A ANGÚSTIA, O NADA E A MORTE EM HEIDEGGER
Marco Aurélio WERLE[1]
RESUMO: O artigo investiga a relação entre os conceitos de medo, angústia, nada e morte na filosofia da existência de Heidegger. Pretende-se apontar para o papel destes fenômenos existenciais na passagem do ser-aí desde a inautenticidade para a autenticidade de seu ser. n PALAVRAS-CHAVE: Heidegger; existencialismo; filosofia; ética.
Neste artigo pretende-se examinar os conceitos de angústia, de nada e de morte na analítica da existência de Heidegger, na medida em que estes três conceitos ocupam um papel estratégico na proposta de Heidegger, em Ser e tempo, de novamente colocar a questão do sentido do ser, sob o fundo do esquecimento do ser provocado por toda a metafísica ocidental. Para tanto, o desenvolvimento do artigo segue o seguinte caminho: 1) inicialmente pretende-se comentar a proposta de Heidegger de uma filosofia da existência, ressaltando seus principais momentos, para, a seguir, 2) situar, no interior da analítica da existência, os temas da angústia, do nada e da morte.
Quando se pretende examinar a filosofia de Heidegger como filosofia da existência, o que significa tratar da primeira filosofia de Heidegger, exposta principalmente em Ser e tempo, do ano de 1927, logo nos defrontamos com um problema, pois o filósofo negou em vários momentos que sua preocupação exclusiva fosse a existência. Na Carta sobre o humanismo, de 1947, ao se referir ao enunciado de Sartre de que a existência precede a essência, Heidegger afirma: “O enunciado principal do existencialismo` não tem nada em comum com aquele enunciado de Ser e tempo” (1996, p.329). Nesta carta Heidegger inclusive critica o humanismo, também identificado por Sartre como extensão conceitual do existencialismo, e afirma que a essência humana tem de ser pensada para além de uma definição enfática de homem, por ex., como animal racional, já que o que distingue o homem é a sua relação com o ser e o modo como ele resguarda o ser, e não na medida em que é definido como um ser dotado de razão. A partir disso, Heidegger irá dizer neste texto de 1947 que o homem é o pastor do ser e que a linguagem é a casa do ser. Certamente Heidegger havia dito em Ser e tempo que a essência é a existência (1989a, §9), mas com isso ele não pretendia estabelecer uma filosofia da existência enquanto existencialismo, e sim seu tema era a verdade ou o sentido do ser que, embora deva ser inicialmente posto em questão no âmbito da existência humana, a transcende na direção da história do pensamento filosófico ocidental como um todo[2]. A primeira questão, portanto, que temos de abordar na filosofia da existência de Heidegger refere-se à sua especificidade de pensar a existência indo além da existência.
O problema fundamental da filosofia de Heidegger como um todo não é a existência, mas a questão do Ser, que ele certamente desenvolve em sua obra principal Ser e tempo no horizonte da existência, mas em seu pensamento posterior aborda no campo de uma certa filosofia da história e de uma reflexão aliada à poesia. O ponto de partida de Heidegger, ou o que coloca o problema do ser, é o esquecimento do ser, que o filósofo diagnostica em toda a tradição filosófica ocidental, começando com Platão e se estendendo até Nietzsche. Desde os gregos o pensamento não teria distinguido adequadamente a diferença entre ente e ser, entre o que existe simplesmente como uma coisa e entre o que é enquanto ser. Em outras palavras, trata-se aqui da confusão entre o ôntico (relativo ao ente) e o ontológico (relativo ao ser), que perfaz a diferença ontológica. Investigar o ser do ente não é a mesma coisa do que investigar a maneira como no ente se manifesta o ser, que neste caso é o ser enquanto tal. É certo que o ser só se dá no ente, mas isso não significa que pode ser reduzido ao ser do ente. O tema do ser, com o qual começou o pensamento ocidental com os pré-socráticos, portanto, tem de ser novamente levantado a partir de uma ontologia fundamental, e isto tomando como fio condutor o único ente que tem a possibilidade de questionar o ser, que é o homem. Pois o homem é dentre todos os entes o único que compreende o ser, o sentido do fato de que ele é, de que existe.
Desse modo, logo no começo de Ser e tempo, Heidegger afirma que a questão do ser não se coloca senão ao ente privilegiado que é capaz de questionar o ser, que possui uma compreensão do ser [Seinsverständnis]. Este ente é o homem, que Heidegger chama de “ser-aí” [Dasein], o homem enquanto um ente que existe imediatamente em um mundo (1989a, §4). Por meio do termo Dasein, que define o ponto de partida da analítica existencial, Heidegger pretende ultrapassar a separação entre sujeito e objeto, que ele considera uma herança prejudicial da filosofia moderna na compreensão do que seja o homem. Dasein é o homem na medida em que existe na existência cotidiana, do dia-a-dia, junto com os outros homens e em seus afazeres e preocupações. Para investigar o Dasein enquanto possui sempre uma compreensão de ser impõe-se uma analítica existencial, que tem como tarefa explorar a conexão das estruturas que definem a existência do Dasein, a saber, os existenciais. O método da analítica existencial é buscado tanto na fenomenologia quanto na hermenêutica, de modo que se designa de método fenomenológico-hermenêutico (idem, §7): parte-se da própria manifestação do Dasein ele mesmo em sua existência que, por sua vez, tem de ser interpretada de dentro para fora em suas principais estruturas ontológicas que a definem e que permitem a colocação da questão do ser. Dito em outras palavras, a questão do ser do Dasein é investigada tanto segundo a máxima da fenomenologia, do “ir às coisas elas mesmas” [zu den Sachen selbst], quanto com a máxima da “interpretação no horizonte da compreensão”, proposta pela hermenêutica.
Nesta investigação, um pressuposto fundamental da analítica existencial é de que a existência que se manifesta ao Dasein é sempre primeiramente concernente ao Dasein mesmo, à sua compreensão que se coloca para o ser-aí antes de qualquer teorização ou horizonte teórico, num nível pré-ontológico. Heidegger nega a idéia de que em filosofia é preciso estabelecer um princípio primeiro como a base inabalável e segura de um sistema filosófico. Inversamente, está empenhado em examinar como se dá a primeira e mais original compreensão do homem em sua existência mesma, antes de se colocar o momento teórico e da consciência: a teoria sempre chega tarde, apenas se coloca num momento posterior do que se revelou ou abriu ao homem na existência. A analítica existencial tem de partir, portanto, do ser que é sempre [Jemeinigkeit] do Dasein, que apenas pertence a ele, e não se acomodar previamente numa teoria que explique de fora o que é a existência humana (por exemplo, a partir de uma antropologia ou de uma investigação empírica do que seja o homem nos diferentes povos). O ponto de partida, portanto, é duplo: tanto o ser-aí quanto a compreensão imediata que ele mesmo tem do ser em sua existência, a qual precede toda a atividade científica e de saber. Ao partir deste terreno, Heidegger é também forçado a recusar como ponto de partida da filosofia a noção de sujeito ou de consciência – tal como ocorre na filosofia moderna, mas ainda em Husserl no conceito de cogito como instância irredutível –, igualmente a concepção de que o homem é um animal racional, bem como o recurso a uma transcendência, por exemplo, à idéia de um ente criado por Deus. O ser-aí é imediatamente o homem e o mundo ao mesmo tempo, em sua realidade finita imediata, entregue ao seu destino. Desse modo, o homem também não é uma mera coisa que reside inerte em um mundo da necessidade; pelo contrário, na medida em que compreende o ser, o homem se coloca no campo da possibilidade, da transcendência e elabora as possibilidades de sua existência.
Quanto ao conceito de existência, Heidegger nos dá uma boa definição dele na Introdução (1949) à preleção Que é metafísica? (1929), em que diz: “A palavra existência designa um modo de ser e, sem dúvida, do ser daquele ente que está aberto para a abertura do ser, na qual se situa, enquanto a sustenta” (1989b, p.59). E logo a seguir, acrescenta:
Somente o homem existe. O rochedo é, mas não existe. A árvore é, mas não existe. O anjo é, mas não existe. Deus é, mas não existe. A frase: “o homem existe” de nenhum modo significa apenas que o homem é um ente real, e que todos os entes restantes são irreais e apenas uma aparência ou a representação do homem. A frase o “homem existe” significa: o homem é aquele ente cujo ser é assinalado pela in-sistência ex-sistente no desvelamento do ser a partir do ser e no ser (idem, ibidem).
Entretanto, se partimos da compreensão do ser que define a existência, também deve ser levado em conta que esta existência é na maior parte das vezes existência inautêntica [uneigentlich], ou seja, o homem no cotidiano se mantém numa situação de encobrimento de seu ser, possui uma interpretação errônea de sua própria existência, que se mantém para ele encoberta. Esta tendência de encobrimento é principalmente provocada pela tradição, que no mundo grego colocou pela primeira vez a questão do ser, mas logo em seguida a esqueceu e a afirmou sucessivamente apenas por meio do ser do ente, mas não do ser enquanto tal. Uma das tarefas da analítica existencial enquanto ontologia fundamental é, por isso, a de uma destruição da tradição (1989a, §6; este ponto será explorado por Heidegger em seu pensamento posterior). Ou seja, a tarefa de Heidegger é a de mostrar como no dia-a-dia da existência (do homem do século XX) domina amplamente um esquecimento do ser; daí também decorre o caráter essencialmente negativo de toda a analítica da existência. A saída “positiva” nunca se põe, pelo contrário, ela emergirá por meio dos existenciais propriamente negativos.
O ser-aí, o Dasein, imerso em sua existência, é um ser-no-mundo [In-der-Welt-sein], que se encontra sempre situado num contexto de vivência no mundo, e não está simplesmente lançado num espaço apenas delimitado física ou naturalmente. O conceito de ser-no-mundo é uma estrutura ontológica fundamental do ser-aí, que indica a inseparabilidade do homem e do mundo e igualmente do mundo em relação ao homem. Estar em um mundo significa habitar o mundo (Heidegger, 1986, p.54), morar nele, deter-se nele, e não simplesmente encontrar-se nele como uma coisa, um ente simplesmente dado. As coisas existem no mundo como categoriais, estão no mundo como algo que está apenas em uma outra coisa, ao passo que o Dasein está no mundo na forma dos existenciais, existindo num mundo e o habitando, se detendo nele.
Uma primeira etapa da analítica existencial consiste, pois, em estabelecer o que é o mundo, consiste em discutir o conceito de mundo. Heidegger estabelece o conceito de mundo em Ser e tempo como um certo âmbito constituído pelo Dasein, no sentido de que o Dasein confere ao mundo o caráter de mundo, a sua mundanidade. O mundo não existe apenas na forma de um receptáculo físico no qual nos encontramos; o Dasein não está apenas no mundo, mas ele tem mundo, constitui o mundo como uma extensão dele mesmo na medida em que lida com os instrumentos que estão em torno dele. Neste caso, é importante afastar a idéia de mundo como mera natureza que nos cerca, enquanto mundo meramente objetificado. Na verdade, o que define mesmo o mundo para o Dasein passa pelo modo como o Dasein se relaciona de modo imediato com o mundo, ao trabalhar e operar com instrumentos de seu dia-a-dia. Podemos aqui lembrar do “mundo da vida” [Lebenswelt ], termo que se tornou sobretudo célebre por meio do ensaio de Husserl A crise das ciências européias e a fenomenologia transcendental. Para Husserl o mundo da vida é o mundo imediato em que cada um de nós vive e que antecede toda e qualquer teoria ou ciência. O problema clássico da filosofia moderna, de como posso sair de mim e ter um acesso ao mundo e mesmo a questão da realidade do mundo exterior ganha aqui uma solução: não é o acesso teórico que garante um ingresso ao mundo, pois o mundo sempre está aí presente, antes mesmo que eu possa pensá-lo. No mundo, igualmente a relação do homem com o que está diante dele não é do tipo coisal, e sim o que se apresenta a ele está à mão dele, é um manual (cf.1989a, §15: os meus óculos estão mais distantes de mim do que, por exemplo, um amigo querido que ao longe se aproxima). Estes instrumentos ou manuais se definem, porém, não como objetos meramente existentes enquanto dados empíricos, e sim num horizonte de significados determinados por um contexto e pelo uso. O martelo apenas se torna algo para mim no martelar; Heidegger fala neste caso de uma certa conjuntura (1989a, §18), enquanto um todo que determina as “partes” nele presentes, e de uma significância, que emerge no ato mesmo de lidar com os instrumentos. A manualidade e o caráter de instrumento definem o modo de ser dos entes no mundo. Este conceito de mundo de Heidegger se opõe ao conceito de mundo moderno definido por Descartes, que entendia o mundo pelo parâmetro da física-matemática, como coisa extensa [res extensa], de modo que o aspecto prático se sobrepõe ao téorico.
O passo seguinte da analítica existencial se define pela exploração do fato de que o Dasein vive em um mundo com outros entes que têm o modo de ser do Dasein, ou seja, temos aqui o problema da intersubjetividade ou o caráter social da existência. Assim, após questionar o ser do mundo (o onde) no qual vive o homem, trata-se de perguntar a seguir pelo quem é o Dasein, na medida em que ele vive em um mundo em que também existem não apenas instrumentos e objetos que o cercam, mas fundamentalmente outros entes com o modo de ser do Dasein, isto é, outros seres humanos. A isso Heidegger chama de ser-com [Mitsein] e estar-aí-com [Mitdasein]. Como se põe a sociabilidade para Heidegger? Na resposta pelo eu e pelo nós, pela diferença e pela identidade dos homens no mundo, Heidegger novamente considera errôneo partir de uma idéia já previamente dada sobre o tema, metafísica e independente da existência mesma; por exemplo, de uma concepção prévia de substancialidade de um eu e de um não eu (1989a, § 25). A relação entre os Daseins não é uma relação entre “sujeitos” e sim nasce de uma dependência entre os homens decorrente de sua ocupação com os entes. Com os outros homens o Dasein não se relaciona somente por meio do mero lidar, mas por meio da preocupação [Fürsorge]. Com os manuais eu me ocupo, ao passo que com os homens eu me pre-ocupo [Fürsorge] (justamente nesta idéia de pre-ocupação há um sentido negativo de que eu quero me antecipar à existência do outro, tirá-la dele). Nos preocupamos pelo outro, assumimos o seu lugar, o substituímos em seu sofrimento ou nos entregamos à sua preocupação, mas nos esquecemos de nós mesmos (§26). Esta preocupação na existência, porém, não é positiva, e sim assume a forma de uma impessoalidade [das Man] hipócrita, na qual os homens se “preocupam” demasiadamente com o outro e com o que se pensa e se acha socialmente e se esquece do verdadeiro sentido de sua própria existência. A vida social é o império do a gente, a ditadura do impessoal, o âmbito em que se confunde o todos nós e o ninguém, na medida em que se age de acordo com o que se pensa em geral. A concepção básica de Heidegger acerca da vida em sociedade é que ela é regida por uma noção obscura de convivência, em que não há sujeitos e sim domina o império do impessoal, de uma sociabilidade truncada, em que nem o eu nem o nós se distinguem. Este impessoal é ele mesmo sem rosto, uma espécie de ninguém que comanda a vida individual e não pode ser identificado com este ou aquele ser humano. Ocorre aqui uma perda do Dasein no espaço aberto da opinião pública [Öffentlichkeit] que tudo devora e nivela por baixo e determina o que cada um deve fazer. Diz Heidegger: “O ‘quem’ é o neutro, o impessoal ... o impessoal, que não é nada determinado, mas o que todos são, embora não como soma, que prescreve o modo de ser da cotidianidade” (1989a, p.179, §27).
Mas como se revela de fato o estar aí do Dasein no mundo e na medida em que o Dasein lida com outras pessoas do seu meio ambiente cotidiano? Para isso Heidegger dá um terceiro passo na determinação da analítica existencial, que consiste em responder como facticamente se abre o mundo para o Dasein, independentemente se ele vive em um mundo de coisas ou de homens. Trata-se de questionar agora o aí [Da] do ser-aí, diante do assunto dos momentos anteriores que era o ser do ser-aí (é certo que ainda num sentido muito imediato). É importante frisar que a abertura da qual se trata aqui é da abertura enquanto tal, que não é, por assim dizer, “assumida” pelo ser-aí. A abertura primeira e fundamental de mundo se dá para o Dasein por meio de uma estrutura tripla que envolve a disposição, a compreensão e a interpretação. Antes de mais nada podemos dizer que o homem se encontra envolvido [befindet sich] em um mundo, lançado [Geworfenheit] em disposições anímicas que indicam a facticidade da responsabilidade de sua existência. O ser humano é assaltado por estados da alma (sentimentos) que abrem para ele irrefletidamente o mundo, geralmente por meio de um certo desvio. Inserido numa disposição, o Dasein compreende o mundo, mas não conscientemente por meio de conceitos, e sim a compreensão ocorre porque o próprio Dasein está com-preendido numa situação de mundo. Não é o homem que primeiramente compreende o mundo, e sim ele é compreendido pelo mundo, e isso de modo totalizante: o ser humano inteiro está compreendido em seu mais próprio poder-ser numa situação de mundo, o que remete ao conceito de projeto [Entwurf]. A compreensão projeta o homem em possibilidades de existência, em que ele pode ou não assumir de modo pleno sua existência. Somente então dá-se a interpretação de mundo no discurso e na linguagem, tendo em vista, porém, que a proposição e o enunciado implicam um momento sempre posterior na existência do Dasein. A compreensão do mundo antecede a interpretação e não como usualmente se imagina, que é preciso primeiro interpretar para então compreender. Muitas vezes, por exemplo, compreendemos sem nada dizer: o silêncio fala muito mais do que muitas palavras (aliás, o palavreado é um dos fenômenos que encobre o compreender).
Estas três possibilidades de abertura de mundo, a saber, a disposição, a compreensão e o discurso, embora constituintes não são, porém, assumidas de fato pelo homem, de modo que levam novamente a um encobrimento do fenômeno originário do Dasein, levam a uma queda [Verfallen], a uma decadência do dia-a-dia e ao esquecimento da verdadeira essência. Trata-se aqui dos fenômenos do falatório, da curiosidade e da ambigüidade, que levam o Dasein a se perder no ambiente público e impessoal. Dito de outra maneira, se Heidegger de um lado indica a possibilidade segundo a qual o Dasein poderia de fato assumir a sua existência e colocar a questão do ser, nos conceitos de disposição, compreensão e discurso ou interpretação, ele, de outro lado, novamente recua deste momento da abertura para indicar que de fato a tendência de encobrimento no Dasein é demasiadamente forte para que ele se torne livre. Mais uma vez vemos este traço fundamental do encobrimento e da fuga de si mesmo se fazer valer e determinar o ser-no-mundo do ser-aí (1986, p.185, §40). A questão que se põe diante desta recorrência de encobrimento é a seguinte: haverá então uma possibilidade de o ser-aí sair de sua inautenticidade?
Diante de todos estes diversos aspectos existenciais que constituem o Dasein como ser no mundo, se coloca então a questão: qual é o traço constitutivo da existência do Dasein, no qual reside a totalidade do ser da existência do homem? Heidegger responde que este traço totalizante que define a essência do ser-humano se encontra no conceito de angústia, enquanto disposição compreensiva que oferece o solo fenomenológico-hermenêutico para a apreensão explícita da totalidade originária do Dasein. A angústia não é então somente um fenômeno psicológico e ôntico, isto é, que se refere somente a um ente ou a algo dado, e sim sua dimensão é ontológica, pois nos remete à totalidade da existência como ser-no-mundo. Tal como em Kierkegaard, a angústia assume em Heidegger um cunho existencial essencialmente humano. Só o homem se angustia, não o animal, bem como apenas o homem existe e tem uma compreensão do ser. O rochedo é, mas não existe, o anjo é, mas não existe, somente o homem existe. A diferença entre Kierkegaard e Heidegger, porém, reside no fato de que em Kierkegaard a angústia revela o nosso ser finito, o nada de nossa existência diante da infinitude de Deus, do caráter eterno de Deus, ao passo que Heidegger abandona esta perspectiva teológica e pensa a angústia apenas como fenômeno existencial da finitude humana[3].
Nesta direção, a angústia não deve ser tomada como um mero temor [Furcht], embora na obra Ser e tempo o temor também seja um existente fundamental mediante o qual o homem se encontra no mundo (Heidegger, 1989, §30) e implique, por assim dizer um estágio mais suave da angústia. O temor constitui uma disposição anímica [Befindlichkeit] que nos desvia ou nos afasta de algo que tememos e com isso ao mesmo tempo manifesta o todo do mundo, em sua estranheza e assombro, antes mesmo que possamos realizar um ato de conhecimento desse mundo. Há muito mais força de revelação do mundo no temor do que em qualquer outro tipo de acesso ao mundo, por exemplo, na alegria ou na felicidade, os quais são muito transitórios e menos marcantes. O ser-aí, segundo Heidegger, encontra-se primeiramente lançado [geworfen] no mundo em meio a estados de ânimo, nos quais tende a se desviar do mundo enquanto tal, já que tem de suportar o peso de sua existência. “O humor torna manifesto ‘como a gente se sente’. Neste ‘como a gente se sente’ o estar disposto traz o Ser em seu estar-aí” (1986, §29, p.134). Em termos mais precisos, o medo é uma disposição central na nossa existência pelo fato de que manifesta o mundo no ato de fuga do ser-aí de si mesmo. Embora o homem tema por algo que é objetivo no mundo, o endereço último de seu temor não é o objeto fora dele, mas sim ele mesmo: o homem somente teme por algo determinado porque em última instância é ele mesmo afetado e o maior interessado, é como se o medo se voltasse para quem teme e não para o que se teme. O medo volta-se apenas aparentemente para “fora”; na verdade, ele se dirige ao nosso ser íntimo.
Três são os elementos existenciais fundamentais que compõem o medo:
a) o diante de que [wofür] tememos algo, que assume o caráter da ameaça. Tememos algo que nos ameaça, seja um ente manual ou a co-presença ou ausência dos outros; b) o temer [fürchten] enquanto tal, que abre para nós o mundo; c) o porquê [worum] nós tememos, que se refere ao nosso próprio estar-aí. O temor, por isso, é sempre primeiramente um fenômeno privado, embora também possamos temer por um outro, ao assumirmos o medo do outro, por exemplo, quando este não teme nada. Assim, o temer é também uma forma de estar com os outros, na medida em que tememos por alguém. Por fim, o temor pode ter variações: ele pode ser o que é assustador; pode ser o horror e também a decepção (1986, §30, p.142).
A diferença entre a angústia e o temor reside precisamente no fato de que a angústia é mais ampla que o temor. O temor é direcionado a um ente determinado da nossa existência, ao passo que o objeto da angústia, ao qual ela se dirige, é “completamente indeterminado” (1986, §30, p.186). Na angústia, enquanto disposição fundamental, não sabemos diante de que nos angustiamos; ela começa a se apresentar quando, em meio a nossas ocupações do dia-a-dia, nos sobrevém um certo tédio. Começamos a ficar fartos dos entes que estão ao nosso redor e não encontramos em nenhum ente um apoio para nos tirar deste tédio. Pelo contrário, acreditamos mesmo que temos de procurar sempre mais o contato com os entes e as coisas do mundo, para assim nos ocupar [besorgen], em vez de nos preocupar [fürsorgen], e sair desta estranha indiferença na qual nos joga o mundo. Mas, com isso, sempre afundamos mais na angústia. Nos sentimos meio estranhos na angústia. Em Que é metafísica? (texto de 1929 que explora motivos centrais de Ser e tempo) Heidegger diz: “Por esta angústia não entendemos a assaz freqüente ansiedade que, em última análise, pertence aos fenômenos do temor que com tanta facilidade se mostram” (1989b, p.39). E em Ser e tempo afirma:
O por quê a angústia se angustia não é um modo determinado de ser e uma possibilidade do ser-aí. A ameaça é ela mesma indeterminada, não chegando, portanto, a penetrar como ameaça neste ou naquele poder-ser concreto e de fato. A angústia se angustia pelo próprio ser-no-mundo (...). o mundo não é mais capaz de oferecer alguma coisa nem sequer a co-presença dos outros. A angústia retira, pois, do ser-aí a possibilidade de, na decadência, compreender a si mesmo a partir do mundo e na interpretação pública (1986, §40, p.187).
Isso significa em última instância que o ser-aí se angustia pelo simples estar no mundo (idem, p.186). É a existência enquanto tal que é angustiante, de modo que nesta disposição anímica fundamental todo o mundo se torna para nós sem importância, pois não encontramos sossego em nenhum ente.
Não sendo nenhum objeto determinado, o que angustia o homem é um nada enquanto tal. No texto Que é metafísica?, já mencionado acima, a angústia é designada por Heidegger como a disposição fundamental de nossa existência que “manifesta o nada” (1989b, p.39) e implica o estágio anterior e necessário para que se possa colocar a questão do ser.
Estamos suspensos na angústia. Melhor dito: a angústia nos suspende porque ela põe em fuga o ente em sua totalidade. Nisto consiste o fato de nós próprios – os homens que somos – refugiarmo-nos no seio dos entes. E por isso que, em última análise, não sou “eu” ou não é “ você” que se sente estranho, mas a gente se sente assim. Somente continua presente o puro ser-aí no estremecimento deste estar suspenso onde nada há em que apoiar-se. A angústia nos corta a palavra (idem, p.39-40).
Quando somos perguntados sobre o que nos angustia, respondemos meio de modo inconsciente: “não é nada” ou “não é nada e já vai passar”. Nos angustiamos, mas não sabemos identificar o objeto de nossa angústia, o que precisamente gera em nós essa angústia. Esse “não é nada”, porém, provém de um nada mais originário e fundamental que está na origem de nossa angústia. Esse nada determina a angústia. Mas na angústia não há uma apreensão ou captação do nada, muito menos a angústia, enquanto fenômeno psicológico, gera o nada como se o nada pudesse se mostrar como algo determinado, como um ente que finalmente pudesse ser “diagnosticado”. Neste caso, confundir-se-ia o nada com a negação.
O nada não é a negação, mas a origem dela: negamos algo, isso ou aquilo em nossa vida, dizemos não a este ou aquele compromisso, a esta ou aquela solicitação ou pedido, renunciamos a esta ou aquela oferta, etc. porque estamos suspensos no nada fundamental e envolvidos por ele. Ou seja, é somente porque existe o nada que se coloca a negação, no sentido de que a negação é o ato humano de determinação, ou mesmo de resolução do nada. Não é porque negamos que surge o nada, mas o inverso. Esse é inclusive o problema da ciência, criticado por Heidegger em Que é metafísica?, uma vez que a ciência muito rapidamente resolve o problema do nada como não sendo nada, ou seja, pela negação. A ciência afirma que pesquisa apenas o ente e mais nada, ou seja, delimita seu campo de atuação para o que pode ser determinado logica e matematicamente na esfera do ente, excluindo o nada e, por conseguinte, o ser, que possuium parentescocom o nadano horizonteda diferençaontológica[4].
No que se refere a isso, importa também distinguir que o nada do qual se trata em Heidegger não é a negatividade, o negativo ou a negação determinada de Hegel. Pois em Hegel o nada é dominado pela subjetividade, submetido à força de determinação da dialética inerente à consciência em seu auto-movimento de determinação rumo ao saber absoluto. A concepção de uma negação determinada assegura a superação do nada e do ceticismo. No percurso da consciência não verdadeira, a perda de seu objeto é somente negativa para ela, a consciência envolvida diretamente com uma determinada verdade alcançada, mas do ponto de vista do processo inteiro, essa negação apenas prepara o estágio seguinte do trajeto fenomenológico, na medida em que, como diz Hegel, “o nada é, determinadamente, o nada daquilo do qual ele procede” (1980, p.45). Já em Heidegger, o nada é mais forte que a negação e não pode ser resolvida por ela ou por uma possibilidade de determinação subjetiva. A subjetividade é, neste ponto, muito fraca diante do fenômeno do nada, é como se o nada travasse ou paralisasse a atividade subjetiva. O problema de Heidegger é mais amplo que o da subjetividade em Hegel, e se coloca na direção da pergunta ontológica e metafísica, formulada em Introdução à metafísica, a saber: “Por que há simplesmente o ente e não antes o Nada?” (1978, p.33-34). Nesta mesma direção, poder-se-ia distinguir o nada de Heidegger do nada de Sartre. Aliás, Sartre (1997, p.62-64) critica Heidegger por sua concepção de um “nada extramundano” e por ter retirado o nada da “transcendência do ser-aí” (idem, p.61), após tê-lo já colocado no nível da transcendência.
Para Heidegger, o nada se coloca por si mesmo na angústia, não precisa ser criado, mas se revela na angústia e ao mesmo tempo a provoca, ele é a causa e o efeito ao mesmo tempo. Para isso Heidegger emprega a expressão: “o nada nadifica”, para dizer que o modo de o nada se manifestar somente ocorre por meio do nada mesmo. O nada nos lança num constante nada, ele mesmo é o sujeito de si, não é um objeto que está ao nosso alcance, que pudesse porventura ser “definido” por meio de uma negação. Pelo contrário, é ele mesmo que nadifica. O nada, posto que está acima de um ente determinado, é assim o próprio véu do ser que se revela em nossa existência por meio da angústia. O ser tem em comum com o nada o fato de não se esgotar em nenhum ente determinado e não poder ser nunca definido; tanto o ser como o nada determinam o todo de nossa existência; somente ao homem se põe a questão: “por que existe o ente e não antes o nada?”, acima mencionada. Toda a nossa existência de repente perde seu sentido diante do nada. O homem está suspenso na angústia e muitas vezes nem a percebe, aliás, geralmente ela nos oferece uma estranha tranqüilidade. Nos angustiamos, mas não sabemos definir por que nos angustiamos. Esta angústia também não surge a toda hora; pelo contrário, ela é muito rara. O ser-aí que está sempre angustiado pode estar menos relacionado à angústia fundamental do que o ser-aí que parece estar calmo. Por isso, a angústia, ou a cura (termo latino que designa a angústia; cf. Heidegger, 1986, §41), também não é uma preocupação particular ou prática por este ou aquele setor ôntico, por este ou aquele evento de nossa existência, por esta ou aquela incerteza.
A angústia e o nada tomam o todo do ser do Dasein, fazendo com que o próprio ser-no-mundo seja abalado em suas bases e seja sentido em seu fundamento como angustiante (§40). A angústia reside no puro fato de existir; o simples ser-no-mundo, o mundo como mundo (Heidegger, 1989a, p.251), é a origem da angústia que nos toma por inteiro. A gente se sente estranho na angústia, uma estranheza que é ao mesmo tempo um não sentir-se em casa, e remete ao estado fundamental do homem no mundo, conforme nos diz Sófocles, no canto coral da Antígona[5]. O que nos angustia é um nada que nadifica constantemente.
O nadificar não é um episódio casual, mas como remissão (que rejeita) ao ente em sua totalidade em fuga, ele revela este ente em sua plena, até então oculta, estranheza como o abolutamente outro – em face do nada. Somente na clara noite do nada da angústia surge a abertura do ente enquanto tal; o fato de que é ente – e não nada. Mas este “e não é nada”, acrescentado ao nosso discurso, não é um esclarecimento tardio, mas a possibilidade prévia da revelação do ente em geral. A essência do nada originariamente nadificante consiste em: conduzir primeiramente o ser-aí diante do ente enquanto tal (Heidegger, 1989b, p.141; 1996, p.144).
O lado “positivo” deste fenômeno é que ele coloca pela primeira vez a existência humana diante de si mesma, fazendo com que o Dasein possa ultrapassar a si mesmo, alcançando uma situação concreta de transcendência (§41). Diz Heidegger: “Só na angústia subsiste a possibilidade de uma abertura privilegiada na medida em que ela singulariza. Essa singularização retira o ser-aí de sua decadência, e lhe revela a autenticidade e inautenticidade como possibilidades de seu ser” (1989a, §40, p.255). A angústia singulariza, embora não seja ela mesma singular. Nesta situação o homem é chamado pela voz do ser a experimentar a maravilha do fato de que o ente é, em outras palavras, a antecipar-se diante da existência fáctica e lançada na decadência, donde se segue a estrutura fundamental da preocupação [Sorge] enquanto cuidado pela existência.
No conceito de angústia e, por conseguinte, no de preocupação, Heidegger localiza a verdadeira possibilidade de virada da existência humana, a possibilidade de o homem sair da inautenticidade, na qual ele geralmente vive, e assumir a autenticidade. Por meio da preocupação, isto é, pressupondo que o homem seja tocado pela angústia, já que ela é rara (1989a, §40), pode-se dizer que ele faz de uma só vez uma recapitulação de todo o seu existir e toma consciência [Gewissen] do caráter essencialmente finito de sua existência, toma consciência do caráter essencialmente temporal do ser e de que está entregue somente a ele mesmo e à manifestação do ser[6]. Assim, a angústia desperta para a morte, enquanto dado temporal mais significativo da existência, e revela a finitude da existência humana, o fato de que o homem tem um fim, que ele morre e que sua existência acaba, ou seja, remete a um outro conceito fundamental de Heidegger, que é o ser-para-a-morte [Sein-zum-Tode].
A morte constitui uma limitação da unidade originária do ser-aí, significa que a transcendência humana, o poder-ser, contém uma possibilidade de não-ser. Diz Heidegger: “o ‘fim’ do ser-no-mundo é a morte. Esse fim, que pertence ao poder-ser, isto é, à existência, limita e determina a totalidade cada vez possível do Dasein” (1989a, vol. II, p.12). Entretanto, o caráter aparentemente negativo da morte apenas se coloca quando a morte é tomada no sentido vulgar de ser o momento do término físico da vida. Mas há um lado positivo na morte, isso se o ser humano assume o seu ser-para-a-morte, isto é, leva em conta que a morte é um fenômeno da própria existência e não do término dela. A morte apenas tem sentido para quem existe e se põe como um dado fundamental da existência mesma. Assumir o ser para a morte, porém, não significa pensar constantemente na morte e sim encarar a morte como um problema que se manifesta na própria existência. Depois de termos morrido não podemos mais sentir a morte. É um fato que a morte é algo que apenas podemos experimentar indiretamente, no outro que morre. A morte tem este aspecto paradoxal de apenas surgir quando não pode mais constituir um problema para o Dasein, a não ser que ele a assuma como a sua mais própria essência na própria existência. Na verdade, o conceito de morte é uma espécie de angústia ampliada e mais definida na direção de uma caracterização fundamental de nossa existência (§53). Há na morte um elemento de transcendência capaz de nos tirar das ocupações cotidianas. A tomada de consciência do ser-para-a-morte leva a um questionamento de todo o ser, no sentido de que o ser-humano se coloca radicalmente diante de seu ser. Assim como a angústia, “a antecipação da morte singulariza o ser-aí” (1986, p.263). Desse modo, a morte permite basicamente: 1) uma consciência de toda a existência (passado, presente, futuro) e, por isso, também será por ela que o ser irá encontrar a sua verdade no tempo, o assunto da segunda seção de Ser e tempo, em que serão retomados todos os existenciais fundamentais sob o plano do tempo. 2) assumir individualmente a existência, já que a experiência da morte é sempre apenas minha (no §50 Heidegger considera que a angústia diante da morte é a angústia diante do próprio poder-ser).
Um exemplo que talvez possa ilustrar estas análises de Heidegger encontramos no romance de Sartre, O muro. Este romance se passa no interior de uma prisão na Espanha, na época da guerra civil espanhola, e tem como personagens prisioneiros políticos que estão prestes a ser executados. O personagem principal Pablo Ibbieta, na noite anterior à sua execução (o romance ou novela se passa no curto espaço da noite até o amanhecer) – execução que, na verdade, não irá acontecer – recapitula toda a sua vida diante do fato iminente da morte. E esta “reflexão” sobre o seu fim e sua vida como um todo o leva a uma tal clareza sobre a sua existência que, mesmo se escapasse desta situação limite, sua vida nunca mais seria a mesma. Sobre isso,ele diz: “No estado em que me achava, se viessem me avisar que eu poderia voltar tranqüilamente para casa, que a minha vida estava salva, ficaria indiferente; algumas horas ou alguns anos de espera dá na mesma, quando se perdeu a ilusão de ser eterno” (Sartre, 1966, p.24). Essa consciência da morte, porém, não é clara para Pablo, é como se ela emergisse da própria existência e das coisas: “Naturalmente não podia pensar claramente na minha morte, mas eu a via por todos os lados, sobre as coisas, no jeito pelo qual as coisas tinham se recuado e se conservado à distância, discretamente, como pessoas que sussurram à cabeceira do moribundo” (idem, ibidem). A possibilidade da morte coloca Pablo numa situação de indiferença diante dos entes que o cercam, e o transporta para o nível em que as relações espaciais e temporais comuns perdem o seu sentido. Ele diz:
Não tinha mais amarras, estava calmo. Era, porém, uma calma horrível – por causa do corpo; enxergava com seus olhos, ouvia com seus ouvidos, mas não era mais eu; ele suava e tremia sozinho e não o reconhecia. Fui obrigado a tocá-lo e a olhá-lo para saber o que tinha acontecido com ele como se fosse o corpo de outro. Sentia-o ainda por momentos, sentia como escorregamentos, uma espécie de queda, como quando a gente está num avião em pique, sentia bater meu coração. Isto tudo, porém, não acalmava, pois o que vinha do meu corpo tinha um ar equívoco. Na maior parte do tempo permanecia sossegado, quente, e eu não sentia mais nada senão uma espécie de peso, uma presença imunda; tinha a impressão de estar ligado a um montão de vermes. Tateei minha calça e a senti úmida; não sabia se estava molhada de suor ou de urina e por precaução fui urinar sobre o carvão (idem, p.24-25).
Em suma, o que a analítica da existência de Heidegger nos apresenta é a interdependência mútua dos conceitos de medo, angústia, nada e morte. O papel destes conceitos consiste, pois, em gerar no ser-humano, o ser-aí, uma possibilidade para assumir sua autenticidade. Somente a partir destes fenômenos ocorre a virada na existência humana, quando o homem é tocado em seu ser pelo apelo do Ser. Seu despertar não se dá por meio do que costumeiramente se designa de alegria ou felicidade. Pelo contrário, para a ética heideggeriana vale sobretudo a finitude humana dos momentos de negatividade.
It points to the role of these existential phenomena in the transformation of “Dasein”, from the inauthenticity to the authenticity of its Being. n KEYWORDS: Heidegger; existentialism; philosophy; ethics.
BEAUFRET, J. Introdução às filosofias da existência. Tradução e notas de Salma Tannus Muchail. São Paulo: Duas Cidades, 1976.
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Tradução de Henrique Cláudio de Lima Vaz, São Paulo: Abril Cultural, 1980.(Os Pensadores).
HEIDEGGER, M. Sein und Zeit. Tübingen: M. Niemeyer, 1986.
______. Ser e Tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcanti. Petrópolis: Vozes, 1989a.
______. Que é metafisica? Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril Cultural, 1989b. (Os Pensadores).
______. Introdução à metafísica. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
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HUSSERL, E. Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie. Hamburgo: Meiner, 1992.
SARTRE, J-P. O muro. Tradução de H. Alcântara Silveira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966.
______. O ser e o nada. Ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução e notas de Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 1997.
[1] Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP). O presente texto resulta de uma palestra apresentada na XXVI Jornada de Filosofia e Teoria da Ciências Humanas – a filosofia da existência e a tragédia moderna, na UNESP/Marília, em 07/11/2002.
[2] Sobre o existencialismo de Heidegger, cf. Beaufret (1976, p.67) e também o posfácio de Que é metafísica? (Heidegger, 1989b).
[3] Cf. a nota de Ser e tempo, §45, na qual Heidegger afirma que Kierkegaard se encontra inteiramente sob a influência de Hegel.
[4] A diferença entre o nada e a negação é semelhante à da relação entre o errar e a errância, conceitos que Heidegger aborda em A essência da verdade (1930): “O homem erra. O homem não entra primeiramente no erro. Ele sempre entra no erro porque ek-sistindo in-siste e, assim, já se encontra na errância. A errância, pela qual o homem atravessa, não é algo semelhante a uma fossa que acompanha o homem e na qual ele de vez em quando cai, mas a errância pertence à estrutura interna do Da-sein, na qual o homem histórico está situado” (Heidegger, 1996, p.196; 1989b, p.132). Os conceitos de fundamento [Grund] e abismo [Ab-grund] do texto Sobre a essência do fundamento (1929) também podem ser aqui evocados como analógicos.
[5] Versos 333-375: “o ser mais estranho de tudo o que é estranho”; citado por Heidegger em Introdução à Metafísica (1935) (1978, p.111-117).
[6] O caráter temporal da preocupação e da angústia é comentado por Heidegger em Ser e tempo, §42, por intermédio do mito do cura (preocupação em latim), expresso por uma fábula de Higino. É Saturno (o tempo) que decide que o homem, enquanto continuar vivendo, pertencerá ao cura.