OS TESOUROS DE CRATETO: SOBRE A VALIDADE DO ESTUDO HISTÓRICO DA FILOSOFIA[1]

Gregorio PIAIA2

 RESUMO: Em relação ao nosso presente, o passado é ao mesmo tempo próximo e distante, semelhante e distinto. Geralmente estudamos a história da filosofia para encontrar semelhanças ou afinidades com nossa atitude filosófica. Mas o pensamento do passado é freqüentemente diferente do nosso e nos leva a rever nossas respeitáveis opiniões. A abertura ao “outro”, em sentido diacrônico, é hoje o valor formativo essencial (e não só informativo!) da história da filosofia.

 PALAVRAS-CHAVE: História da filosofia; alteridade; valor formativo.

Na obra Vidas dos filósofos (6, 87), de Diógenes Laércio, conta-se que Diógenes, o Cínico, persuadiu Crateto de Tebas a jogar no mar todo o dinheiro que possuía para que pudesse dedicar-se inteiramente à filosofia. O episódio tornou-se muito conhecido e foi assimilado também pela tradição cristã; prova disso é que, no piso da Catedral de Siena do século XV, encontramos representado, além do mítico Trimegisto, também o bom Crateto, que, do alto de um penhasco, joga no mar ouro e jóias. Na filosofia, esse caso poderia ser interpretado hoje, metaforicamente, como um convite a libertar-se do estudo histórico da filosofia com todas as suas bijuterias pesadas e reluzentes (os “tesouros” da erudição) para dedicar-se à pura reflexão teórica, realizando assim o princípio enunciado já no século XVII com extrema clareza por Malebranche: adianta pouco ou nada saber se um texto é ou não de Aristóteles e qual é o sentido que ele pretendia atribuir a uma determinada passagem, mas é muito importante esclarecer se o que está escrito naquela passagem é em si verdadeiro ou falso (Malebranche, 1945, p.151, 154). Nessa mesma linha encontramos, bem mais recentemente, um autor como Quine (1985, p.194), o qual – a propósito da sua experiência frustrante como professor de história da filosofia – lembra que, no lugar de explicar o que pensara Hume, preferia ilustrar seus alunos a respeito da verdade intrínseca de uma proposição extraída dos textos de Hume... Minha intenção é a de questionar esta atitude, hoje difundida sobretudo no âmbito analítico e do cognitivismo, para reivindicar o valor formativo – e não apenas informativo – da abordagem histórica da filosofia.

Gostaria de iniciar com uma pergunta simples e ao mesmo tempo bombástica: de que adianta, hoje, estudar, e, portanto, ensinar a história? Alguns, herdeiros de Malebranche e de Quine, responderão que não adianta nada, uma vez que é preciso lidar com os problemas e as idéias do nosso tempo e não com aquelas do passado, seja este recente ou remoto. Mas acredito que a maior parte responderia mais ou menos desta maneira: o estudo do passado da filosofia pode ser útil para enriquecer a nossa reflexão, mas, em todo caso, deveria ser conduzido à luz dos problemas do nosso presente. É sobre esse último ponto que gostaria de chamar a atenção. Trata-se do tema – caro aos seguidores de Hegel, mas também ao marxista Gramsci – da “contemporaneidade” da história, ou melhor, “da hegemonia do presente em relação ao passado”, uma vez que “só porque o processo histórico é chamado a preparar aquela forma mais alta e compreensiva de autoconsciência que a humanidade realiza no presente, faz sentido ... ocupar-se da filosofia” (Bianco, 1990, p.398). É claro que não é preciso ser hegeliano para reconhecer que cada olhar em direção ao passado não pode senão partir da contemporaneidade do sujeito, e para admitir que, com o passar dos séculos e o acúmulo das experiências culturais, o gênero humano (ou pelo menos aquela parte ínfima que tem o costume ou o vício de refletir) tenha adquirido uma maior consciência de si, mesmo que isso não lhe tenha impedido de modo algum cometer loucuras notórias. Mas o que hoje é discutível (mesmo que até ontem pudesse parecer por si evidente) é que seja possível indicar de modo inequívoco a direção e o significado de tal “processo histórico”, do qual a filosofia seria a representação mais elevada: isto é, a presunção de explicar “para onde” vão a filosofia e a humanidade inteira, como pressuposto para uma explicação global do passado da filosofia, relido em uma chave de interpretação progressiva e em função do nosso presente – o que implica alguns cortes tão dolorosos quanto necessários (ainda que anestesiados e sublimados por um uso cuidadoso do mecanismo dialético, seja este hegeliano ou marxista) entre o que está “vivo” e o que está “morto”, ou melhor, entre o que favorece o progresso do Espírito (ou da Sociedade) e o que o refreia e está portanto fadado a acabar entre os escombros da história.

Que o estudo do passado seja útil para melhor entender o presente, é, no mínimo, evidente depois de dois séculos e meio de florescente cultura historicista. Para citar uma passagem célebre de George Boas (1969, p.VII), “a história das idéias nos diz, entre outras coisas, como chegamos a pensar da forma como pensamos; e se isso não é importante, é preciso perguntar-se o que é importante”. Mas isso não significa ler sistematicamente o passado sob a ótica do presente, comprometendo assim a radical e irredutível ambivalência que conota nossa relação com o passado, que nos é ao mesmo tempo próximo e distante, semelhante e diferente, interessante e indiferente, e cuja reconstrução escapa com freqüência àquela que, para nós, é a “lógica das idéias”. Não é por acaso que, poucas linhas adiante, Boas notava que “quem deseja estudar a história das idéias deve possuir uma curiosidade incomum pela mente humana. Deve estar disposto a ocupar-se de idéias que parecem bobas ou supersticiosas, e talvez obsoletas, com o mesmo cuidado que dedicaria às verdades estabelecidas” (ibidem). Boas se referia à história das idéias, cujo âmbito é mais amplo e variado do que a história da filosofia na sua acepção mais corriqueira. Mas mesmo o passado da filosofia aparece aos nossos olhos repleto de teorias “bobas” e “obsoletas”, e até mesmo supersticiosas. Algo totalmente inútil, com o qual seria vão carregar o ensino da filosofia, para concentrá-lo preferivelmene sobre temas e teorias mais próximos ao presente e aos interesses atuais dos estudantes. Mas será que temos certeza de que o preconceito da “atualidade” a todo custo é o mais lucrativo para um projeto educativo direcionado a alargar o máximo possível o horizonte mental e a evitar o conformismo intelectual dos estudantes, e, antes ainda, dos próprios professores?

Mais do que nos elementos de “afinidade” entre passado e presente, ou nos remotos “germes” que deixam “coerentemente” notar desenvolvimentos modernos e atuais, o valor formador do estudo histórico da filosofia reside sobretudo – e aqui chego a um aspecto que considero essencial – naquilo que é diferente e “outro” em relação ao nosso atual modo de sentir e pensar. É inútil transmitir ilusões fáceis aos nossos estudantes: somos, sim, filhos de nosso passado, fazemos todos parte – nós e nossos distantes predecessores – de uma comunidade pensante que se reconhece como tal e dialoga através dos séculos; mas isso não exclui que as doutrinas do passado se apresentem com freqüência diante de nossos olhos, e ainda mais diante daqueles das novas gerações, sob a marca de uma diferença radical, e que como tais devam ser abordadas e lidas, colocada no contexto que lhes é próprio, sem se recorrer a atualizações deformatórias ad usum Delphini. A esse respeito, há uma frase de Ernest Renan que faz refletir, porque escrita em uma época em que as metafísicas da história causavam furor e as filosofias do presente condicionavam fortemente a leitura das filosofias do passado. “Il ne faut demander au passé que le passélui-même.” Dessa forma, o estudioso francês apresenta o seu trabalho de monografia sobre Averroèsetl’averroïsme (1852), desiludindo de imediato, e de forma quase brutal, aqueles que pensavam poder encontrar na história da filosfia “alguns resultados positivos e imediatamente aplicáveis às necessidades do nosso tempo” (Renan, 1861, p.v).

Muito bem, pode-se dizer: o que foi dito reforça as posições daqueles que criticam o método histórico. Se a situação é tão complexa e intrincada assim – e ao contrário, na escola, como sabemos, é preciso simplificar – tanto faz eliminar qualquer abordagem histórica da filosofia ou reduzi-la a algumas referências esporádicas, como um acompanhamento segundo os gostos. Não sou dessa opinião, por uma série de motivos que tentarei explicar aqui. O primeiro pode parecer óbvio, mas vale a pena recordá-lo no momento em que nos colocamos a questão ao mesmo tempo simples e trabalhosa: de qual aparato cultural devemos munir nossos alunos que viverão em pleno século XXI? E tem ainda sentido “perder tempo” estudando vidas e obras de filósofos mais ou menos distantes no tempo, quando são bem outros os interesses e os problemas que agitam os nossos jovens e que pediriam uma abordagem totalmente “contemporânea”? Gostaria de responder com as palavras de um humanista moderno, Ernest H. Gombrich (1985, p.16): “Se perdemos a memória do passado, acabamos por perder aquela dimensão que dá profundidade e substância à nossa cultura”. A filosofia constitui um aspecto essencial desta dimensão histórica, que não pode ser comprimido dentro de, nem reduzido a, um ensino por problemas (de fundamentos tanto epistemológicos quanto dialógico-existenciais), assim como a iniciação do aluno à criatividade literária e artística não substitui de forma alguma o estudo dos clássicos do passado, mas, ao contrário, dele se nutre. E isso porque o “saber” filosófico, tanto quanto o literário e artístico, é um saber por natureza “histórico”, ao invés de cumulativo e sistemático, a menos que não se tire a poeira do mito cientificista que queria refundar a filosofia com base no modelo das ciências exatas e naturais.

É demasiado fácil para nós, hoje, objetar que até mesmo o modelo do saber cientificista (penso no modelo cartesiano ou naquele de Newton) acaba sendo historicamente datado, e compõe por sua vez o grande caldeirão do saber histórico-cultural. Mesmo a filosofia, na verdade, enriquece o patrimônio humano – embora em modalidades diferentes –, tanto quanto a literatura e as artes; e os seus produtos não acabam no “cemitério das opiniões” de que falava Hegel, mas constituem igualmente testemunhos do esforço humano em busca da verdade: uma espécie de grande caleidoscópio no qual os fragmentos, mais ou menos luminosos, não conseguem compor-se em uma unidade orgânica pelo simples motivo que tendem à verdade – em si mesma inesgotável –, a partir de angulações diferentes umas das outras. Não resta outra coisa a não ser tomar consciência desta condição humana e desfrutar destes fragmentos – por mais parciais e “inúteis” ou estranhos que sejam – através do contato com textos que nos transmitiram a memória deles. É ainda Renan (1861, p.IX-X) que, justificando-se por ter dedicado tanta atenção a uma filosofia como a de Averroes, “qui n’a plus rien à faire avec nous”, observa que,

a partir do momento em que se admite que a história do espírito humano é a maior realidade aberta às nossas investigações, cada pesquisa com a finalidade de iluminar um canto do passado ganha um significado e um valor. Num certo sentido [e estas palavras poderiam ser assumidas como uma réplica às críticas mencionadas de Malebranche e de Quine], é mais importante saber o que o espírito humano pensou em torno do problema do que ter uma opinião (un avis) sobre este problema; porque, mesmo quando a questão é insolúvel, o trabalho do espírito humano para resolvê-la constitui um fato de experiência (un fait experimental) que sempre tem o seu interesse; e supondo que a filosofia esteja condenada a não ser mais do que um esforço vão e eterno para definir o infinito, não se pode negar que haja neste esforço, ao menos para os espíritos curiosos, um espetáculo digno da mais alta atenção.

É como dizer que, pelo menos de um certo ponto de vista, o conhecimento do que ao longo da história foi elaborado em torno de certos problemas recorrentes prevalece sobre os pontos de vista pessoais…

Mas isso – poderá dizer-se – não significa talvez acabar com o esforço do estudante em direção à conquista de uma opinião pessoal, que, por mais limitada que seja, do ponto de vista educativo vale muito mais do que um amontoado de informações, ou seja, admitamos, de “noções”? Sim, dessa forma corre-se o risco de desestabilizar o princípio mais sagrado da pedagogia moderna, que, todavia, como todos os princípios sagrados deste mundo, deveria ser continuamente avaliado e não mitificado. Temos certeza de que as opiniões “pessoais” dos nossos estudantes são deles mesmos ou não refletem elas, na maioria das vezes, os modos de sentir mais comuns e estereotipados veiculados pela mídia e próprios das últimas gerações? E mesmo quando o jovem adquire uma posição pessoal própria, é preciso perguntar-se se não haverá um risco oposto, muito provável em uma época de acentuado egocentrismo e narcisismo, somente encoberto por uma máscara de tolerância formal. Ou seja, o risco de um fechamento solipsista dentro das convicções pessoais ou de grupo, que obstaculiza qualquer abertura ante àquilo que seja “outro”, alheio às minhas idéias, e que torna impossível, ao contrário, qualquer avaliação dos meus julgamentos, fazendo que eu caia em cheio naquilo que Kant chama de “egoísmo lógico”, com a conseqüente perda do “senso comum”.[2] Na conclusão do trecho citado, Renan faz referência aos “espíritos curiosos”, e não por acaso Boas também se referia a “um tipo não comum de curiosidade”. Não acredito que tal curiosidade deva caracterizar apenas o perfil profissional daquela fauna estranha que são os historiadores das idéias. No final das contas, ela corresponde àquele interesse pelo “outro”, que o bom Terêncio expressou em uma frase muito citada no passado: Homo sum; humani nihil a me alienum puto, e que corresponde, para nos limitarmos a um só nome e a uma só citação, à lição sempre atual que vem de um espírito livre como Montaigne (1982, p.301):

Eu não incorro de forma alguma no erro comum de julgar uma outra pessoa tomando por base o que sou. Admito facilmente coisas diferentes de mim. Pelo fato de sentir-me engajado de uma certa forma, não obrigo os outros a fazerem o mesmo, como fazem todos; e imagino e concebo mil formas contrárias de vida, e diferentemente das pessoas comuns, noto mais facilmente a diferença que a semelhança (et, au rebours du commun, reçoy plus facilment la difference que la ressemblance en nous).

Por ser atenção a tudo aquilo que seja documento da humanidade pensante, essa atitude mental apresenta uma notável eficácia educativa, propiciando uma interação entre a dimensão histórica e a pessoal, ampliando assim o patrimônio de experiência das jovens gerações – e por “experiência” não se entende somente um acúmulo de dados, mas o desenvolvimento de um campo cognitivo que permita compreender mais e julgar com uma visão mais abrangente. Existe a propósito uma página que merece ser retomada por inteiro como objeto de meditação pessoal; uma página escrita, vejam só, não por um filósofo nem por um pedagogo, mas por um velho historiador de profissão, Geoffrey R. Elton, um inglês autêntico e portanto “não continental”:

Os seres humanos aprendem sobretudo a partir da experiência; para pensar e agir com sucesso, precisam de uma visão a mais ampla possível das possibilidades intrínsecas em todas as situações e em todos os conjuntos de pessoas. A experiência individual é obviamente limitada e distorcida pelo prejulgamento e pelo interesse pessoal. Aquilo de que os homens e mulheres precisam é uma experiência mais ampla sobre a qual medir os efeitos daquelas desvantagens. Esta experiência pode ser fornecida pelo historiador que apresenta o passado em toda a sua variedade e potencialidade, totalmente destacado das necessidades do presente e das preocupações do presente. A história constitui um laboratório no qual a experiência humana é analisada, destilada e engarrafada, pronta para usar. A assim chamada lição da história não nos ensina a agir de uma maneira ou de outra agora, mas nos ensina a pensar com mais profundidade, com mais completude e com base numa experiência enormemente ampliada, sobre as nossas atuais possibilidades de ação. (1994, p.90)

Estamos, portanto, bem longe de algumas aplicações melosas e patéticas do antigo provérbio Historia magistra vitae, cujo objetivo é o de extrair do passado receitas prontas para uso. Não se trata de fornecer pílulas ou pozinhos mágicos, mas um antídoto contra a tentação sempre incubada de tornar totalizantes e definitivas as nossas visões do mundo. “O conhecimento do passado – citamos ainda Elton (ibidem, p.90-1) – deveria ensinar os homens a defenderem-se das panacéias propostas pelos fabricantes de mitos … Alargando enormemente a nossa experiência pessoal, a história pode ajudar-nos a crescer e a resistir àqueles que gostariam de aprisionar-nos na camisa de força das suas supostas soluções para os problemas da existência.”[3]

É a mensagem de um historiador “puro”, que deve ser aplicada àquele âmbito ainda mais móvel e problemático e rico de nuanças que é a história da filosofia, na qual os “fatos” são representados por “idéias” transmitidas através dos textos. Idéias interligadas em discursos e argumentações, dos quais, sem dúvida, os estudantes devem aprender a saborear a força lógica interna, sem no entanto esquecer de que aquelas idéias não nasceram por geração espontânea, mas foram formuladas por pessoas; uma vez que, como disse Eugenio Garin (1990, p.15), “não existe a Filosofia, diante de cujo tribunal chamar ao redde rationem as filosofias e os filósofos: existem homens que tentaram tomar consciência criticamente de forma unitária de sua experiência e de seu tempo”.

É aqui que o método histórico esclarece ainda mais a sua eficácia formativa, já que o reconhecimento da alteridade doutrinal acompanha aquele da alteridade pessoal, colocando as premissas para uma relação correta de comunicação intersubjetiva e portanto de compreensão recíproca.

A história da filosofia – escrevia Nicola Abbagnano (1963, p.XVIII) no prefácio da primeira edição da sua grande obra histórico-filosófica (1946) – reproduz na técnica das pesquisas rigorosamente disciplinadas a mesma tentativa que é a base e o motor de toda relação humana: compreender-se e compreender. E o reproduz nas mesmas histórias de sucessos e desenganos, de ilusões que ressurgem e de clarezas que orientam, e de esperanças que renascem sempre.[4]E, por sua vez, em um congresso de 1952, Luigi Stefanini (1962, p.63) destacou que

o diálogo com o passado é sem dúvida uma espécie do diálogo em geral, e deste segue as leis. Não entendo quem me fala atualmente, se não exprimo de novo eu mesmo as suas palavras. Eu as entendo à medida em que as faço minhas, mas não entenderia quem me falasse, e deliraria sozinho, se o que exprimisse de novo em mim não fosse de novo expresso com a marca de pertença ao outro, que me precede e condiciona na expressão. A palavra do outro me precede de um átimo, mas, se me precedesse de um milênio, a relação seria idêntica.

Podemos continuar, sim, dizendo que o verdadeiro filósofo é aquele que se ocupa de “problemas filosóficos” e não de filósofos e filosofias, e que tal abordagem rigorosamente teórica deve ser mantida também no ensino da filosofia. A menos que não se reduzam tais problemas àqueles de ordem estritamente lógico-formal ou a um jogo totalmente ideal de posições e de contraposições e de superações e de “conseqüências extremas”, como é possível entender um problema filosófico sem conhecer e entender o contexto cultural e pessoal no qual foi formulado? No lugar de jogá-los ao mar, não seria mais construtivo tirar proveito dos “tesouros de Crateto”?

Este nexo filosofia-pessoa não remete unicamente a um conjunto de dados biográficos e ambientais – o assim chamado enquadramento histórico – que tem a função de acessório folclorístico das posições especulativas, sobre as quais, como um destilado teórico, deve-se concentrar o nosso esforço de avaliação lógico-conceitual ou de elucubração hermenêutica. Mesmo a pessoa do filósofo de profissão, e, conseqüentemente, também as suas escolhas intelectuais, participam daqueles “dois níveis” que – como destacava Isaiah Berlin (1996, p.20) em uma lecture nos idos de 1953, mas só recentemente editada – coexistem em cada um de nós: “um superior, público, bem à luz e evidente, fácil de se descrever, a partir do qual as semelhanças podem ser extrapoladas e condensadas de forma útil em leis; o outro inferior, um percurso entre características cada vez menos óbvias e cada vez mais íntimas, entrelaçadas de forma tão próxima a emoções e interesses que é difícil distingui-las destes últimos”. E então devemos nos perguntar se as teorizações de um filósofo podem ser resolvidas na seqüencial e asséptica linearidade de um procedimento lógico ou se não dependem de algum modo também deste “nível de comportamentos semiconscientes, de assuntos e modos de pensar espontâneos, de reações semi-instintivas, de modelos de vida que se tornaram parte integrante de nós de forma tão completa que não podem ser percebidos conscientemente” (ibidem).

Não se trata de reproduzir um psicologismo barato, com a enésima, óbvia remissão ao subconsciente. O que está em questão, de novo, é a nossa capacidade de compreender o “outro”, ou seja, de desenvolver aquele “sense of reality” que para Berlin não se atinge com as ciências sociais, as quais visam à formulação de leis gerais, mas sim com o pascaliano esprit definesse, do qual são mestres – ainda segundo Berlin – os grandes historiadores e os grandes políticos. A aproximação entre historiadores e políticos pode parecer provocativa ou inconscientemente irônica, e aos olhos de alguns colegas esta valorização da “profissão” de historiador da filosofia poderá parecer excessiva: mas acredito que, para além das tradicionais brigascoorporativasentrefilósofosehistoriadoresdafilosofia,estaspalavras de Berlin merecem uma reflexão adequada.

ABSTRACT: The past is both near and distant, similar and different, compared to our time. Usually we study the history of philosophy to find some resemblences with our philosophical attitude. But the thought of the past is frequently quite another thing and leads as to revise our respectable opinions. The diachronic knowledge of the “other” is the formative value (not only informative!) of the history of philosophy, today.

 KEYWORDS: History of philosophy; otherness; formative value.

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[1] Texto apresentado na XXV Jornada de Filosofia e Teoria das Ciências Humanas da UNESP – História e historiografia da filosofia, Marília, outubro de 2001. 2 Professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Pádua (Itália).

[2] Cf., a propósito, o recente trabalho de Savi, 1998, p.48-54.

[3] Mas vejam-se também as observações críticas dirigidas a H. G. Gadamer nas p.41-3 (a propósito da distinção entre pesquisa histórica e filosofia hermenêutica ) e p.62-3 (“contra o frívolo niilismo que autoriza o historiador a dizer o que quer”).

[4] Uma posição parecida tinha sido expressa, naqueles mesmos anos 40, por Henri Gouhier (1948, p.123-4, grifos meus): após ter definido a história como “o tempo vital da inteligência”, ele nota que “a história dos filósofos pode ser absolutamente destacada das preocupações da filosofia presente e oferecer aos filósofos vivos o que o pensamento deles exige: uma sociedade. Para entrar em sociedade com Platão ou com Descartes não preciso de saber o que está morto e o que está vivo no platonismo e no cartesianismo: preciso de saber exatamente quem foi Platão e o que disse Descartes...”.