna aqueles esciitos indiscerniveis de “certos produtos da industria cultural no estilo de Emil Ludwig” (Adorno, 1976, p.87). Ao seu modo Lukacs descreve igualmente essa curva descendente ao longo da qual a critica do filistinismo parece morder a sua propria cauda. Além da caréncia de um nexo orgñnico proprio (lembremo-nos das declaraqñes explicitas de Herder e Goethe), o principal obstñculo ao desenvolvimento da vida intelectual na Alemanha, recorda Lukacs, foi justamente o Spiesseitom, o espirito filisteu:


(...) os melhores escritores alemñes viram nele o inimigo, mas raramente com- pieendeu-se a origem de sua forma. Em nenhum lugar existiiam déspotas mais mesquinhos e despiovidos de idéias do que na Alemanha, nem loi tño peque- na a resisténcia contra a repugnante presen9a deles. Natuialmente, por toda parte pequenos burgueses e filisteus; mas sempre houve alhures os tern porais purificadores das revolu9oes e frequentes processor de clarifica9ño da vida publica (Lukacs, 1956, p.17)."


Mais adiante, Lukñcs estabelece uma partiqao na historia desse combate secular contra o filistinismo nacional, evidentemente em fa- vor dos classicos, observando que a luta destes ultimos contra o pe- queno-burgues alemao era parte de um esfor9o mais amplo destinado a redimir a Alemanha "educando homens em condi9ñes de cultivar em si mesmos e de transmitir aos outros, em meio ñ miséria alemfi e aos efeitos degradantes da divisño capitalista do trabalho, os grandes ideais humanistas, o modelo do homem harmoniosamente desenvol- vido em todos os seus aspectos” (idem, p,64). Mas ao voltar as costas ñ iniciativa politica e social gesto alias sublimado no apolitismo da KuJtur —, os clñssicos nfio so renunciavam ao meio mais importante para soerguer a consciéncia civil de seus cidadaos amesquinhados pela inércia ambiente, como, encarecendo assim o espectro puramen- te etiimativo da vida cultural, preparavam o terreno em que viria se intrincheirar a ironia romñntica: estreitava-se ainda mais, nota Lukacs, o horizonte dessa polémica secular du intelligentsia com o espectro do filistinismo, que de questño national torna-se problema cultural disse- CadO CI frio no recinto fechado e exclusivo dos cenaculos de iniciados. Em suma passando mais uma vez pelo lugar comum do nosso as- sunto —, para o romñntico o representante mñximo do “atraso” natio- nal, o famigerado filisteu, simplesmente, era o homem inculto ou se preferirmos, o contrñrio do burgués execrado era o artista de vanguar- da. Releia-se entao o juizo de Lukñcs ja mencionado, quando mais nño seja por trazer agua ao moinho de Hannah Arendt:


(...) a deformapño da questño revela-se sobretudo no fato de que a hiperconsciéncia irñnica dos romñnticos nño tern consciéncia do quanto pode e deve ser filisteu, no piano social e humano, o seu refinado culto filosofico e estético da individualidade soberana. A luta romñntica contra o filisteu co- mum produz o lilisteu supeiexcitado tidem, p.65)."


Ainda pouco observa9ñes convergentes autorizavam a ver no filistinismo esse ma1 superior alemño o filho natural da religiao alemñ da culture. “Heine diria que o filisteu pesava, em sua balan9a de queijos, o génio, a chama e o imponderfivel" (Marton, 1982, p.32). A fñrmula é reveladora sobretudo por apresentar Heine cultuando jus- tamente a dimensño “afirmativa” da vida do esplrito, quando na ver- dade este abriga nos meandros da sua finalidade sem finn a balan9a de mercadoria que sopesara o “valor” dos “bens culturais”. Se assim é, nño surpreende que a Sulfur dos mandarins tenha gerado em seu seio o Bildungsphilistei, o que surpreende é o ospanto de Nietzsche a rigor escñndalo de mandarim diante da geraqño de epigonos que acabava de batizar com aquele nome infamante.'^ Como se vé, a peste filistina alastra-se com facilidade num meio propicio que os estig- mas provincianos do “atraso” tornam altamente condutor —, a ponto de contagiar os inimigos jurados do mal. Assim que se afrouxaram as peias tradicionais da sociedade estamental e a luta pelo reconheci- mento social amolda-se as exigéncias do mercado, a chama imponderfivel da "personalidade cultivada” também pesarfi na balan- 9a de mercado do "filisteu superexcitado" '" Ora, no salño de Rachel Varnhagen reina solto e soberano esse “frenesi burgués”

O salvo mundano foi uma extensao natural do cenñculo romñn- tico. O egoismo podia ser divino, como queria Schlegel, porém mo escapava a ninguém a forte colora9ao mundana desse culto romñntico do Eu (cf. Lukñcs, 1974, p.86).'" Sobravam razoes no arsenal da F ñhioman tik que permitiam a um jovem letrado comparecer sem re- morsos a uma soiiée berlinense alias, boa parte deles amadureceu nesse terreno propicio ñ “idealiza9ño dos vinculos sociais” (a fñrmula é de Jacques Droz, 1963, p.9 ss). Neo é dificil imaginar o tipo de euforia que se apossava daquele conglomerado heterogéneo que se reunia em torno de Rachel Varnhagen, ante o espetaculo da aboli9ño, por certo fugaz como toda mascarada, das barreiras sociais (abusando um pouco de expressoes e idéias colhidas no ensaio de Gilda Rocha de Mello e Souza sobre a Moda no século XIX, Mello e Souza, 1976). A sociabilidade romantica a C!esehigkeit que Schleiermacher colocou no centro dos seus Discoisos sobie a fieJiyiâo, a eclesia dos “espiritos cultivados” (die Gekildeten) era uma sociabilidade de exce9fio, como era a vida breve, toda eta disfarce e fingimento, de um serño em casa de Rachel. A “livre sociabilidade”, exigida pelo pleno exercicio do Wltz reclamava por defini9ño a suspensao da distancia social, uma pausa na prosa do mundo desencantado sem a qual nño sobrevive aquele “espirito absolutamente sociñvel” peiseguido pelos romñnticos. Lem- bremos também que o lugar natural da conversa9fio onde triunfa subi- ta a alquimia do Ritz é a reuniño mundana que flui como um impromptu, efémera como todo momento de exce9ño. Recorder se, por outro lado, as circunstfincias ja mencionadas que condenavam Rachel Rio Ritz perpétuo, e que a enredavam nas malhas da conversa9fio permanen- ce, cujo principal efeito de fascina9ño consistia num certo eclipse da realidade, ta1 como ocorria com a introspec9ño provocada pelo Selbstdenker, outra mania da raciocinante dama berlinense, cujas soiiees, de resto, ofereciam uma réplica exata daquele eclipse do mundo degradado de todos os dras: também aqui, desmanchando-se por um instante as linhas de demarcasa o entre as classes e os meios os mais heteroclitos, perdia-se o contato com a realidade (continuamos a abu- sar das observa9ñes de Gilda Rocha de Mello e Souza). Acresce, ali- nhavando todas as razoes alegadas, que ao alargar o grupo de inicia- dos e interromper por um breve momento aparente de fusao social o curso filistino do mundo, o salfio tornava-se meio de educa9fio senti- mental (veja-se, por exemplo, os Lehijahie do protagonista do roman- ce Lucinde de Schlegel). Mais uma vez: para os primeiros romñnticos, como para os demais m£lndarins alemñes, nada possuia valor real caso nño fosse instrumento de cultura. “Tornar-se Deus, ser homem, culti- var-se (sich h1Jden), sño expressñes sinñnimas”, dizia Schlegel (Lukacs, 1974, p.84.). Dai sua imagina9ao irrestrita por Schleiermacher: “uma

pessoa na qual o homem enquanto tal tornou-se objeto de cultura; e por isso, para mim, eye pertence a uma casta superior” (apud Ayrault, 1961, t.III, p.30). Enfim, estavam todos empenhados em organizar a cultura (o programa mesmo do Idealismo, como veremos noutro lugar) e desenvolver a personalidade, imperativo que comportava uma tra- du9ño mundana imediata: era preciso cultivar-se mutuamente. Ora, ninguém mais do que Rachel punha tanto empenho nessa utopia de intelectual, maquina de guerra a servi9o da “sofistica da Assimila- Rao”. Tudo se passava como se na antecfimara do seu salño estives- sem gravados os versos de Goethe, cujo culto a anfitriñ fora a primeiia a celebrar: “Hoc£stes Glues der Eidenkindei/ Set nut die Peasonlichkeit” o talismñ que lhe abria as portas do gueto, exigido de seus Labitués como bilhete de ingresso. Todavia os versos famosos anunciam a degrada9fio dessa no9ño capital da deutsche XJassiL, que circulava nos salñes de Rachel como um fetiche a pesar na balan9a de mercador de seus convidados. t7 Um deles, o embaixador da Suécia, costumava dizer justamente que a “personalidade cultivada” era o elemento co- mum a amalgamar principes da casa reinante, diplomatas, homens de negocio, artistas, intelectuais, atores e condessas; dizia mars até, além de demonstrar que o fastigio das sorties de Rachel era contempora- neo da vulgariza9ño daquela formula cunhada muito a proposito pela intehjgentsia em forma9ño, pots dava a entender que os membros daquela sociedade heteroclita faziam um uso, que espiritos mais deli- cados taxariam de filistino, do mais imponderavel valor da culture afirmativa: naqueles seroes, ninguém valia mais ou menos do que os demais, a nño ser pelo que podia lograr obter em virtude de sua “per- sonalidade” (Arendt, 1957, p.45).'" Noutras palavras, so eram admiti- das pessoas “interessantes” (cf. Wei1, t930, p.263). Nño era o caso do infeliz conde Finckenstein, contrariando pela raiz as conjecturas de Wilhelm Meister aceica da gra9a inata da aiistociacia. Conquanto Ii- dalgo, num salao socialmente neutro como o de Rachel, seu titulo nobiliñrio evaporava-se como um fantasma, deixando exposta sua perfeita nulidade (Arendt, 1957, p.29-30). Este trope9o de fato nao comprometia a regra de ouro da peisonolidade a todo custo, antes exibia a verdadeira natureza de um salao na Berlim burguesa e “ilus- trada” nela, o nobre come9ava a perder seu status representativo, sua “personalidade publica” aos poucos refluia, confinando-o na con- di ao estreita do simples particular (idem). Em compensa9ao, a estrela burguesa, aindd tlmida, parecia subir e os salñes justamente “subli- mavam o processo de ascensño social” (Mannheim, 1974, p.1t2)." O tra9o filistino da “personalidade cultivada” encontrara ali toda latitude para impor-se de vez. A “peisonalidade diferen5ada” é um produto moderno, afirma Mannheim, escorado no lugar comum obsessivo da sociologia alemñ, o contraponto entre “comunidade” e “sociedade” Nesta ultima, atomizada, afeta os individuos apenas tangencialmente, sua frouxa coesfio faculta-lhes o trñnsito entre varios grupos entrecruzados, de lealdades e mentalidades variñveis. Exigindo pouco dos individuos, ao contrfirio da disciplina imperante no cerimonial mundano do Antigo Regime, o salño é uma associa9ño moderna por exceléncia. Compreende-se, entño, que a personalidade multifaceta- da caracteristica dos novos tempos tenha deparado na situa9ao fluida, informal, improvisada dos salñes, o seu habitat (cf. idem). z0 Noutros termos: essa personalidade iecentemente cristalizada sentia-se ali tanto mais ñ vontade quanto na indole mesma das reunioes mundanas da elite refletiam -se, estilizados, os traqos fisionñmicos da sociedade com- petitiva moderns. 2i A igualdade formal desta ultima parece tornar-se efetiva apenas no mundo ficticio dos sal0es, onde no entanto reina solta a mais desenfreada concorréncia: ao ter inlcio a mascdrada, en- contram-se todos em de igualdade: enfim, uma sociedade de mer- cado perfeito, cujo tipo ideal possessivo, por assim dizer, vem a ser a “personalidade inata”. Nesse universo efémero e sem passado onde se “perdem os contatos com a realidade e é deficit lembrar a posi9âo efetiva do individuo” (Mello e Souza, 1950, p.80), as desigualdades de classe cedem o passo ñs pequenas diferen9as pessoais. "E como o

salño, oferecendo a todos iguais oportunidades de brilho, destroi as

distñncias, cada um vai se es(orqar por restabelece-las através de si- nais exteriores” (idem, p.81): sejam os mais aparatosos diq tolJerte, afinal prolongamento plñstico da "personalidade“, sejdm os mais impalpñveis do espirito, alias amalgamados na atmosfera festiva das reunioes sociais. Ora, justamente dos "menos bafejados pela for tuna”, como o intelectual pobre e o judeu discriminddo, vinha em socorro o

ideal humanista da "personalidade : mas toda a arte consistia preci-

samente em saber fundi-la com a desenvoltura mundana. JR a prñpria fluidez da vida de salfio, cuja auséncia de prescri9ñes contrastava com o antigo rigor hierarquizante da etiqueta da sociedade de corte, acar- retava a valoriza9ño inclusive do desempenho de pormenor (mas isto era tudo) de uma “individualidade” que passava entfio a ser interes- sante” “o espirito e os rasgos de originalidade abriam carreiras, e a CC[ dCldade de triunfar em poucos minutos era a chave do sucesso” (Mannheim, 1974, p.112-3). Tars eram os preceitos tacitos dos sal0es de Berlim: a aristocracia ainda era o centro de yravidade, mas a at- mosfera ja era burguesa. As suas portas ta1 como o proprietñrio da forma de trabalho no mercado apresentava-se o intelectual plebeu investido do seu unico bem, £t personalidade", que carecia de ser cultivada” para entrar em circula9ao. Afinal nño é Asso o que também diz Goethe quando declara: “costuma-se critical sem pudor a perso- nalidade, mas qual é enfim nossa unica fonte de satisfa9ño senño nossa cara personalidade, qualquer que eta seja?” (apud Marcuse, 1970, p.139). Acresce que na vida de salfio o essential é o que se desenrola sob as vistas de um publico de exce9ño (cf. Mello e Souza, 1950, p.80-1). O brilho entao era tudo uma certa degrada9ao filistina do belo convivio projetado por Schiller no estado estético prenunciado pelo “pequeno numero dos cenficulos de elite”: além do que, a desenvoltura mencionada pouco (parente prñxima dos herois civilizadoies goetheanos e do trato fidalgo tño prezado pelos intelectuais na aristo- cracia despojada de seu antigo poder, caso nos recordemos das obser- va9ñes de Adorno a respeito das frequenta9ñes aristocraticas da intehigentsia alema) nem sempre preserva da pusilanimidade munda- na que parece acompanha-la, pots nño é raro, nos salñes, que subme- tiam os seus habitués ñ tirania da obriga9ño de agradar a qualquer pre9o, arranhar-se a dignidade para mostrar gra9a. Dat o sortilégio da conversa9ño e o prestigio de voca9ño teatral de fato encantamento burgués de consolo, ou melhor, uma variante mundana (se mo a sua verdade) da palavra de ordem de Novalis acerca da romantiza9ño do mundo desencantado. Em linhas gerais, os meandros da conversa9âo num salño oitocentista constituiam uma réplica em miniatura da soci- edade de mercado(c1.Mannheim. 1974, p.112) Peseguase— impe- rativo romfintico a “comunica9ño ilimitada e a intimidade irrestrita”, com um olho posto, porém, nas perspectives de conquista em todos os sentidos representadas por um colñquio oportuno (cf. Arendt, 1975, p.93; e Mannheim, 1974, p.112). As mesmas injun90es da con- corréncia repontavam, estilizadas, no brilho "teatral" exigido pelo pu- blico mundano. Os serñes de Rachel reuniam, justamente, uma parce- la daqueles excluidos da sociedade respeitñvel que haviam aprendido a representar a st mesmos através da conversa9ño semeada de Ritz (cf. Arendt, 1957, p.29). O WlJñeJm Meistei - e embutida nele a Dildorgsethik dos intelectuais alemaes vinha finalmente consagrar esse dispositivo bifronte: de um 1dd0, o impeto imponderñvel do “lon- go esfor9o de forma9ao interior”; de outro, a par da natural sede de nomeada, os interesses materiais mobilizados pelo processo de ascen- sño social que se punham em cena, sublimados, na face da "persona- lidade cultivada” voltada para o palco do mundo.22 As observa9ñes de Hannah Arendt acerca do filistinismo cultural da burguesia alemfi apa- nhavam o fenomeno, como vimos, pelo seu elo mars fraco, a "sofistica da Assimila9ño”, forjada fi imagem e semelhan9a daquela dubia sagra9ño humanistd dO homem culto, educado e tolerance: ofuscados pelo amñlgama dos salñes, os judeus “ocidentalizados” deixavam-se convencer de que “nada realmente importava além da personalidade e da singularidade do carater, talento e expressño, insubstituiveis pela ascendéncia social e dinheiro”. E que previamente a camada ilustrada do tteJstand jñ se deixara persuadir sem muito esfor9o num pats em que os conflitos de classe raramente alcanqavam dimensño politi- cs —, que a almejada ascensao social dependia exclusivamente do desenvolvimento harmonioso da personalidade; mais precisamente, conforme a li9ño goetheana, dependia também da capacidade de ex- primi-la: “o mais impoitante era saber representar o papel daquilo que a pessoa realmente pretendia ser” (Arendt, 1975, p.92-3).

Dessa circunstñncia os intelectuais romanticos tinham perfeita consciéncia, mobilizando-a a seu favor. Dai o cinismo peculiar do “cul- to romantico da personalidade”, sentencia Hannah Arendt, decidida- mente hostil aos intelectuais alemñes, traidos pelas peripécias filistinas de uma “batalha amarga e, infelizmente, muito bem sucedida em prol de sua propria posi9ño social”. Dito de maneira mais contundente: aqueles primeiros intelectuais modernos nño parecem recuar diante de nada “quando esta em jogo a unica realidade que nem mesmo um romñntico poderia dar-se ao luxo de ignorar: a realidade das posi9ñes pessoais” (idem, 1976, p.71-2). Processo de intenso e s? Apenas o outro lado e mais que isso do quinhño que cabe a todos os que na “classe dos cultos” se acotovelavam na luta para abrir uma carreira ao talento. O especifico, no caso alemao, concerne as singularidades da no9ño de “personalidade cultivada” plasmada ao longo desse ciclo de ascensño social. Delas, a menos notavel nño é certamente a sua face mundana, igualmente idiossincratica, pots, ñ luz do exposto até aqui, cabe supor que a cor local da “comédia ideologica” representada num salño berlinense tutelado por uma dama judia, nas condi9ñes evocadas nas paginas anteriores, discrepava de modo significativo da atmosfe- ra, ja consolidada por longa tradi9ño, de seus congéneres parisienses e londrinos. Nño obstante, ao investir contra a intelligentsia alemfi, na pessoa de seus profetas romanticos, Hannah Arendt deixa na sombra aquela desenvoltura mundana pela qual suspirava, por defini9ño, a “personalidade cultivada”. O nexo tern, entretanto, seu peso de reve- la9ao; posto de lado, sobra, em ultima analise, o arrivismo inato dos Gebildeten, para o qual a “ilimitada idolatria romñntica da personali- dade” foi excelente pretexto. Dito de outro modo: para Hannah Arendt, a cren9a fundamental na “personalidade” como fim em si mesmo estñ na origem da irresponsabilidade ideologica do intelectual romñntico. Caberia completar a descri9ao acrescentando que ta1 cren9a vem ci- mentar e justificar o mecanismo ja descrito de “ironiza9ao das idéias”. Repare-se que Hannah Arendt nño atribui a Ei’uhiornantik a cria9ño de nenhum ideario racista em particular, ou qualquer outra panacéia totalitaria mesmo o seu conser vadorismo de base, por sobre ser sucedñneo de antigas veleidades republicanas, convivia muito bem com o vanguardismo estético. Dito isto, importava registrar sobretudo a grande invoca9ño romñntica, patente na estrutura vibrñtil da “perso- nalidade cultivada”, mais uma atitude, toda ela pose e artificio, do que um conjunto articulado de opiniñes; segundo Hannah Arendt, a inven9ño da “frivolidade geral do pensamento moderno”, assim des- crita: um certo “relativismo” responsñvel pela yoga temporñria de qual- quer opiniño, uma espécie de “mania” da qual nada estava a salvo, ou que a tudo “podia atingir e a tudo destrocar, desde que fossem novas e originais as maneiras de emitir novas e fascinantes opiniñes” (idem). Enfim, o vezo da opinifio irresponsavel expresso no unico ponto de um programa sumario: “todos tém o direito de criar a sua prñpria ideologia”, muito embora nem todos os “idiotismos” sejam mera “elocubra9ñozinha” individual, para usar uma expressño de Gramsci, com a qual costumavam assinalar a irrelevancia social da rumina9ao do intelectual sem vinculo orgñnico é apanagio do letrado romñntico. Uma atmosfera familiar banha o antintelectualismo do libelo. Lembremo-nos nao so da consciéncia ironica descrita por Hegel, pla- nando acima de um mundo em ruinas, mas sobretudo de sua aversao em nome da seriedade dos conteudos “éticos” ñ sofistica da intelligentsia, cujo ñnimo raciocinante prestava-se a todas as causas; recordem-se as observa9ñes analogas de Mannheim acerca da pro- pensño dos romanticos a ziguezaguear a servi9o entre as classes e suas razoes. Hannah Arendt também vai nesta direqfio e explica: quem se habituou a levar a sério pelo menos durante o breve instante em que dura uma bolha de sabño tudo o que lhe passa pela cabe9a, nao encontrara dificuldade em por seu talento as ordens do primeiro man- dante ideologico que lhe encomende os servi9os. Desprovido de qual- quer inten9ño de ciéncia, sem nenhum corpo doutrinario definido, o intelectual romñntico era um ideologo por exceléncia, no sentido em que Mannheim tomava o termo: um connaisseur disposto a advogai causas alheias. Ha portanto um grfio de cinismo, por certo involuntario, na célebre palavra de ordem de Novalis: o mundo deve ser romantiza- do”. Ou melhor, deixemos o cinismo por conta da Ilustra9ño filistina e fiquemos com a vaga promessa de grandes complica9ñes simbñlicas e sentimentais formuladas por aquele Manifesto do Romantismo. Ro- mantizar, proclamava Novalis, consiste em “dar um sentido nobre ao vulgar, uma aparéncia misteriosa ao lugar comum, a dignidade do desconhecido ao conhecido” (apud idem). Sño artigos da poética do â/terdinpen contraposta a do Meistei: como se ha de recordar, naque- Ie “Candido dirigido contra a poesia”, Novalis condenava o sacrificio de tudo o que era “romantico” ao prosaismo de uma vida doméstica e burguesa; o espirito de Goethe, dizia, era o de um ingles as voltas com as mercadorias do seu balcño enfim, um mundo de pequenas idéias e atividades mediocres, ve-se logo, inteiramente hostil as “personali- dade distintas" (ver Lukâcs, 1968, p104; Mann, 1960, p.22-4) Nâo cabe examinar agora o amplo espectro desse patfios da profundidade navegando a contra-corrente do mundo desencantado pela prosa do Capital e o infra-vermelho da Au/kJaruny a rigor, ele se confunde com a propria trajetoria du intelligentsia alemñ. Basta por ora a convi- véncia do conservadorismo dos resultados com o modernismo da “téc- nica" de romantiza9ño. Esta implicava a bagateliza9ño das opiniñes respeitñveis, aqueles dependiam de restaura9ao da aura de institui- does duvidosas e maltratadas pelo tempo. Em razoavel medida, o vezo da interpreta9ño em profundidade, do duplo significddo, interessado em trazer ñ luz o infinito entranhado no finito, favorecia a estetiza9ño das rela9ñes sociais de domina9fio (Mannheim, 1963, p.145, n.72). Hannah Arendt afirma-o sem rodeios:


(...) um dos objetos romantizados o povo podia, de um momento para outro, transformar-se em Estado, em familia, em nobreza ou em qualquer ou tro elemento que pelo menos no comepo passasse pela cabepa de um desses intelectuais ou que, mais tarde quando, ja maduros, haviam aprendi- do a iealidade do pño de cada dia lhes fosse encomendado por algum fregués pagante (Arendt, 1976, p.71).


Mutatis mutandis, este gesto se reproduzirñ na segunda metade do século, quando os criticos da idéia sceleiate de progresso “queJJe PJayue!" nño passarâo ao largo da opressño presente, como eno- brecerño as suas for mas passadas: enfim, coisa de professor alemfio que, de tanto se opor ñ platitude do mundo "iluminado", desdenha o egoismo filistino que comanda os pequenos crimes em nome da fieJe- za que emana da sua versño monumental e, por assim dizer, desinte- ressada.2" Voltemos ñ observa9ao de Hannah Arendt e consideremos a sua composi9fio: de um lado, as opiniñes politicas “retrogradas”(para usar um termo de época "contra-revolucionñrio"), fortalecidas pela “romantiza9ño" dos vinculos sociais, entrecruzamento em que se ex- prime a aptidño da inteJJiyentsJa romñntica a justificar as apreensoes e rancores das antigas classes dirigentes (cf. Droz, 1996, p.228); estetismo e diletantismo politico desde entño andavam juntos (idem, p.51); por outro lado, ja o dissemos, 'é preciso registrar a modernidade dessa constela9ño que no entanto contemplou as veleidades ideolñgicas da rea9ao aristocrñtica: o antiiluminismo daqueles intelectuais nfio os impediu, pelo contrñrio, de chamar as coisas pelo seu nome prosaico, dat o cinismo com que ofereciam seus servi9os culturais, ajustando mecen£ttismo Juster e rela9ñes de mercado; a tutela das representa- 9ñes tradicionais falia igualmente em meio ao "diletantismo ocasionalista" com que acolhiam tudo o que lhes passava pela cabe- 9a; também aqui as idéias voltavam a ser “des catins" a desenvoltura de suas reviravoltas submetia as opiniñes a uma espécie de prova dos nove ultra-iluminista, comprovando-lhes a natureza descartavel e me- ramente instrumental. Frivolidade geral do pensamento moderno? Pode ser; porém nem todas As suas razñes sño levianas. “Oualquer coisa que servisse a assim chamada produtividade do individuo", insiste H. Arendt, “ou seja, ao jogo totdlmente arbitrñrio de suas ‘id Id ' podia tornar-se o centro de todo um modo de encarar a vida e o mundo” (Arendt, 1976, p.71). Ocorre também que os motivos desse capricho nao sdO todos arbitrarios. Ja topamos, em capitulo anterior, varias ma- nifesta9ñes daquele filoneismo condenado por H. Arendt nos intelec tuais consumidos pela mania do novo. Uma contingéncia nada contin- gente do “atraso", como se viu. Novamente: a Alemanha da virada do século era palco de um notñvel “experimento sociologico", como dizia Mannheim, estudando o comportamento excéntrico das idéias trans- plantadas malgrado a defasagem de fuso historico e social, via de regra coroado peld sua autodissoluqao, experimentada por sua vez como proeza especulativa por uma ln telliger tsia relativamente desarraigada por forma daquele mesmo “anacronismo" proprio de um “pats clâssico da nfio-contemporaneidade”, como denominava Bloch uma na9ño que até entao se mostrara incapaz de dar uma forma ho- mogénea ñ razño capitalists. Dos efeitos desse descompasso notl cia o palpite arriSc£ldo acima a proposito da combina9ño romñntica de modernismo intelectual e estetiza9ao das for mas tradicionais de domi- na9fio nño por acaso, pelo contrñrio, exato pendant, foram aqueles intelectuais os ideologos dos circulos integristas que se opunham ñ politics de modernizapfio conservadora dos reformadores prussianos, politics comandada, por seu turno, pelas injun9ñes daquela combine- Rao referida ha pouco. Frivolidade, mania, cinismo, arbitrariedade, relativismo, e tudo o mais que de mat tenha pensado H. Arendt a respeito dos intelectuais romñnticos ganha novo sentido, conferindo densidade inclusive ao que parecia mera drrogñncia ou staples sede de nomeada, quando referido a esse quadro de efeitos ideologicos do desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo. O mito da “per- sonalidade cultivada" onde se aninham as Brendas enumeradas act seus efeitos se superpunham nos espiritos mais vibrateis. Enfim, um permanente dar de ombros cuja "sublime insoléncia", ao enaltecer a “versatilidade infinita do intelecto culto”, como diria Novalis, subli- nhava de fato o pouco caso que a inércia national fazia das idéias e consequente fiasco destas ultimas. Noutros termos, ainda de Novalis: a "personalidade culta" podia muito bem “retirar-se de tudo, virar e inverter tudo”, por certo "conforme quisesse", mas sobretudo confor- me mandassem e permitissem injun9ñes do "atraso" que aquele gesto de vanguarda, almejando exorciza-las, estilizava.

Fechemos entño o arco dessas conjecturas reparando que toda essa constela9ao de efeitos singulares alcan9ou sua visibilidade mâxi- ma na efémera vida de salño na Berlim da virada do século: onde afinal brilharia com maior intensidade a "lepidez ideologies" das elites cultiVadñS locdis senño nas suas reunites mundanas. Disponibilidade ideologica e desenvoltura mundana andavam juntas: perseguindo a segunda, a "personalidade", que se cultivava nos sal0es, desaguava na primeira. Mais uma prova, acrescentaria H. Arendt, da frivolidade que os romñnticos legaram a tradi9ño da IrteJJiyentsia alemñ. Intole- rñncia de "intelectual" replicaria o Thomas Mann das Consideiaqâes de um apoJltico, carregando no termo infamante para um ouvido ale- mño educado: é preciso distinguir, reconhecendo-lhe os direitos, o "artista" do ativista das "luzes", um tipo inquietante que atende pelo nome de "intelectual" e floresceu na outra margem do Reno, o "para- iso dos intelectuais”. Chamando-o "artista", entretanto, Thomas Mann retrata de fato, na forma de suprema licen9a poética, a "versatilidade infinita" £tlardeada pelo intelectual £[1emao (agora sem aspas) por ra- zñes que nño eram propriamente estéticas como estamos vendo, em- bora possam redundar na estetiza9ño de sua condi9fio de homem su- pérfluo. E notoria a aversño de Thomas Mann por tudo o que, na vida de artista, ferindo o decoro hanseñtico da Bildurgsb!uigei turn, denote apego complacente ao "virtuosismo do boémio desenraizado” e de- mais for mas de descarrilamento da vida do espirito: decididamente, dentre os feitos culturais que mais prezava nas "classes educadas" nfio se poderiam incluir as excentricidades da vangudrda. Por isso mesmo é ainda mais reveladora no caso, da persisténcia daquela condi9ño intelectual mais tarde formalizada, e generalizada nño sem problemas, por Mannheim sua declarada simpatia afinal é de "iro- nia" que se trata pelo diletantismo de connaissem: daqueles homens sem convic9ñes denominados "artistas" Basta repassar o p1aido/ei manneano para reencontrarmos os tra9os mais salientes do carater camaleñnico de uma “personalidade culta” Principia dotando-a da bizarra faculdade de perceber simultaneamente vñrias imagens conflitantes do mesmo objeto, uma espécie de visño em alto-relevo anfiloga ñ da !ieischwebende Intelligenz, também eta capaz, por defi- niqfio, de experimental concomitantemente duas representa9ñes antitéticas da mesma coisa (Mannheim, 1974, p.81). Assim sendo, a instabilidade proverbial do “artista” é propria de uma camada intersticial cuja relativa falta de amarras parece lhe assegurar o direito de “brincar com os pensamentos, de arriscar experimentos com os mais diversos pontos de vista, sem se comprometer com nenhum deles” (palavras de Strindborg adotadas por Thomas Mann, cf. Mann, 1975, p.197). Aque- la sorte de visao estereoscopica soma-se portanto o dom da empatia ideologies, uma singular propensño a colocar-se no lugar dos outros, mais um tra9o fisionñmico do intelectual moderno observado por Mannheim como vimos, de olhos postos no histrionismo do romñn- tico alemño. Pois é desse cabotinismo peculiar que Thomas Mann advoga a causa, nño faltando de resto no seu retrato do “artista” o pano de fundo da “dialética”, em parte clausula ietorica, em parte, podemos supor, denomina9ño induzida pela propria constela9ño his- torica da sua matéria:


(...) é preciso absolutamente compreender que aquele que nño esta habituado a falar diretamente e sob sua propna iesponsabilidade, mas a deixar falar as pessoas, as coisas, alguém habituado a Idzei arse, jamais leva inteiiamente a sério o dominio espiritual, intelectual, pois a sua ocupapño sempre consistiu em tiata to como um material, um brinquedo, em repiesentai, em defender pontos de vista diversos, em se entregai a uma dialética, dando sempre razño ñquele que tern a palavra (...). Suponhairos que um espirito assim estruturado e habituado seja levado a exprimir-se diretamente, lora da ficpño, a escrever, no sentido mais estieito do termo: pot um lado, ele achara intransporuveis as inibi9ñes que o penalizarao, pois, em primeiro lugar, ele nño sabera mais, neste caso, como escrever, visto que nño teia mais nada nem ninguém a quem lazer falar, encontrando-se assim privado de todo ponto de apoio artistico (...). Mas, por outro lado, justamente essas relapoes estranhamente froiu‹as com o domlnio intelectual parecem fazei dele urn ser sem escrupulos, frivolo, dialético, um advogado. Nño tendo o hñbito de assumir a responsabilidade de suas idéi- as, terñ dificuldades em se sentir seriamente responsñvel; deixar-se-ñ falar a st mesmo como fazia as coisas e as pessoas falarem, e, no seu foro intimo, iden- tificar-se a tño pouco com esse papel quanto com os precedentes (idem, p.197 S; sobie a concep9ño manneana do artista como ator, ver Rosenfeld, 1969).


Um ser paralisado pela timidez especulativC[ em parte por ra— z0es de oficio e no entanto a vontade na vida de salño onde a mas- carada é regra e as idéias sño posti9as. Uma concep9fio teatral da vida do espirito somente sobre as tñbuas de um palco brilha o homem culto resumida por Hegel na formula pejorativa com que designava as manhas cabotinas dos novos intelectuais, “virtuosismo de uma exis- téncia ironico-artistica” com efeito, quem vive de acordo com esse principio, e cogita transformar a propria vida em obra de arte, deve vir a entender, gra9as as mil artimanhas da ironia, que seus atos e pala- vras sño apenas “aparéncia” e que deka dispñe confiscando-lhe a semi- edade em nome de sua individualidade soberana (Hegel, 1971, p.54). NOviqmente: vida de artista onde impera uma tradi9ño de oficio que impñe distñncia e inibe a identifica9ño, que pode ser intensa posto que superficial e efémera porém ditada e facilitada pela ma1fOI1Tl£lQâO da vida nacional, cujas injun9ñes impunham justamente a “voca9ao” que mandava cultivar a propria personalidade aos enjeitados da boa sociedade; o simile encarnado pela rela9fio do ator despersonalizado, amea9ado em sua identidade, com seus papéis, tern portanto nitida cor local, assim como as rela9ñes particularmente voluveis de uma “personalidade cultural” com as idéias que mobiliam o seu espirito pñem método e estilo nos vinculos frouxos e inorgñnicos da inteligén- era national com as classes ditas fundamentals; nño admira entño o apre9o, dubio é verdade, em que se tinha a desenvoltura mundana e tudo o que estetizasse os estratagemas da ascensao social: numa soiiée hem sucedida, a fluidez da atmosfera de salfio que consagrava a “ver- satilidade infinita” das “classes educadas” ali reunidas, de fato condensava com gra9a a sina da disponibilidade ideolñgica que a miséria national a todos condenava. Tal é o terreno natal do “virtuosismo” invocado por Schleiermacher por exemplo, nos Dis- cursos some a fieJiyifio, alias nao sem escñndalo e verberado por Hegel; caso lembrñssemos que esse privilégio dos espiritos aristocra- ticos virtuoses do gosto fora alegado por Shaftesbury e incorporado por Herder ñ sua concep9âo de BiJduny (Weil, 1930, p.10), estariamos, pelo exposto até aqui, acrescentando apenas mais um sinal de nas- cen9a ñ fisionomia historica caracteristica da constela9ño em que gravitava uma “personalidade cultivada”. Sabe-se que Humboldt for assiduo no salño de Rachel Varnhagem. Isto nao o impediu de ver com maus olhos a “singular mobilidade reflexivo-sentimental” dos seus hahitués, acrobacia cerebrina para a qual contribuira em larga medida sua propaganda “liberal” em favor do desenvolvimento pluridimensional das faculdades do individuo. Sua sensibilidade de homem publico ñ moda alemñ aconselhava-o, entretanto, a desconfiar daquele râsorieren desenfreado, maldisfar9ado sucedñneo de uma vida prati- ca tolhida (cf. Masini, 1974, p.12-3).24 la deparamos igual ambivaléncia em Goethe que alias é da trajetoiia do conceito —, a um tempo imperdoñvel ñ doen9a romfintica do espirito e sumo pontifice da “per- sonalidade", “fiochstes Glues der Eidenkindei“. Da-se o mesmo com hegelianismo, salvo engano, estiliza9ño e decanta9ño da experiéncia intelectual que procuramos reconstitute: de um lado, rejei9ao do arbi- trñrio jogo romantico com as idéias, coisa de “intelectual", de outro lado, transfigura9ño da “personalidade culta" entendamos, do ambi- guo imperativo: cultivar a prñpria personalidade —, elevada a digni- dade de opera9ño histsrico-sundial. Convenhamos, a lnteJiipentsia romñntica nño ambicionava tanto; imaginar, por exemplo, que a velei- dade mundana de cultivar-se ieciprocamente repercutia o andamento impessoal do Espirito do Mundo. Disparate especulativo? Coisa de intelectual também, como veremos. A prñpria dialética caso tenham cabimento as conjeturas alinhadas até aqui traz estampada em sua indole bifronte aquela duplicidade observada ha pouco em dois mandarins: uma face “negativa" onde se refere o movimento de bñscula de uma inteligéncia acampada no ar; uma face "superior", especulativa, voltada para o conteudo “ético" da vida publica, entendo-a sempre a maneira do pats. Cabia entao organizar o espirito de contradiqño dos intelectuais alemñes refratarios.



Not as

No campo espeeifieo da domina9ño politiea, figura, no elenco das idéias conservadoras, uma dessas qualidade misteriosas, aquele elemento de impiecisao earaeteristico do tirocinio politico. impermeavel portanto ao espirito de geometria da burguesia, e que "so pode ser adquirido”, lembrava Mannheim eomentando uma observapao de Burke, “através de uma longa experiencia, e que em geral somente se revelava aos que por muitas geia9ñes vinham paiticipando da lideran- 9a politica” lMannheim, 1968, p.146). Em suma, um niio-set-qué a legitimar o mando aiistocra- tico; desta estera impalpavel emana a "personalidade inata" e o seu cortejo de atributos inefa- veis, cultivados ao longo de vaiias gerapñes, bem-estar, privilégio e born gosto.

2 A simpatia de Carlyle chega ao extremo de nño se escandalizar, podemos presumir, ao contralto do que pievira Schlegel no aforismo eélebie em que equipara em impoitñncia histoiico-sundial a Wissenscholts!ehie de Fichte e o Meister de Goethe ñ Revolu9ño Francesa, com tal enumera- Rao, eifra da grandeza e da miséria dos movimentos cultuiais alemñes, dizia o jovem Lukñcs; enfim, Carlyle nño era daqueles que sñ ieputam decisivas as revolu9ñes materials e rumorosas: ”uma revolu9ño franeesa é um fenñmeno: ñ madeira de eomplemento e expoente seu”, podemos ler numa passagem transcrita por Engels, "também um poeta eomo Goethe e uma literatura como a alemñ sño para mim um fenñmeno. Na destiui9ño do velho mundo piofano ou piñtico pelo logo, nño podemos ver um piessñgio e a auroia de um novo mundo espifitual, origem. por sua vez, de novos mundos piaticos, muito mais nobres e amplos+” (Engels, 1973, p.210). Compreen- de-se o entusiasmo com que Engels apresentou o ensaio de Carlyle ao leitor alemño dos anos quarenta: além do antieapitalismo bebido na fonte da expeiiéncia de vanguarda das novas iela- does sociais, a compreensño alemñ da Revolu9ño como fato filosñfico, o comjunto exposto no timbre caitegado de piessagios do Vormaiz (ct. Schlegel, 1964, p.76: Lukñcs. 1974, p.78). 0 comentñrio do primeiro Lukacs prossegue nos seguintes termos: ”a constata ño de Schlegel, se avaliarmos eorretamente a época e a circunstiineia. é espantosamente justa e correta. E espanto- so que ele atribua tamanha importñneia a Revolu9ño pois, para a vida espiritual da Alemanha, Fitche e Goetfie eonstituiam as tendéneias reais e importantes da verdadeira vida; ao passo que a Revolu9ño so podia ter uma significa9ño muito pouco concreta” lidem). Nño menos ospantoso o fato de Carlyle ter dado impoitñneia ñ revolu9ño silenciosa do elassieismo alemño. ñ primeira vista algo muito longinquo na Inglaterra do caitismo, como come9ava a sé-lo na Alemanha pré-48. Inutil lembrar que a experiéneia inglesa de Engels foi de longe muito mais decisiva do que a alemñ de Carlyle, einbora esta tenha sida uma das chaves do sucesso no aprendizado da primeiia.

  1. 8obre o conservadorismo de Coleridge, ct. Harris, 1969, cap.10. Esse conservadoiismo por assim dizei "moderno" - trata-se afinal de.fornecer ao industiialismo um "snpplément d’âme" - conceive antes de tudo, pelo menos visto do ñngulo da intelligentsia que o promove, e que é o nosso. um projeto de restrutura9ño da Teoiia em sua aeep9ño areaiea que no limite se confunde com a prñpria religiño alema da Culture, eomo a seu tempo veremos.

  2. Evidentemente, voltaremos mais de uma vez a essa observa9ao capital de Gramsci, que chegou, nño por acaso, impelido pela logica propria de sua medita9ño de vida inteira sobio a "via italians".

O destino que a no9iio de cultura conheee nas maos de Stuart Mill é a esse respeito, exemplar. A veleidade de relorma social da "eseola germano-coleridpeana" - que alias se nutria de sua inspi- ra9ao eonservadora e revivalista car por terra, dando Sugar a "cultura dos sentimentos", ao mesmo tempo em que o inteiio dominio da cultura confunde-se com sua dimensño estétiea: uma "esfera isolada, ideal". eomenta Raymond Williams, onde a arte figura ”nño so como promessa, mas como refugio”, evidentemente para os que estño convencidos da impropriedade do desejo de reforma social e que, em eonsequéneia, apreciam a aite ”eomo uma clausula salvadora num tratado infeliz” (Williams, 1971, p,86-7).

Excusado lembrai, a proposito dessa filia9ño patente, que o pendant antitético da "cultura afir- mativa" também se encontra na famigerada "eiv iliza9ao" : "desde Herder, um dos tra9os eonstitutivos do conceito de cultura afirmativa reside nos valores da alma. Tars valotes fazem parte da definipño da eultura, por oposi9ño a mera civilizapño“ (Mareuse, 1970, p.118).

  1. Ainda voltaremos a questâo mais ampla retratada por esse caso particular de emi9ra9ño intelee- tual e que nos concerns em mais de um aspecto, eomo demonstra uma bteve alusao de Roberto Schwarz (Schwarz, 1977, p.29).

  2. Retirava-se assim ao burgués voltaireano o direito de escrever. Somente a nobreza possui o privi légio de eserever; ou entao - e aqui voltamos a deparar o raciocinio earaeteristico dos primeiros mandarins alemños - algum burgues providencialmente eleito, get ti!hommo par ie coeui, que tenha renegado sua classe (ct. Sartre, 1972, t.III, p.110). Uma tal exce9ño era mais do que neces- sarla: ela permitia que a coopta9ño alargasse as fileiras de uma nova elasse. a boa aristocracia. "La eonjoncture historique", escreve Sartre, “veut que, dans Ie méme temps, la elasse insolente gut foimulait l'interdit par la plume de ses écrivains de elasse sort a teire: ses interpretes, eependant, romaneiers et poétes poursuivent leur trajeetoire, astres solitaires et glorieux; ils semblent alors ne plus représenter qu'eux-mémes ou, mieux encore, que l'art; ainsi leur prestigieuse earriére semble par elle-méme une invite a les rejoindre au sein d’une aristociatie nouvelle dont l’origine n'est plus la naissance mais une eertaine conception de l'activité littéraire. Puisque leurs oeuvres

- tout en s'adaptant - aux conditions nouvelles ne eessent pas de fonder l'essenee de la littérature sur des impératifs aristoeratiques (générosité, loyauté féodale, l'écrit con9u comme un don, comme une priére, solitude du mépris, stoicisme, etc.), il suffit pour les éqaler d'adopter leurs piincipes et, refusant systématiquement l’idéoloqie bourgeoise, de se faire aristocrate en éciivant pour une aristocratie défunte” (idem, p.113-4), Assim sendo, aplainava-se o terreno no qual deitariam raizes as vârias corpora ñes espirituais ideadas pelas diversas doutrinas da Idade Romñntica, todas elas tributarias do clima ideologieo do periodo, que elevava a literatura ñ condipño de podei espiritual dos tempos modernos (el. Bénichou, 1977).

  1. Eis eoino Sartre o concebe: “En 1840, Ie tutur écrivain que sa vérité désespére, ne peut se penser qu'en termes fantasmatiques. Et le fantasme bien qu'il n’existe, en fart, que suseite en eux, en paiticulier dans le mouvement d'intériorisation qu'on nomme lecture - n'a pas son origine dans des caprices subjectifs ni dans l'orqueuil de Pertains individus: e'est une détermination objective qui nait, comme une norme inerte. de l’opposition profonde et de la collusion superficielle d’un impéiatif (ariaehe-toi a toutes les classes, survole la société) et d’un interdit (défense aux roturieis d'écrire)" (Sartre, 1972, t.III, p.113).

  2. Isso é patente, para citar o exemplo mais contundente referido por Hannah Arendt, no caso da pré-historia ideol6gica do anti-semitismo na Alemanha: "durante o periodo de anti-semitismo soctal que fntroduziu e preparou a descoberta do odio aos judeus eomo arma politica, for o concei- to da falta de ‘personalidade inata' - ou da falta de tacto, da tnata falta de produtividade. da inata voca$âo paa o comeco, st.- que dstmguiua conduta docomercanteiudeu da dosseus coegasemgeral (Arendt 1976. p73) Algo anéogo ocoweTa mastade na Ffan$a, contorme lembra Sartre. O desprezo nobre introjetado pela "pauvie fuse”herdada do romantismo qentilhomme também esta na origem do anti-semitismo de um Charles Mauras, que excluirâ os judeus da cultura francesa, incapazes por exemplo, de apreender a qualidade incomparavel de um verso racineano por se encontrarem desprovidos justamente daquela faculdade de cuja caréncia pade- cram igualmente os burgueses. ”Plus adroite et plus hardie, (l'entreprise romantique) ne se con- tente point de montrer aux bourgeois des oeuvres anciennes qu'ils ne pouriaient entendre; elle produit des oeuvres qui fur sont par principe inaceessibles: ce n’est pas la race qui est invoquée ter mais le sang” (Sartre, 1972, t. III, p.111).

  3. Uma imagem parñdica dessa degrada9ño ideol0qica da idéia de "personalidade cultivada" en- contra-se numa fantasia de E.T.A,Hoflmann, uma pep das xreisJeriana intitulada Noacres de um jovepi cuJtivado. Depois de saudar a difusño moderna da eultura superior, o narrador, antes de transcrever a earta do seu herñi, a que se resume o eonto, tevela a identidade do autor da mesma, um eleqante rapaz festejado nos mais coneorridos salñes da cidade, sumidade nas coisas do esptrito além de compositor inspirado e eximio virtuose do piano e do canto. sem falar nas suas prendas mundanas de homem cortGs e galante: trata-se de um macaco que alguns anos de sâbio cativeiro transformaram num perleito europeu, civilizadissimo aliâs uma espécio de Fradiquc Mendes avant fa Jettre. Nño se poderia imaginar ascensño mais fulminante e radical, nem ilustrar com mais eloqiiéncia o poder de transfiqura ño caiacteiistieo da Xuitur. Na verdade um cabotino eonsumado cuja primeira providéncia consiste em reneqai os de sua espécie, os mal sucedidos macacos apenas macacos, embora alguns trop os de sua formapño revelem a um olhar atento vostigios de sua primitiva eondi9ño simlesca. As confissñes de Milo, tal é o nome desse lino humanista cujo mimetismo atavico facultou-ltte atinar de imediato com a estrada real de uma assimila ño sui genesis, estao semeadas de alusñes edificantes âs virtudes da alta cultuia: vida interior intensa, moralidade apurada, bela humanidade haimoniosa, etc. De fato, constituem um repertorio entre cinico e bisonho dos mais variados e filistfnos expedientes ja consaprados pela tradi9ño reeente do abre-te sésamo do reconhecimento social ao alcanee de um alemño sem for tuna ;i procura de um lugar ao sol acanhado de uma na9ño que destoava no concerto europeu oeidental a rigor uma teoria do medalhño cultural. Sabe-se que esta burlesca metamorfose hoffmanneana é uma das tories do Relatoiio a uma academia de Kafka, onde um artista relata seus anos de aprendizado desde os tempos de macaco nas eostas da Africa. O humor trio de Kafka eongela a burla de Hoffmann e através da caricatuia da vida de artista —— literalmente uin mieo de cireo vai ruminando, como tantos outros de sua antiga estiipe, a triste condi9ño de homens supérfluos dos inteleetuais alemaes, tradi9ño com a qual reata ao tomar ao da letra sua propria definipño do esciitor eomo alguém que ”vive fora da humanidade” (ct. Baioni. i970, p.174-5).

12 A rigor essa provideneial invenpñri da intelligentsia mode n0, seu irmño ininiiqo, o espirito filuteu, paiece encontrar-se paitout et unite gait, A propñsito dos “tcmporais revolucionario° purificado- res” invoeados por Luliacs, veja-se a opiniño instâvel de Marx e Engels: o primeiro, em 15 de dezembro de i848, escrevia na Nova Gazeta fienana: ”todo o terrorismo franeés nño for mais do que um modo plebeu de fazer frente aos inimiqos da bur9uesia, o absolutismo, o feudalismo e o Spie•st›uiyertum": ja em 4 cie setembro de 1870, Engels dizia em carta a Marx que se devia imputar o Terror de 93 nño s6 aos "burgueses superexitados", mas tembém aos ”pequenos- buiyueses filistinos que se boiravam de medo”, além da esc6ria do povo que traficava com o Terror (ct. Marx & Engels, 1969. t. II, p.229).

Patente do "burgues sttperexcitado", enibriagado durarite o Terror com a mise em scone do patriotismo, de que falava Engels? Voltaremos a questño. Seja como for, é fato que os intelectuais alemñes, acompanharido a distâneia os sobrcssaltos da Revolupño Francesa, podiam partilhar. era com entusiasmo, oia com horror, t‹ao somente daquela exalta ao desequilibrada, cujos pressu postos sonars desconlieciam, eircunstaneia que conti ibuia ainda maifi para a indole abstrata e eerebrina de tal "excitap,âo".

14 Em outfo estudo, cxamin0mos de perto por iazñes proprias do nosso assunto alguns aspectos do caso Nietzsche, que nño e, de modo algum, um caso â parte na evolu9ño de conjunto da Ideologia Alemñ, como deu a entender a reeente voga nietzschcana da Ideologia Francesa. Ha momentos cm que niio é muito facil distinquir a “cultura filistina" da "autentica cultura alemñ" — basta reparar, para come9ar, no earater codipo dessa aleya9ño do "autenticidade". Luk/acs e Hannah Arendt acabani de sugerir essa promiscuidade comprometedora segundo Marcuse e Adorno, um desfecho iiierente a diniensao “afirmativa" da cultura no mundo burytjes no caso dos inte- lectuais românticos em luta com a incultura do meio. Lukñcs preferiu ver no "filisteu superexriiado" unna bifurcap?ao apequenada, o nada lortuita, na tradi ño dos clñssicos; muito mais cirastica em seu juizo, Hannah Arendt ieeonduz tal filistinismo da BiJdunp ao amago da intelliyentsio alemñ, porfiando por um lugar ao sol desde os tempos dificeis da Ilustra ño. Em boa parte, a tradi9ño desse libelo mais radio.al remonta a esquerda heqeliana, que costumava p0r na berlinda o lado filistino do monuinentos nacionais corno Goethe e lie9el uma certs propensño a reeonelliar o irreeoncili3vel: este ñltiino confunde -se com a propria malforrnnpâo n‹icionai, c aq nela tenfienci,i. corn a in dole mesmu ‹ia ñiiitur, t‹illiada sob merlida para sufu!irriar a estfeiteza do )iorizonte locul.

,Gabe-se que Schopenhauer tanabeiu iiao poupara o lado mais desfrut‹ivel da "filosofia universita ua" encarnada cnfaticarnente paela ortodoxia lie9eliann, "apoteoso ‹lo filistiiiismo": poi érn a con - juntuia variara, e no seu zelo dc patficio culti'/ado transparccia o sensibilidado eonser vadofa que ndio pc'dia tolerar os ultimos laivos iluininistss de aprepo pela vida piibl tea que ainda solarcviv iain

° finado hex elianisiro. Por esse eaniinho crvercda o Nietzsche rhas EX Lotnyoi‹)neRs, 3-uio q ucm o "filist‹:u da culture" e antes rie tudo o intelectual pioqfessista, Srao ctapas na trajet0ri,i do "espirito filistino“ na Alcmanha, contraporito indissoeiâv'e1 do ciclo corn) lean de sua inteJJiycrtsia (de Novaiis a Heirleyser, todos invcntaram ‹i sua imaJem c! dissemelhan9a uni Bi!ñunps y›ilistri) Dentre elas eaberia mencionar o inteifo periodic cm ttue den o toni quase inarca reqistrriilu nacional o filistifnsino do senliot "l)iederincyef", cujo estilo (jaipeaux assim fesumiti; "q gid¿ ealma e ldilica da perJueria buiyiiesia Has pcquenas reside:nc:i‹is e cidadczinlias da Alem‹mlia na época da Restaura9ño, entre a qiicda do Napoleao e ‹is revolu Yes de 1830 e 1h48. Vida sem estfadas de ferro, com muita arte, musics, efitudes pre9os e viqilante policia politica, uin pitores

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cortejo de penuenos "vantayens" filistinas: urn cer to ”sentiinefito de resigna9ao eansada” onde a forma do senso artistico laz esquecer o peso da opressao politics (ct. idem, p.1222). Filistinismo, poitanto, de uma pequeno burguesia ordeira e respcitosa das autoridades constitu'das, poiém cultivada, metida com seus mñveis, fraques azuis e ciinolinas brancas, mas que ainda dominava a arte de tornar o helenismo em voqa, iiao uma man in pedante, mas uma "forma requladora da conduta” (ct. idem). Mais uma vez: essa vida do espirito, conformada pofém intensa, encalhada no maiasmo nacional, sentia-se plenamente confirmada por uma cultuia, para cuja forma9ño seu estilo social aquiescente contiibuia alias em laiga escala, eoncebida como esleia autfinoma enco- biindo com o sacrossanto véu da "bela aparéncia" a miséria de todos os dras, que no pats parecia vigorar com inéreia redobrada. Sem duvida, Hannah Arendt acrescentaria ainda que nenhuma histñria da ionda eomprimida pelo espectio do filistinismo, que assombrou o intelectual alemño dos primordios da era bufguesa ao apoealipse hitleriano, poderia negligenciat o cordño umbilical que desde o inicio o unia aos piimeiros sobressaltos modeinos do anti-semitismo. Depois de assinalar as razoes, oriundas do filistinismo das classes médias alemñs, que tornaram, no pats, a questao judaica uma questño de educa9ao, Hannah Arendt menciona, a propñsito, o caso de um autor obseuio que em tO02 publicou uma "satira motdaz sobre a sociedade judia e a sua sede de instru9ño como caminho escolhido para ser acolhida pela sociedade. 0s judeus eram retiatados como o feflexo da sociedade filistéia e arrivista” (Arendt, 1975, p.95). Palavia de "filisteu superexcitado", diria Lukacs. Com efeito, o mote for glosado pelo poeta romñntieo Clemens von Brentano num panfleto encharcado de Witz e "ironia", onde o mesmo gesto depreciativo assimi- lava o judeu ao filisteu enquanto contiapunha a este ultimo o antidoio da “personalidade inata" (ct. idem 1976, p.73). Essa pequena pela romñntica loi iedigida durante o suito nacionalista que precedeu as guerras anti-napoleñnicas ditas de liberta9ño, de sof te que a pecha de filistinismo abaicava tarribém os franceses (mais tafde serf a vez dos piosaicos ingleses, inimigos natos da Sulfur) e, pot extensâo, os letrados de talhe voltaireano e os demais advogados locais das Jumiéres

ñquela altura, o esfor9o patriotico dava novo alento ao anti inteleetualismo conser vador, cujo alvo preferido, como sabemos, era o espiit da “civiliza9ño" francesa, constru9ño derivada, eomo tambem sabemos, de um conflito de classes infra muros (ct. idem, 1957, p.100), Ora, foi antes a discrimina9ao social que aquele eonllito suscitava e reproduzia, e mo o anti-setnitismo politico, que descobriu o fantasma do judeu (ct. idem, 1975, p.94). Convenhamos, entao, arremataria Hannah Arendt, declaradamente hostil aos achados espiiituais das classes eultivadas alemñs, o lado pieconeeituoso da idéia de “personalidade" vinha mesmo a ealfiar.

15 E mesmo dos menos "exeitados". Veja-se, por exemplo, o tato extremo com que Thomas Mann, temendo a impiedade, alude a veia diplomatica de Schiller. ao elemento de câlculo que entrava na composi9ño quimiea do seu carater entusiasta (ct. Mann, 1956, p.8-10).

Nos amigos de Novalis, observa ainda Lukacs, confundiam-se o senso poético do ritmo e o tato da sociabilidade (cf, Lukacs, 197a, p,86),

  1. Adorno reconhece nas estrofes do livro "Suleika", do Divâ Omen ta1, um monjento deeisivo desse declinio, ernbora o poeta, por intermédio da resposta do amante Hatem. declare que sua felicida- de suprema encontra-se na propria Suleika e nño na sua personalidade (ct. Adorno 1973a, pp.49- 50). Goethe, obser va Adorno, partilha o ideal de sua epoca, para cuja forma9âo, alias, contribuiu em larga medida, mas tiao logo o enuneia, revoga-o em nome da natureza reprimida. O comenta- rio de Paulo Ouintela vat na mesma direpâo (ct. Goethe, 1958, p.369-70).

  2. Para o uso corrente da formula "personalidade cultivada“ eomo algo cuja evideneia se imp0e por si mesma, como paf te constitutiva da religiño alemñ da cultura, ver p.ex„ Norbert Elias, Civilisation Yes Moeuis (Elias, 1973, p.36, p.48, p.69). Hans Weil, esta visto, tambem recorre a expressño eonsagrada, poiém num contexto mais prñximo do nosso: lernbra, com efeito, a eontri- bui9ño decisiva dos sal0es berlinenses, que formavain uma especie de "ZenfraJe des Geistes“, para a difusao do que chamou de fiildun9setbiL, invocado por uma "elite do espirito" pouco ñ vontade numa sociedade estamental e sonhando com uma paridade ideal, indiferente as desi- gualdades de classe e for tuna; para tanto, contribuiram também as viagens de edueapao, as Eiziehungsieisen, ao longo das quais o jovem piincipiante, ”die Sich-bildon - w'ollenden", noble ou plebeu afortunado, apresentado por uma fieira de eartas de recomenda ño, era levado de um Gebildete a outro, compondo assim uma galeiia de “personalidades eultivadas" (ct. Weil, 1930, p.224-5, p.262-4).

  3. A observaqño ja citada é de Mannheim (1974, p.112). Para ilustrñ-la, iecorramos novamente ao estudo de Gilda nocha Mello e Souza: no século XIX, uma reuniño mundana da elite assume o canter de um "cerimonial de iniciaqño, onde entram em jogo mais as qualidades pessoais de cada um que os atiibutos de sua classe (...). 0 vagaroso polimento das arestas efetua-se dia-a-dia nas reunioes sociais entre a derrota de hoje e o sucesso de amanhñ, quando o amargo aprendiza- do feito de tacteios, de desñnimos, de novas investidas desesperadas, acompanha a cadeia longa de provas que ltte vño sendo antepostas e cuja vitoria final ha de conferir ao neofito a cifiafiania na classe mais alta” (Mello e Souza, 1950, p.82). P preciso lembrai, entretanto, que a descii9ño acima ajusta-se melhoi ao titanismo napoleñnico pos jovens ambiciosos retratados por Balzac do que as atribulapñes de um alemño bem tornado porém resignado (embora sempre a can de compensa9ñes simbolicas), encalhado num meio viscoso onde as carreiras dificilmente abriam se ao talento. Nño obstante, tanto na Franca "moder na" quanto na Alemanha "atrasada", a aseensño social dos filhos da nova oidem euiopéia nño podia dispensar as vantagens dessa de- senvoltura mundana penosamente assimilada.

20 Aquela dicotomia repete-se no piano das institui9ñes mundanas. ”Nño é por acidente que os cluhes conser vadoies do principio do seculo XIX na Alemanha ainda retem elementos da guilda medieval ou da etiqueta das reunites de corte”, lembra Mannheim, referindo se, entre outras, ao Christlichdeutsche Tischgesel1scha!t (Mannheim, 1974, p.1t3). Com efeito, esta assoeiaqâo con- servadora, da qual foram banidos "as mulheres, os franceses, os filistinos e os judeus”, opunha se declaiadamente ñ tradi9ño mundana consagrada pelo salao de Rachel, intef rompida pelo desas- tre de 1806, quando entño, no dizer da anfitiiñ, o seu local de reunites “afundou como um navio carregado com os mais elevados prazeres da vida" (ct. Arendt, 1975, p.93; idem, t957, p.99-100: Droz, 1966, p.136). Por volta de 1808 os salñes berlinenses “ja haviam sido suplantados pelas casas dos nobres buroeratas e da classe média superior. 0 desdém dos intelectuais e aristocratas berlinenses pelos judeus da Europa oriental, na époea em que foiam anexados a Prussia, transfe- riu-se contra os judeus educados de Berlim, que conheciam muito bem” (Arendt, 1975, p.9'1). 0s sal0es de Henriette Heiz, de Brendel Vert e sobretudo da "intragñvel Rachel" totnaram-se assim os alvos prediletos du rea§ño ar'istocratica durante o Reloinlpe rod que se seguiu a derrota de lena; chegou se mesmo a culpâ-los por ela, insinuando-se que o solo pñtrio tora minado por aquelas supostas “eentrais do espirito", na verdade escolas da “venenosa maledicéneia" e da “deslealdade" (ct, Weil, 1930, p.224).

la os clubes conseivadores alemñes, como se viu acima, timbravam justamente em mostrai-se impermeaveis as for rnas eaiacteristicas da sociedade competitiva emergente (ct. Mannheim, 1974, p.113).

  1. flepare-se que uma tal dualidade é constitutiva do “idealismo" proprio da eultura afirmativa Criticada por Marcuse em 1937. P que o suporte ideal da dimensño afirmativa da culture vem a ser justamente a "personalidade", conforme resume Marcuse na sequinte formula: harmonia privada em meio a anarquia universal” (Mafcuse, 1970, p.t37). Vc-se logo que tal fhrmula expri- me a "fuga da miséfia rasteiia para a miséria arrebatada” caraeteristica do "idealismo aquiescente" da cultura classics alema liembiemos mais uma vez que a piimeiia expressao é de Engels e a sequnda de Anatol Rosenfeld). Desenvolvida, ela descreve tanto o estilha9amento cultural dos individuos em personalidades encolhidas, voltadas sobre si mesmas, pfñprio do capitalismo jâ consolidado, mais preeisamente, uma oidem social que “autoriza o indivlduo a existir como pessoa na medida em que nao perturbs o procosso de produ9ño e deixa as for9as economicas o Cuidado de integral socialmente os homens”, quanto descreve igualmente a déchñance eonyéni- ta de um conceito que se confunde com a prñpria deUtsche Klassik,’ “o campo concedido is

realizaqiies exteriores reduziu-se consideravelmente, enquanto o dominio do desenvolvimento interior ampliou -se largamente (...). A pessoa nño represents mms um ponto de partida para a conquista do mundo" —logo adiante indicaremos o termo de coinpara9ño que Mareuse tern em mente ao escrever estas linhas "mas uma linha de retirada proteqida na retaguarda. Ela e, na sua interioridade, enquanto pessoa moral, o unico hem que nño pode ser arrancado ao individuo.

Eta nño é mais fonte de eonquista. mas de ienuneia” — eis o que distingue, aos olhos de Marcuse, um Leonardo da Vinci, uIT1 Maquiavel, de um Goethe; a trase se9uinte pode ser tomada como uma descri9ño dos 'renuneiantes' (die Entsagenden) goetheana, conquanto nño tata justisa as veleidades de apao e influéncia manifestadas, por exemplo, tanto pelo Fausto quanto pelos inte- giantes da utñpica 'sociedade da Torfe' no Meister. ”Sñ aquele que sabe renune'ar, o homem que luta dentro dos limites previamente tra9ados para a sua forma9ño interior, qualquer que seja a miséria de tal situa9ño, um individuo assim constituido representa a verdadeiia personalida de” (idem, p.138-9). Na linha de fiente dessa capitula9ño, estñ visto, a "bela alma" do alemño culiivado, entrincheirado na sua peisonalidade. Assim, até mesmo a sua defini9fio kantiana tfai a condi9ao do intelectual alemño, e com ela, a indole oripinai da culture afiimativa: coneebendo- a conio liberdade e independéncia em rela ño ao mecanismo da natureza, recorda Marcuse, Kant simple.smente anunciava que a personalidade, loco superior do novo ideal de cultura, nño era mais senhora do seu destino, a nao ser sob o aspecto de sujeito moral e espiritual (ct. idem, p.138). Em poucas palavras, de Marcuse. evidentemente: ”a cultuia afirmativa reproduz e subli- ma na sua ideia de prrsonalidade o isolamento social e o empobrecimento dos individuos” (idem, p.137-) ao contralto do que pensava Wilhelm Meister nos primeiros anos do seu aprendizado. Mabs uma vez: o quadro trapado por Marcuse é o da cultura burguesa a época do capitalismo modeino, e no entanto a sua fisionomia pr‹ipria for que delineada numa situa9ño de "atraso" relativo por uma inielligeiitsia que pfocurava na caiapa9a protetora da "peisonalidade eultivada" um abriqo que a consolasse da pasmaceira de um meio ietroyrado. Em 1937, portanto preciso datar, pois mais tarde coriiqira sua opiniño do "idealismo" pois afinal é disto que se trata), Marcuse entiio interessado na dissolu9ao, nño da cultura, rnas da sua ciimensño afirmativa, mos- trava ja estampado na ceitidño de naseenqa daquele ponto de honra das "classes cultas" a1erri/as o sinete da "decadéncia ideol69ica". .fi idade de ouio da qual nos afasta cada vez mais o crepus- culo burgués da humanidade ocidental é a do uomo uiliveisale renaseentista. Na aurora dos tempos modernos, dizia entao Marcuse, ”a pessoa era a fonte de totlas as for9as e de todas as qualidades que habilitavam o individuo a tomar nas maos o seu destino e a transformar o mundo circundante segundo as suas necessidades (...) Ouando se considerava o individuo uma persona- lidade, desejava-se mcstrar com isso que, enquanto individuo, ele nao devia nada a ninguém. isto e, nem aos seus aneestfais, nem a sua elasse, nem a Dens" (idem, p.138). Lernbiada ta1 cireuiistaneia, nao se pode deixar de assinalaf um cuiioso entreci uzamento. A matriz era periodiz,apño que baliza o roteiro dc Marcuse a trajetoria de um declinio que culmiiia no anticli max do neo-humanisino alemao rernoiita, sem duvida, a En9els, e por at. a tradi ño do pensa mento sor:ialista que sernpre prezzra aquele antigo universalisrrio tao avesso a limita9ño bur9ue- sa t›osteiior. Ao observer. entretanto, que durante aquele periodo aureo o criterio da personalida- de riâo era iiein de lonye exlusivamente moral e a seguii !astimara que, com o decorrer oos novos tempos, essa diinensâo tenha suJalantado as ‹iemais - mas baseado no poder, na iiifluencia e na qlñria, mediante os qiiais descortitiava se um campo de alto o mais vasto possivol, Mareuse sur Jzeendentemente subscicve a deseri9ño apresentada por Burckhardt do ”apo9eu da cultufa individual" no Ronascimento italiano. na qual prepondera, com efeito, a celebrapao da persona- lidade dito dominadora ou forte (para nño einpreqar o epiteto ainda mais tiorrivel e nioiierno no fieu filistiiiismo congénito "iiiarcante", q ue vez por outra escopa ao trar4utor de Burckhardt.), isto é, do "uoiuo singolaie, unico", deseonsideiando, assim, o lato de quo ta1 caractr:rizaqfio fi ela mesma tributaria daquele ciclo iderilogico da cultura afirmativa cuja hegemonia deplora (cl. idem: ‹:f.th. Binckhardt, 19G3. vol, I, p.10t, p.217). Sabe-se que na gloria p6stuma deste livro, olar:i do uin paeato professor suipo, filho de unia vellia lomilia patricia de Basileia, abundam os mal- entendidos, a coinepar pelo patrocinio do t:ulto lire-Ie-sieeJe da Renascenqa e o seu cortejo de eonr4oi iieri e ciemais fcras dii génio ar tistico. Explica-se a proje9ño: “o bur9ues do diiiliciro, ansioso por uma âi vofe qenealoqir:a, acredita reconheeer-se nesses homens geniais que devem tudo a si niesmos” (Caf peaux, 1942, p.17). I-l‹i quem voja nessa ietiospeeqño um yrño de verda- de, no dcsfecho corir:ato o justo d‹*stino dc Ann ideâiio que a iiasceia tofto. Ercusado lembraf que Marcuse mo era hem um hetdeiro da vo9a européia rnencionada acima, a qual, alias, demon atrâs de st trastes bem inais equivocos e amea adores do que sirnples inñveis estilo Renascenpa que, nos palracios e velhas casas bufguesas da Euiopa, sño apenas “obstaculos ‹i circula ao e oolecirunadores de poeira”. Seja conio for, o proprio Marctise convida oo equivoco - a menos c.ue a tradu9 o franeesa do seu ensaio nos tenha preparado uma arinadilha quando lamenta 0 eclipse do "voluntarismo expansionista" do uomo univeisale que a ordem capitalista nascente veto, de resto, opor tunamente inibir, conforme nao deixaria de lembrar Hirschmann. Esse eclipse é total tño logo principia o ciclo ñemiio da intelligentsia européia, em cujo bojo toma forma definitiva a ideologia do earater afirmativo da eultura, eritieada per Marcuse segundo o figurino da esquerda hegeliana questâo de estilo que a seu tempo retomaremos. Nem foi tao drastieo assim o corte assinalado por Marcuse, pelo menos vistas as coisas do ñngulo particular da evolu- Rao de conjunto da intelligentsia moderna: por mais polifaeética que fosse a personalidade do humanista italiano nao por acaso tido em altissima conta por um autor como Burekhardt, cujo apolitismo confesso e alardeado (afinal fora um dos primeiros a modificar a imagem elñssica da serenidade grega, alarmado, entre outras cotsas, ante o espetñculo, que julgava premonithrio, da "personalidade" sufocada pela polish descendia em linha direta da religiño weimareana da Cultu- ra —, ela gravitava numa 6rbita marcada pela auséncia de influxo prñtico; o seu luxuoso estudio nño estava menos campato in aria do que os gabinetes calafetados pela eonsidera9ño exclusiva da vida do espirito em que os neo-humanistas alemñes se enclausuravam. Ainda volta- remos com vagar a esse divñrcio moderno entre a "elasse dos cultos" e o eurso filistino do mundo. Um fato inelutâvel constatado por Burekhard e por ele ale9ado em defesa da eultura renascentis- ta, censurada num século de semieultura, como o dezenove, por alhear-se do grande numero; feconhe9a se, a proposito, a ascendéncia goetheana no passo em que se eompadece do destino do Tasso, o mais "artista" dos poetas italianos, padecendo nas mños da incultura, seja a dos seus protetores, seja a do seu publieo introuvabJe (ct. Marcuse, 1970, p.131: cf,tb. Liiwith 1969, p.362). Se assim é, caberia reeuar o nascimento da cultura afirmativa ate o finn da Idade Média, do qual data, de fato. o grande fiivñrcio ieferido pouco e do qual trataiemos mais adiante. Voltando: em Grandes linhas, a periodiza ño mareuseana do declinio da "personalidade" acompanha a tradipño socialista de interpreta9io do destino truncado da ”ideologia burguesa de liber ta9iio do individuo”; com uma ressalva: quando a ideologia aleniñ, ldtu sensu, entra em eena, adver te Marcuse, aquela promessa de emancipapño ja caducaia. Sabe-se que Lukñcs maiitém a promes- sa renascentista até a era de Goethe, deelarando-se entao a sua curse com o ”finn do periodo ar tistico”, ou, mars precisaniente, com a deirocada européia de 1848: a par tir dai, a "deeadéneia ideolo9ica" arranca das maos da burguesia o ideal da "personalidade harmoniosa". Diferenqas de periodiza9ño a paite, ambos conser vam as linhas gerais do proqrama socialista esbopado por Engels: o ideal renascentista do homem harmonioso assentava na convie9ño de que um verda- deiro desenvolvimento das forpas produtivas equivalia a um desenvolvimento das faculdades do individuo, de sorte que essa "grande revolu9ño progressista da humanidade” ultrapassava o horizonte buryués em que nascera (ct. Lukacs, 1966, p.112-3). Diante de tal amalgama, onde a personalfdade polifacétiea do uoino uiiiveisdle paleobufgués volta â tona na erista do desenvolvi- mento desimpedido das for9as produtivas, e no qual transpaiecem os tiope9os dos projetos posi- tivos do socialismo, cabe lembrai a nota dissonante de Adorno induzida pela observa9ao eorrente de que nem sempre as pessoas setn inibi9ñes sño as mais agradaveis e as mais livres e desa- guando no repudio do ideal socialists da personalidade: "os fantasmas em torno do homem sem inibi9ao, transbordante de energia, criador, foram pouco a pouco invadidos pelo fetichismo da mereadoria que, na sociedade buiguesa, produziu a inibi9ao, a impoténcia. a esterilidade das coifias que nño mudam nunca” (Adorno, 1954, p.147). Dño testemunho dessa invasño, nao so o episodio decadentista da "Renascen9a histerica" mencionado hñ pouco (para fiearmos apenas nos easos em que esbarramos por forma de nosso argumento), mas sobretudo o vinculo sombrio entre a voeapao mundana da "personalidade cultivada", assentada sobre a eoncorrencia e a disquas do anti semitismo na Alemanha modetna sao etapas de um caminho desencontrado, no qual ”o conceito de personalidade paga caro o crime que cometeu: o ter nivelado a idéia de humanidade, em um individuo, ate o plano do seu staples ser-assim e nao de outro modo (...) Becket exemplificou esse desfecho na figura de Hamm em In de Pattie.' a personalidafie como clown” (Adorno, 1973, p, 51). (Jâ o anteeipara, em parte, a dubia despersonaliza ño enearnada por Pétiouchka. analisada por Adorno no ensaio sobre Stravinsky. Nao era a primeira vez em que o sujeito amea9ado subia ñ eena na roupagem do clown esearne- eido. Proje9ño de intelectual que presume sua eondi9ao o ultimo retugio da personalidade que faz agua por todos os lados. A pericia consumada de Baudelaire em surpreender o artista na posiqño ingrata de um pitie, é um dos momentos decisivos desse processo de saltimbanco do Sobrinho de Rameau, e agora, as actobaeias cerebrais da existéncia irñnieo-artistica do intelectual romantico). Voltemos entño a opiniño destoante de Adorno: numa palavra: o dogma do desdobrar-se ininterrupto de todas as possibilidades humanas nño teria atravessado incolume a sua hiberna9ño burguesa, Escusado dizer que mo é esta a tiltima palavra de Adorno sobre o assunto muito menos o sño as opiniñes de Marcuse e Lukñcs refeiidas aeima. Sño variaqñes no interior de um pensamento pelo menos nño antes de esquadrinharmos um pouco mais a sua pre-historia.

  1. Sño obseiva90es de Horkeimer e Adorno a respeito da ambivaléncia da ideologia alema nos primordios da era imperialista (Adorno & Horkheimer, 1974, p.252, p.105-10). Depois de assinalar que nño ha razoes plausiveis para que se prefira o ministro ao gangster, porque as vitimas deste ultimo sfio menos numerosas, prosseguem os dois autores: "para o alemño” e o filisteu da cultura alimentou esse preeoneeito em favor da grandeza “a beleza emana da envergaduia do ato: a despeito do crepusculo dos idolos a sua volta, ele niio pode renunciar ao habito idealista que prefers ver o pequeno gatuno enforcado e gostaria de transformar as expedi- 9ñes dos piratas imperialistas em missñes historicas e universals” (idem, p.110).

A referéncia citada pelo autor é um escrito de Humboldt sobre o século dezoito, justamente o século do Iâsonieien. Se quisermos, mais um indieio do parentesco. ressalvadas as diferenqas de fuso historico, entre a ironia dos intelectuais romanticos e o "cinismo ilustiado” da inteligencia francesa seteceniista.

1 A primeira parte deste artigo lot publicada no v.26 (11, 2003.

2 Professor aposentado do Departamento de Filosofia da FFLCH da UDP.