KIERKEGAARD: A AMBIGÜIDADE DA IMAGINAÇÃO[1]

Silvia Saviano SAMPAIO[2]

n RESUMO: O tema principal deste trabalho é a compreensão kierkegaardiana da imaginação e a estrutura da dialética da imaginação nos estádios estético e religioso

n PALAVRAS-CHAVE: imaginação; sentimento; possibilidade; necessidade; desespero; interioridade; artista; pensador subjetivo.

Para Kierkegaard, o homem tem como tarefa a busca de uma identidade primitiva, de uma primeira identidade que existe sob o modo do sonho, como nos é dito no Conceito de Angústia. O desejo da repetição desta unidade, desejo de vir a ser novamente si-mesmo,[3] permanece como paradigma e atravessa os diversos estádios – ético, estético e religioso – que são etapas deste caminhar do homem na existência.

No estádio estético o homem vive no instante, prisioneiro da imediatidade, voltado para o mundo finito. O estádio ético marca o surgimento da existência efetiva como auto-afirmação do sujeito, que se exprime pelo julgamento e se atualiza pela realização do dever. A história do sujeito começa pela afirmação de si mesmo pela escolha, pela subordinação de sua existência a uma lei. Porém, encontrando-se desde a origem na não-verdade, o indivíduo não pode ser sua própria referência, há a necessidade de um mediador. A segunda ética supõe a intervenção de um elemento exterior, o acesso a uma realidade nova, paradoxal. Ela consiste no apelo singular do religioso.

Kierkegaard diz que, “imerso na existência”, o pensador subjetivo deve, entretanto, pensar, não pode fazer abstração da existência e da sua contradição. O pensamento não o impede de “habitar pessoalmente na existência”. A simultaneidade existencial, a possibilidade de que na existência todos os momentos estejam presentes ao mesmo tempo, de que o pensamento não seja em nada superior à imaginação e ao sentimento, mas coordenado com eles, é colocada, para o homem, como tarefa: “O pensador subjetivo tem a tarefa de compreender juntas as maiores oposições”.

A imaginação é a capacidade humana básica para que o homem persista na sua tarefa de “tornar-se si-mesmo”. A imaginação não é uma faculdade como as outras, ela é a faculdade instar omnium (a faculdade das faculdades). O que há de sentimento, de conhecimento e de vontade no homem dependem, em última instância, do que ele tem de imaginação, isto é, da maneira segundo a qual todas as faculdades se refletem, projetando-se na imaginação. Ela é a reflexão que cria o infinito.

O termo “reflexão” (Refleksion), em Kierkegaard, diz respeito à atividade de discriminar opostos. Contrariamente a Hegel, de quem Kierkegaard empresta o termo, para Kierkegaard, as determinações da reflexão são sempre dicotômicas: idealidade e realidade, corpo e alma. Na medida em que diferencia os contrários, a reflexão cria a possibilidade de seu relacionamento. Como os opostos não são internamente relacionados, sua relaçãosó pode se tornar real quando são unidos por um terceiro.Este terceiro é o espírito, entendido como consciência. A reflexão é a possibilidade da relação, ela dispõe, por exemplo, os pólos da idealidade e da realidade. O pensamento (Toenkning) refere-se ao poder de abstração da mente. Em Kierkegaard, pensamento e reflexão estão estreitamente relacionados, já que a reflexão é a atividade de estabelecer estes pólos e o pensamento é o poder de abstração. A reflexão diferencia opostos antes indiferenciados, enquanto o pensamento abstrai da existência concreta pela especulação desapaixonada. São dois aspectos da abstração e a imaginação está relacionada a ambos.

Assim como o eu, também a imaginação é reflexão: ela apresenta um reflexo do eu que é a sua possibilidade. A imaginação é a possibilidade de toda reflexão; e a intensidade desse medium é a possibilidade da intensidade do eu. A imaginação é o princípio das faculdades e a fonte das categorias, e portanto o princípio dos possíveis. Para entendermos a afirmação de Kierkegaard de que a imaginação é “a origem das categorias”, devemos ter presente que para ele o pensamento é uma atividade. Ainda que Kierkegaard critique a identificação entre sujeito e objeto operada por Fichte, assim como a atribuição à imaginação de uma função criativa transcendental, Kierkegaard concorda com Fichte que a imaginação opera na origem das categorias, incluindo as categorias a priori. No entanto, para Kierkegaard os objetos do conhecimento não são dados com as categorias. Na reflexão, o ideal e o real são colocados um contra o outro, e a imaginação auxilia na geração das categorias sintéticas a priori aplicáveis ao conhecimento contingente junto com as leis lógicas necessárias do pensamento. Este a priori é tanto um Dom quanto um presente; é umaatividadeealgoquenãoésimplesmentegeradopeloeu.NoDiáriode 2 de dezembro de 1838 Kierkegaard escreve :

O desenvolvimento dos conceitos a priori básicos é como a prece na esfera Cristã, em que teríamos com efeito o direito de acreditar que o homem se coloca da maneira mais livre e mais subjetiva em relação com o divino e contudo aprendemos (Ep. Aos Rom., 8, 26) que é o Espírito Santo que opera a prece de modo que a única prece que restaria seria a de poder rezar, ainda que, olhando mais de perto, mesmo isto tenha sido efetuado em nós – de modo que não há desenvolvimento dedutivo de conceitos, qualquer o nome que lhe demos que tenha qualquer virtude constitutiva – o homem só pode se concentrar em si mesmo e, o ato de desejá-lo, quando esta vontade não é um Dom vazio e improdutivo, corresponde a esta única prece e como ela, por sua vez, é operado em nós (Kierkegaard, 1955, p.217).

Vemos nesta passagem que se por um lado Kierkegaard relaciona a “origem das categorias” à atividade humana “da maneira mais livre e mais subjetiva”, por outro lado, no meio da atividade algo emerge independentemente da nossa vontade, isto é, “o desenvolvimento dos conceitos a priori básicos”. Assim, a atividade da imaginação dá nascimento às categorias “receptivamente”. É só quando nos concentramos nos conceitos que eles aparecem, é só categorizando que as categorias aparecem, e entretanto, o pensamento é, fundamentalmente, uma atividade do indivíduo. Mas, por outro lado, a lógica e o pensamento não são apenas convencionais, são dados.

A imaginação é ambígua: pode ser tanto uma potência que conduz à liberdade, à possibilidade de re-união do eu, assim como ao desespero, à perda da identidade.

O homem é constituído por um duplo movimento: movimento em direção ao finito e movimento em direção ao infinito. O finito é o que limita e o infinito é o que dá extensão. Quando apenas um destes movimentos se realiza, temos o desespero. O desespero consiste sempre numa falsa relação do homem consigo mesmo. É uma possibilidade ôntica do homem. O pecado é nossa maneira ordinária de ser diante de Deus; é a própria existência enquanto falta de totalidade.

Entre Deus e o homem há uma diferença absoluta, e a relação do homem com Deus deve exprimir esta diferença absoluta. Porém, quando o imaginário devora o eu, ele se perde no infinito, leva uma existência imaginária. Assim, no terreno religioso torna-se impossível para o homem relacionar-se com Deus, seu eu se dissolve numa embriaguês vazia. Por isso Kierkegaard afirma que pode parecer insuportável para um homem estar diante de Deus, porque ele não pode retornar ao seu eu, tornar-se si-mesmo. Um espírito religioso, sob o império da imaginação diria: “Compreendo que um pássaro possa viver; ele não sabe que está diante de Deus. Mas, sabê-lo sem no mesmo instante se tornar louco ou ser destruído, é insuportável!” (Kierkegaard, 1977c, p.189).

Porém, numa época de indiferença e de anonimato, de ausência de interioridade, na “época de ouro da tagarelice”, este homem, escravo da imaginação, escravo do desespero, pode alcançar sucesso e consideração e o fato de ele não possuir um eu pode perfeitamente não ser notado, já que

o eu não é dessas coisas de que o mundo faça grande caso, é com efeito, aquela de que menos curioso se é e que mais risco comporta transparecer que se tem. O pior dos perigos, a perda desse eu, pode nos passar tão desapercebido como se não existisse. Nenhuma perda é mais indiferente, mas qualquer outra, a de um braço, de uma perna, fortuna, mulher, etc., não passa desapercebida (Idem, ibidem, p.190-1).

Assim como o finito é o que limita o infinito, assim também o necessário é o que resiste ao possível. O eu, síntese de finito e infinito, existindo kata dynamis (em potência), para vir a ser (devir) tem necessidade de se refletir no medium da imaginação; e assim aparece a possibilidade infinita. O eu em potência (kata dynamis) contém tanto de possível quanto de necessidade, porque ele é ele mesmo – ele é o necessário – mas deve também tornar-se; ele é uma possibilidade.

Quando o eu se arremessa e se perde no possível, sem vínculo que o prenda à necessidade, ele se torna uma possibilidade abstrata que se debate e se esgota no possível, sem mudar de lugar, pois o necessário é justamente seu lugar. A possibilidade parece cada vez maior para o eu; cada vez mais coisas tornam-se possíveis porque nenhuma se torna real. Para tornar-se real, cada pequena possibilidade teria necessidade de um pouco de tempo. Porém, a possibilidade torna-se cada vez mais intensa, mas como possibilidade e não como realidade, porque para a realidade a intensidade consiste em que ao menos um pouco do possível se realize. Essas fantasmagorias se sucedem rapidamente, e, então, o indivíduo torna-se uma miragem a seus próprios olhos.

Desse modo, o eu carece de realidade; é o que falamos comumente quando dizemos que tal pessoa perdeu o senso da realidade. Mas, se olharmos mais de perto, veremos que o que lhe falta é sobretudo necessidade. Para Kierkegaard, a realidade é a síntese do possível e do necessário. Não é por falta de força que o eu se extravia no possível. O que lhe falta é a força de obedecer, de se inclinar diante do necessário inerente ao eu, diante disso que se deve chamar o limite da pessoa. Ele se perdeu, pois este eu abandonado à imaginação refletiu-se na possibilidade. “Ninguém pode ver-se num espelho sem conhecer-se previamente, senão não se vê, vê simplesmente um homem”. Mas, o espelho da possibilidade é extremamente enganador, pois, na possibilidade de si mesmo, o eu está ainda bem distante de ser ele mesmo, ou só o é pela metade. Trata-se então, de saber como a necessidade desse eu o determina e o precisa.

Como tudo é possível na possibilidade, podemos nos perder nela de todas as maneiras, mas sobretudo de duas maneiras. Uma se caracteriza pelo desejo, a aspiração ardente: em lugar de reconduzir a possibilidade na necessidade, corre-se atrás da possibilidade e finalmente não se pode mais encontrar o caminho de volta a si mesmo. A outra se caracteriza por uma imaginação melancólica – a esperança, o temor ou a angústia: o indivíduo, experimentando um amor melancólico, persegue uma possibilidade que o angustia e que acaba por desviá-lo de si mesmo, ele perece na angústia ou no estado no qual tinha medo de perecer (Kierkegaard, 1977c, p.196-7).

Por obra de uma geração de indivíduos desprovidos de imaginação e sentimento, de um pensamento especulativo que se desvia cada vez mais das primeiras impressões da existência, no qual os estádios da imaginação e do sentimento são ultrapassados, a vida real torna-se “uma existência de sombra”. Mas, “a evolução do espírito é fruto da atividade pessoal” ainda que seja mais cômodo, como observa Kierkegaard, “gritar que nascemos no século XIX, o século da especulação”. Encontramos na existência “apenas homens particulares”. Quando se trata da existência não convém conciliar as diferenças, unificá-las a fim de pensar, pois o método progressivo não se aplica ao fato de se existir enquanto homem. O importante na existência é que todos os momentos estejam presentes ao mesmo tempo; aí o pensamento não é em nada superior à imaginação e ao sentimento, mas está coordenado com eles (Kierkegaard, 1977b,

p.44).[4]

Esta simultaneidade existencial, que é uma tarefa, ao ser substituída pelo método científico desorganiza a vida.[5] A poesia é banida, excluída, como representante de um momento ultrapassado, pois corresponde sobretudo à imaginação. Mas, ainda que isso possa acontecer numa evolução científica, na existência, enquanto houver um homem que pretenda ter uma existência humana, ele deve guardar a poesia. Do mesmo modo, a religião não é coisa de almas infantis e da qual nos desembaraçaríamos com o passar dos anos, como pretende uma pueril superstição com relação ao pensamento. “O verdadeiro não está acima do bem e do belo, mas o verdadeiro, o bem e o belo são essencialmente parte integrante de toda existência humana e, para um existente, se conjugam não na arte de pensar mas de existir” (Kierkegaard, 1977b, p.48-9).

Enquanto a tarefa do pensamento abstrato consiste em explicar abstratamente o concreto, o pensador subjetivo tem por tarefa compreender o abstrato de modo concreto. O pensamento abstrato não leva em conta os homens concretos considerando apenas o homem puro; o pensador subjetivo compreende a abstrata condição humana no concreto, em que se é um existente particular.

De certo modo, o pensador subjetivo quando fala de um homem tomado isoladamente (unum noris, omnes) utiliza uma linguagem tão abstrata quanto a do pensador abstrato falando da pura humanidade, da subjetividade pura. Mas, este homem tomado isoladamente é um existente e a dificuldade não é escamoteada (Kierkegaard, 1977b, p.53).

Sua tarefa é compreender a si-mesmo na existência.

Imerso na existência, o pensador subjetivo deve entretanto pensar, não pode fazer abstração da existência e da sua contradição. O pensamento não o impede de habitar pessoalmente na existência. Mas, é uma tarefa extremamente árdua compreender as coisas mais opostas reunidas e se compreender como aí existindo. Kierkegaard exemplifica “a dificuldade de conseguirmos êxito em tal empresa”. Pois, basta

prestarmos atenção a nós mesmos e ao discurso dos outros. Um homem é bom, outro é hábil, ou a mesma pessoa age uma vez de acordo com o bem, a outra segundo seus cálculos; mas é difícil ver o aspecto mais sábio, o mais prático de uma coisa, e ao mesmo tempo considerá-los exclusivamente para querer o bem. Este homem ri, o outro chora, ou a mesma pessoa age de ambas as formas de acordo com o momento, mas é difícil ver ao mesmo tempo o trágico e o cômico da mesma coisa. Não é difícil pensar uma coisa e esquecer todo o resto, mas é difícil pensar uma coisa tendo presente ao espírito a coisa contrária e uni-las na existência. Não é tão difícil ter conhecido ao longo de 70 anos todas as disposições afetivas possíveis e deixar sua vida como uma amostra de todas elas, em que se pode escolher à vontade; mas é difícil possuir tal sentimento na sua riqueza e plenitude, possuindo o sentimento contrário e, mesmo quando exprimimos de modo patético um sentimento, insinuar insidiosamente o sentimento contrário e assim por diante (Idem, ibidem, p.54).

Para Kierkegaard, tornar-se sujeito implica que o homem tenha um interesse absoluto por sua própria existência e sua beatitude eterna. A subjetividade, no Post-Scriptum, ao ser identificada com o interesse infinitamente apaixonado do homem, é determinada como a condição de possibilidade da fé, o único lugar de onde ela pode nascer ou renascer. Cada um é, em potência, o Indivíduo (Enkelte): a fé deve ser adquirida por cada homem, num esforço de cada instante, numa dupla relação: de alteridade e de identidade.

É a categoria da interioridade (Inderlighed) que permite que a paixão-imaginativa do estético se transforme na paixão-imaginativa concreta do pensador subjetivo, pois é a interioridade que direciona a paixão não para um infinito externo mas para um infinito dentro do eu. O pensador subjetivo utiliza a imaginação no medium da existência, governada pela interioridade; a paixão e a interioridade são transformadas e mantidas.

A interioridade direciona a imaginação para refletir apaixonadamente nas condições da vida de uma pessoa, criando assim a imagem de uma tarefa e o desejo que leva ao ético-religioso. Neste processo, um infinito interior controlado se desenvolve, sendo apaixonadamente fundado nas condições finitas da existência deste homem. O “medium da existência”, embora em oposição ao “medium da imaginação” incorpora assim a imaginação em si mesmo. Enquanto o indivíduo do estádio ético é governado pelas exigências do universal, para a pessoa religiosa coloca-se a necessidade de uma “dialética da transformação interior” – a imaginação é desviada para um novo ideal, de uma felicidade eterna em relação a Deus e sua apropriação interior. O paradigma religioso difere do paradigma ético. Jó não pode ser um ideal ético porque o paradigma religioso é uma irregularidade. Do ponto de vista ético uma prova é impensável, pois o ético é o universalmente válido.

O modelo que Kierkegaard emprega para a luta do pensador subjetivo no medium da existência é o do artista.

A tarefa do pensador subjetivo consiste em se compreender na sua existência...e para cumprir esta tarefa ele deve usar a imaginação assim como o pensamento e o sentimento, isto é, não deve realizar a tarefa ‘cientificamente’ (especulativamente), mas, como o título do Post-Scriptum também diz, como um artista. (Thulstrup, 1980, p.377).

Existir é uma arte. O pensador subjetivo é um artista consciente da distinção entre pensamento e ser, possuindo a paixão necessária para modelar uma existência transparente à idéia, transformando eticamente em ação, através da paixão, as possibilidades imaginadas. Realiza uma obra artística, coordenando suas faculdades. A existência é rica e complexa como a arte que mantém os opostos juntos, não numa síntese mais elevada mas numa tensão criadora. O pensador subjetivo efetua uma retomada da vida sensível; com efeito, o salto pelo qual ele rompe com a imanência é totalmente oposto a uma evasão, de modo que a categoria religiosa da repetição tem um alcance não apenas ético – Abraão e Jó vivem novamente de acordo com as normas – mas também estético: a felicidade sensível.

Eis a descrição que Kierkegaard (1977d, p.132) faz do cavaleiro da fé em Temor e Tremor:

Ele faz constantemente o movimento do infinito, com tal segurança e precisão que sem cessar obtém o finito sem que se suspeite a existência de outra coisa. Imagino que, para um bailarino, o esforço mais difícil consiste em colocar-se, de um só golpe, na posição precisa, sem um segundo de hesitação. É possível que não exista um acrobata com tal habilidade e domínio: tem-na porém o meu cavaleiro. Muitos vivem dominados pelos cuidados e prazeres do mundo: assemelham-se àqueles que vão à festa sem dançar. Os cavaleiros do infinito são bailarinos a quem não falta elevação. Saltam no ar e logo voltam a cair, o que não deixa de constituir passatempo divertido e nada desagradável à vista. Mas, a cada vez que recaem não podem, logo no primeiro momento, guardar completo equilíbrio. Por instantes vacilam indecisos, o que logo mostra que são estranhos ao mundo. Tal indecisão é mais ou menos sensível conforma a sua maestria, mas nem o mais hábil consegue dissimulá-la totalmente. Inútil vê-los no ar. Basta observá-los no momento em que tocam e se firmam no solo, é então que se reconhecem. Voltar, porém, a cair de tal modo que se dê a impressão do êxtase e da marcha ao mesmo tempo; transformar em andamento normal o salto; exprimir o impulso sublime num passo terreno; eis o único prodígio de que só é capaz o cavaleiro da fé.

Ao falar do cavaleiro da fé, Kierkegaard aponta para o encontro entre a vida interior e a vida estética, mostra o jogo que se realiza entre o segredo e a manifestação. O salto do cavaleiro da fé, este salto que é a forma da liberdade, movimento simultaneamente finito e infinito, sinaliza a união entre a realidade da vida cotidiana e a arte.

ABSTRACT: The main theme of this paper is Kierkegaard´s understanding of the imagination and the structure of dialectic of imagination in aesthetic and religious dimensions.

KEYWORDS: Imagination; feeling; possibility; necessity; despair; inward-

ness; artist; subjective thinker.

Referências bibliográficas

KIERKEGAARD, S. Samlede Voerker. 3. ed. Copenhague, 1962-1964.

______. Le Concept d´Angoisse. In: ______. Oeuvres Complètes. Tradução de Paul-Henri Tisseau e Else-Marie Jacquet-Tisseau. Paris: Éditions de L´Orante, 1977a.

______. Post-Scriptum définitif et non scientifique aux miettes philosophiques. In: ______. Oeuvres Complètes. Tradução de Paul-Henri Tisseau e Else-Marie Jacquet-Tisseau. Paris: Éditions de L´Orante, 1977b.

______. La Maladie à la Mort. In: ______. Oeuvres Complètes. Tradução de Paul-Henri Tisseau e Else-Marie Jacquet-Tisseau. Paris: Éditions de L´Orante, 1977c.

KIERKEGAARD, S. Crainte et Tremblement. In: ______. Oeuvres Complètes. Tradução de Paul-Henri Tisseau e Else-Marie Jacquet-Tisseau. Paris: Éditions de L´Orante, 1977d.

______. Journal (Extraits). Tradução de Knud Ferlov e Jean Gateau. Paris: Gallimard, 1955. 5 v.

THULSTRUP, N. Kierkegaard´s Relation to Hegel. Princeton: Princeton University Press, 1980.



[1] Palestra apresentada na XXVI Jornada de Filosofia e Teoria da Ciências Humanas – a filosofia da existência e a tragédia moderna, na UNESP/Marília, em 07/11/2002.

[2] Silvia Saviano Sampaio, professora da PUC/SP, é doutora em filosofia pela USP com a tese A subjetividade existencial em Kierkegaard.

[3] “Sou novamente eu mesmo… possuo meu eu novamente. As encantações mágicas que me impediam de voltar a mim mesmo estão rompidas. Minha libertação é certa, nasci para mim mesmo”. (Kierkegaard, 1977a, p. 282-3).

[4] “Se o pensamento escarnece da imaginação, ela lhe dá o troco; assim também acontece com o sentimento. Não se trata de elevar um momento às custas de outro, mas mantê-los em equilíbrio na sua simultaneidade; o meio no qual eles se conjugam é a existência” (Idem, ibidem, p.48).

[5] “Trata-se, para o indivíduo, de melhorar, depurar o sucessivo na simultaneidade. Ter sido jovem para conhecer a velhice e enfim morrer, é uma existência medíocre, da qual o animal também possui o mérito. Mas, unir os momentos da vida na simultaneidade, eis aí a tarefa. E se a existência do homem que cortou qualquer comunicação com a infância é bem medíocre, e ele é apenas um fragmento de homem, assim também, é loucura a existência do pensador que, sendo um existente, desistiu da imaginação e do sentimento, numa loucura digna daquela na qual se perde a razão” (Idem, ibidem, p.48).