A PERSPECTIVA DIALÉTICA EM ADORNO E A CONTROVÉRSIA COM HABERMAS
Wolfgang Leo MAAR[1]
RESUMO: A partir dos conceitos de indústria cultural e semiformação, procura-se apresentar a perspectiva dialética de Adorno ao decifrar as determinações objetivas do social, acompanhando o prisma marxiano de investigação da objetividade social das formas sociais da produção. Nesta dialética o universal – como sujeição social ou reificação – é imanente e presente objetivamente, o que não ocorre na construção intersubjetiva e não dialética de Habermas.
PALAVRAS-CHAVE: Indústria cultural; semiformação; Adorno; Habermas.
A disputa entre as teorias sociais de Adorno e Habermas constitui uma excelente oportunidade para apreender a perspectiva dialética na teoria crítica da sociedade. A rigor a controvérsia entre ambos é sobre a dialética.
No Discurso filosófico da modernidade Habermas procura fundamentar filosoficamente suas diferenças em relação à teoria crítica da sociedade de Adorno. Estas diferenças estão presentes na sua obra pelo menos desde A disputa do positivismo na sociologia alemã, ocorrida em 1966. Já naquela etapa do seu trajeto intelectual, ele se definira por uma aproximação em relação ao pragmatismo e à teoria analítica da ciência, diferenciando-se da perspectiva dialética (Dahms, 1994, p.373). Em 1969, com os textos reunidos em Ciência e técnica como ideologia, em especial em “Trabalho e interação”, delineiam-se em termos da história da filosofia as diferenças de rumo entre sua perspectiva teórica e a dialética de recorte marxiano (Maar, 2000a).
Contudo aparentemente só no Discurso filosófico da modernidade o autor se considera – inclusive considerando-se A teoria da ação comunicativa, de 1981-1982 – apto a “fundamentar” esta sua opção na história das idéias, “filosoficamente”. Agora a teoria social estaria diante de um novo desdobramento – devidamente “globalizado” para além dos autores germânicos – daquela controvérsia sobre o positivismo, no que poderia muito bem ser A disputa da dialética na teoria social crítica.
No Discurso filosófico da modernidade, em especial no capítulo dedicado à discussão e crítica do posicionamento de Adorno e Horkheimer em Dialética do esclarecimento, Habermas procura definir como uma particular ambigüidade a sua relação com Adorno. Este teria abandonado o que seria sua equivocada posição dialética marxista inicial do período da Teoria Crítica. Mas a indisfarçável simpatia com as dificuldades enfrentadas pela “crítica imanente” dialética, afinal se converteria em recriminação, porque o mestre não seguira os passos aparentemente tão seguros e adequados da “volta atrás” na história das idéias, conforme o rumo que seria apontado por Habermas para aquém do ponto onde Hegel teria incidido no que seria seu equívoco fatal.
A questão é: abandonar por que há dificuldades ou apreender tais dificuldades como prova da necessidade de rever uma determinada perspectiva sem abandonar a dialética? Este corolário da tese da obsolescência da perspectiva dialética não seria refletido por Habermas, embora até mesmo pelo prisma analítico se imponha como necessidade lógica. A perspectiva dialética manifesta dificuldades em razão de seu próprio contexto intelectual, a matriz da apreensão idealista-cultural hegeliana e do materialismo dos Junghegelianer, os hegelianos de esquerda. Ao insistir em que “hoje permanecemos no âmbito da opção dos jovens hegelianos” (Habermas, 1985, p.67), em especial dos hegelianos de esquerda (que fizeram a leitura materialista da religião), bem como da apropriação nietzschiana destes, Habermas esclarece sua rejeição da dialética num sentido que este ensaio pretende esclarecer: a dialética resultante da crítica de Marx a Hegel e Feuerbach.
Impõe-se aqui retomar o próprio âmago da perspectiva dialética, que evita rejeitar as contradições diante das dificuldades que se opõem ao entendimento que teima em não ultrapassar a finitude. Hegel, como se sabe, opta por consagrar as contradições procurando um trajeto intelectual que as acompanhe no plano de um movimento de exteriorização e sua superação, rumo a um progresso na consciência da liberdade que minimiza, mas não pode superar efetivamente as contradições da realidade. A contribuição teórica de Marx reside justamente em mostrar a dialética deste movimento histórico refletido por Hegel, para quem de resto “a filosofia é o seu tempo apreendido no plano do pensamento”.
Adorno insiste na dialética, mas incide numa crítica da dialética determinada no contexto culturalista da tradição hegelo-marxiana. O ensaio a seguir procura mapear algumas preliminares deste trajeto intelectual adorniano.
De acordo com a leitura, hoje bastante consolidada, de Jürgen Habermas, a partir da Dialética do esclarecimento Horkheimer e Adorno teriam abandonado a dialética, nos termos de sua apreensão como teoria: a cultura, nas condições da autoconservação humana no contexto da dominação da natureza nos termos da moderna produção capitalista, inviabilizaria qualquer projeto dialético tal como concebido conforme a tradição dialética do idealismo alemão. Eles optariam em face desta situação pela “negação determinada” como procedimento ad hoc, recuando desta forma da tematização marxiana a uma filosofia da história, formulada em termos de uma ontologia não dialética.
A interpretação de Habermas acima referida encontra-se no capítulo “O entrelaçamento de mito e esclarecimento: Horkheimer e Adorno” d’O discurso filosófico da modernidade, escrito em 1985 com base em palestras como The Entwynment of Myth and Enlightenment: Horkheimer and Adorno, de 1984. Adorno e Horkheimer, “impelidos ao questionamento do próprio procedimento de crítica ideológica causado pelo ceticismo ante o conteúdo de verdade das idéias burguesas, teriam deixado de se aplicar à revisão da teoria no plano da ciência social” (Habermas, 1985, p.156).
Tal “abandono irrestrito ao ceticismo ante a razão” teria sido verdadeiramente, pela visão de Habermas, a “opção problemática” (ibidem, p.156) dos autores da Dialética do esclarecimento. Por seu turno, para Habermas importava destacar a relevância em se dedicar a avaliar no contexto teórico-social as razões do ceticismo, constituindo um projeto “pelo qual as bases normativas da teoria crítica da sociedade poderiam eventualmente ser dispostas em uma profundidade tal que não seriam atingidas pela decomposição da cultura burguesa então em curso...”
(p.156).
Esta via habermasiana responderia ao que seria uma apenas aparente ausência de saídas para a continuidade de uma teoria crítica da sociedade, na medida em que recorreria a uma “volta atrás” (ibidem). Tal como Habermas já havia proposto muito anteriormente, em seu ensaio “Trabalho e interação”, a saída estaria numa revisão do trajeto hegeliano até se atingir a bifurcação em que Hegel abandonara sua versão intersubjetiva de razão – a ser recuperada na racionalidade comunicativa habermasiana – em prol de uma unificação impositiva sob os parâmetros do trabalho (Maar, 2000a).
Como Horkheimner e Adorno não trilharam esta revisão hegeliana, só lhes restaria conforme a leitura habermasiana sucumbir ao que seria a falta de saída da perspectiva dialética, acompanhando a inflexão observada pela crítica ideológica na crítica cultural em seu viés ontologizante, tal como esta mudança de rumo estaria representada na obra de Nietzsche (Habermas, 1985, p.104). Não por outro motivo este autor seria justamente a referência primordial, seja de a dialética do esclarecimento, seja da Minima moralia.
Em resumo: a leitura de Habermas induz à conclusão de que Horkheimer e Adorno abandonam o prisma dialético após a Dialética do esclarecimento. A partir desta inflexão a obra de Adorno seria caracterizada:
1 pelo abandono da apreensão dialética de teoria, reduzida ao procedimento da “negação determinada”.
2 pela aproximação de uma perspectiva geral de apreensão da lógica da evolução cultural, particularmente conforme as obras de Nietzsche.
Habermas havia se referido em seu Discurso filosófico da modernidade à relação Hegel-Marx, ocasião em que apresentaria sua apreensão do “trabalho social”; cabe acompanhá-la com atenção, porque nela se pode explicitar a orientação dada à leitura da Dialética do esclarecimento por este autor.
Segundo Habermas, Marx transferira a produtividade estética dos românticos – no que seria sua idéia expressivista de formação, apoiada na leitura do Hegel de Charles Taylor – à vida obreira do gênero humano, podendo assim “compreender o trabalho social como auto-realização coletiva dos produtores” (Habermas, 1985, p.81). O que há de “social” no “trabalho social” habermasiano seria sua realização coletiva, a ser revelada no produto, como objetivação do trabalho. Mas este coletivo é intersubjetivo, isto é, precisa ser acrescido exteriormente ao trabalho, sempre concebido pelo pressuposto do indivíduo, por ele ser realizado em sociedade e não individualmente.
Por isso, a “dialética” do trabalho social (social no limitado sentido habermasiano) seria recusada: ela não estaria provendo imanentemente a universalidade, a orientação normativa esperada por Habermas.
A universalidade para Habermas se instala formalmente na comunicação social intersubjetiva, mas não se apresenta na própria formação social, objetivamente. O social em Marx, porém, tem significado “objetivo”: apresenta-se na forma socialmente determinada da formação, da produção, no seu modo. Eis a grande descoberta de Marx que não foi acompanhada por Habermas: a dimensão objetiva do social presente na realidade vigente a ser investigada. Social para Habermas é estritamente referenteaoqueocorrenasociedade,semnexoaocomoocorreaprodução desta sociedade, cuja forma determinada contém a universalidade.
Seria justamente pela dialética social da crítica de Marx a Hegel que esta universalidade se revela, pela investigação, na reificação gerada com o trabalho social alienado. A reificação é a objetivação socialmente determinada em certas condições do trabalho social. A universalidade está presente negativamente no social objetivado na conformidade deste ao vigente. A sujeição objetivamente determinada expressa em termos objetivos, na forma determinada da formação social, a orientação normativa. Esta seria implementada numa interação dialética entre, por um lado, a negação determinada da formação que sujeita, e, por outro, a afirmação no plano de uma configuração dialética do novo, da produção não sujeitada.
A dialética adorniana procura fazer juz a esta nova objetividade social revelada por Marx, investigada agora porém na forma determinada da formação.
A relevância de Marx como pensador se expressa na nova objetividade social que postula para a apreensão da realidade efetiva. Segundo Marx há duas dimensões a serem respeitadas conjuntamente:
1 O socialprecisaser reveladona objetividade;masistonão basta.
2 A forma deste social também é socialmente determinada.
Marx parte precisamente das limitações do pensamento, seja de Hegel, seja dos hegelianos de esquerda, em obter uma orientação efetivamente imanente para o desenvolvimento da história humana. Ao investigar a determinação objetiva nesta forma social, Marx apresenta nela, como reificação, o universal social, dispensando-se de introduzir o mesmo por aglutinação exterior, como intersubjetividade.
Como Hegel e embora invertendo materialisticamente o idealismo, a esquerda hegeliana também presumira estabelecida a sociedade em que os homens geram consciência religiosa e política. Na objetividade dos produtos – espírito religioso, liberdade política – desvenda o social, sua origem humana. Mas ao fazê-lo, simultaneamente se atém ao estabelecido, consagrando a produção na sociedade. Falta-lhe ultrapassar esta objetividade socialmente formada, transcendendo-a enquanto pressuposta, por uma perspectiva de totalidade (é isto que Lukács ressaltava ao afirmar que o que distingue o marxismo é a “perspectiva de totalidade” e não a perspectiva econômica na sociedade) efetivamente imanente, cujo único pressuposto será a produção real efetiva da vida em suas determinações sociais. Este, em suma, será o trajeto desenvolvido por Marx a partir da Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel em direção a seus Manuscritos econômico-filosóficos.
Além de revelar o social na objetividade que é resultado, cabe derivar a própria forma da consciência religiosa e política da estrutura social, decifrando-as como socialmente determinadas.
Nestes termos, ao retraduzir nos resultados prontos os seus processos de produção, Marx acresce uma nova dimensão à apreensão da dialética, para além de ser método de apresentação reconstrutivo, ordenador, dos nexos entre produtos. Ele desenvolve um projeto de investigação das relações entre os processos de produção, decifrando a dialética no próprio processo histórico material. Estas duas dimensões estão ambas presentes na obra marxiana, como método de apresentação e método de investigação, conforme explicitado, por exemplo, no prefácio dos Grundrisse.
Em outras palavras: o ponto de partida, o processo de produção e reprodução material da vida, constitui também ele uma mediação e não pode ser assumido em sua imediatez, por ser também ele uma realização histórica. A forma social em que a produção social se desenvolve também precisa ser examinada a partir da estrutura social da produção.
Esta equação, exposta definitivamente a partir de A ideologia alemã, só é possível pela particularidade da crítica materialista à dialética, em que a dialética não seria abandonada em prol de uma ciência positiva. A questão seria exposta nas Teses sobre Feuerbach. Na 1ª Tese Marx destaca, simultaneamente, a limitação do materialismo feuerbachiano por ser objetividade pressuposta, ainda que material, e a limitação do idealismo hegeliano por ser objetividade ideal, ainda que produzida.
A principal deficiência de todo materialismo até hoje (inclusive o de Feuerbach) é que o objeto, a realidade efetiva (Wirklichkeit) só é apreendido sob a forma do objeto ou da intuição; e não como atividade humana no plano dos sentidos, práxis; não subjetivamente. Por isso o lado ativo seria desenvolvido pelo idealismo, que evidentemente não conhece a atividade no plano dos sentidos, como tal. Feuerbach quer objetos no plano dos sentidos – efetivamente distintos dos objetos mentais: mas a atividade humana, ele não a apreende propriamente como atividade objetiva. (Marx & Engels, 1966a, p.139)
E conclui na famosa 11ª Tese: “Os filósofos só interpretaram o mundode modosdiferentes,o decisivoé transformá-lo” (ibidem,p.141).
Está em causa aqui a primazia da prática ante a interpretação teórica, que significa uma perspectiva histórica para uma dialética retirada do âmbito conceitual. O ponto de partida para Marx é o âmbito da transformação. No presente, a interpretação, este âmbito conceitual, é conseqüência correspondente a uma formação material determinada que se consolida positivamente, como pressuposta; uma determinada realidade se pereniza ao se apresentar à interpretação. A “transformação” já foi feita, colocandoarealidadedeponta-cabeça,aser“negada”: cabe “transformar” o “transformado”. O texto d’A ideologia alemã esclarece:
O fato é que determinados indivíduos, atuando produtivamente de determinado modo, estabelecem determinadas relações políticas e sociais ... A consciência dos homens não pode ser nada além de ser consciente, e o ser dos homens é seu processo de vida efetivo [determinado]. Se em toda a ideologia os homens e suas relações aparecem dispostos de cabeça para baixo, como numa câmara escura, então este fenômeno resulta de seu processo de vida histórico. (Ibidem, p.90-1, grifo meu)
O ponto de partida, enquanto determinado processo efetivo de reprodução da vida, é a inversão da perspectiva materialista produtiva e não idealista. Ou seja: o ponto de partida é a inversão alienada da produção material. O ponto de partida é o processo de auto-alienação social do trabalho. O tema do primeiro Manuscrito econômico-filosófico, em que pese um de seus subtítulos, “O trabalho alienado”, é o processo determinado de produção pelo trabalho do trabalho alienado, revelado a partir da investigação da gênese do trabalho alienado no processo de auto-realização humana da vida humana em sua interação com a natureza e sua inter-relação social recíproca. Está em causa não só o lado positivo do trabalho (interpretativo-hegeliano), mas o seu lado negativo (transformador-marxiano). O tema seria o trabalho alienado, mas o alvo é o trabalho. Ou seja: o trabalho alienado é produto determinado do trabalho determinado. No final de seu primeiro Manuscrito, Marx indagaria: “Nós aceitamos como um fato o estranhamento do trabalho, sua alienação, e analisamos esse fato. Agora indagamos: como o homem chega a estranhar, a alienar o seu trabalho? Como este estranhamento se funda na essência do desenvolvimento humano?” (Marx & Engels, 1966b, p.86).
Para Hegel, alienação (Entfremdung), em que pesem os vários usos em que o conceito aparece, é sobretudo o “ser-outro” do espírito, sua exteriorização, sua objetivação sob a forma de objeto. Nesta medida, a superação da alienação tem o significado de conhecimento, e representa uma supressão da exteriorização, objetivação. O problema de tal conceituação da alienação surge na medida em que a alienação do trabalho seria um seu momento essencial; ou seja, já estaria na objetivação, na fixação do trabalho em um objeto como seu produto, revelando-se eterna condição do trabalho humano. Georg Lukács deparara-se com esse problema em História e consciência de classe. Sem se aprofundar nesta questão, cabe apenas rememorar sua autocrítica posterior, em que distingue esta exteriorização objetiva do trabalho do que denomina “nexo social objetivo da alienação”, que se instala quando as formas objetivadas adquirem na sociedade funções que sujeitam e deformam a essência dos homens em sua relação ao seu ser social.
Alienação refere-se, portanto, sobretudo às relações sociais, à alienação do homem em relação ao homem. Marx procuraria examinar a alienação estritamente por uma perspectiva imanente, rejeitando quaisquer causas exteriores às relações sociais de produção. Hegel havia apreendido o trabalho como essência do homem. Mas, “aqui estaria a sua limitação ... ele só vê o lado positivo do trabalho, e não seu lado negativo”.
Hegel se concentra no prisma do trabalho gerador de produtos, mas passaria segundo Marx ao largo das condições efetivas determinadas dos homens que trabalham, dos trabalhadores, produtores. Ou seja, “não atenta às relações entre o trabalhador (do trabalho) e a produção”. Aqui o trabalho produz condições sociais para os trabalhadores; por um lado, riqueza, por outro, miséria. Neste plano ocorre o decisivo: “o trabalho social produz relações sociais que se autonomizam, retroagindo sobre o próprio trabalho social, num processo em que o trabalho se aliena a si mesmo, reproduzindo como trabalho alienado as relações sociais que alienam o trabalho social” (Schmied-Kowarzik, 1981, p.109).
Relações sociais que se autonomizam significa: o trabalho social forma trabalhadores que se autonomizam, isto é, são diferentes – a uns cabe a produção, a outros, o consumo – abrindo a possibilidade de desenvolverem contradições entre si: as lutas de classe – formando condições que reproduzem a alienação do trabalho social. Os indivíduos produzindo na sociedade não só produzem a riqueza, como também as condições de vida em que eles próprios produzem.
O trabalho hegeliano, quase um ato puro de realização laboral, não é capaz de produzir alienação social no sentido acima colocado; por isso na “economia” hegeliana, que é sua Filosofia do direito, paralelamente à lógica do trabalho existe a lógica da satisfação das necessidades. A universalização ocorre no plano das necessidades coletivas, universais, satisfeitas. O padrão da alienação ou da desalienação é exterior à dialética da auto-realização pelo trabalho.
Mas o trabalho social, ao gerar as relações sociais entre os trabalhadores baseadas no nexo entre trabalhadores e produção, tal como anteriormente exposto, permite abstrair desta normatividade social nos termos da universalização do atendimento às necessidades. Nos termos anteriormente expostos, o sujeito social, ao se converter em objeto, ao se formar como “coisa” que independe da vontade do indivíduo, expressa o seu caráter universal sob a forma do trabalho alienado. Assim a lógica do trabalho social alienado impõe uma universalização, que dispensa doravante o recurso a uma lógica da satisfação das necessidades, como ainda pensava Hegel. A própria alienação do trabalhador no processo de trabalho social representa o geral, instalado no próprio curso do movimento de formação, de transformação, de dar forma à matéria, e não mais pela articulação coletiva de vontades individuais.
Um conjunto de discussões dos integrantes do Instituto de Pesquisa Social no período a partir de 1939 tem como centro justamente a perspectiva dialética. O próprio projeto dos Fragmentos filosóficos, título inicial da obra posteriormente publicada como Dialética do esclarecimento, originalmente era dirigido à discussão da dialética (Wiggershaus, 1991, p.352). A leitura rigorosa da obra de Marx por Adorno seria atestada nos protocolos de discussão do Instituto de Pesquisa Social (Demirovic, 1999, p.463).
As discussões sobre a dialética, reproduzidas na edição da obra de Horkheimer, indicam uma problematização do legado idealista reconstrutivo hegeliano, de uma dialética conceitual e interpretativa. Estaria em causa sobretudo o modelo da formação cultural (Bildung), de uma evolução dialética rumo à “consciência da liberdade política” que resultaria numa indiferença em relação à realidade efetiva, que terminaria por ser reafirmada como pressuposto do próprio ordenamento dialético. Em outras palavras, a formação estaria condicionada à individualidade burguesa no âmbito de uma formação social estabelecida, a ser aperfeiçoada, sem compromisso, no entanto, quanto ao próprio âmbito do nexo indivíduo-sociedade em que se verifica o processo formativo. Duas críticas são dirigidas a tal dialética:
1 Seu procedimento fundacionista-dedutivo, característica do seu viés idealista finalista.
2 A pressuposição das bases do trajeto anteriormente apontado, desprovidas de embasamento social concreto e portanto descompromissadas e abstratas.
O conceito de dialética tem sido usado até hoje, inclusive na discussão marxista, de um modo essencialmente idealista, isto é, conclui-se a partir de um movimento conceitual e geral rumo ao movimento particular e específico na história ... esta concepção é insuficiente, pois mesmo quando o conteúdo da doutrina afirma o contrário, por sua forma ela mantém a pretensão da subjetividade em dominar o mundo mediante seus conceitos. O problema da dialética, portanto, é determinado segundo dois aspectos: por um lado, a situação dada em que a reflexão deve se apoiar também é constituída dialeticamente e não é um ponto de partida absoluto para a construção dialética. Por outro lado, esta construção dialética é inconseqüente, enquanto não estiver imediatamente presente a partir de uma análise da situação dada. (Horkheimer, 1985, p.527-8)
Não só se parte de uma situação dada concreta, em vez de se subordinar a uma conceituação geral: esta situação dada não pode, além disso, ser apresentada como absoluta, mas é também constituída. Por sua vez, a dialética só será efetiva se estiver presente nesta situação dada, e não for imposta exteriormente a esta. A dialética seria então verdadeiramente “o novo no antigo” a que se referia a Metacrítica da teoria do conhecimento (Adorno, 1985, p.46). Com efeito, um pouco à frente nas discussões sobre dialética, a questão seria apresentada de modo exemplar: o conhecimento (dialético) deveria,
enquanto co-portador de uma tensão, num certo sentido, ir além de si mesmo. Assim o conceito do que é dado já conteria em si o conceito do ir além de si. Nestes termos a tarefa de uma teoria da dialética seria situar o conceito do que é dado de tal modo que assim preencha esta função dialética. O meu conceito das “formações dialéticas” (dialektische Bilder) corresponde a esta intenção. Refiro-me a “formações”, porque não se trata de um ser conceitual, mas de um ser imediatamente disponível, onde, entretanto, a disponibilidade imediata não seria definida exclusivamente mediante a percepção sensorial do sujeito, mas apreenderia em si determinadas condições sociais. Tais formações são denominadas “dialéticas”, porque, no sentido acima explicitado, sem que para sua construção houvesse necessidade de um ser conceitual geral, alcançam para além de si próprias, relacionando-se com outras situações históricas igualmente concretas sem abandonar seu âmbito concreto. Nesta medida há também outra forma de definir o problema das formações dialéticas, aquela segundo a qual a tarefa da filosofia da história seria a de construir idéias que, sem ultrapassar o conjunto do material dado de modo confiável, detém mesmo assim poder revelador do ordenamento deste material na realidade efetiva. (Horkheimer, 1985, p.530)
As idéias da filosofia da história já não seriam representações ideais presentes na cultura, como ainda ocorreria com Lukács em sua História e consciência de classe. Ali a emancipação tem como sujeito a “consciência de si” na matriz hegeliana, pois ocorre com a realização de uma consciência de classe adjudicada, desvendada culturalmente ao proletário empírico, que assim constitui o verdadeiro sujeito da história. Agora trata-se de decifrar formações dialéticas. Ou seja: tais “idéias” seriam formações dialéticas da realidade efetiva, reconstruções desta em determinados ordenamentos, a apontar para além de si próprias quando adequadamente decifradas. Este é o prisma com que Walter Benjamin se refere à “alegoria”: revelações do ordenamento do material na realidade efetiva.
O “conceito” – ou pensamento – já conteria aqui, em sua forma, o social. Como não se trata, também, de uma orientação idealista, como anteriormente explicitado, mas de uma reflexão em que o dado corresponde a uma função presente, a apreensão do dado como formação dialética possibilita decifrar nele a dinâmica histórica de modo imanente sem recorrer à orientação externa e contrariamente a ela.
O pensamento ocuparia aqui um papel de adaptação a uma situação histórica determinada, situação esta caracterizada pela falsidade. Em “Para Voltaire”, na Dialética do esclarecimento, assim se pronunciam os autores:
Não é o bem mas o mal o objeto da teoria. Ela sempre pressupõe a reprodução da vida nas formas respectivamente determinadas. Seu elemento é a liberdade, seu tema a sujeição ... só há uma expressão para a verdade; o pensamento que nega a injustiça. Se a insistência nos aspectos bons não é conservada no todo, então ela consagra seu próprio oposto: violência. (Adorno & Horkheimer, 1985, p.204, grifo meu)
“Mal” que é alienação histórica material – sofrimento – a ser refletida mediante um “pensamento negativo”, num âmbito agora “extracultural”, vinculado ao âmbito cultural através de um nexo dialético social. A cultura não seria pressuposta e absolutizada, mas também ela seria determinada socialmente. Conforme “Para uma crítica da filosofia da história” do final da Dialética do esclarecimento:
A astúcia (da razão) consiste em fazer dos homens feras dotadas de um poder cada vez mais extenso, e não em estabelecer a identidade do sujeito com o objeto ... Visto que a história enquanto correlato de uma teoria unitária, como algo de construível, não é o bem, mas justamente o horror, o pensamento na verdade é um elemento negativo. A esperança de uma melhoria das condições funda-se menos nas condições garantidas, estáveis e definitivas, do que precisamente na falta de respeito por tudo aquilo que está tão solidamente fundado no sofrimento geral. (Adorno & Horkheimer, 1985, p.208-9)
Ecoa aqui de modo claro a “inexorável crítica a todas as condições que sujeitam os homens” da Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel, de Marx: porque também os homens não são “garantidos”, mas socialmente gerados em determinadas condições. Como Marx, também Adorno e Horkheimer referem o pensamento negativo ao plano constitutivo da esfera cultural e do pensamento da adequação, num movimento em direção à recuperação social e material do prisma dialético.
A crítica seria dirigida mais a um modelo “cultural” no qual a dialética se encontra na interpretação, do que à dialética entendida nos termos originários de “movimento imanente do ir-além”, como Hegel a apresenta na Enciclopédia (Hegel, 1986, p.172). Na Dialética do esclarecimento, na parte VI dos “elementos do anti-semitismo”, Adorno & Horkheimer abordaram a questão da cultura (1985, p.184):
Com a propriedade burguesa, a cultura também se difundiu ... Mas como a real emancipação dos homens não ocorreu ao mesmo tempo que o esclarecimento do espírito, a própria cultura ficou doente ... A cultura converteu-se totalmente numa mercadoria, difundida como uma informação, sem penetrar nos indivíduos dela informados. O pensamento perde o fôlego e limita-se à apreensão do fatual isolado. Rejeitam-se as relações conceituais porque são um fardo incômodo e inútil ... Assim naufraga esta auto-reflexão do espírito...
À cultura caberia função ideológica primordial na consolidação da sociedade vigente. Por seu intermédio se produzem as massas como “sujeitos”, efetivamente sujeitados, de uma formação social que assim se pereniza.
Os homens dão seu assentimento à cultura de massas porque sabem que aqui aprenderão os hábitos (“mores”) de que precisam na vida monopolizada como passaporte. Este só é válido quando pago com sangue, com a total cessão da vida, com a obediência subalterna ante a odiosa imposição. Por isso, e não pela estultificação das massas que os inimigos destas produzem e os seus amigos lamentam, a cultura de massas é tão irresistível. (Adorno, 1984, p.331)
As determinações objetivas da subjetividade conduzem à reflexão acerca dessa forma imposta socialmente à formação, reflexão similar à de Marx em sua crítica a Hegel, a desvelar além desta dimensão “positiva” da formação do sujeito no âmbito próprio da sociedade existente a dimensão “negativa” de como se forma esta formação determinada. O final do parágrafo anteriormente citado recoloca a questão neste eixo dialético:
Mediante a regressão se ratifica a recusa da resistência. As massas tiram as conseqüências da completa impotência social ante o monopólio, em que hoje em dia se traduz a progressão da miséria. Na adequação às forças produtivas técnicas, que o sistema lhes impõe como progresso, os homens se convertem em objetos que se deixam manipular sem resistir, e desse modo regridem para aquém do potencial das forças produtivas técnicas. Mas como, enquanto sujeitos, permanecem sendo eles próprios os limites da reificação, a cultura de massas precisa continuamente, em uma má infinitude, apossar-se de novo dos mesmos: o desesperançado esforço de sua repetição constitui o único vestígio da esperança de que a repetição é inútil, de que os homens [no sentido em que produzem sua própria conversão em objetos] afinal não podem ser apropriados. (Adorno, 1984, p.331)
A perspectiva dialética de Adorno centra-se no que se pode denominar “determinações objetivas da subjetividade” responsáveis pela perenização da formação social vigente. Isto é, a investigação se concentra na objetividade social desvendada por Marx – conforme exposto anteriormente – objetividade que constitui a realidade efetiva do movimento dialético da história como produção e reprodução da vida dos homens em condições determinadas.
Tal objetividade social efetiva seria revelada em sua dialética doravante no âmbito da cultura e da formação: eis a principal contribuição de Adorno ao trajeto iniciado por Marx. Em outros termos, para Adorno cultura e formação precisam ser investigadas não estritamente na sociedade vigente, mas perante a produção da sociedade enquanto formação social autogerada pelos homens e aprendida em sua dialética histórica. Cultura e formação “demandam uma teoria mais abrangente”, dirá Adorno (1979a, p.94): precisam ser examinadas fora do âmbito estritamente cultural ou pedagógico – tal como estes são socialmente definidos na sociedade – para serem investigados no plano da própria produção social da sociedade em sua forma determinada.
Pela via do fetichismo da mercadoria, o modo de produção impõe formas determinadas que, como “consciência” sujeitada, reproduzem a sujeição ao mesmo tempo em que geram experiências substitutivas pelas quais aparentam se constituir como sujeitos livres.
Já em carta de 2 de agosto de 1935 endereçada a Benjamin, Adorno insistira: “o fetichismo da mercadoria não é um fato da consciência mas é dialético, no sentido eminente em que produz consciência. Isso significa que a consciência não pode simplesmente descrevê-lo como sonho, mas responde a ele em pé de igualdade, com vontade e temor” (Adorno et al., 1980, p.111, grifo meu).
Para Adorno o problema do fetichismo não termina com a revelação do social na objetivação petrificada, mas conduz à necessidade de decifrar as determinações objetivas deste social, pelo qual a própria produção, enquanto subjetividade, seria determinada na adequação à continuidade do vigente, como uma determinada consciência. Haveria uma imposição social profunda no que chamamos a subjetividade decorrente do processo pelo qual os seres humanos produzem materialmente, também ela determinada. Assim, dirá Adorno, “as condições da própria produção material dificilmente toleram aquele tipo de experiência com que atinavam os conteúdos tradicionais da formação” (Adorno, 1979a, p.101, grifo meu).
Tais condições impõem a forma social ao sujeito, por serem condições determinadas em determinadas circunstâncias. Aqui se pode acompanhar a dialética marxiana, pela qual o processo dialético na sociedade, tal como interpretado por Hegel, seria por sua vez refletido de modo a decifrar dialeticamente a própria formação determinada desta sociedade conforme a produção efetiva da vida em determinadas condições materiais de sua reprodução. Para Adorno é preciso decifrar a cultura e a formação em seus momentos constitutivos, conforme a função que ocupam no presente, pelas suas conseqüências, e não conforme a orientação idealista, pressuposta, que confirma e pereniza o existente. Justamente nesta medida ele introduz a questão da semiformação. A função social objetiva deve ser o ponto de partida; no objeto deverá ser exposta sua determinação social, sua história.
A maneira particular com que Adorno examina o plano cultural pelo prisma de suas determinações sociais objetivas expressa a sua perspectiva dialética nos termos da apreensão da dimensão social produtiva, tal como exposta por Marx, conforme a apresentação exposta aqui. O nexo entre cultura e formação seria, nesta medida, o alvo prioritário de Adorno. A questão seria investigada nas relações recíprocas entre indústria cultural e semiformação (Halbbildung). Ambos os conceitos seriam desenvolvidos ainda na Dialética do esclarecimento e são especialmente interessantes para se discutir a leitura deles por Habermas. “A semiformação, ao contrário da mera ausência de formação, hipostasia o saber limitado como sendo verdade” (Adorno & Horkheimer, 1985, p.175).
A indústria cultural, “círculo de manipulação e necessidade retroativa” (Adorno & Horkheimer, 1985, p.109), é “integração voluntária, pelo alto, de seus consumidores” (Adorno, 1973, p.60) e como tal “é decisiva para o espírito hoje predominante” (Adorno, 1973, p.64), pois é fator que “duplica o que existe na consciência dos homens” (Adorno, 1979b, p.175), confirmando o mundo nos termos da ordem estabelecida (ver Maar, 2000b). Por isso em “Crítica cultural e sociedade” Adorno diria que atualmente a ideologia é “a própria sociedade” (Adorno, 1977, p.26) e falso não é o ideológico, mas que a sociedade, “copiada” como sendo integrada, se imponha como efetiva.
A semiformação é “o espírito apossado pelo caráter fetichista da mercadoria” (Adorno, 1979a, p.108). Esta é uma formação “regressiva” (Adorno, 1973, p.68) resultante da adaptação, que se reflete como formação socialmente determinada que, num segundo momento, se impõe como subjetividade conservadora, como “fraqueza para o tempo” (Adorno, 1979, p.116) que pereniza: “No clima da semiformação os momentos da formação que são reificados ao modo das mercadorias perduram à custa de seu conteúdo de verdade e de sua relação viva com sujeitos vivos. Isso corresponderia à sua definição” (Adorno, 1979a, p.103).
Importa questionar como ocorre esta determinação social. Eis a questão primordial: os homens formam a sua semiformação em determinadas condições sociais (ver Maar, 2001). O que em Marx era papel do trabalho alienado – colocando a questão central: como os homens se alienam – para Adorno é relativo ao processo formativo. A própria formação, queseriaapreendidasóemsuapositividadeporLukács,aoseorientarpela consciência de classe culturalmente presente – Lukács faz aqui o papel desempenhado por Hegel com sua apreensão positiva do trabalho para Marx – deve ter sua dimensão negativa exposta. Torna-se imperioso não interpretar a formação já existente, mas apreender a formação transformadora efetiva, pela qual se formou aquela que seria interpretada como uma cultura já feita.
Cabe responder à pergunta: como os homens se sujeitam a si próprios, impondo-se o imperativo categórico “Sujeita-te àquilo que existe!” (Adorno, 1973, p.67)? A sujeição efetivamente vale como determinação “objetiva” no plano do que já se encontra “objetivado” pelo verdadeiro “sujeito”, revelado para além da sociedade já constituída, como aquele “sujeito limite da reificação” porque ele “produz reificação” e “se subordina voluntariamente a ela”.
Que a semiformação, apesar do esclarecimento da Ilustração e da difusão de informações e mesmo por seu intermédio se tornou a forma dominante da consciência contemporânea – é justamente isso que exige uma teoria mais ampla. A idéia de cultura não deve ser sacrossanta para ela, conforme é hábito da própria semiformação. A formação cultural (Bildung) nada mais é do que a cultura pelo lado de sua apropriação subjetiva. A cultura, porém, tem um caráter duplo. Ela remete de volta à sociedade e mediatiza entre a mesma e a semiformação. (Adorno, 1979, p.94)
Como o “trabalho” seria determinado para Marx, agora a “cultura” não deve ser sacrossanta, mas determinada em sua própria formação. Caberia decifrar as determinações objetivas deste momento subjetivo, evitando deter-se satisfeito na revelação simples do social presente na objetivação. Esta dupla reflexão social constitui a profundidade necessária para apreender a dialética da produção histórica, para além da interpretação da sociedade já instalada. Posteriormente, nos “Epilegômenos dialéticos” postumamente publicados, Adorno denominaria essa dupla reflexão de “segundo giro copernicano” (zweite kopernikanische Wendung) (Adorno, 1969, p.155).
Como indústria cultural, o que se instala, o que se forma como “cultural”, remete à sociedade copiando-a, perenizando-a ao orientar-se pela interpretação retroativa da sociedade já feita. As condições da produção material existentes impõem essa forma e são refletidas na semiformação. Essa é uma formação social determinada, sujeitada no curso da formação social dessas formas determinadas de formação, a sociedade, cuja forma dominante de consciência é a semiformação. Essa é real existente.
Nesta “segunda” reflexão, as determinações “objetivas” da subjetividade também elas são formadas, decifrando-se assim como “autonomização” em relação ao processo de formação, que reflete sobre a sociedade mediante um “clima” – a forma social – que reproduz as condições que instalam a semiformação, como “círculo de manipulação e necessidade retroativa”. Como Marx, também Adorno conduz a investigação histórico-social para além dos pressupostos do indivíduo e da sociedade reais existentes e desvendaria a sociedade como processo de autoformação.
A formação no presente se pauta pela adequação na continuidade do existente; é semiformação. É formação determinada em sua forma pela própria formação social, pela determinação social da produção. A negação determinada é o que pode ser feito conforme a lógica vigente e no plano do já dado em direção ao porvir. Para Adorno esta negação seria efetivamente posta como “única possibilidade” que ainda resta à formação. Isto é, o que permanece do movimento real para além das imposições objetivas que se abatem sobre a formação e que pode ser circunscrito no âmbito do existente. Em suma, o que seria o seu potencial dialético:
Se os homens desenvolveram o espírito para se conservarem vivos, as formações espirituais, de outro modo, sequer existentes, já não são meios de sobrevivência. A autonomização inexorável do espírito perante a sociedade, a promessa da liberdade, é tão social quanto o é a unidade de ambos. (Adorno, 1979, p.121)
O social se objetiva nesta autonomização, que é formada. Aqui Adorno se refere à reificação. Essa reificação não deve ser “simplesmente negada” – eliminada – mas pensada como forma determinada. O real não deve ser eliminado como absoluto, mas negado em sua determinação, superado.
Quando aquela autonomização é simplesmente negada, o espírito é oprimido e constitui a ideologia do existente não menos do que quando usurpa ideologicamente o absoluto. O que pode sem mácula ser denominado de cultural, para além do fetichismo da cultura, é unicamente o que se realiza graças à integridade de sua própria configuração espiritual e atua de volta sobre a sociedade apenas de modo mediatizado, por meio desta integridade, e não mediante a adequação imediata às suas imposições. A força para tanto o espírito só a encontra no que alguma vez foi a formação cultural. Se o espírito só gera o socialmente justo quando não se dissolve na identidade indiferenciada com a sociedade, então está na hora do anacronismo: fixar-se na formação cultural quando a sociedade lhe subtraiu sua base. Mas ela não tem nenhuma outra chance de sobreviver senão a auto-reflexão crítica sobre a semiformação em que necessariamente se converteu. (Ibidem)
A “cultura” – como “formação dialética” – avança, em sua integridade, para além das determinações sociais. Estas impõem ao espírito a reprodução do socialmente injusto. A cultura em sua “integridade” não é a “cultura” já feita a ser interpretada, mas a “cultura” por fazer, que se produz pelo “espírito” que forma as determinações formais possíveis, para além da existente que sujeita e deve ser alvo da “negação determinada”. Essa última é a práxis determinada pela auto-reflexão crítica. Para Adorno, o “espírito” (Geist) se vincula ao trabalho social não meramente reprodutor, mas criativo: o trabalho “intelectual” (geistige Arbeit). Aqui se retoma a Bildung do “trabalho que forma (bildet)”.
ABSTRACT: On the basis of the concepts of culture industry and semiformation, this paper presents Adorno’s dialectical perspective as it uncovers the objective determinations of the social realm, following the Marxist investigation of the social objectivity of the social forms of production. In this dialectic, the universal – as social submission or reification – is immanent and objectively present, which does not occur in Habermas’ intersubjective and non-dialectical construction.
KEYWORDS: Culture industry; semiformation; Adorno; Habermas.
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