UMA IRRESSISTÍVEL VOCAÇÃO PARA CULTIVAR A PRÓPRIA PERSONALIDADE (PARTE I)
Paulo Eduardo ARANTES
RESUMO: Estudo da relação entre os judeus cultivados de Berlim (na figura de Rachel Varnhagen) e a cultura clássica alemã por meio da análise do papel nela representado pela idéia de “personalidade”, senha da ideologia dos mandarins alemães.
PALAVRAS-CHAVE: Cultura clássica alemã; Bildung; Rachel Varnhagen; personalidade; mandarins alemães.
Arrematemos as observações anteriores sobre a “lepidez ideológica” (a fórmula é de Roberto Schwarz) dos românticos alemães, fazendo remontar alguns fios de nossa meada ao salão berlinense de Rachel Varnhagen, em cuja órbita muitos daqueles “mandarins” não desdenharam gravitar, atraídos aliás por incoercível afinidade. Nos primeiros anos do oitocentos, as soirées na água-furtada de Rachel reuniam uma sociedade numerosa e disparatada: príncipes da casa reinante; ministros e diplomatas “esclarecidos” e diletantes; negociantes judeus; condes-
* Este ensaio, escrito em 1981, deveria originalmente ser o capítulo V do livro Ressentimento da dialética – Dialética e experiência intelectual em Hegel (Antigos estudos sobre o ABC da miséria alemã), São Paulo, Paz e Terra, 1996. O autor, esperando dar continuidade à pesquisa, resolveu engavetá-lo a fim de mais tarde voltar ao assunto. Como isso nunca ocorreu, os editores da revista, que de há muito sabiam da existência do texto e não se conformavam que fosse deixado à crítica roedora dos ratos, pediram autorização para publicá-lo tal como se encontrava no original. O leitor pode finalmente apreciar o elo perdido daqueles “Antigos estudos sobre o ABC da miséria alemã” e completar assim o brilhante estudo das origens da dialética na Alemanha feito pelo jovem Paulo Arantes (ND).
** Professor aposentado do Departamento de Filosofia da FFLCH da USP.
sas excêntricas e “liberadas”; gente de teatro e cantores; publicistas-ideólogos dos círculos políticos dominantes, aos quais vinha agregar-se a pequena legião dos letrados em voga: Tieck, Friedrich Schlegel, Jean-Paul, Schleiermacher, Brentano, Chamisso, etc. (Arendt, 1957, p.54-6; 1975, p.92-3). Em menor escala, esta mesma companhia sortida também tinha encontro marcado nos salões de Henriette Herz, Brendel Veit e Dorothea Mendelssohn, outras tantas damas judias a partilhar com Rachel o insólito privilégio de aglutinar, durante o breve período que antecedeu o desastre de Iena, a sociedade mais brilhante que Berlim jamais iria moldar (Arendt, 1975, p.92). Pois é nestes salões berlinenses que se condensa e irradia a “sublime insolência” dos novos intelectuais (Ayrault, 1961, p.31), como se o amálgama intelectual que lhes caracteriza a bizarria de espírito cristalizasse o insólito amálgama social que ali era a regra. Mas para tanto era preciso que no centro deles reinasse a figura exótica de um judeu de exceção. Sendo Rachel judia, toda Berlim podia bater à sua porta, que se abria para uma área externa, à margem da sociedade respeitável, terra de ninguém a caldear nobres, atores e letrados num vago e idílico caos, livre de preconceitos e convenções, e de qualquer princípio de seleção estamental (Arendt, 1957, p.30, 46-7; 1975, p.92). Some-se ainda à sedução desta sociedade heteróclita, o magnetismo natural da patronne – “sua inteligência original, inconvencional e pura, aliada ao interesse pelas pessoas e à natureza genuinamente apaixonada, fizeram dela a mais brilhante e a mais interessante das grandes damas judias” (Arendt, 1975, p.91). Tudo nela falava à imaginação dos primeiros românticos, a começar pela singular tonalidade d’alma, permeável às acrobacias do Witz, que parece ter cultivado com muita aplicação e sucesso: uma certa propensão a aproximar coisas que não costumam andar juntas e a revelar a incoerência de associações familiares, vezo incômodo que seus inimigos consideravam falta de estilo, desequilíbrio e petulante complacência no paradoxo (Arendt, 1957, p.26, 45). Na verdade, sua condição de pária de elite – e por isso mesmo desobrigado das peias da tradição – condenava-se à originalidade a todo custo: ao judeu cultivado as portas do gueto só se abriam a golpes de piruetas excêntricas. Tal era a senha da assimilação, segundo Hannah Arendt – como se há de recordar, algo análogo ao tributo pago pelo intelectual outsider. Também sua demasia raciocinante ajudava a cimentar a liga secreta de Rachel com os “literatos do asfalto” – irmanava-os o mesmo excesso “reflexivo-sentimental” condenado certa vez por Humboldt, uma certa mobilidade própria da “raciocinação”, acusada de enlanguescer a sensibilidade e evaporar o caráter, e com ele o mundo da ação, substituído por um sucedâneo cerebrino já emurchecido (Masini, 1974, p.12-3). O juízo de Hannah Arendt acerca do veio reflexivo de Rachel é em boa medida tributário desse antiintelectualismo entranhado na religião alemã da cultura: desarmada diante de uma realidade sórdida, ruminando o estigma social que um mundo adverso lhe impunha, Rachel tergiversava com os fatos, por assim dizer denegados pelo exercício descalibrado do livre pensamento, sua derradeira tábua de salvação – por esse caminho afunilado teria reduzido o imperativo ilustrado do “pensar por si mesmo” à condição de simples mania de intelectual inquiridor (Arendt, 1957, p.5-6). O grande paradigma nacional de quem julga assim tão severamente um espírito livre que fazia tudo depender da auto-reflexão é Lessing. Note-se, aliás, o quanto Hannah Arendt (1974, p.17) retrata da concepção enfática de Kultur ao definir, mais tarde, o que não é o Selbstdenken lessingueano: “o célebre ‘pensar por si mesmo’ de Lessing não é de modo algum a atividade de um indivíduo unitário, encerrado em si mesmo, amadurecido, cultivado organicamente e que, então, procura à sua volta no mundo, o lugar mais propício ao seu desenvolvimento, a fim de harmonizar, graças ao pensamento, o indivíduo e o mundo”. E no entanto, por mais que Lessing, Goethe e Humboldt tenham declarado o homem nascido para a ação, e não para a “raciocinação”, a verdade da intelligentsia alemã deve ser procurada no espírito volátil da pequena Rachel, que tanto impressionou o próprio Goethe. Umavezconvertida em mania compensatória, a promessa de emancipação contida na palavra-de-ordem iluminista torna-se um convite a pôr o mundo entre parênteses:oSelbstdenken,continuaHannahArendt (1957, p.6-7) neutraliza a força das coisas pelo sacrifício do senso comum e, assim, definha, transformando-se em introspecção, que isola e cancela qualquer demanda de ação.***1 Se assim é, não admira o fascínio exercido por esse estado de ânimo evanescente sobre intelectuais consumidos, como se viu, por uma curiosa suspensão da tese natural acerca da real seriedade do mundo. Acresce, reforçando a atração recíproca, que este eclipse da realidade sob a égide da introspecção cristaliza-se de preferência no ambiente íntimo do salão.2 Já nos referimos à ambígua complacência com que os românticos submetiam-se à doce tirania da intimidade, indissociável da não menos ambivalente desenvoltura com que evoluíam nos vários templos da sociabilidade absoluta em que se celebrava o culto por
** Neste ensaio, excepcionalmente, as notas numeradas estão no fim do texto.
assim dizer do tête-à-tête coletivo: lembremo-nos, por exemplo, de Schleiermacher compondo seus discursos sobre a Religião para maior edificação de seus contemporâneos cultivados, e por isso mesmo fazendo recair a tônica no espírito de sociedade (das Gesellige) encarnado na religião; pois este mesmo jovem pastor “reflexivo-sentimental”, aguilhoado por “incoercível necessidade de se comunicar” tomava diariamente o caminho do salão de Henriette Herz, é bem verdade que à sua hora, em que circulava desimpedido o Familiengespräch dos que porfiavam em fazer de suas vidas uma obra de arte (Ayrault, 1961, p.34)3 – aliás, a principal aspiração de Rachel. Além do mais, o lugar natural dessa efusão íntima tão ao gosto dos românticos era a conversação, outra cristalização característica da vida de salão realçada e entronizada pela mania raciocinante de Rachel. Proust observou certa vez o quanto a “ivresse de la conversation” afetava as pessoas “dont la vie est sans but” – ao mesmo tempo em que sua existência ociosa lhes afinava a acuidade perceptiva, voltada de imediato para os meandros da vida mundana. Rainha do instante, Rachel sabia cativar o interlocutor, e, no entanto, igualmente sua escrava, não se resignava a deixar partir seu vis-à-vis, pois a vida imaginária que levava carecia do bocado de realidade mascarado nas réplicas brilhantes a que induzia seu parceiro – mas tais manejos só faziam ampliar o fundo falso sobre o qual assentava seu castelo de frases e confidências. É que o sortilégio da conversação romântica consiste precisamente – acrescenta Hannah Arendt (1957, p.15-7) – na sua capacidade de exclusão da realidade, arrematando o efeito análogo produzido pelo Selbstdenken transformado em introspecção. Como se vê, uma maneira de desacreditar as manhas do intelectual romântico. Este mesmo propósito transparece em sua apreciação de Lucinde, um romance de atmosfera onde cada situação é filtrada pelo demônio da introspecção. Ora, é próprio da introspecção, insiste Hannah Arendt, aniquilar as situações reais dissolvendo-as num etéreo clima de fascinação, favorável à aura de objetividade e interesse público que passa então a nimbar os menores eventos da vida sentimental; borradas assim as fronteiras do público e do privado, tornam-se públicas as mínimas dobras da esfera íntima, enquanto os assuntos públicos só podem ser experimentados e expressos nos termos, menos arejados, da intimidade devassada – vale dizer, amesquinham-seno horizonte baixo do puro gossip (ibidem, p.16). Seria excessivo aludir à queima-roupa à aversão hegeliana pelo bavardage dos intelectuais sem caráter? Seja como for, aos olhos de Hannah Arendt, a obra de Schlegel é o complemento literário do mood peculiar que grassa nos círculos íntimos berlinenses, animados pelas grandes damas judias, com uma diferença: a integralidade do seu efeito frustrase finalmente, pois a ambiência carregada de magia a que aspira não sobrevive sem o suporte atuante de uma “personalidade”, que só se manifesta no milagre da conversação (ibidem, p.17). E voltamos assim a esbarrar num dos topoi nevrálgicos do ideário da Bildung, como veremos, logo adiante.
Os salões judeus de Berlim nada ficavam a dever aos seus congêneres: além de ambiente íntimo acompanhado de prosa afinada pelo mesmo diapasão, também contavam com a presença estimulante de uma anfitriã, cujo papel catalisador era indispensável ao tipo de simbiose social que ali se processava (cf. as características de um salão enumeradas por Tinken, apud Mannheim, 1974, p.108-9). Num ponto porém, particularmente sensível à elite de cultura local, excediam seus similares: no mundo peculiar pelo qual sublimavam o processo de ascensão social (outra função dos salões comumente salientado pela literatura especializada; cf. ibidem, p.112). Com muito senso de oportunidade ideológica, colocavam-no sob os auspícios de Goethe. Já no seu primeiro estudo biográfico, que estamos acompanhando de perto, Hannah Arendt observara o quanto a sofística da assimilação, como dizia, decalcara o modelo de “formação da personalidade”, sucedâneo que o Wilhelm Meister oferecera a um “estamento médio” tolhido em suas aspirações. Ninguém desejou tanto reproduzir a trajetória do herói goetheano, entendida – ledo engano – como assimilação do burguês sensível à nobreza, do que aqueles judeus denominados mais tarde “judeus de exceção pela cultura” (Arendt, 1957, p.28-9; 1975, p.92; Habermas, 1974, p.70).4 De fato, o culto de Goethe não nasceu por acaso no salão de Rachel Varnhagen: seu ideal de cultura e distinção vinha a calhar para burgueses e judeus à margem da boa sociedade. E da vida política. Noutra dimensão, os judeus de exceção partilhavam o destino da franja esclarecida da burguesia local, reiterando num registro mais elevado os seus mecanismos de consolo: já disse que os salões judeus de Berlim não teriam prosperado caso esses judeus de exceção não procurassem compensar sua impotência política pelo cultivo entusiasta da vida doméstica.5 Por outro lado, a boa fortuna mundana desses salões deveu-se a uma breve conjuntura histórica, sobretudo favorável à sua transformação em “centros de sociabilidade cultivada” onde o “idílico sonho recorrente de uma sociedade mesclada” parecia enfim realizar-se: neste curto período de transição, adverte Hannah Arendt (1957, p.46-7) – que estamos citando – não se pode dizer que a cultura alemã estivesse ancorada numa classe social particular, muito menos que os judeus alemães tivessem afinal logrado algum tipo de enraizamento social; assim sendo, não espanta que as soirées de Rachel, Henriette, etc., tenham conhecido um brilho tão intenso quanto efêmero, justamente na condição de zona neutra para onde convergiam os espíritos emancipados; no entanto, tão logo principia a tomar corpo o poder burguês e a despontar os primeiros sinais de uma sociedade de classe média cultivada, aqueles salões judeus declinam e desaparecem.
Em linhas gerais, a cultura do classicismo alemão foi, portanto, para os judeus de exceção, uma tábua de salvação; e vice-versa, os portadores imediatos desse nobre fardo encontravam, nos salões berlinenses das grandes damas judias, um porto seguro e uma janela aberta para o mundo. Reunidos pelo culto celebrado em comum, deixavam-se, intelectuais e seus anfitriões, medusar pelo brilho da “existência simbólica” de Goethe, no qual reconheciam, nas palavras de Simmel, “a única possibilidade de não ser um comediante e não usar uma máscara”. “Esse espírito goetheano interiorizado”, comenta Habermas (1974, p.70), “não era apenas a promessa de um caminho aberto à assimilação, mas permitia esperar uma liberação dos tormentos da assimilação, isto é, do constrangimento de representar sempre um papel sem poder conservar sua própria identidade”. Mutatis mutandis, a observação se aplica às atribulações do intelectual outsider carecido de reconhecimento social. Já aludimos à estranha vocação teatral atribuída pelo Wilhelm Meister ao espírito burguês em formação. Voltemos a ela guiados pelo estudo biográfico de Hannah Arendt. Ao contrário do que dão a entender Simmel e Habermas, o espetáculo continua para assimilados e seus satélites à procura de um lugar ao sol.6 Assim, na laboriosa reconciliação goetheana com o curso do mundo, o temperamento fantasista de Rachel Varnhagen entreviu um apelo à estetização do seu malestar permanente: no Meister, costumava dizer, Goethe convida o pobre burguês enjeitado, ao qual, no entanto, malgradosua desgraça(que o priva sobretudoda “graça”entronizadapor Schiller), repugna o suicídio wertheriano, a voltar-se para o teatro, a arte e mesmo para um ligeiro e inocente namoro com as formas do falso (Arendt, 1957, p.93). Advogando em causa própria, a pequena Rachel simplesmente punha de cabeça para baixo o elevado propósito realista de Goethe – paródia involuntária, por certo.7 Embora não fizesse praça de leituras, tudo se passa como se Rachel tivesse tomado ao pé da letra certas indicações do artigo famoso de Friedrich Schlegel, um de seus “fidèles”, sobre o romance de Goethe: no vasto teatro do mundo, cada um conta pelo que pode representar, até mesmo a “bela alma” vive teatralmente (a aproximação é ainda de Arendt, 1957, p.94; para o artigo de Schlegel, ver Schlegel, 1963, em particular p.467). Assim amparada, consta que Rachel teria chegado à maestria na arte de representar sua própria vida: neste jogo importava bem menos dizer a verdade do que o arrojo de pôr-se em cena sem pudor. De qualquer modo, podia-se ler com todas as letras no Meister a exortação consoladora: sobre as tábuas de um palco, o homem culto faz brilhar sua pessoa como se evoluísse no círculo encantado das classes superiores. Bastava armar o palco entre as quatro paredes de um salão bem iluminado – de resto freqüentado nos seus momentos de fastígio por alguns espécimes daquela nobre estirpe. Junte-se a estes últimos, por um notável concurso de circunstâncias, a companhia dos atores. Aqueles judeus “excepcionais” de Berlim (recorramos novamente a Arendt, 1957, p.46) demandavam uma terra de ninguém onde se cruzavam os caminhos de uma classe declinante e de um grupo social ainda sem estado civil definido: nobres e atores, todos refratários, como os seus anfitriões, ao tímido canto de sereia da boa sociedade burguesa em formação. Ambos, de resto, cumpriam à risca o programa de Wilhelm, patrono do burguês sensível desolado com a mesquinhez de sua origem: a rigor não faziam senão representar um papel, via de regra o seu próprio, isto é, nos termos mesmos da famigerada carta a Werner, ao contrário do burguês, mostravam o que eram desdenhando exibir o que possuíam (idem, ibidem). Enfim, Goethe não confiava justamente a atores e nobres a educação daqueles espíritos predestinados a um desenvolvimento harmônico de sua natureza, e no entanto excluídos da sociedade escolhida dos bem-aventurados cujo nascimento eleva bem acima das esferas inferiores da humanidade? Estava assim armado o cenário para a comédia mundana da “personalidade” – um conceito que o novo pensamento alemão vinha elaborando no silêncio modorrento das universidades e que conhecerá nos salões berlinenses um momento de fastígio que lhe infletirá de vez o sentido por excesso de fidelidade ao seu programa. Assinalemos de relance dois ou três passos desse itinerário.
Ao concluir a Críticadarazãoprática,Kantchamaraapersonalidade de “eu invisível” (Kant, 1960, p.173). Pode-se dizer que o curso ulterior do conceito – nele incluído sua vida social – encarregou-se de tornar visível essa instância soberana que Kant segregara no reino inteligível da lei moral. Kant, de fato, teve o cuidado de distinguir a existência profana da pessoa da realidade suprasensível que a sustenta em sua condição de fim em si mesma; somente a essa força capaz de elevar o homem acima dele mesmo convinha o conceito de personalidade (ibidem, p.91-2). Numa palavra, jamais se dirá que alguém é uma personalidade, que tal indivíduo exprime imediatamente o princípio de humanidade que nele se reflete – a começar pelos grandes deste mundo (Adorno, 1973, p.49). Sua intransigente separação da pessoa e personalidade, subordinando o teor mundano e patológico da primeira determinação à destinação superior encarnada pelo segundo princípio – o único a impor respeito e pedir veneração – enfim, sua recusa em confundir o indivíduo com o universal que o subsume, alinha Kant entre os derradeiros demolidores do ideal aristocrático – a legião dos autores modernos que arrolaram argumentos em favor do capitalismo antes do seu triunfo (estudados por Hirschman, 1979, p. ex., p.21), muito embora o ethos burguês que sua conceituação sancionava (e ultrapassava) se incumbisse, por seu turno, de deixar morrer à míngua a idéia de personalidade que encarnava o ascetismo da primeira hora. É conhecido o empenho de Schiller (sem falar em Goethe e no jovem Hegel) em quebrar o gelo desse rigorismo e fazer justiça à natureza mortificada sem no entanto romper a fronda burguesa dos intelectuais – na verdade, modificava-se apenas a estratégia imaginária da revolução passiva, se nos for consentido o curto-circuito; por assim dizer à inflexível porém impotente certeza moral do funcionário alemão, principal vítima do dever kantiano,8 pedia passagem a bela alma do primeiro servidor do duque de Weimar. Kant seqüestrara o ser bruto do indivíduo para melhor magnificar a humanidade presente em sua pessoa e realçar o espetáculo sublime da lei moral oferecido pela personalidade, ponto de fuga da liberdade e da independência em relação aos mecanismos da natureza. Só este espetáculo inspira respeito – Schiller não dirá que não, pede apenas, seguramente escarmentado por outro espetáculo, o da “virtude” enfurecida sob a ditadura jacobina, que o seu preço não seja o sacrifício dos afetos em favor da autonomia (singela utopia, aos olhos de Kant, essa inocente coreografia do dever emoldurado pelas graças). Numa palavra, ao invés de subordinação, reciprocidade e harmonia, mas para tanto era preciso que o reino invisível da personalidade descesse ao mundo da bela aparência, como sucedera aos gregos e voltará a ocorrer no futuro Estado estético – até lá, como já foi lembrado, essa fusão de pessoa e personalidade será o apanágio de alguns poucos “círculos eleitos”, integrados por indivíduos que já são de fato personalidades ou, se preferirmos, já exibem a “forma viva” de uma obra de arte.9 Está visto que esse “terceiro caráter” – a “personalidade” enfim individuada e visível – não cairá do céu (mais uma guinada e a “personalidade” poderá ser um dom “inato”), sua produção demandará um longo esforço de educação (Erziehung), ao termo do qual renascerá o símile moderno da recém exumada e prezada pelos novos humanistas Ausbildung do cidadão grego. Inútil lembrar que nas Cartas de Schiller repercutem a cada página as palavras de Humboldt (que em julho de 92 lhe comunicava o manuscrito do Ensaio sobre os limites do Estado): o verdadeiro e supremo fim do homem é o mais elevado e bem proporcionado desenvolvimento (Bildung) de suas forças, nos limites de sua peculiaridade individual, num todo harmonioso (Humboldt, 1943, p.94; 1964, p.46). Um ano depois, o mesmo Humboldt (1964a, p.101) repetia sua palavra de ordem em termos kantianos: a derradeira tarefa de nossa existência consiste em realizar “o conceito da humanidade em nossa pessoa”. Menos inútil lembrar, então, que a noção por assim dizer transcendental de personalidade (afinal Kant fizera dela uma das categorias – de relação – da liberdade) passa a nortear o ideal de cultura harmoniosa, a governar o comportamento do homem que se cultiva, numa palavra, torna-se a senha da ideologia dos mandarins, num momento, é verdade, em que a fantasia humboldteana de um sujeito universalmente desenvolvido, onde personalidade e autonomia soberana convergiam, ainda não caíra em derrisão (Adorno, 1973, p.51). No caminho mundanizara-se (na dupla acepção do termo) como se verá, sem muita violência, malgrado a rigidez do seu princípio (desumana, para o gosto de Schiller), o imperativo moral kantiano da personalidade enquanto raiz da nobre estirpe do dever, “a qual é preciso fazer derivar, como da sua origem, a condição indispensável do único valor que os homens podem atribuir a si mesmos” (Kant, 1960, p.91). Recapitulemos sublinhando o índice de classe da noção kantiana de respeito – na esperança de surpreender no seu nascedouro o vezo alemão de associar cultura e personalidade, vezo de intelectual, vê-se logo.
Só as pessoas inspiram respeito, insiste Kant, e toma como mote a sentença de Fontenelle: diante de um grande senhor, de um homem distinto (vor einem Vornehmen), meu espírito não se inclina. Em contrapartida – é a glosa de Kant – inclino-me diante da retidão de caráter de um homem de condição inferior, plebéia, diante de um simples burguês (vor einem niedrigen, bürgerlich-gemeinen Mann), pois o seu exemplo torna visível uma lei que rebaixa minha presunção – enfim, o respeito é um tributo que não posso recusar ao mérito (Verdienste) (Kant, 1960, p.81; 1966, p.125-6). Convenhamos, um atalho moral sob medida para humilhar o orgulho do aristocrata – e reconheçamos também que o respeito (um sentimento imposto pela presença da lei moral independentemente da inclinação ou da boa vontade) cabe de preferência aos filhos burgueses da cultura: veja-se o caso de Voltaire, continua Kant, o comum dos admiradores não lhe perdoa os tropeços de conduta, enquanto o verdadeiro homem instruído (Gelehrte), relevando-lhe o passo em falso, atém-se tão somente à solidez da cultura conquistada pelo trabalho pessoal, outro mérito a confundir nossa presunção – pois afinal o seu “estado”, que é uma vocação (Beruf), impõe-lhe a obrigação (com força de lei) de imitar o exemplo daquele homem de mérito (Kant, 1960, p.82). A exceção é de monta mas não chega a surpreender; pensando bem, a moralidade inerente à cultura (proclamada por Kant, como se viu em capítulo anterior, no ensaio de 1784 sobre a idéia de história universal) suplanta as eventuais escoriações de nossa natureza pouco santa, sobretudo quando se tem em vista o confronto maior com a moralidade de fachada das classes civilizadas do Antigo Regime, e o cerco que então lhe movia a intelligentsia burguesa. Sabe-se (notadamente a partir das análises de Norbert Elias) o quanto as palavras de ordem Bildung e Kultur contribuíram para a cristalização dos intelectuais alemães enquanto camada social à parte, auto-legitimada pela crescente porém instável consideração carreada pelo seu virtuosismo nas coisas do espírito. A noção-fetiche de “personalidade” cumpria uma análoga função aglutinadora. Também aludimos mais de uma vez ao modo pelo qual encareciam os “mandarins”, um pouco à maneira dos antigos, os efeitos da cultura superior quando esta refluía sobre o caráter e a personalidade de seus portadores. Mais uma vez, um trecho de Humboldt vale por um programa: “quando em nossa língua dizemos Bildung, nos referimos a algo mais elevado e mais interior, ao modo de perceber que deriva do conhecimento e do sentimento de toda vida espiritual e ética, e se espraia harmoniosamente sobre a sensibilidade e o caráter” (apud Gadamer, 1977, p.39). Cultivar a própria personalidade, eis a fórmula imperativa que melhor resume este programa, com tanto mais força quanto o termo já prestigioso de “personalidade” designa uma vaga nebulosa composta de convicção pessoal, vida interior intensa, profundidade de pensamento e tudo mais capaz de indicar uma tonalidade d’alma até então desconhecida no repertório espiritual moderno. Não por acaso Kant reservara ao termo um lugar decisivo em sua moral, ao mesmo tempo em que contrapunha à “civilização” dos donos da vida a humanidade presente na pessoa dos intelectuais: assim, malgrado a peculiaridade já assinalada de sua conceituação, prepara o caminho trilhado pelos “mandarins” no rumo da identificação altamente compensadora entre “homem culto” e “personalidade”.
Voltemos a ele retomando o fio de nossa presente meada no momento em que Wilhelm Meister, pondo de lado suas simpatias nobiliárias, toma a defesa de sua troupe escorraçada do castelo. Verberando a conduta dos grandes (die Vornehmen), pautada pela consideração exclusiva das marcas exteriores da distinção (que são, aliás, as da civilização epidérmica conjurada por Kant em nome da verdade interior expressa pela cultura) e, evidentemente, em detrimento do homem de mérito (der Mann von Verdienst), preterição tanto mais odiosa quanto sobressai neste último o valor de uma humanidade (ou personalidade, como prefere o tradutor francês) bem dotada pela natureza (Goethe, 1954, p.560; 1923, vol. II, p.206). Numa palavra, não é bem honra (prurido gótico) ao mérito o que pede, mas o reconhecimento social do respeito que o homem de mérito irradia: enfim, respeitabilidade burguesa sancionada por argumentos kantianos em prol da cultura, embora ao preço de uma naturalização da “personalidade” confundida com a realidade imediata, e idiossincrática, do indivíduo. Em contrapartida, espiritualizava-se a base natural do indivíduo ungido pela vocação do saber; pois na verdade cabe à “bela alma” do “mandarim” a iniciativa (programática em Schiller, infusa em Goethe) de abrandar o jugo do imperativo categórico: “o homem verdadeiramente culto nunca suprime a sua natureza sensível, mesmo nas manifestações mais elevadas da sua natureza espiritual (...). Os próprios impulsos já devem ser nobres e a severa razão moral deve, de outro lado, manifestar-se de forma sensível e delicada” (Rosenfeld, 1963, p.20). Além do mais, é este mesmo “homem verdadeiramente culto” que, contrariando de novo o rigorismo kantiano do qual no entanto se beneficiou na sua permanente guerrilha contra a sociedade de corte, nas palavras de Schiller, passa a exigir do mérito a bela aparência (auch Schein von Verdienste) e da verdade interior, a forma agradável (Schiller, 1963, p.126; 1943, p.332). Já conhecemos o desfecho dessa aspiração de compromisso: o triunfo burguês da personalidade será colhido em meio aos despojos do campo adverso, a humanitas perseguida pelo letrado possuído pelo demônio da formação harmoniosa (“jenen harmonischen Ausbildund meiner Natur”, obsessivamente alegada pelo bisonho esnobismo de Wilhelm Meister) refugiou-se, nessa hora indecisa de transição, no alvo recorrente do rancor burguês, na desenvoltura do aristocrata cujo poder começa a declinar. Conhecemos também os termos e a cor local desse compromisso entre o velho e o novo, o morto e o vivo: num país, como já se disse, em que durante muito tempo, mesmo depois de soada a hora do Capital, as malhas da rede civilizatória, isto é, do aburguesamento, não estiveram tão cerradas como nos outros países ocidentais – num país assim conformado não surpreende que seus ideólogos, a começar pelos do “período artístico”, tenham procurado conjugar, no âmbito mais etéreo das cogitações humanistas, beleza e moralidade, harmonia de gestos e autonomia, belo convívio e auto-determinação, distinção de maneiras e dever, etc. Dessa utópica convergência de Cultura e Civilização fala sem rodeios a carta ao cunhado no Meister, ou melhor, dela trata mediante um tortuoso rodeio. Recapitulemos: o nascimento burguês confisca ao mérito a dádiva da personalidade; ora, esta, para Wilhelm, que a persegue por merecê-la, é tudo, enquanto o nobre, bem nascido e “distinto” por vocação, cultiva-a como respira, além de assimilar por inteiro, e por razões de classe (afinal é uma pessoa pública que pode e deve aparecer, ao passo que o burguês torna-se ridículo e absurdo toda vez que procura fazer valer e aparecer sua equívoca “personalidade”), um traço prestigioso do ethos burguês e posto na ordem do dia justamente para melhor rebaixar os méritos postiços do honnête homme: tudo concorria para marcar a desfeita, a começar – agora no plano mais rarefeito das idéias gerais – pelo “eu invisível” concebido por Kant, que teimava em vir ao mundo apenas na figurativa “personalidade” harmoniosa do aristocrata.
Ao aflorar na filosofia de Kant, para em seguida ressurgir na prosa e na poesia de Goethe, daí emigrando para os ensaios estéticos de Schiller depois de inspirar os escritos político-pedagógicos de Humboldt, esgalhando-se enfim pelos meandros da Ideologia Alemã, a noção de personalidade, e as demais representações afins por ela imantadas, carregava consigo o peso de uma tradição prestigiosa: o ideal renascentista do homem harmonioso, herdado por ingleses e franceses ilustrados e finalmente posto em sistema pelos neo-humanistas alemães – numa palavra, o ponto de honra dos vários ciclos da intelligentsia européia moderna. Não estranha, em conseqüência, que esta última apresentasse a pedra de toque de seu ideário como a expressão direta de sua própria natureza; tarefa ingrata, como estamos vendo no caso alemão, pois nem sempre cultura e personalidade andaram juntas, separadas inclusive e principalmente por diferençasdeclassesocial.Aspiraçãotantomaislongínquaquantomodificaram-se para pior os pressupostos daquele ideal. Os heróis renascentistas da cultura eram tudo menos burgueses limitados, costumava lembrar Engels, acrescentando: a universalidade deles ao mesmo tempo em que assentava sobre o novo impulso das forças produtivas beneficiava-se de seu escasso desenvolvimento e correlata divisão do trabalho, cujos efeitos funestos logo se fizeram sentir nas gerações seguintes, afligidas por um permanente mal-estar na civilização (Lukács, 1966, p.113; 1966a, p.37-8). Durante algum tempo acreditou-se que o novo curso do mundo deixava ao alcance da mão a bela humanidade dos antigos. Colossal ilusão, diria Marx, que a Revolução Francesa se encarregaria de desfazer, mostrando aos melhores espíritos que o capitalismo tira com uma mão o que concede com a outra. Em razoável medida, a religião alemã da cultura não foi mais do que a ruminação intermitente de tamanho desengano. Seus primeiros pontífices podiam ainda observar a olho nu as antinomias do progresso, que aliás difundia-se de modo desigual em meio à inércia nacional, horizonte a um tempo acanhado e privilegiado desse mesmo observatório: a cada volta do parafuso do progresso, a civilização capitalista desmentia as promessas da cultura burguesa geradas em seu seio – e a principal delas concernia o aperfeiçoamento máximo da personalidade que o livre desdobramento das faculdades humanas propiciado pelo ilimitado desenvolvimento das forças produtivas parecia anunciar, e entravar. Promessa, de resto, subscrita por Kant, ao reconhecer no desenvolvimento de todas as suas disposições o fim supremo da humanidade (Kant, Idéia de uma História Universal, apud Adorno 1973a, p.28). Em carta a Zelter, já no “fim do período artístico” da Ideologia Alemã, Goethe dava a medida desse desencontro entre civilização e cultura, ao mesmo tempo em que ditava o tom – por exemplo, o contraponto entre quantidade e qualidade – do anticapitalismo das gerações vindouras de “mandarins”:
riqueza e velocidade, é isto o que o mundo admira e a que todo mundo aspira. Estradas de ferro, correios rápidos, barcos a vapor e todas as facilidades possíveis da comunicação, eis o alvo do mundo civilizado, ao qual ele se dirige para se super-civilizar e assim persistir na mediocridade (...). De fato, estamos no século dos cérebros capazes, dos homens práticos que compreendem rápido e que, dotados de uma certa agilidade, apercebem-se de toda sua superioridade sobre a massa, mesmo se os seus dons não se elevam até o nível supremo. Aferremo-nos, na medida do possível, ao estado de espírito no qual nos formamos; com alguns poucos mais, talvez, seremos os últimos de uma época que tão cedo não voltará (apud Benjamin, 1979, p.21-2).10
E no entanto, o espírito cuja asfixia deplora e no qual se plasmara sua personalidade ameaçada pelo progresso, vem a ser o do capitalismo. Mais precisamente, o da burguesia alemã de velha cepa patrícia, repassado de cultura, urbanidade e senso do dever – já de há muito agonizante quando Thomas Mann saiu a campo no intuito de passá-lo a limpo, escorado na certeza goetheana de que o espírito é de origem burguesa. O mesmo Thomas Mann, então empenhadíssimo em exibir o caráter alemão dessa afinidade histórica entre burguesia e cultura superior, chegou a sustentar que a própria noção de personalidade ganhou seu primeiro impulso na próspera Alemanha das cidades hanseáticas (Mann, 1975, p.104). De fato, não custa lembrar que a cristalização do indivíduo é contemporânea da moderna economia de mercado; já não é assim tão desnecessário reparar, entretanto, que a individualidade definha até a extinção – pelo menos na forma histórica em que veio ao mundo – à medida em que vai se firmando o reino do individualismo burguês;11 pois é nesse intervalo que prospera a ideologia da personalidade.
O ideário clássico da Bildung, do qual aquela é parte constitutiva, tem a idade da finada era liberal do capitalismo, que por seu turno baliza a quadratura do círculo excogitada pelos novos humanistas: renovar no limiar do ciclo concorrencial do capital a “bela individualidade ética” dos gregos; daí o caráter simbólico da “personalidade” de Goethe, anacrônico “espírito grego”, no dizer de Schiller, atestando a presença – é certo, de segunda mão, refletida e construída – de um poeta “ingênuo” numa época “sentimental”, era uma garantia viva de que a almejada “harmonia rica de espírito de uma cultura consumada”, graças à qual chegaria ao fim a divisão da humanidade, não era apenas um voto piedoso (Szondi, 1975). Tudo naquela doutrina clássica, deixando à mostra esse precário ajustamento recíproco de capitalismo concorrencial e emancipação da individualidade, desaguava numa tácita exortação: para alcançar a humanidade entranhada em sua pessoa, era preciso que o sujeito moderno pusesse sua alma à prova, em suma, não há cultura sem alienação, para formularmos de vez a questão nos termos do capítulo famoso da Fenomenologia do espírito. Nestes termos pensa seguramente Adorno ao afirmar que a “personalidade” não se reduz, em Humboldt, “ao simples culto do indivíduo, que precisaria ser regado como uma planta para florescer”, pelo contrário, “o sujeito não chega a si mesmo cultivando narcisisticamente o próprio ser para-si, mas apenas pelo caminho do estranhamento, abandonando-se àquilo que ele não é” (Adorno, 1973, p.51-2). Goethe não diria que não – mesmo porque, como é sabido, a odisséia da consciência hegeliana está calcada nas desventuras bem sucedidas de seu herói, o qual, como Saul, saindo à procura das mulas de seu pai, encontrou um reino; não obstante, Goethe faz o inexperiente Meister hesitar diante da estrada real palmilhada pela nova classe, incerto quanto ao desfecho desse drama civilizatório em que o preço da universalidade em construção é a mutilação presente: “de que me serve fabricar bom ferro, se meu ser interior está cheio de escórias”, pergunta ao cunhado que acabara de lhe descrever os prazeres sem jaça da vida burguesa, “de que me serve administrar uma grande propriedade”, insiste, “quando estou em desacordo comigo mesmo?” Numa palavra, o antigo ideal da personalidade harmoniosa exumado pela nascente cultura burguesa descarrilava tão logo a nova ordem social entrava nos trilhos (a exposição deste conflito é tema recorrente nos estudos de Lukács sobre a Era de Goethe): ainda não funcionava a todo vapor e a “engenhosa engrenagem”, como dizia Schiller, já separava o gozo do trabalho, o meio, da finalidade, o esforço, da recompensa, em suma, em todas as linhas inibia no homem a “harmonia do seu ser”, emperrava o desdobramento da humanidade em sua natureza (Schiller, 1963, p.48). Ora, nem sempre se pensou assim – o conflito assinalado não é de mão única. Não foram poucos nem desimportantes os autores (cuja envergadura excluía a apologética trivial) arrolados e estudados por Albert Hirschmann que, durante os séculos XVII e XVIII, bem antes, portanto, do triunfo completo do capitalismo, louvavam o impacto cultural do doux commerce:12 “esperava-se e supunha-se precisamente que o capitalismo reprimisse certos impulsos e inclinações, moldando uma personalidade humana menos multifacetada, menos imprevisível e mais unidimensional (...). Em suma, supunha-se que o capitalismo realizaria exatamente aquilo que logo mais seria denunciado como seu pior aspecto” (Hirschman, 1979, p.125). Voto piedoso ou não, de qualquer modo uma arma poderosa voltada contra a hegemonia do ethos aristocrático: ao longo daquele período de transição ainda sobravam razões para tê-lo na conta de repositório de inquietantes paixões daninhas e predatórias cuja ameaça carecia de ser conjurada; cabia então celebrar um sistema social que realçava as dimensões mais sombrias da “personalidade humana integral” em favor do inocente amor do ganho. Reprimindo-se até à atrofia as virtudes heróicas, e com elas o cortejo dos “apaixonados passatempos e selvagens façanhas da aristocracia” (cuja assustadora remanescência Veblen entreviu nos traços mais regressivos das modernas classes ociosas e dominantes), contrariava-se, é certo, a manifestação desimpedida e pluridimensional da personalidade, porém, não é menos certo, abria-se a carreira àquela formação equilibrada e bem proporcionada que o herdeiro de uma família de negociantes, o nosso Wilhelm Meister, timbrava em perseguir fora de sua classe. Detenhamo-nos mais uma vez nessa curiosa inversão de papéis, glosando um pouco a história contada por Hirschmann. Repare-se, então, o quanto burguesia e sociedade de corte plasmada pelo absolutismo convergiam nessa disciplina das pulsões. Basta mencionar, a propósito, o significado original daquela douceur inerente à generalização do comércio, onde cálculo e interesse parecem exigir, e finalmente confundir-se, com aquela gentileza de maneiras que a etiqueta áulica vinha apurando e difundindo há algum tempo. Montesquieu não foi o único a sustentar que o comércio abranda e dá polimento às maneiras dos homens, chegando mesmo a estabelecer uma regra geral: “onde quer que os costumes sejam polidos existe o comércio; e onde quer que exista o comércio, os costumes são polidos”. A expressão the polished nations passou a designar, por volta da segunda metade do século XVIII, por oposição às “rudes e bárbaras”, aqueles países da Europa Ocidental cuja riqueza provinha em larga medida da expansão do comércio. São outros tantos indícios, arremata Hirschmann, referindo-se, nas palavras de um livro destinado aos homens de negócio do século XVII, a “essa contínua troca de todos os confortos da vida que constitui o comércio”, e que sugerem “doçura, maciez, calma e gentileza”, enfim, o contrário da violência, fixando, assim, a imagem do comerciante inofensivo e pacífico – todos eles a atestar, portanto,
o significado não-comercial de commerce: além de intercâmbio comercial propriamente dito, a palavra desde muito denotava conversação animada e contínua, assim como outras formas de intercâmbio social polido e de relacionamento entre pessoas (freqüentemente entre duas pessoas de sexo oposto) (...). Assim, o termo carregou para a sua carreira ‘comercial’ uma carga de significado que denotava polidez, maneiras polidas e comportamento socialmente útil em geral (idem, p.53, 60-1).
Dessa mesma sobrecarga de sentido dá testemunho um incidente de tradução livre, o que nos põe de novo na pista do Meister: de olho na bela condessa, Wilhelm, não ousando confessar-se, racionaliza, isto é, ofuscado pela desenvoltura das maneiras aristocráticas (uma sedutora combinação de “Sicherheit, Bequemlichkeit und Anmut”), deixa-se embair – pela lisongeira consideração das vantagens espirituais que lhe traria um “conhecimento mais próximo” do mundo das pessoas distintas e ricas – ora, não por acaso a versão francesa interpretou “nähen Kenntnis” como um “commerce plus intime” (Goethe, 1954, p.506; 1923, p.150). Nada mais justo do que o emprego de tal fórmula encantatória – à qual falta apenas o epíteto doux para melhor trair o segredo de Wilhelm – da parte do filho legítimo de tradicional estirpe de comerciantes. Por outro lado, alertados pela moral da história narrada por Hirschmann, podemos fazer justiça à carta do cunhado Werner, “tão bem escrita, tão judiciosa e sabiamente pensada”: de fato, em sua entusiasta profissão de fé nas virtudes do comércio, afinal um convite bisonho a cultivar o próprio jardim e a entregar-se sem remorsos à calma paixão do ganho, ecoam ainda aquelas razões clássicas alegadas em favor da personalidade “unidimensional” capaz de sobrepor-se à desmesura da personalidade dos bem nascidos. Daí os escrúpulos que assaltam a alma sensível de Wilhelm dividida entre dois mundos, de resto permeáveis um ao outro, como demonstrará, não sem recurso à utopia, o desfecho prosaico do romance: de um lado o gosto da indústria, do ganho e da propriedade; do outro, o desejo de “desenvolver e aperfeiçoar suas disposições corporais para o bem e o belo”. Assim oscilantes, suas idéias alternam sobriedade burguesa e fantasia boêmia: sua vocação teatral, por exemplo, único refúgio do homem culto porém plebeu, brota-lhe do fundo d’alma mercê de um nobre e puro impulso, ou é balda de um espírito inquieto e desregrado, seduzido pela fronda anti-burguesa da vida de artista? O idílio burguês-alemão decantado por Werner não o atrai, é certo, porém faz vibrar alguma corda oculta de sua existência comedida, sem o que explica-se mal a violência do “secreto espírito de contradição que o empurra para o lado oposto” (Goethe, 1954, livro 4, cap.19 e livro V, cap.2) – como veremos, um traço do próprio caráter goetheano e uma das chaves da dialética negativa, a um tempo símile e matéria preformada dela.
Esquematizemos um pouco a encruzilhada em que se encontra Wilhelm Meister no afã de escoimar sua vida interior das escórias que ali se acumulavam em virtude, como ele mesmo dizia, da própria constituição da sociedade: pode-se dizer, repetimos, que o prosaico herói goetheano via-se a braços com os efeitos desencontrados daquela mudança de rumo, assinalada por Hirschmann, no destino da aspiração burguesa à personalidade bem formada – naquele ponto de inflexão, ilustrado pela correspondência de Werner e Wilhelm, o ideal antigo da humanidade íntegra parecia escapar a ambas as classes para voltar a se apresentar num singular entrecruzamento delas. Acresce que um letrado alemão da virada do século não carecia do morno espetáculo da Europa restaurada para convencer-se de que as forças produtivas liberadas pela nova ordem burguesa não caminhavam propriamente ao encontro daquela aspiração; bastava olhar à sua volta, para a pasmaceira em que cochilava sua classe; por outro lado, todo leitor cultivado do Werther sabia por experiência própria que nem sempre a combalida aristocracia alemã favorecera o livre jogo das faculdades humanas. Como ficamos, então, sobretudo quando nos sentimos chamados para “exercer uma ação numa esfera mais vasta”? Conhecemos a alternativa de Goethe – que foi também a de Schiller e a dos demais clássicos, filósofos incluídos –, a utopia de uma fusão entre intelectuais avançados, burgueses esclarecidos e aristocratas dispostos a renunciar aos seus privilégios feudais, estilização (de) intelectual da modernização conservadora trilhada pela “via prussiana” rumo ao capitalismo. Só nessa “torre” assentada sobre tal amálgama poderia o sujeito, cujo princípio de individuação é a economia de mercado, lograr afinal a cristalização de sua personalidade, para o que era indispensável o “belo convívio”, ou o “doce comércio”, com uma nobreza por assim dizer em fim de mandato. Nesse estreito círculo dos eleitos encontra-se afinal o lugar geométrico da famigerada “personalidade”, quadratura do círculo perseguida pela cultura burguesa cujo ponto de fuga, entretanto, é apanágio de uma classe poupada pela divisão capitalista do trabalho. Em tal “ilha” bafejada pela bem-aventurança da reconciliação entre espírito e sociedade, a noçãotalismã de “personalidade” circularia livremente entre as classes, coordenadas pelo imperativo livremente consentido da Revolução sem revolução. Assim sendo, no campo minado, ou fecundado, pelo “atraso”, nobres herdam antigas aspirações burguesas, enquanto intelectuais burgueses deixam-se siderar pelo espetáculo bifronte dessa simbiose. Quando Wilhelm Meister – ainda ele – dá asas à fantasia e se entrega ao doce embalo de seu ideal de suprema elegância e cultura, certo de que o “comércio mais íntimo” com os grandes deste mundo provocaria uma súbita e concomitante iluminação dos meandros da vida de espírito e do curso do mundo, não é tanto a presa fácil de sua mal disfarçada racionalização de esnobe aprendiz, quanto a vítima clarividente dessa comédia de erros, para a qual, entretanto, não faltavam razões de acerto e oportunidade histórica. Lembrando tais circunstâncias, estamos repassando pela enésima vez o lugar natural de nossas conjecturas acerca do renascimento moderno da dialética. Recapitulemos – pedindo ao leitor paciência – com a ajuda das considerações de Adorno, já evocadas, acerca do equilíbrio paradoxal entre absolutismo e liberalismo, perceptível na consagração goetheana do “tacto”, derradeiro refúgio do “doce comércio” entre os homens alienados. Repete-se o mesmo equilíbrio no caso da “personalidade”, da qual, aliás, o “tacto” é o indício mais seguro. A inversão de valores e atores sociais, mencionada há pouco, deve-se igualmente àquela simbiose característica de capitalismo incipiente e resíduos pré-capitalistas: virtudes burguesas – em cujo rol avulta, está visto, a “personalidade” – apresentam-se, assim, nos primórdios da idade liberal, como a derradeira manifestação de virtudes aristocráticas, num momento em que declinava a hegemonia da antiga classe fundamental. Curioso entrecruzamento, se é fato que as coisas tenham se passado realmente assim, a saber: o melhor da cultura burguesa foi sacrificado pela própria burguesia – no caso, o momento de harmonia presente na idéia de personalidade – e no entanto sua tradição, embora comprometido pela raiz, não parece constituir o legado humanista de uma nova classe, mas sobreviver no ethos anacrônico de um estamento senhorial em extinção, e que outrora hostilizara aqueles mesmos valores que agora encarna como se fossem relíquias do seu próprio passado de classe (Vacatello, 1972, p.80).13 Seja como for, estava armado um quebra-cabeça ideológico altamente favorável às aspirações de reconhecimento social e influência alimentadas pela intelligentsia alemã, utopia de “mandarim” que, trocada em miúdos, poderia ser condensada por uma fórmula algo filistina: a burguesia entraria com a “cultura”, a nobreza com a “personalidade” e o intelectual colheria o fruto maduro da “personalidade cultivada”. Tirante a brutalidade do cálculo sumário, por conta da esquematização inerente a estes apanhados panorâmicos, voltamos a esbarrar no mesmo resultado, por pouco que consideremos as origens “intelectuais” daquelas duas noções-fetiche, agora do ângulo da sua transplantação, fenômeno capital na evolução de conjunto da Ideologia Alemã, como se viu ao depararmos a opinião lábil dos românticos, à qual retornamos tão logo retomemos o caminho de volta ao salão de Rachel Varnhagen.
Não faltou quem visse o dedo de Rousseau na oposição entre Cultura e Civilização orquestrada por Kant. Holborn (1978, p.345), por exemplo: foi
a crítica de Rousseau aos elementos perniciosos da civilização que levou Kant à sua redefinição. Arte e Ciência fariam parte da Kultur, enquanto a conformidade aos costumes sociais atenderia aos reclamos da mera civilização. A moralidade também pertenceria à civilização na medida em que almejasse apenas a decência de fachada, e Kant queixava-se que nas atuais condições políticas o desenvolvimento de uma elevada moralidade encontrava-se em grande parte tolhido. Esta moralidade superior, que não demandava gratificação ou honra mas consistia exclusivamente em convicção pessoal, constituía para Kant o coração da Kultur.
Inútil chamar a atenção para a marca deixada pela leitura de Rousseau na obra de Kant: ainda voltaremos a ela ao estudarmos alguns aspectos da gênese do Idealismo implicado nas idas e vindas da importação de idéias à sombra do desenvolvimento desigual. A ascendência ideológica será tanto mais surpreendente nos seus efeitos quanto o mimetismo de base nesses transplantes não será chapado. Assim, a antítese em que se exprime a oposição de uma camada da burguesia alemã que fazia praça exclusivamente de seus feitos artísticos e científicos, teria sido induzida, é certo, por um intelectual estrangeiro (aliás estamos em seu próprio ninho), que alardeava porém um escandaloso e paradoxal desprezo pelo progresso das artes e das ciências. É verdade que desde o seu Discurso inaugural a obra de Rousseau, e em particular o seu anti-intelectualismo de intelectual, foi um permanente convite ao equívoco, o qual, aliás, parece vitimar a alegação de influência citada acima. Com efeito, o referido par antitético inexiste em Rousseau, que não só deixou de batizar o alvo de suas críticas como nele incluiu a cultura da intelligentsia européia mais avançada. Além do mais, Rousseau, como é sabido, erigiu o seu paradoxo de intelectual em argumento maior contra o século.14 Ora, nisto acompanhando os seus confrades franceses e ingleses, os letrados alemães tomaram o ataque de Rousseau à cultura ao pé da letra, como uma profissão de fé primitivista: impaciente diante do conflito que dilacera os tempos modernos, Rousseau, dizia Schiller, prefere antes ver a humanidade “retornar à uniformidade pobre de espírito do seu estado primitivo” do que contribuir com esforço redobrado na edificação paciente da “harmonia rica de espírito (geistreichen Harmonie) de uma cultura (Bildung) consumada onde esse conflito cessaria” (Schiller, 1947, p.163) – enfim, sua sensibilidade apaixonada e indolente não confiava na redenção pela Cultura, e por isso mesmo o apartava inexplicavelmente da sociedade das gens de lettres. Neste ponto mais explícito, Fichte, examinando a “contradição” de Rousseau, toma abertamente o partido da intelligentsia:
pus a destinação do homem no avanço constante da cultura e no desenvolvimento uniformemente continuado de todas as suas disposições e carências; e atribuí à classe que tem de velar pelo avanço e a uniformidade desse desenvolvimento um lugar muito honroso na sociedade humana. Ninguém contradisse essa verdade com mais determinação, por motivos mais aparentes e com mais forte eloquência do que Rousseau. Para ele o progresso da cultura é a única causa de toda corrupção humana. A seu ver não há salvação para o homem a não ser no estado de natureza: e – o que então se segue com inteira correção dentro de seus princípios – aquela classe que mais propicia o avanço da cultura, a classe dos doutos, é a seu ver tanto a fonte quanto o centro de toda miséria e corrupção humanas (Fichte, 1970, p.9-10).15
Note-se que a destinação do homem definida por Fichte neste trecho nada mais é do que o imperativo humanista do livre desenvolvimento da “personalidade”, acrescido de um suplemento capital: cabe à “classe dos doutos” velar pela realização deste fim supremo da humanidade, cabe-lhe portanto, declara-o Fichte com todas as letras, um “lugar muito honroso na sociedade humana”. Já nos referimos à ênfase singular com que Fichte acentua a “missão” do homem de cultura, e a ele voltaremos seguidamente pois se encontra no âmago da ideologia dos mandarins alemães – por ora basta sublinhar o vínculo imediato estabelecido pelo filósofo entre os dois termos de nossas atuais conjecturas, “personalidade” e “intelligentsia”, cuja afinidade àquela altura parecialhe natural. Ora, aos olhos dos novos humanistas alemães Rousseau não parecia ter a questão do homem harmonioso na devida conta: no ideal de humanidade que construíra, nota Schiller, a necessidade de “equilíbrio físico” primava sobre a “harmonia moral” das faculdades; Fichte, por seu turno, também batia na tecla da indolência do “homem natural” e a conseqüente atrofia da sensibilidade e da razão. Além do que, agravando ainda mais o desencontro, Rousseau fustigava o reconhecimento social pelo qual suspirava a “classe dos doutos”, ao atribuir os males da civilização justamente à sede de nomeada e distinção que lhes consumia o amor-próprio.16 Assim sendo, sobram razões para recusar a presença de Rousseau na origem da oposição sistemática entre Cultura e Civilização, graças à qual cristalizou-se a identidade social dos futuros mandarins. Quando muito ela é longínqua e indireta. Não está excluído por exemplo, que a idéia de autonomia que, desde os tempos de Kant, impregna o ideário da Kultur e lhe assegura uma atmosfera de oposição radical ao curso filistino do mundo, deva alguma coisa a Rousseau, mas ao Rousseau político passado pelo crivo da “miséria alemã”: em linha gerais, pode-se dizer que a concepção democrática da liberdade enquanto auto-determinação coletiva volatilizou-se na política kantiana, atrelada ao programa da “revolução passiva”, para refugiar-se, alterados seus pressupostos, na doutrina do dever expressa no imperativo categórico;17 daí à incompatibilidade entre as formas da heteronomia e a esfera superior da cultura encarnada em sua espiritualidade desinteressada pelo devente kantiano, vai um pequeno passo que podemos dar sem muita violência, afinal o juízo de gosto em que se enuncia nossa destinação supra-sensível, desenvolve-se em primeiro lugar no homem que sabe cultivar harmoniosamente o livre jogo de suas faculdades – e por isso mesmo exigimos de todos o que presumimos existir apenas no homem culto, o senso do belo e do sublime. Em sua “fuga da miséria rasteira para a miséria arrebatada”, o letrado alemão, sobre o qual repercutira fundo o democratismo de Rousseau, podia, assim, acompanhar na obra de Kant a evaporação sistemática daquelas idéias radicais de autonomia e pacto originário de livre associação, as quais, por decantações sucessivas, sedimentaram-se finalmente na utopia estética da terceira Crítica; dessa trajetória no “atraso” são indícios seguros certas observações ditadas exclusivamente pelo tirocínio do historiadorda filosofia,como a seguinte:a beleza,emKant, ainda não é promessa de felicidade mas, símbolo da moralidade, resume o “ ‘mito’ de uma sociedade onde cada um, alienando-se totalmente nos outros, se despojaria da alteridade patológica que o separa de si mesmo” – em suma, as promessas do Contrato tomam corpo afinal, não nas instituições da sociedade política, mas na igreja invisível delineada pela comunidade estética comentada pelo juízo de gosto (Lebrun, 1970, p.306). Noutras palavras, o programa de Schiller, que justamente, numa passagem famosa, convidava Rousseau a submeter-se, resignado, aos “males da cultura”, exortando-o em seguida a viver “livre em meio à servidão” (Schiller, 1947, p.95). Por assim dizer os imperativos da “miséria alemã” iam ao encontro da desolação final de Rousseau, redobrando sua “imigração interior”. E o que mais atraía em Rousseau era precisamente o radicalismo de sua recusa do século. Que o democratismo rousseauniano tenha sido bem acolhido pela impotência política do homem culto alemão, é outro efeito singular da diferença de fuso histórico já assinalado por Norbert Elias (1973, p.68):
Rousseau foi quem atacou com mais violência a ordem estabelecida do seu tempo, e é por essa mesma razão que sua influência direta sobre o movimento de reforma dos intelectuais franceses de origem burguesa ou nobre foi muito menor do que deixaria supor o eco que encontrou junto aos intelectuais alemães, burgueses apolíticos porém intelectualmente mais radicais.
(Como se vê, aos poucos vamos nos aproximando do “radicalismo da teoria alemã”, de que falava também o jovem Marx). Repercussão arrevesada, como se viu. Em contrapartida, o outro pólo do par antitético descende em linha direta do arsenal dos intelectuais reformadores franceses – ascendência burguesa inequívoca, portanto. Um dos primeiros testemunhos literários da cristalização do termo “civilização” encontra-se, segundo Norbert Elias, numa passagem de Mirabeau pai dirigida contra as boas maneiras da aristocracia da corte, na qual, em poucas palavras, contrapõe ao ethos nobre do homem civilizado a virtude do homem simples.18 Kant transpõe esse esquema, tornando contudo tanto mais inapelável o conflito que ele resume quanto maior é a distância que separa na Alemanha o “terceiro estado” das camadas dirigentes: enquanto na França a promiscuidade maior entre as classes superiores, devidamente orquestrada pelos fisiocratas, permitia augurar o fim próximo da “fausse civilisation”, vale dizer a contaminação recíproca de virtude e civilidade num reino pacificado e de costumes “afinados”, na Alemanha o divórcio entre os meios aristocráticos e burgueses excluía qualquer namoro conseqüente com a civilização dos dominantes. Recapitulemos.
A reconstituição feita por Norbert Elias do itinerário francês do conceito de “civilização” em que estamos nos apoiando, é mais ou menos a seguinte. Como se dará mais adiante com Kant, a noção de civilização aparece ligada às características da sociedade de corte, à qual se contrapõe o ideal burguês da virtude. Entretanto, os intelectuais franceses continuam prisioneiros das tradições da corte, de sorte que suas idéias não são a exata contrapartida das noções que circulavam nos meios senhori-
ais,
eles procedem antes por cristalizações, em torno de certos conceitos aristocráticos de corte, de outros conceitos que remontam ao domínio de suas reivindicações políticas e econômicas; esses conceitos, na sua maioria, discrepam das idéias dos intelectuais alemães submetidos a uma outra situação social, a uma outra esfera de experiências (idem, p.83).
Um desses núcleos conceituais constitui o esquema básico da noção de “civilização” e seus correlatos. Os termos polidez, civilidade, urbanidade, etc., lembra Elias, exprimiam o sentimento de superioridade dos homens de corte, caracterizando-lhes o comportamento específico graças ao qual julgavam distinguir-se das camadas subalternas, frustas e primitivas. O trecho de Mirabeau citado acima enfeixa-os todos sob a denominação comum de “civilização”:
Vous et votre civilisation, dont vous êtes si fiers et par laquelle vous croyez vous distinguer des hommes simples, ne vaut en réalité pas grandchose: dans toutes les langues (...) de tous les âges, la peinture de l’amour des bergers pour leurs troupeaux et pour leurs chiens trouve le chemin de notre âme, toute emoussée qu’elle est par la recherche du luxe ou d’une fausse civilisation (apud Elias, 1973, p.67-8).
A última expressão – malgrado o elogio do homem simples e frugal que o aproxima de Rousseau – atenua o teor oposicionista da interpretação da riqueza e dos costumes da elite dirigente – trata-se afinal da crítica de alguém inteiramente avesso à idéia de uma transformação radical das instituições do Antigo Regime. Mas sobretudo, aludindo à alternativa representada por uma “verdadeira civilização”, fomentada por uma monarquia esclarecida, Mirabeau registrava uma nova etapa na evolução social da idéia de “civilização” – aquela cristalização burguesa (partilhada, como se está vendo, por um nobre campagnard como Mirabeau) em torno do primitivo núcleo aristocrático. Norbert Elias vincula em larga medida tal deslocamento semântico do movimento dos funcionários reformistas desencadeado pela fisiocracia. O termo civilização foi refundido para definir o conjunto das relações sociais implicadas nesse movimento de reforma. A civilização dos povos ainda não está terminada, proclamavam os meios progressistas da sociedade parisiense. “A civilização”, explica Elias (1973, p.81),
não é somente um estado, ela é um processo que é preciso promover. Eis aí o novo pensamento que a noção de civilização também passa a traduzir. Ela engloba uma parte dos elementos que desde sempre propiciaram à sociedade de corte o sentimento de representar, face à vida frusta, não civilizada dos bárbaros, um patamar mais elevado: assim compreendida, a civilização implica costumes e maneiras mais refinadas, mais tacto e considerações nas relações sociais, e tudo o mais do mesmo gênero. Mas a classe média ascendente, o movimento de reforma, conferiram um sentido mais amplo aos critérios que fazem de uma sociedade uma sociedade civilizada. A civilização do Estado, da constituição, da educação e, em virtude disso mesmo, de camadas mais amplas da população, a superação de tudo o que, na situação presente, é ainda bárbaro ou irracional, quer se trate de sanções penais, de ordenações que humilham a burguesia, ou da liberalização do comércio, uma tal civilização deve acompanhar a depuração dos costumes e a pacificação interior do país pelos reis.
Reviravolta que dá testemunho da “sagacidade específica do homem de oposição, do censor da sociedade”, incompreensível, por outro lado, caso deixássemos de lembrar, mais uma vez, que na origem desse movimento de propagação das luzes da civilização (em nova chave), encontram-se funcionários, intelectuais e burguesia da corte, unidos pelos laços da boa sociedade, dos salões, etc. (ibidem, p.75, 79). Numa palavra, mais esquemática, o terceiro estado voltou contra a nobreza recalcitrante os seus próprios critérios de distinção social, a idéia de civilização tornou-se afinal uma arma nas mãos da intelligentsia burguesa apontada contra os seus antigos portadores. Uma vez consolidada a hegemonia burguesa, consolidou-se também o estereótipo da civilização, cifra do sentimento nacional – e com ele, o clichê alemão complementar que assimilava a civilização, francesa e ilustrada em primeiro lugar, manchesteriana e americana depois, ao capitalismo triunfante. De designação pejorativa do ethos nobre, o termo “civilização” viu-se elevado à condição de conceito iluminista, transfiguração impulsionada por letrados burgueses à medida em que se aproximavam, ao invés de se afastarem, da antiga civilização aristocrática de que conservaram, destruído seu arcabouço político, a tradição dos hábitos e costumes.19 Podemos surpreender do outro lado do Reno uma imagem fiel dessa trajetória; basta atentar para a guinada que conhece a palavra “civilização” com o passar do tempo balizado pelo texto de Kant e a carta de Goethe a Zelter, da moralidade postiça própria da sociedade de corte à vulgaridade material dos novos tempos capitalistas. Com uma ressalva porém à fidelidade desse espelhamento: à primeira vista o sentimento burguês de Kant, ofuscado pelo falso brilho da alta sociedade, parece ceder o passo ao anticapitalismo de um letrado burguês que desertou sua classe; é certo, contudo, que essa oscilação ocorre no interior da mesma Bildungsbürgertum, sendo a curva por ela descrita governada de ponta a ponta pelo princípio da cultura superior. Este último dá corpo às aspirações de legitimidade da intelligentsia alemã, assim como o da “civilização”, a ambições análogas dos letrados franceses; opô-los, como faz Kant, pode ser um convite ao equívoco caso deixemos na sombra a evolução subseqüente do termo “civilização” – ao contrário de Goethe, Kant não a acompanhou, subscrevendo-lhe porém o espírito de contestação burguesa, inflado pela inspiração rousseauniana do rigorismo moral que o tinge. Espírito moderado na sua origem francesa e encarnado por um tipo humano aparentado ao fidalgo parisiense; ora, Rousseau, que não tinha nome para a “civilização” que condenava sem apelação, nomeara entretanto o seu contraditor máximo, o homem natural, do qual, ferindo a letra do seu ideólogo, Fichte irá desentranhar a figura do intelectual em missão, tanto mais elevada quanto se via confinada ao domínio do rein Geistige, ao contrário do homem simples, porém de olho na administração esclarecida do processo civilizatório em curso, celebrado por Mirabeau –, afinal, não custa lembrar com Norbert Elias, o centro social do Gelehrte fichteano era a universidade, enquanto o da Fisiocracia era la cour et la ville. Quando Turgot finalmente foi nomeado “Contrôleur général des finances”, recorda ainda Elias, saudaram o acontecimento Voltaire e d’Alembert, para citar os mais notáveis, e todos em nome do triunfo da virtude e da razão (idem, ibidem). A fusão kantiana de moralidade e cultura é tributária dessa atmosfera ideológica em que banhava o movimentodereformaanimadopelosgrandesfuncionáriosfranceses.Jáa ênfase no “longo esforço de formação interior” (Kant) que daí se segue é conseqüência do transplante alemão daquela constelação: refluindo a vida pública que lhe servia de horizonte, estava preparado o terreno para a ascendência de Rousseau – “Newton do mundo moral” (Kant) –, desde que transcrito o seu empenho oposicionista em termos de senso moral, para o que contribuía a propensão final do autor das Rêveries à apatia e ao isolamento. Na embriaguez ensimesmada do intelectual exaltado porém refugiado no intérieur pequenoburguês, fazia-se então visível o dedo de Rousseau.
Resta a questão da “personalidade”, formulada, como se viu, por Kant, excluindo, contudo, qualquer contaminação pelo código mundano da “graça”. A equivalência imediata entre “homem culto” e “personalidade” ainda não era uma evidência. E no entanto o intelectual alemão já cultivava a sua “personalidade” como Cândido o seu jardim – embora filosofasse, inclusive para tornar a vida suportável, ao contrário do antiherói voltaireano –, cortando no dia-a-dia o nó górdio penosamente atado por Wilhelm Meister. Mais uma vez, eis a questão que atormentava todo alemão sensível porém mal nascido: minha condição burguesa me recusa o dom supremo da formação (Ausbildung) harmoniosa, vale dizer a dádiva maior da personalidade, um algo mais impalpável embora decisivo que todo nobre recebe ao nascer juntamente com os seus cabedais. (Noutro capítulo, voltamos ao assunto por um viés menos frívolo, o da divisão social do trabalho, em cuja malha cerrada a intelligentsia alemã ia fazendo sua experiência do capitalismo emergente enquanto ameaça à personalidade, ao mesmo tempo em que promovia a sedimentação de uma imagem peculiar do novo modo de produção. Como é sabido, Wilhelm Meister não deixou de notar que, ao contrário do nobre, o burguês não escapava a tal danação, alinhando mais um argumento em favor de sua deserção de classe: o burguês, escrevia ao cunhado, “deve produzir e trabalhar; para se tornar útil, ele deve desenvolver (ausbilden) apenas algumas aptidões, ficando subentendido assim que não há harmonia em seu ser, visto que, para se tornar útil desta ou daquela maneira, deve abrir mão de tudo mais”). Não lhe recusava entretanto o mérito a que tinha direito sua probidade laboriosa – até mesmo, em caso extremo, a cultura do espírito não lhe era negada. Esta última concessão do Meister – tanto mais relutante de início quanto será triunfal a seguir a sagração burguesa da cultura autônoma celebrada pelos clássicos – já fora aliás anunciada, não em termos condescendentes, pelo contrário, numa das mais antigas ocorrências da palavra Bildung em sua nova acepção: consta que por volta de 1761, sonhando com um jornal a serviço justamente de uma educação à altura dos tempos modernos (“eine Erziehung für unser Zeitalter”), Herder teria sido um dos primeiros a augurar para a Alemanha a promoção de uma idade da cultura (“eine Zeit der Bildung”), ao longo da qual seria enfim banido o espírito da guerra e da religião e prosperaria em seu lugar o “espírito do comércio, da finança e da cultura” (Weil, 1930, p.10-4). O diapasão já é o da consagração do rein Geistige em luta com a heteronomia da civilização material e mecânica, porém, no seu tom manifestamente iluminista e afinado pelo figurino francês, ainda é explícito o vínculo com as virtudes disciplinadoras do doux commerce tão do agrado do negociante Werner. Falta, é certo, a desalentada e obsessiva demanda do mais precioso dos bens, o novo apanágio de classe da personalidade. Ora, na medida em que parecia furtar-se à malformação do trabalho em migalhas e, em conseqüência, o portador do seu doce fardo lograva brilhar, sobre as tábuas de um palco, imitando a distinção das classes superiores – nessa medida, a cultura já era promessa de personalidade. Noutras palavras, o que era vedado ao burguês, poderia ser consentido ao intelectual, no caso, bafejado pela vocação teatral que lhe facultava um “comércio mais íntimo” com a “personalidade inata” dos bem nascidos no topo da sociedade. Assim sendo, a voga crescente de Shaftesbury na Alemanha vinha a calhar, se é que não foi alimentada justamente por essa aspiração básica da intelligentsia alemã, como sustenta Hauser, cuja opinião referimos logo adiante. Sempre intrigou o prestígio alemão de Shaftesbury, desproporcional quando comparado à sua minguada autoridade na Inglaterra, destino análogo ao de Rousseau, cuja ascendência ideológica na Alemanha só encontra paralelo na hostilidade com que foi acolhida na França, descontado é claro o confuso período da Revolução (Hauser, 1956, p.128). Aliás tal convivência, nos mesmos autores, do cidadão de Genebra e de um escritor whig alheio ao pensamento do século, deita raízes na singularidade de base da Ideologia Alemã. Os historiadores alemães que rastrearam as origens do termo Bildung costumam mencionar um escrito pedagógico de Wieland onde este realça o lugar central ocupado pela idéia de kalokagathia na educação grega, lembrando que na época o seu autor conhecia muito melhor os escritos de Shaftesbury (nos quais justamente dava-se primazia àquele ideal de formação) do que os clássicos antigos da paideia (Weil, 1930, p.12-3, nota). Entendamos: o ideal humanista de integridade cultural calcado nos gregos principiou sua carreira alemã sob o patrocínio prestigioso de um aristocrata, nas maneiras e no modo de pensar – seguramente um modelo mais próximo que o decoro burguês mandava travestir de grego antigo. Além desse indício (que comentamos livremente) aqueles eruditos também chamam a atenção para a tradução alemã do selfbreeding de Shaftesbury, que o literal Selbstzucht vertia mal: por assim dizer ela impôs, em seu novo significado, o termo Bildung (idem, ibidem). Ora, na palavra inglesa delineava-se o fetiche alemão da personalidade – nele esbarraria de algum modo um letrado fidalgo empenhado na restauração do ideal antigo da sabedoria, à contra-corrente tanto do racionalismo continental, quanto do empirismo vigente em seu país. Ao que parece, o andamento mais abstrato da biós theoretikós ia se transformando nele em “problema de vida pessoal”, para culminar numa estética entendida antes como regra de vida do que uma doutrina: não por acaso, Cassirer, que estamos acompanhando (e também não há de ser fortuita a importância que alguns julgarão excessiva dada a Shaftesbury em seu livro sobre filosofia das Luzes: afinal, tratava-se justamente de reconstituir a pré-história da obra crítica kantiana), sublinha, em tal regra, sua natureza de princípio constitutivo de organização da harmonia do universo interior, numa palavra, da “personalidade” (Cassirer, 1966, p.307). Está visto que Hauser não será tão terno assim, além de dar chave remota de tal apreço pela obra precursora de Shaftesbury e com ela, o mote de nosso argumento:
Shaftesbury era o tipo acabado do aristocrata whig e a sua mentalidade exprime-se claramente naquela kalokagathia que está na base do seu ideal pedagógico e da sua moral estetizante. O seu selfbreeding nada mais é do que aplicação no espírito e na alma da idéia aristocrática de seleção pelo sangue. A origem social do seu ideal de personalidade reflete-se nitidamente tanto na identificação do verdadeiro e do bem com o belo, quanto na idéia segundo a qual o conflito entre impulsos egoístas e altruístas, corruptor dos estratos mais baixos da humanidade, encontra um equilíbrio harmônico nas camadas superiores afinadas pela cultura. A concepção da vida como uma obra de arte, na qual se trabalha guiado por um instinto infalível (moral sense), como o artista na sua obra é guiado pelo gênio, era uma idéia aristocrática que os intelectuais alemães acolheram com tanto mais entusiasmo quanto ela se prestava ao malentendido, de sorte que o seu caráter aristocrático podia ser interpretado como o reconhecimento de uma nobreza espiritual (Hauser,1956, p.128-9).
Assim, sob tão alta patronagem ia-se levando a bom termo a vantajosa superposição de personalidades e cultura até a sua completa inversão, passando a primeira a depender da segunda, com a vantagem suplementar do prestígio de classe daquela alcançada finalmente, tingindo-o por inteiro, o caráter dos Gebildeten. Tal era o benefício do mal-entendido assinalado por Hauser: aquele último saía enobrecido da operação. Mais um passo e o raciocínio mudava de mão. Cabia agora à cultura, enãoaonascimentosuperior,impregnareorquestrarharmoniosamente o conjunto da personalidade. Podia-se então passar à ordem do dia, decantando em prosa e verso as prerrogativas da nova classe, todas elas enfeixadas pelo abre-te-sésamo da “personalidade cultivada”, entre outras coisas, senha de ingresso no grande mundo, dos salões à alta administração do Estado.
1 Repare-se que o mesmo argumento de cunho antiintelectualista – e que estamos vendo tomar corpo no juízo sobre um episódio da história da intelligentsia alemã – reportará mais tarde na crítica do Cogito cartesiano, increpado de mera introspecção responsável pelo eclipse do senso comum: arrebatado pelo pobre “interesse cognitivo da consciência em relação ao seu próprio conteúdo (...) o homem vê-se diante de nada e de ninguém a não ser de si mesmo” (Arendt, 1981, p.293).
2 Tinker, estudando os salões londrinos na época de Johnson, alinha a formação desse ambiente íntimo entre suas principais características: “a etiqueta da corte”, comenta Mannheim (1974, p.108), “e a formalidade pública de salões de recepção criam, quase que naturalmente, um desejo pelas reuniões íntimas, ‘atrás dos bastidores’. Estas proporcionam um escape para os mais ricos, intrigas, ressentimentos e os vários impulsos inibidos pela etiqueta da corte”.
3 O mesmo autor refere duas confidências de Schleiermacher onde se cruzam o seu sentimento exaltado da vida gregária em petit comité – variante mundana da idéia central de “comunidade”, ela mesma suporte da utopia intelectual de uma guilda de homens cultos – e esta outra fantasia de letrado que reluta em transpor os limites do mundo dos adultos (de resto tudo na Alemanha contribuía para uma certa infantilização do intelectual) e devaneia identificações bizarras com o destino feminino, do qual os salões berlinenses em que pontificavam as grandes damas judias ofereciam uma imagem sublimada: “na verdade eu sou o ser mais dependente e menos autônomo deste mundo, nem mesmo sei se sou um indivíduo”; “para onde quer que me volte, constato que a natureza das mulheres me aparece mais nobre e a sua vida mais feliz, e se me ocorre acalentar algum desejo impossível, é o de ser uma mulher”. Familiengespräch: assim o pintor Philipp Otto Runge qualificava a linguagem da arte, incompreensível fora do círculo familiar de uma rarefeita aristocracia do sentimento, figurada, por exemplo, num óleo de 1804, Wir Drei, em que retratou a si mesmo, com sua mulher e seu irmão (lembremo-nos de Caroline entre os irmãos Schlegel), unidos pelos laços desse entendimento comum, mais fortes do que os do sangue e do casamento (Honour, 1986, p.263).
4 Sobre esta mesma afinidade, ver ainda Horkheimer, 1970, p.153, 159-60. Ao que parece, o fenômeno já fora assinalado há algum tempo. Em 1888, no Caso Wagner, podia-se ler o seguinte: “é conhecida a fortuna de Goethe numa Alemanha pudibunda e carola, intoxicada de azeda moralina. Ele sempre chocou os alemães, ele jamais encontrou admiração sincera a não ser junto às judias” (Nietzsche, 1974, § 3, p.26). Os editores Colli e Montinari observaram em nota que, para a redação da passagem sobre Goethe que se inicia pelas linhas transcritas acima, Nietzsche tinha sob os olhos o livro recém-publicado de Viktor Hehn, Gedanken über Goethe, do qual copiara vários trechos, dentre eles o seguinte: “somente as judias foram menos severas e pressentiram a grandeza, não apenas criadora mas moral, de Goethe: é que elas tinham mais inteligência inata do que as loiras mulheres da Baixa-Saxônia, gente boa porém convencional e bitolada” (idem, ibidem, nota 431). Como se vê, Hannah Arendt não precisava forçar a nota.
5 Um traço dessa cultura da intimidade burguesa, justamente impulsionada pela nulidade política que afetava a classe, pode ser assinalado na mania epistolar então em voga. A certa altura de suas Memórias, Goethe refere-se a um tal Leuchsenring, pessoa viajada e muito instruída na literatura moderna, que “carregava consigo vários cofrezinhos que encerravam a sua correspondência familiar com numerosas pessoas de suas relações”; e comenta: “em geral, reinava na sociedade uma franqueza tão universal que não se podia falar nem escrever a ninguém sem considerar a comunicação como dirigida a várias pessoas. Cada um espiava o seu próprio coração e o dos outros, e a indiferença dos governos para com esse gênero de correspondência, a celeridade dos correios, a segurança do sinete, a modicidade dos portes, favoreceram o rápido desenvolvimento desse comércio moral e literário. Essas correspondências, sobretudo com pessoas ilustres, eram cuidadosamente recolhidas e lidas por extratos nas reuniões de amigos, e, por outro lado, se as discussões políticas ofereciam pouco interesse, todos estavam bastante bem informados das condições do mundo moral” (Goethe, 1971, vol. II, p.430). Numa passagem dos Anos de viagem, depois de referir-se à natureza sociável e loquaz do homem, Goethe volta a destacar essa grafomania (Schreibseligkeit) contemporânea desses “experimentos com a subjetividade descoberta nas relações íntimas no seio da família”, de onde, justamente, com o hábito da auto-observação, brotam um número de “relações de curiosidade e simpatia com os movimentos d’alma do outro Eu” (Habermas, 1971, p.66). Eis o trecho em questão, cuja dicção bem humorada e distanciada prenuncia o declínio próximo do gênero: “a quantidade de coisas que os homens escrevem é inconcebível. Para não falar do que se imprime, o que já seria mais do que suficiente. Mas para se ter uma idéia do que, na forma de cartas, notícias, estórias, anedotas, descrições do estado atual de tal ou qual pessoa, circula em silêncio como correspondência, é preciso viver algum tempo, como me ocorre neste momento, numa família cultivada. Nesse meio em que agora me encontro, dispende-se, informando parentes e amigos a respeito do que se está a fazer, quase tanto tempo quanto foi necessário para fazer essas mesmas coisas relatadas” (Goethe, 1954a, vol.II, p.1010). Não surpreende então, no século da carta, onde o encontro das almas bem formadas estava na ordem do dia, que Wilhelm Meister, durante seus anos de aprendizado, também tenha experimentado a magia da conversação: “que homem, e que homens o cercam!”, exclama transportado Wilhelm, referindo-se a Lotario – e nada parece recomendá-lo tanto quanto o domínio da verdadeira arte de conversar: “foi nessa sociedade, é preciso dizê-lo, que, pela primeira vez, conheci uma real conversação, pela primeira vez o sentido íntimo de minhas palavras refletiu-se na boca de um outro, mais denso, pleno, amplo; o que eu pressentia, tornavase claro, o que eu apenas visava, aprendia a conhecer num relance” (ibidem, p.789). Vê-se logo que a conversação romântica, e o seu gosto indiscreto pela efusão íntima e o sentimento narrado à queima-roupa, increpada de tagarelice e mauvaise foi por Hannah Arendt (se assim se pode chamar, no comportamento de Rachel Varnhagen, a constante denegação da falácia própria da assimilação estilizada pelo pathos da cultura superior), é complemento natural desse “comércio moral e literário” descrito por Goethe assim como tais serões artísticos-sentimentais, em que se desenrolava o cerimonial dos “cofrezinhos”, antecipam o ritual das soirées na água-furtada de Rachel. Por outro lado, temperando um pouco o juízo severo de Hannah Arendt, que abarca ambas as manias de Rachel, a raciocinante e a epistolar, não se pode deixar de salientar uma outra efêmera “vantagem do atraso” nessa conjunção – por outra parte tão funesta – de apatia política, indiferença pela vida pública e o senso do “concreto” (como se diria em jargão) que aflora nessa aspiração à proximidade absoluta. Veja-se, a propósito, o que diz Adorno acerca da coleção de cartas alemãs reunidas por Walter Benjamin, cujo significado avalia, é bom frisar, da perspectiva sombria de um contemporâneo da idade pós-liberal, em que a “paralisia do contacto”, cifra da alienação, afinal se consumara. “Tudo o que é imediato”, adverte, “requer alguma ingenuidade”. É o caso dessas cartas: já o mesmo não se poderia dizer dos salões românticos, cujo clima é manifestamente “sentimental” – daí a ligeira atmosfera de impostura, de cabotinismo em que banha a sua “ingenuidade” de segunda mão. Voltemos a Adorno: “o século em que se gostava tanto de escrever cartas foi na Alemanha favorável à troca de correspondências: a vida acanhada e restrita da burguesia local herdara aquela ingenuidade referida atrás, ou melhor, ela própria a criava, malgrado a acuidade de sua consciência – ao mesmo tempo, essa ingenuidade é condição e limite da humanidade. Se a consciência penetrasse inteiramente a estreiteza da pequena propriedade e dos fins imediatos, ela não estaria em condições de conservar a experiência imediata que se exprime com tanta felicidade em cada uma dessas cartas” (Benjamin, 1979, p.18-9). Trata-se evidentemente de um ciclo encerrado – não é mais possível escrever cartas – e Benjamin data o seu esgotamento das primeiras décadas da Alemanha unificada, da era dita dos “fundadores”, mais exatamente, dos primórdios da fase imperialista do Capital.
6 A mascarada continua, precisemos, no terreno comum da cultura burguesa superior, comum aos judeus “educados” e aos futuros “mandarins”. Aqui o contraponto de verdade interior e fingimento desenrolar-se-á num registro diverso daquele visado imediatamente pelas observações de Simmel e Habermas acerca do bálsamo que o ideário da Kultur representaria para o judeu mortificado pelo Diktat da assimilação. Neste caso, a metáfora teatral adotada pelos dois autores atende apenas à seguinte circunstância: desde que se cultive como manda o figurino goetheano, poderá o judeu adquirir seu “bilhete de ingresso” na boa sociedade européia, como dizia Heine, sem precisar renunciar à sua identidade, pelo contrário, poderá inclusive exibi-la com alguma ostentação, como uma planta exótica. A rigor, o novo humanismo alemão vinha azeitar a engrenagem sofística da assimilação, exposta por Hannah Arendt nos seguintes termos: “os defensores da emancipação apresentavam o problema sob o prisma da cultura, conceito que, aliás, aplicava-se tanto a judeus quanto a não judeus na sociedade burguesa do século XIX, quando se aceitava como natural que a elite de qualquer grupo consistiria sempre de pessoas educadas, reciprocamente tolerantes e cultas. Em conseqüência, a elite não-judaica – tolerante, educada e culta – preocupava-se socialmente só com os judeus igualmente educados e cultos. Os demais judeus – a maioria – estavam fora da alçada da emancipação. Pouco a pouco, a exigência da abolição do preconceito entre os educados tolerantes e cultos transformar-se-ia numa questão unilateral, até que, por fim, só se exigiria educação e cultura por parte dos judeus, como elemento fundamental para serem aceitos pela sociedade não-judaica” (Arendt, 1975, p.88). Não admira então, volta a lembrar Hannah Arendt, a propósito do ímpeto incomum que o ideal de cultura da nova geração de “mandarins” alemães transmitiu ao preconceito favorável aos judeus educados e ocidentalizados, que a assimilação como fenômeno coletivo existiu apenas entre os judeus intelectuais, e mais, que, na virada do século XVIII para o XIX, quando a comunidade judaica francesa já gozava da emancipação e a alemã sonhava com ela, os judeus voltassem seus olhos para a comunidade de Berlim, e não de Paris (ibidem, p.89, 95). Isso explica também – como se a “miséria” política fosse indispensável ao florescimento da utopia (de) intelectual que amalgamava judeus e não-judeus – que na França “os poucos intelectuais judeus não foram nem pioneiros da nova classe, nem elementos especialmente importantes da vida cultural. A cultura como fim e a educação como programa não constituem ali padrões de conduta judaica, como aconteceu na Alemanha” (ibidem, p.99; sobre a preeminência, por razões análogas dos intelectuais judeus na cultura modernista vienense, ver Johnston, 1972, p.23-9; cf. tb. Grunfeld, 1979, cap.2). Dentre essas razões, onde avulta o sempre enaltecido mecanismo da alta burguesia judaica de Viena, não foi menos preponderante, embora no plano mais impalpável das construções ideológicas, a variante local, igualmente de nítido cunho compensatório, do ideário da Kulturnation: uma acanhada classe burguesa, tutelada pela burocracia imperial, também parecia acreditar que só a cultura emancipa (Bildung macht frei, tal era o lema de todo herói burguês da cultura), como declara, por exemplo, Stiften: “quem é moralmente livre pode ser politicamente livre, sempre foi assim; nem todos os poderes da terra juntos podem tornar alguém livre. Apenas um poder é capaz disso: Bildung” (apud Schorske, 1981, p.282). Era natural, então, que os meandros da assimilação na Monarquia Dual seguissem de perto o caminho apontado pelo humanismo alemão. Antes de retomarmos o fio de nossa digressão, não será excessivo lembrar que essa convergência, em torno da “cultura como fim e a educação como programa” fundindo na mesma fantasia consoladora os intelectuais da Mitteleuropa, cristalizava-se graças à dinâmica comum do capitalismo retardatário. Ainda voltaremos ao assunto. Goethe, recorda ainda Hannah Arendt (1975, p.90-1), comentando um livro de poemas de autor judeu, queixava-se, desapontado, de que “onde havia esperado algo genuinamente novo, alguma força além da convenção superficial, encontrara apenas a mediocridade comum. É fácil imaginar o desastroso efeito dessa exagerada (embora na realidade preconceituosa) boa vontade (...). Esperava-se que estes judeus se tornassem espécimes excepcionais da humanidade, o que tornava obviamente periclitante a posição dos outros judeus, menos socialmente educados (...). Que mais, então, podiam fazer estes judeus, senão tentar desesperadamente não desapontar ninguém?” Por onde se pode avaliar o peso do conjunto das forças que condenavam Rachel à busca desenfreada da originalidade, em cujo auxílio acorria, empurrado por razões semelhantes, o “diletantismo ocasionalista”, como já se denominou a bizarria mental de seus amigos românticos, que formavam então a franja mais inquieta da intelligentsia ascendente. Assim, o surgimento desse novo tipo histórico, o intelectual judeu de língua alemã, não só lança uma luz especial sobre a cultura do classicismo alemão, de cuja formação é contemporâneo, como realça certas particularidades da arquitetura interna do intelectual mediano, do qual, aliás, vem a ser um dos protótipos mais enfáticos. A este respeito talvez caibam ainda duas observações. Já assinalamos o quanto a caracterização por Mannheim do que chamou “processo intelectual livre” está ajustada à sua circunstância alemã: não é difícil reconhecer nos que arcam com o peso desse processo o papel preponderante – sobretudo enquanto modelo próximo – desempenhado pelo núcleo cultivado do Mittelstand alemão; tanto é assim que, ao pesquisar as razões do avanço do pensamento administrado e o conseqüente definhamento das idéias independentes, não hesita em creditá-lo ao declínio das classes médias independentes, a exemplo das camadas intermediárias que prosperavam nos primórdios da Alemanha moderna e nas quais “era recrutado um velho tipo de intelligentsia relativamente desvinculada” (Mannheim, 1974, p.137). Acresce que, tributário dessa tradição, Mannheim, ao mesmo tempo em que por assim dizer destacava as vantagens, para a vida do espírito livre (a rigor, liberal), da tenuidade do alicerce social dessa “livre ideação” em vias de extinção, erigiu em traços constitutivos de tal processo, em princípio responsável por uma visão despreconcebida e pluriperspectiva da vida ideológica, certas singularidades de caráter (ou da falta dele) levadas ao extremo pelo letrado romântico. Suas circunvoluções cerebrinas escudavam-se, como se viu, em sua “aparente falta de identidade social”; ora, esta privação, aos olhos de Mannheim, representa “uma oportunidade única para o intelectual” (ibidem, p.138) – de qualquer modo, foi uma oportunidade história para a intelligentsia alemã. Ora, no caso do intelectual judeu de língua alemã, essa conjuntura negativa porém favorável é a bem dizer constitutiva, a ponto de sua trajetória atribulada confundir-se com a própria formação da cultura alemã moderna – basta um olhar de relance para o salão de Rachel Varnhagen por exemplo, para nos convencermos da amplitude do fenômeno. Afinal quem melhor do que esses trânsfugas, a cavaleiro de dois mundos, assegurou a sobrevivência de tal “processo intelectual livre”, nos termos mesmos de Mannheim, que exigia para tanto a existência marginal de “elementos exógenos” que pudessem “se refugiar nos vários nichos e fissuras” do corpo social – se quisermos, deixados abertos justamente numa organização social de estrutura bruxuleante como a da Europa Central de fala alemã? E no entanto, o desabafo de um Moritz Goldstein raramente perdeu sua atualidade: “nós judeus cultivamos a tradição espiritual de um povo que nos recusa o direito e a capacidade de fazê-lo” (apud Arendt, 1974b, p.281; ver a propósito o passe de armas entre Heidegger e Cassirer – durante o debate, referência à tradição goetheana era uma constante neste último –, comentado por Habermas, 1974). Apreciada do ângulo dessa convergência, parece um pouco menos exorbitante a prevenção bifronte de um Herder (aliás igualmente partilhada pelos demais demiurgos da nova cultura alemã), que esperava dos judeus “educados”, lembra ainda Hannah Arendt (1975, p.90), uma demonstração de “isenção de preconceitos superior aos não-judeus, porque o judeu, dizia, é isento de certos julgamentos políticos, que nós achamos muito difícil senão impossível abandonar”. Ocorre, além do mais, que os próprios interessados no esclarecimento dessa expectativa ambivalente acerca da constituição mental que deveria por definição aparentá-los à cristalização suprema da intelligentsia moderna encarregaram-se de adotá-la; neste sentido, basta uma declaração de Freud – “precisamente por ser judeu, encontrava-me livre de muitos preconceitos que toldam a outros o exercício de seu intelecto; precisamente como judeu, estava preparado para colocar-me na oposição e para renunciar ao acordo com a maioria compacta” – citada por Renato Mezan, a propósito justamente do “caráter de inovação próprio à contribuição de tantos judeus à cultura européia do século XIX”, e cuja explicação também procura naquela excentricidade do olhar característica do etnólogo que torna de viagem, distância interior arraigada numa espécie de dépaysement permanente que os iluministas franceses souberam tão bem recriar (travestiam-se de persas e iroqueses, mas lograriam o mesmo efeito de estranhamento caso se pusessem na pele de um judeu “cultivado” e “ocidentalizado” em vias de assimilação na Alemanha de Lessing e Goethe): “ao mesmo tempo dentro e fora desta cultura, vendo-a com uma ótica muito peculiar, sem o peso da tradição e do longo convívio com o natural, muitos deles vieram a questionar precisamente a naturalidade de certas normas e de certos padrões de comportamento” (Mezan, 1982, p.27-30). Não será demais recordar que Sartre via precisamente num déclassement de mesma família o traço distintivo do intelectual de que carece uma classe social à procura de sua verdade – se isto for possível, é façanha de intelectual, através do qual ela se vê a um só tempo “de dentro e de fora” (Sartre, 1972, p.146). Junte-se enfim à autoridade do testemunho de Freud algumas outras variações em torno desse privilégio tácito do ponto de vista sofrido e descentrado do outsider cultivado. Por exemplo: referindo-se à relativa miopia de que padeceria o projeto hegeliano de abarcar o seu tempo no pensamento, e depois de atribuí-lo em parte à proximidade excessiva de uma tradição acanhada da qual não soube se desprender, Habermas afirma (1975, vol. I, p.183), em contrapartida, que foi “necessariamente muito mais fácil a um judeu renano exilado em Londres superar tal situação do que a um antigo aluno do seminário protestante de Tübingen, funcionário prussiano na Berlim da Restauração”. A inércia das maiorias compactas tampouco fazia sentir seu peso sobre o “grupo dos pares”, pequeno núcleo de judeus poloneses assimilados, cuja importância na vida de Rosa Luxemburgo foi destacada por seu biógrafo Nettl e sublinhada nos seguintes termos por Hannah Arendt (1974b, p.50-1): judeus de horizonte cultural alemão, formação política russa, e critérios morais próprios, “situavam-se à margem de todas as categorias sociais, judias e não judias; por isso mesmo não tinham nenhum desses preconceitos convencionais”. Finalmente, considerando o caso de Heine, Marx, Freud, etc., Isaac Deutscher (1970, apud Coutinho, 1977, p.39) volta a bater na mesma tecla, que é a das vantagens intelectuais da vida entre dois mundos: “de alguma forma foram bastante judeus. Levavam dentro de si algo da quintessência da vida judaica e da sua intelectualidade. O que os torna excepcionais é que, como judeus, viviam nas fronteiras de várias civilizações (...) viviam nas margens, nos cantos ou nas fendas de suas respectivas nações. Cada um deles estava na sociedade e fora dela, ao mesmo tempo pertencia-lhe e não. Foi isso que lhes possibilitou elevar o pensamento acima de suas sociedades”. A segunda observação concerne os percalços da notação mimética do gesto “educado”, outro traço característico da “sofística da assimilação” a amalgamar humanistas alemães e judeus cultivados, processo do qual o salão de Rachel representou o ponto de fusão máximo. Recapitulemos. A certa altura de sua malograda carreira teatral, viu-se o novato e burguês Wilhelm Meister na contingência de interpretar o papel do príncipe na Emilia Galotti; na esperança de facilitar-lhe a tarefa, o ator Serlo, chefe da troupe, brinda-o com uma dissertação sobre o homem distinto (der Vornehme) e as dificuldades de sua imitação no palco. Estas, aliás, são de duas ordens, pois ao obstáculo natural constituído pela barreira de classe antepondo-se ao projeto de reproduzir sem caricatura as boas maneiras, o caráter por assim dizer invisível de um gentleman (cuja arte consiste justamente em passar desapercebido) acalentado por um ator ainda verde e por acréscimo filho desajeitado de uma família de comerciantes – ao embaraço acarretado por esta diferença de classe (na verdade, mola secreta do impulso mimético de Wilhelm) vem somar-se uma seqüela da tenuidade nacional: quem imitar, onde procurar o repertório local da distinção, num país, desabafa Aurélia, em que até mesmo paraamarrarossapatoscopia-seomodeloestrangeiro.Masvoltemosàperoração de Serlo. Em linhas gerais, o ideal que persegue serpenteia entre a “graça” e a “dignidade” – e não o traímos atribuindo-lhe a ambição de lograr no palco o equilíbrio entre os dois extremos schillerianos, algo muito próximo da contida “desenvoltura” que Adorno reconhecia não só na Ifigênia goetheana como na aristocracia que os intelectuais preferiam aos burgueses. Uma intenção culta sob medida para os leitores do Meister que, como Schlegel, magnificam-no, entre outras coisas, por ter posto a moderna literatura alemã em “contato com a cultura e o espírito das classes sociais mais elevadas” (Schlegel, 1963a, p.262). Para desespero de Wilhelm, Serlo resume sua lição inapelavelmente: só parece distinto quem de fato o é (cf. livro V, cap.16). (Logo adiante veremos como convicções deste teor podem alicerçar a idéia cediça de “personalidade inata”). Não obstante, o sucesso de sua demonstração também diz o contrário, a distinção se aprende, apura as maneiras e até certo ponto favorece a ascensão social (pelo menos ajuda a não fazer má figura em sociedade) – sem contar que, ajustando-se aos projetos de Wilhelm e colocando-os sob a nobre insígnia da arte, realça a reta intenção de seu esnobismo singelo. Ora, a estilização deste último carece justamente daquele mimetismo que só o tirocínio do palco propicia – até certo ponto, já o dissemos, pois o déclassement inerente à condição de ator só cai bem enquanto permite à imaginação sobrevoar a mediania do nascimento burguês. O episódio evocado é sobretudo instrutivo neste aspecto: deixa ver o quanto o árduo empenho na assimilação exige de aplicação, de energia investida na minúcia da observação e no comportamento de adaptação às regras consagradas pela dominação de classe. Daí a súbita vocação teatral dos espíritos cultivados que povoam os salões de Rachel – invertendo aliás a lição de Serlo, visto que ali para ser era preciso parecer. Mas a acuidade de percepção ditada pelo imperativo da imitação redentora também deixa aflorar no detalhe o grande girar em falso da máquina do mundo. Quem chamou Proust de “persan dans une loge de concierge” definiu sem querer este fenômeno, só faltando acrescentar que o ardil iluminista do olhar excêntrico camuflado pelo disfarce exótico era naturalmente suprido pela sua tripla condição de burguês, intelectual e judeu. O mesmo vale, de modo geral, para o esforço mimético – a rigor um trabalho de Sísifo – a que se vê condenado o intelectual judeu assimilado, para o qual, de fato, observar é sofrer. “O risco sempre presente da rejeição aguça o desejo de tornar-se igual ao grupo majoritário, observando nos menores detalhes o que se deve ou não dizer e fazer”. Assim caracteriza Renato Mezan a ambigüidade própria da situação do intelectual judeu, a um só tempo festejado e rejeitado, sobrevivendo graças ao mimetismo extremado porém ameaçado a cada instante pelo gesto polido que um nada transforma em insulto – não por acaso uma passagem do Castelo de Kafka, lembrada por Mezan, ilustra essa engrenagem bifronte: “estas pessoas que o olhavam com tanta desconfiança começariam a falar quando ele se tivesse tornado não, talvez, seu amigo, mas enfim seu concidadão; e quando ele já não pudesse ser distinguido de Gerstäcker e de Lasemann – e era preciso que isso ocorresse o mais rápido possível, era a chave de toda situação – todos os caminhos se abririam para ele” (Mezan, 1982, p.29). Mimetismo infeliz e flutuação entre dois mundos definem, assim, a fisionomia desse tipo intelectual recente, na qual se espelha a verdade da intelligentsia moderna. De resto, uma constelação favorável ao conhecimento, particularmente visível no caso da psicanálise; ainda uma vez: “por que não foi um destes inúmeros homens piedosos que inventou a psicanálise? Por que se teve de esperar por um judeu absolutamente agnóstico?”, perguntava-se Freud em carta a Pfister (idem, p.28). Esta circunstância não explica tudo, vê-se logo, mas não se pode negar que a proeza crítica sem precedentes de uma psicanálise inventada por “homens piedosos” estava por assim dizer ao alcance da mão de um judeu cultivado na Viena finissecular, cujo olho clínico e especulativo prolongava o tirocínio de um golpe de vista calejado pelas asperezas de um meio onde lhe tinha sido imposto o duro aprendizado da ambivalência nos gestos e nos sentimentos, como dizia Jean Maugüe num artigo (1940) perdido na Revista do Brasil, em boa hora exumado por Gilda de Mello e Souza, que aliás recentemente voltou ao assunto – esse senso agudo da ambivalência que leva os outsiders de elite a “distinguir na atmosfera que os envolve qualquer coisa de inacabado, com vago ar de mentira” – nas entrelinhas de um artigo de homenagem a Eduardo de Oliveira (Mello e Souza, 1981).
7 A méprise de Rachel, corroborada pela anuência complacente de seus amigos intelectuais, conta com um aliado ilustre, o cavaleiro de indústria Felix Krull. O romance de mesmo nome de Thomas Mann é também um Bildungsroman, todavia, lembra Anatol Rosenfeld, “a forma tradicional deste tipo de romance – cujo clássico modelo alemão é o Wilhelm Meister de Goethe – torna-se aqui objeto de paródia. O herói de Goethe entrega-se inicialmente à experiência do teatro, mas seu caminho é o da integração na sociedade burguesa e da integração no âmbito da realidade. Já o progresso de Krull é de certo modo inverso. Ele transforma a sua própria existência em teatro. Histrião nato, torna a realidade um palco no qual, mascarado, desempenha papéis e troca nomes até a perda de identidade” (Rosenfeld, 1969, p.20). Conquanto estribada na opinião autorizada de Schlegel – caso carecesse de patrocínio erudito – acerca do “grande espetáculo da humanidade” posto em cena por Goethe nos Anos de Aprendizado, Rachel por certo não chega ao extremo devaneio – no seu caso, demasia estetizante sem maiores conseqüências – de imaginar sua existência de outsider social como uma “atuação mimética no palco do mundo” (ibidem, p.199). De fato, algo análogo a esse mimetismo de histrião, de que nos ocuparemos mais adiante, descreverá melhor o estilo de vida intelectual que se plasmava, vendo-se confirmado, nos salões berlinenses que estamos evocando com a ajuda deHannah Arendt.
8 Se pudermos completar assim a famigerada seqüência das fórmulas provocadoras de Marx, pela insolência do “materialismo” à queima-roupa, acerca da origem e destinação da ética kantiana (Marx, 1968, p.221; Lukács, 1966a, p.28).
9 Evidentemente interpretamos. Para os conceitos de “pessoa” e “personalidade” – sinônimos em Schiller (1963) – ver as cartas XII e XIII da Educação
Estética.
10 Note-se o quanto ampliou-se o campo de manobras da oposição intelectual burguesa, desde os tempos em que Kant formulou pela primeira vez as aspirações da intelligentsia alemã: apontadas de início para a sociedade de corte, as baterias da Kultur voltaram-se com o tempo para a funesta conjunção de capitalismo e civilização material. Aproximavam-se por fim os letrados alemães de seus confrades ingleses, os quais, desde a virada do século, como mostrou Raymond Williams, vinham contrapondo às mazelas do mercado e do sistema de fábricas, uma espécie de corte de apelação suprema que denominavam “cultura” e cujo caráter “afirmativo”, como diria Marcuse, destacaremos a seu tempo (Williams, 1969, p.19-20 e 57-8).
11 A idéia de que o individualismo desenfreado é o coveiro do indivíduo é uma constante na obra de Adorno. Para a crítica adorneana da ideologia da personalidade, cf. Vacatello, 1972, p.70-1ss.
12 “Um século mais tarde o termo foi devidamente ridicularizado por Marx, o qual, ao explicar a acumulação primitiva do capital, volta a relatar alguns dos mais violentos episódios da história da expansão comercial européia para em seguida exclamar sarcasticamente: Das ist der doux commerce!” (Hirschmann, 1979, p.61).
13 Nostalgia? O reproche é freqüente, sobretudo à esquerda, onde cai mal o apego de Adorno às formas do passado burguês (Solmi, 1954, p.XVII; Vacatello, 1972, p.79). Ainda voltaremos ao assunto, diretamente implicado no anticapitalismo de fundo da intelligentsia alemã. O de Adorno, está visto não é esquemático, muito menos apologético, como o dos críticos alemães do progresso, que se adaptaram à injustiça moderna glorificando suas formas pretéritas (Adorno & Horkheimer, 1974, p.252). “Mas existiu de fato um passado assim, no qual os indivíduos gozavam de maior autonomia, procediam com tacto, não tinham perdido a espontaneidade e sabiam coordenar de maneira não alienada meios e fins”, pergunta-se um crítico lukácsiano de Adorno (Vacatello, 1972, p.79). Thomas Mann não vacilaria na resposta, chegando mesmo a identificá-lo com o mundo burguês-estamental da cultura de Dürer a Theodor Storm. Adorno não o desmentiria, com uma ressalva porém (que aliás o romancista jamais deixou de fazer): aquele passado carregado de humanidade também estava alicerçado sobre o domínio de classe e a exploração (ibidem, p.80). Ocorre que o próprio privilégio pode às vezes conviver com o seu contrário. Veja-se o caso da “delicadeza”: ela nada mais é, diz Adorno, do que a “consciência de que são possíveis relações livres de finalidades utilitárias, idéia ainda capaz de consolar em parte aqueles que se encontram sob o jugo das finalidades utilitárias: como uma herança de antigos privilégios anunciando uma sociedade onde não haverá mais privilégios. A abolição dos privilégios pela ratio burguesa abole finalmente até mesmo aquela promessa” (Adorno, 1954, p.28). Dá-se o mesmo com as demais “formalidades” e outras “especialidades vienenses”, como a conversação inútil e a polidez obsoleta, que o capitalismo foi deixando no caminho, e a finada aristocracia, recolhendo.
14 “Il est vrai qu’on pourra dire quelque jour: cet ennemi si déclaré des sciences et des arts, fit pourtant et publia des Pièces de Théâtre; et ce discours sera, je l’avoue, une satire très amère, non de moi, mais de mon siècle” (Rousseau, 1964, p.974). Sobre a situação paradoxal de Rousseau que se faz autor para denunciar a Idade de Ouro dos hommes de lettres que era a França pré-revolucionária, ver Starobinski, 1971, p.52-3 e Prado Junior, 1976, onde é comentado o trecho do Prefácio de Narcise que acabamos de citar.
15 Quinta e última conferência sobre a Destinação do douto, citada na tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho (Fichte, 1970, p.9-10). Conferência comentada pelo tradutor em artigo intitulado “Nota sobre Fichte leitor” (Torres Filho, 1970).
16 Junte-se a essas razões sob medida para induzir uma transplantação imprópria a famigerada preguiça de Rousseau, alardeada pelo próprio: “Jean-Jacques est indolent, paresseux, comme tous les contemplatifs”, dizia nos Diálogos. Sua inação (estudada por Starobinski, 1971, p.73ss) feria o ardor ativista – conquanto represado e cerebrino – dos letrados alemães, de resto comovidos pelo furor de sedição do ex-cidadão de Genebra. “Agir! Agir! É para isso que estamos aqui”, proclama Fichte, pasmo diante da aparente insensibilidade de Rousseau ao apelo dos novos tempos, à vocação do homem culto, chamado a “trabalhar para o aperfeiçoamento dos outros” (continuamos citando a conferência de Fichte sobre Rousseau na tradução de Torres Filho, Fichte, 1970, p.17). “Assim Rousseau descreve constantemente a razão em repouso, mas não na luta; ele enfraquece a sensibilidade em vez de fortalecer a razão” (ibidem, p.16-7). Sua indolência era causa e efeito dessa evidente atrofia da personalidade – já o dissemos, faltando acrescentar que os humanistas alemães faziam depender da Ação decantada pelo Fausto a floração equilibrada da bela individualidade, negligenciada por Rousseau em sua vindicação obstinada de “paz imperturbada do interior e do exterior” (Starobinski, 1971, p.74). O desencontro não poderia ser maior ou, se preferirmos, a confluência, pois à contradição de Rousseau, além do mais censurado por apatia, fazia pendant o não menos gritante paradoxo desses paladinos da ação ensimesmados. Por ora, entretanto, podemos dar livre curso à enfática profissão de fé no princípio da Ação da parte desses heróis da vida do espírito, afinal, sempre se poderá alegar, como faz Lukács, que nenhum deles nasceu atrelado à infeliz carreira das letras, mas que a ela foram condenados pela inércia nacional, de sorte que o predomínio da atitude estética durante o “período artístico” eqüivalia de fato a uma renúncia arrancada pela “miséria” do meio e por isso mesmo ruminada como preparação da futura redenção do país (cf. Lukács, 1956, p.42). Fichte, contudo, dá um passo a mais: não só não deplora sua condição de letrado como dela deriva o próprio mandato de ação a todo custo em favor do avanço da humanidade – concebido, de preferência, é certo, nos termos morais de uma educação do gênero humano, voltando a aflorar, assim, a renúncia que sela sua estréia no ofício de escritor e permanece estampada na coloração moral da palavra Bestimmung, por intermédio da qual Fichte traz à luz o espírito de missão entranhado no homem de cultura, cuja atividade, portanto, é antes tudo um problema moral (Alfieri, nota 1 à tradução de Fichte, 1977, p.2). Lembrada a natureza moral do fardo do homem culto alemão, voltemos a Rousseau, que preferia a letargia ao progresso, ao “aprimoramento das forças produtivas do trabalho”, como dizia Adam Smith, sem o qual, concordam os novos humanistas, o ideal da personalidade harmoniosa era um voto piedoso (Schiller, 1963, Carta VI). Conseqüente em sua apatia, Rousseau sacrificava uma e outra aspiração: bastava-lhe o “sentimento da existência” experimentado naqueles momentos de “bem aventurada nulidade” em que, deitado em seu barco, na ilha de Saint-Pierre, deixava-o vogar à deriva (Starobinski, 1971, p.305). Nesses instantes de apaziguamento aparecia-lhe ao alcance da mão aquele estado ideal de “fruição dos sentidos sem trabalho corporal” (Fichte, 1970, p.15) a que dera o nome de estado de natureza, esquecido, não por acaso, acrescenta Fichte, “que a humanidade só é capaz de aproximar-se desse estado e só pode aproximar-se dele através de cuidado, fadiga e trabalho” (ibidem). Lapso de intelectual preguiçoso (e o seu tanto sibarita, pelo menos aos olhos austeros de Fichte que não só reparava o quanto o aguilhão das carências civilizadas teimava em desviar Jean-Jacques da “trilha da retidão e da virtude”, como tinha na conta de algo feminino o “deter-se e queixar-se da corrupção dos homens sem mover uma mão para reduzi-la”), tal é o segredo do sofisma de Rousseau, “que não queria trazer os homens de volta ao estado de natureza quanto à instrução espiritual”, explica Fichte, “mas meramente quanto à independência das carências da sensibilidade” (ibidem, p.14). De fato, Rousseau queria simplesmente que o deixassem em paz. “Exatamente! Mas agora nós lhe perguntamos ainda”, insiste Fichte, “em que queria ele aplicar essa paz imperturbada? Sem dúvida naquilo em que aplicava aquela de que contudo partilhava: na meditação sobre sua destinação e seus deveres, para com isso enobrecer a si mesmo e seus irmãos? Mas como teria sido capaz disso nesse estado de animalidade que admitiu – como teria sido capaz disso sem a prévia instrução que só poderia obter no estado de cultura? Assim, ele transpôs desapercebidamente a si mesmo e a sociedade inteira com toda a instrução que ela só poderia obter saindo do estado de natureza, nesse estado; admitiu desapercebidamente que ela já deveria ter saído dele e percorrido todo o caminho da formação; e entretanto não deveria ter saído nem se instruído” (ibidem). Entendamos, Rousseau quer os fins sem os meios – traindo nesse pueril erro de cálculo, seja dito de passagem, sua mal disfarçada, pelo travestimento “ingênuo” do homem simples, condição de intelectual, patente tanto na sua malograda recusa de adaptação ao mundo dos adultos, isto é, à esfera da produção comandada pelo princípio de realidade, quanto na pouco viril ataraxia pela qual suspirava: mais precisamente, quer gozar dos favores da vida do espírito economizando o árduo caminho de sua formação, em suma, quer a Cultura sem o ônus alienante do processo civilizatório. (Noutras palavras, mais uma vez, não há cultura sem alienação; como se vê, o argumento de Hegel vem de longe e será retomado em seguida por Marx). A contradição de Rousseau denuncia o letrado indolente no homem natural e a utopia de intelectual no presumido estado de natureza; bastava colocar este último no devido lugar, isto é, diante de nós e não atrás de nós, para reconhecer em Rousseau um dos nossos, um Gelehrte: “ele faz portanto exatamente aquilo que nós fazemos”, continua Fichte, “trabalha para levar avante a seu modo a humanidade e para propiciar o progresso desta em direção à sua sua meta última e suprema” (ibidem, p.10). Seria preciso ainda algumas reviravoltas para que o diapasão anticapitalista da intelligentsia alemã repercutisse finalmente o tom rousseauniano de franca hostilidade à “destinação do homem” centrada no “desenvolvimento uniformemente continuado de todas as suas disposições e carências”. Certas observações de Adorno, por exemplo, afinam inclusive com as imagens da rêverie de Rousseau. “Rien faire comme une bête, vagar à deriva e olhar tranqüilamente o céu, ‘ser e nada mais, sem nenhuma outra determinação ou desejo de realização’: não se poderia imaginar assim a sociedade emancipada – banhada nessa paz perpétua e preguiçosa – sem projetar certas linhas de fuga que nada têm a vercomo‘aprimoramentodasforçasprodutivasdotrabalho’”.Nãoestáexcluído, explica Adorno, que “uma sociedade liberada dos seus entraves venha a descobrir que as forças produtivas não são o último substrato do homem, mas representam sua forma histórica adaptada à produção de mercadorias. Talvez a sociedade verdadeira volte as costas ao desenvolvimento e deixe livremente inutilizadas certas possibilidades em vez de precipitar-se sob a pressão de forças dementes à conquista das estrelas” (Adorno, 1954, p.154). Ainda voltaremos às razões desse curioso parentesco.
17 A respeito da transposição do conceito rousseauniano de liberdade política na filosofia de Kant, ver Bobbio, 1975; Terra, 1981.
18 “Si je demandai à la plupart: en quoi faites-vous consister la civilisation?” escrevia Mirabeau, “on me répondrait: la civilisation d’un peuple est l’adoucissement de ses moeurs, l’urbanité, la politique et les connaissances répandues de manière que les bienséances y soient et tiennent lieu de lois de détail: tout cela ne me présente que le masque de la vertu et non son visage, et la civilisation ne fait rien pour la société si elle ne lui donne le fond et la forme de la vertu” (apud Elias, 1973, p.66). Salta aos olhos, lendo o trecho, a evidente filiação francesa da passagem correspondente nas Ideen de Kant, com exceção da ressalva final que anuncia o sonho burguês de uma civilização moral.
19 Sendo isto um fato, traz matéria histórica francesa para as conjeturas de Adorno acerca do equilíbrio entre absolutismo e liberalismo na origem do tacto social e da sobrevida, com o sinal trocado, de outros resíduos mundanos de antigos privilégios. Repare-se também que nem sempre a maré alta da Aufklärung carece de erradicar totalmente as sobras de costumes déraisonnables do passado. Reparemos também, completando as observações de Norbert Elias a respeito, que assim adotado e transfigurado pela intelligentsia iluminista, o termo “civilização” reapareceu em Rousseau, devidamente recusado, tal como as demais “obras-primas da política do nosso século”: “le fer et le blé ont civilisé les hommes et perdu le genre humain”. Colletti (1972, p.211-3) cita esta frase do Segundo Discurso para realçar o contraste com passo análogo em Adam Smith, onde também se trata de metalurgia e agricultura: de um lado, certeza de que civilização se confunde com a ruína do gênero humano, de outro, a crença no progresso que o aprimoramento das forças produtivas do trabalho traz consigo. Em ambos, contudo, a palavra civilização, fasta ou nefasta, descreve a passagem da economia de subsistência à economia de desenvolvimento produtivo graças à divisão social do trabalho.
ABSTRACT: Study of the relationship between the cultivated jews of Berlin (represented by the figure of Rachel Varnhagen) and the German classical culture through the analysis of the role played in the latter by the idea of “personality”, codeword of the German mandarins’ ideology.
KEYWORDS: German classical culture; Bildung; Rachel Varnhagen; personality; German mandarins.
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