HANNAH ARENDT, FOUCAULT E A REINVENÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO

Francisco ORTEGA[1]

 RESUMO: O objetivo deste artigo é mostrar algumas convergências entre o pensamento de Hannah Arendt e o de Foucault. Minha tese a respeito é, que no fundo, ambos os autores visam a um pensamento do aberto e do não determinado, uma alternativa política que vai além de uma política partidista e que aponta para recuperar o espaço público. Política como atividade de criação e de experimentação. A teoria política de Hannah Arendt representa uma tentativa de pensar o acontecimento, de afrontar a contingência, de recusar as imagens e metáforas tradicionais oferecidas para imaginar o político, como uma vontade de agir, de transgredir e superar os limites.

 PALAVRAS-CHAVE: Política; democracia; acontecimento; subjetividade; estética da existência.

Desde os anos 80, assistimosàs mais variadastentativasde apropriação do pensamento arendtiano. Nenhuma descrição de seu pensamento é inocente. São sempre “armas numa batalha interpretativa”, como Dana Villa observa. A maioria delas pretende diminuir o caráter elitista e antidemocrático de seu pensamento, domesticar seu potencial. O que está em jogo é saber “se deveríamos considerar Arendt como ‘um de nós’ – como comprometida com uma concepção deliberativa da democracia e dos direitos humanos – ou como ‘um deles’ – isto é, como uma pensadora antiindividualista, cujo compromisso com a ação política é tão grande que a leva a desejar que a modernidade seja desfeita” (Villa, 1997, p.181). Habermasianos, comunitaristas e defensores de uma democracia participativa, entre outros, tentam fazer de Arendt uma “boa democrata”, como testemunham o apelo habermasiano de Seyla Benhabib para seu conceito intersubjetivo de ação política; o apelo comunitarista para seu conceito de associação (membership) enraizado nos valores da comunidade; ou o apelo dos teóricos da democracia participativa para os ecos de republicanismo civil nos textos arendtianos (ibidem, 1996, p.4-9; 1997, p.199). As três escolas de pensamento convergiriam na tentativa de alistar Arendt no projeto de recuperar uma esfera pública, unitária, compreensiva e robusta;[2] uma esfera que se teria fragmentado e perdido. Mas será que é possível, nas condições sociais contemporâneas, definir uma esfera pública, unitária, integrada, compreensiva como Habermas postula? E, por outro lado, será que é desejável reconstruir tal esfera mesmo como ideal regulador?

Como vários comentadores têm reconhecido, a visão habermasiana da esfera pública não leva em conta as dimensões performativas da ação humana e a possibilidade de revelação e constituição da identidade pessoal que o espaço público permite. Para ele, a esfera pública não possibilita a transformação da identidade nem fornece a chance de desenvolver uma existência mais autêntica do que em outras dimensões humanas. A identidade se constitui antes da entrada na esfera pública, o que representa a sua diferença fundamental com Arendt. Da mesma maneira, Habermas não considera a pluralidade, que se encontra na base da teoria da ação arendtiana. Sua teoria aponta antes para a superação das diferenças. Seu modelo postula uma igualdade discursiva que anula as diferenças entre os agentes, as quais são tratadas como pertencentes à esfera do interesse privado. As divergências são suprimidas para defender a idéia de que os argumentos devem ser avaliados segundo os seus méritos e não segundo a identidade dos argumentadores. Com isso, Habermas

faz da política (politics) mais um assunto de deliberação sobre as “políticas” (policy) e muito menos uma oportunidade de abertura performativa do mundo ou de desvelamento da identidade individual. Além disso, a suspensão das diferenças mina o potencial de auto-reflexividade do discurso público. A pluralidade dos participantes, que aparecem precisamente como diferentes uns dos outros, constitui um estímulo crucial para a reflexão sobre a identidade de cada um e o significado de suas interrelações. (Calhoun, 1997, p.21-49)

Para Arendt, não existiria nenhuma possibilidade de reconstruir uma esfera pública unificada na contemporaneidade. Sua teoria performativa da ação e sua visão agonística da política indicam antes uma ação política instantânea, múltipla: política como acontecimento e começo, como interrupção de processos automáticos. O mundo aparece sob diferentes aspetos não redutíveis a uma única esfera. Nas suas descrições do espaço público da pólis grega ou dos grounding fathers americanos, ela nunca nos ofereceu uma visão singular ou unitária. O espaço público se apresenta sempre sobre uma multiplicidade de aspetos, o qual só com o triunfo das determinações biológicas ou dos processos econômicos aparece como singular. Ou seja, o fim do mundo compartilhado, do espaço dos assuntos humanos, aparece no momento em que ele é visto sob um aspecto particular e não na sua multiplicidade. Sua ênfase na pluralidade, no agonismo, na teatralidade e na performatividade, lhe impede de apresentar a esfera pública como uma unidade. Não ligando o espaço público ao Estado, como Habermas o faz, não existe nenhum local privilegiado para a ação política, isto é, existem múltiplas possibilidades de ação, múltiplos espaços públicos que podem ser criados e redefinidos constantemente, sem precisar de suporte institucional, sempre que os indivíduos se liguem por meio do discurso e da ação: agir é começar, experimentar, criar algo novo, o espaço público como espaço entre os homens pode surgir em qualquer lugar, não existindo um locus privilegiado.

A leitura de Arendt, que gostaria de propor nestas páginas, diverge das apropriações de seu pensamento por comunitaristas, habermasianos e teóricos da democracia participativa. Na minha opinião, a influência exercida por Martin Heidegger sobre o seu pensamento fornece alguns elementos para uma leitura mais radical da “fenomenologia do político” arendtiana.[3] A ascendência heideggeriana seria determinante da sua desconfiança da democracia representativa, assim como “das implicações elitistas e aristocráticas de sua teoria” (Kielmansegg, 1997, p.183). Ou seja, ante as alternativas de liberais e comunitaristas de se apropriar de seu pensamento, de fazer uma leitura habermasiana de sua obra, a teoria política arendtiana não é centrada no Estado, e é existencialista na procura da autenticidade, o que permite fazer uma ponte com Foucault, Carl Schmitt e toda uma série de pensadores comprometidos com pensar o político de uma maneira diferente.[4]

Existem importantes pontos de confluência e interferências entre o pensamento de Hannah Arendt e os de Foucault, Derrida ou Deleuze. Minha tese a respeito é que, no fundo, todos esses autores visam a um pensamento do aberto e do não determinado, uma alternativa política que vai além de uma política partidária e que propõe a recuperação do espaço público: a política compreendida como atividade de criação e de experimentação. A teoria política de Hannah Arendt representa uma tentativa de pensar o acontecimento, de afrontar a contingência, de romper e inaugurar, de recusar as imagens e metáforas tradicionais oferecidas para imaginar o político, e uma vontade de agir, de transgredir e superar os limites. A fenomenologia arendtiana e a genealogia foucaultiana convergem na desconstrução da subjetividade e da tradição política ocidental, na procura de novas formas de subjetividade e de ação. Vejamos esse importante aspecto mais pormenorizadamente.

O projeto principal de Foucault pode ser definido, grosso modo, como uma genealogia da subjetividade ocidental, onde os últimos capítulos dessa história genealógica (ou seja, a constituição da subjetividade no mundo contemporâneo) permitem precisamente a escavação arqueológica,areconstruçãohistóricadofenômeno, remontando, assim, até as origens gregas da subjetividade ocidental. Em ambos os casos (Arendt e Foucault), a reconstrução genealógica parte de uma ontologia do presente, que problematiza a atualidade como acontecimento e que responde às perguntas acerca de nossa contemporaneidade e nossa situação presente, ou seja: o que acontece em nosso presente, na nossa atualidade? como se caracteriza? Esse diagnóstico visa desenvolver estratégias de resistência ante a despolitização dos sistemas totalitários e da sociedade de massas (Arendt),[5] ou ante as modernas práticas subjetivantes, disciplinas e biopoder (Foucault). Os genealogistas tentam mostrar, recorrendo à historização dos fenômenos, que o que aparece como necessário é historicamente contingente, criando possibilidades de questionar o status quo.[6]

Ambos os autores, nas suas genealogias da subjetividade ocidental ou da política entendida como ação em liberdade, demonstram uma preferência particular pelo mundo grego. A pólis grega constitui para Arendt uma época de politização ante a desmundanização característica da modernidade, e para Foucault uma experiência de subjetividade autônoma, diametralmente oposta às identidades criadas na modernidade. Apesar da valoração da pólis, nenhum dos pensadores propõe uma volta, um retorno aos gregos. Para Arendt, o fio de Ariadne que nos unia à tradição foi cortado definitivamente, não existindo possibilidade de reconciliação. O tesouro da tradição foi perdido, a nossa herança foi deixada sem testamento, como René Char dizia, e nossa autora liga esse fato à observação de Tocqueville: “Desde que o passado deixou de lançar sua luz sobre o futuro, a mente do homem vagueia nas trevas” (apud Arendt, 1988, p.32). Conseqüentemente, Arendt não pretende restabelecer conceitos e categorias antigos, ou restaurar a tradição, mas desconstruir e vencer as reificações de uma tradição obsoleta.

Para Foucault, a tentativa de atualização da estética da existência da Antigüidade não significa também a incorporação do modelo ético greco-romano. A Antigüidade seria, no fundo, um “erro profundo”, e os gregos nem seriam admiráveis, nem ofereceriam uma alternativa, pois não se podem resolver os problemas atuais com as soluções do passado. No entanto, Arendt e Foucault remetem-se com freqüência à experiência ética e política do mundo grego, contrapondo-a à sua visão da modernidade. Ambos retomariam posições pré-modernas na sua crítica da modernidade. Os dois aderem ao diagnóstico do “esquecimento do ser” (Seinsvergessenheit) heideggeriano, seja na forma do esquecimento da política, no caso de Arendt, seja na do esquecimento do sujeito ou da soberania sobre si, no caso de Foucault.

Como já foi mencionado, a ação política possui para Arendt a propriedade de revelar a identidade do agente. A pluralidade humana, condição de possibilidade da ação e do discurso, se manifesta como igualdade e como distinção. É justamente essa distinção única, singular, que aparece na ação política e no discurso que revela a individualidade, a identidade dos agentes, pois, segundo Arendt, “através deles (ação e discurso), os homens podem distinguir-se, ao invés de permanecerem apenas diferentes; a ação e o discurso são os modos pelos quais os seres humanos se manifestam uns aos outros, não como meros objetos físicos, mas enquanto homens. Esta manifestação, em contraposição à mera existência corpórea, depende da iniciativa, mas trata-se de uma iniciativa da qual nenhum ser humano pode abster-se sem deixar de ser humano” (Arendt, 1988, p.189).

Ação e discurso são as únicas formas de que os homens dispõem para “mostrar quem são”, para “revelar ativamente suas identidades pessoais e singulares”, para revelar o “quem”, em contraposição ao “o que” alguém é. O “quem” alguém é não aponta para uma visão essencialista, a-histórica da subjetividade, o sujeito da interioridade, o “eu autêntico”, uma essência atrás das aparências. Indica antes uma identidade que se constitui publicamente como aparência, máscara, um papel a ser representado, pois, como Richard Sennett tem ressaltado, a teatralidade possui uma grande afinidade com a vida pública.

Não somente a identidade humana se constitui e se manifesta na ação, mas a ação não seria ação se não tivesse essa faculdade reveladora. Seria um meio para produzir um fim, assim como a fabricação é um meio para produzir um objeto. Como Dana Villa (1997, p.190) tem reconhecido, Hannah Arendt estaria nos oferecendo um “modelo performático” da ação e não um “modelo expressivista”, já que, ante o modelo expressivista que afirma uma unidade da subjetividade, uma realidade subjetiva por trás das aparências, o modelo performático concebe a constituição da identidade pessoal como um processo coextensivo à ação e não anterior a esta. O eu, que precede a ação, é o eu biológico, ou o eu psicológico, o animal laborans, sujeito aos processos vitais, um eu sem unicidade, coerência, uma multiplicidade de impulsos e necessidades, um eu dividido que somente no espaço público adquire uma identidade, onde a companhia dos outros o tira do diálogo do pensamento e o “faz um de novo – um único, simples ser humano falando com uma voz e reconhecível como tal pelos outros” (Arendt, 1990, p.86).

A identidade humana aparece então como uma realização no espaço público e não como dada. É no fundo uma questão de estilização, o que permite estabelecer uma ligação tanto com Nietzsche quanto com Foucault.[7] A subjetividade é para Arendt um fenômeno do mundo, uma questão de estilo e caráter. Não existe nenhuma matéria pré-subjetiva, nem é na intimidade, ou na sexualidade, que se oculta a verdade de quem somos, assim como não existe um eu profundo atrás das aparências. A ligação romântico-idealista entre expressão e revelação, autenticidade e descoberta de si, é contingente, um produto histórico, a qual pode ser desconstruída. Hannah Arendt distancia-se de toda visão essencialista do sujeito, de toda tentativa de psicologização da subjetividade. Somente voltados para o mundo é que atingimos nossa identidade, no espaço público revelamos “quem” somos e não “o que” somos:

A função do âmbito público é iluminar os acontecimentos humanos ao fornecer um espaço das aparências, um espaço de visibilidade, no qual homens e mulheres podem ser vistos e ouvidos e revelar mediante a palavra e a ação quem eles são. Para eles, a aparência constitui a realidade, cuja possibilidade depende de uma esfera pública na qual as coisas saiam da escura e resguardada existência. (Birulés, 1996, p.21)

No caso de Foucault, a subjetividade se constitui por meio das técnicas de si, as quais não representam um exercício solitário. Se para Arendt só no contexto intersubjetivo do espaço público é possível constituir a identidade, também para Foucault a presença de outros indivíduos é imprescindível no processo da autoconstituição. O outro é indispensável para que as práticas de si atinjam a forma de existência desejada (Foucault, 1985, p.40; Ortega, 1999b, cap.7). Na Antigüidade, o indivíduo se constituía como sujeito mediante uma atitude e uma busca de individualizar e estilizar a sua ação. A singularidade procurada – criada segundo critérios estéticos com a finalidade de glória e permanência longa na memória – é somente compreensível em uma dimensão intersubjetiva, no espaço público. Somente na relação com os indivíduos livres por meio da ação e do discurso é possível para o sujeito se diferenciar, mostrar seu valor e poder reconhecer-se na alteridade, já que a lembrança e a reputaçãosãofenômenosqueacontecemnomundo.DaíFoucaultfalarde“práticas de liberdade”, nas quais não se trata de se ver livre do poder, mas da liberdade positiva, pública, isto é, a liberdade para constituir a própria existência segundo critérios estéticos: a ética do cuidado de si como prática de liberdade, ou seja, a “liberdade como condição ontológica da ética” e a ética como a “forma refletida que adota a liberdade” (Foucault, 1994, p.172).

O cidadão da pólis grega, o romano da Era Imperial, os membros da Cidade de Deus, as comunidades da Reforma, os correspondentes de Descartes nas Meditações, os leitores kantianos, todas as formas de subjetivação que Foucault menciona são realizações no espaço público. Não se trata de exercícios solitários (Schürmann, 1986, p.304). Nunca se refere ao sujeito, descontextualizado, da interioridade. A formação da identidade é um processo público, um acontecimento no mundo. Nas lutas contra formas de subjetivação, à procura de novas formas de subjetividade e sociabilidade, o sujeito se constitui no mundo compartilhado com outros indivíduos.

Existem, evidentemente, diferenças entre as “estéticas da existência” foucaultiana e arendtiana, visto que a constituição do sujeito em Arendt é uma constituição política e, em Foucault, encontramos antes uma constituição ética. Foucault defende, no entanto, nos seus escritos sobre estilística da existência e o cuidado de si, uma visão da ética como política, ou seja, a constituição ética da subjetividade seria uma alternativa às práticas subjetivantes modernas: o cuidado de si representa uma forma de resistência ao poder.[8] Para Foucault, a subjetividade aparece como um processo, como uma relação consigo, distante da autoconsciência, preferindo falar de um “sujeito-forma” a falar um “sujeito-substância”. Ao afirmar que o sujeito é uma forma, ou que existiu uma vontade de forma na Antigüidade, Foucault dirige sua atenção para as práticas de si, ou seja, para as diferentes ferramentas que os indivíduos possuíam para constituir e rescrever constantemente suas identidades. O sujeito-forma é um sujeito apontando para o processo de sua constituição; um sujeito como atividade, em devir que visa à sua multiformidade histórica. O que se deve ressaltar é a recusa de ambos os autores em aceitar uma interioridade e uma visão essencialista da subjetividade. A crítica foucaultiana ao paradigma do homem do desejo se dirige nessa direção, ao focalizar a ligação que a tradição ocidental efetua entre a sexualidade e a subjetividade. Todo um dispositivo de saber-poder e de produção de identidades se configura historicamente por meio dela. A ênfase dada por Foucault à ética como ascese dos prazeres representa no fundo uma tentativa de fugir dessa forma de subjetivação.[9]

Arendt reconhece em Rousseau o primeiro teórico da interioridade, a qual aparece como uma forma de resistência à introdução do social na esfera privada, a rebelião do coração contra a existência social. Mas, ao mesmo tempo, Rousseau é o inventor do amor romântico, que, por ser extramundano, é antipolítico, “talvez a mais poderosa das forças humanas antipolíticas”, como Arendt constata. Ela critica o eu da interioridade, do amor romântico, a idéia de procurar a verdade sobre si no profundo de si mesmo, nas emoções, na sexualidade, no amor. Se o amor romântico se apresenta como o ideal sentimental hegemônico, isso acontece porque encarna o ideal que corresponde à nossa realidade antipolítica, isto é, a de uma sociedade voltada para a interioridade na procura de verdade, do sentido, da autenticidade, da satisfação, e que contempla o mundo como hostil a essa busca. Como observa Arendt (1988, p.42): “Uma sondagem de opinião revelou: o ponto central é ‘a preocupação pelo homem’. O homem se preocupa por si mesmo. (Descoberta de si mesmo). É assim desde o começo da Idade Moderna. Em contrapartida: o ponto central de toda a política é a preocupação pelo mundo”.

Somente desenvolvendo novas formas de amor mundi no sentido arendtiano é que, a meu ver, podemos conceber alternativas a esse ideal, criar e recriar formas de relacionamento voltadas para o mundo, para o espaço público, tais como a amizade, a cortesia, a solidariedade, a hospitalidade, o respeito. Todas elas dependem de uma publicidade, de uma espaço de visibilidade capaz de iluminar os acontecimentos humanos, de um mundo comum que una ou separe os indivíduos, mantendo sempre a distância entre eles, condição da pluralidade. É nesse sentido que Arendt contrapõe a amizade à fraternidade no ensaio sobre Lessing em Homens em tempos sombrios, pois a amizade exprime mais a humanidade do que a fraternidade, precisamente por estar voltada para o público. Ela é um fenômeno político, enquanto a fraternidade suprime a distância dos homens, transformando a diversidade em singularidade e anulando a pluralidade (Arendt, 1987). A fraternidade é, no fundo, uma forma de comunidade identificatória, na qual, na condição de irmãos, somos todos iguais. Assim como a fraternidade e o amor se apresentam como forças antipolíticas, Arendt também critica a família e o parentesco como modelos de organização política. A sociedade moderna é definida como uma “administração doméstica coletiva”, um “conjunto de famílias economicamente organizadas”, uma “família sobre-humana” (1987, p.38), o que sugere um caráter profundamente antipolítico derivado da compreensão da política segundo critérios familiares: “Na medida em que se constroem corpos políticos sobre a família e são compreendidos como uma imagem dela, considera-se que os parentescos podem, por um lado, unir os mais diversos e, pelo outro, permitir que figuras semelhantes a indivíduos distingam-se as umas das outras ... Em ambos os casos, a ruína da política resulta do desenvolvimento de corpos políticos a partir da família” (Arendt, 1987, p.45-6, grifos nossos).

Em outras palavras, ao traduzirmos nossas formas de sociabilidade em metáforas familiares procurando “albergue e fortificação”, segurança “num mundo inóspito e estranho” por meio da formação de parentescos e analogias, suprimimos o potencial político contido nelas. A advertência arendtiana é clara, o preço do desejo de segurança e conforto mediante o estabelecimento de parentescos é a “perversão fundamental do político”, pois suprime-se a pluralidade, condição da política. Carl Schmitt tem denominado a sociedade contemporânea despolitizada como a “era da segurança”, percebendo que existe uma ligação entre segurança e despolitização, assim como entre risco e política. Para os antigos, ser livre queria dizer poder se afastar da família e do lar, que era “não só o lugar em que os homens estavam dominados pela necessidade e a coação, mas também, e emestreitaconexãocomisso,o lugar onde a vida era garantida, onde tudo estava pronto para satisfazer as necessidades vitais”. Ser livre quer dizer “estar disposto a arriscar a vida”, pois “somente podemos ter acesso ao mundo público, que constitui o espaço propriamente político, se nos afastarmos de nossa existência privada, e do pertencimento à família, a que nossa vida está unida” (Arendt, 1987, p.46, 73-4).

A política é um risco, é difícil abandonar crenças, valores, tradições, sem saber o desenlace final, pois agir é um início que se define pela irreversibilidade e pela imprevisibilidade, mas ao mesmo tempo uma chance, uma forma de sacudir as imagens e metáforas tradicionais, de experimentar e criar novas formas de vida. A noção arendtiana de natalidade, isto é, o nascimento, que constitui o pressuposto ontológico da existência do agir, só é realizável se sairmos da esfera da segurança e confrontarmos o novo, o aberto, o contingente, se aceitarmos o encontro e o convívio com novos indivíduos, o desafio do outro, do estranho e desconhecido, sem medo nem desconfiança, como uma forma de sacudir formas fixas de sociabilidade, de viver no presente e de redescrever nossa subjetividade, de recriar o amor mundi.

ABSTRACT: The object of this article is to show some convergences between the thought of Hannah Arendt and of Michel Foucault. My thesis is that both authors aims a thought of the openess and not determined, a political alternative that goes beyong the party politics and aims to recover the public space. Politics as activity of creation and experimentation. The political theory of Hannah Arendt represents a tentative to think the event, to affront the contingency and to deny the traditional images and metaphors offered to imagine the political. It is a will to act, to transgress and overcome the limits.

 KEYWORDS: Politics; democracy; event; subjetivity; aesthetics of existence.

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[1] Instituto de Medicina Social – Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ – 20550-900 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil.

Trans/Form/Ação, São Paulo, 24: 225-236, 2001 https://doi.org/10.1590/S0101-31732001000100015

[2] Todavia, não existe um consenso na interpretação do espaço público em Arendt. A leitura de Dana

Villa ressalta a influência de Nietzsche e de Heidegger. Recentes interpretações feministas da obra de Arendt (Bonnie Honig, Mary G. Dietz, Susan Bickford) representam também importantes alternativas (cf. Calhoun, 1997).

[3] A meu ver, Arendt desloca categorias ontológicas e apolíticas de Heidegger para o plano político. Cf. as observações de Ernst Vollrath (“Bem, é obvio que Hannah Arendt foi educada por Martin Heidegger, e alguns de seus conceitos, como solidão, procedem, com certeza, da filosofia heideggeriana. Mas acredito que ela deslocou esses conceitos, que em Heidegger são não-políticos e apolíticos, para um contexto político.”) e de Timothy Fuller (“Arendt e Leo Strauss tomaram as idéias de Heidegger e as transformaram em conceitos úteis para a análise política.”) apud Kielmansegg et al. 1997, p.164-5.

[4] “Bem, gostaria de ressaltar sua incapacidade de compreender a política nas suas manifestações normais (normal ways). Isso tem a ver com a pulsão de autenticidade dos alemães, pelo menos nesses círculos intelectuais, procedentes da floresta, da Floresta Negra, eles querem ser autênticos … Arendt nunca conseguiu ver como a representação constitui um fenômeno político multiforme ... Isso tem a vercomsuarejeiçãodapolíticanosentidonormal,comsuarejeiçãodanormalidade”(Vollrath,apud Kielmansegg et al., 1977, p.187-8, grifos nossos).

[5] Despolitização (Entpolitisierung) é um conceito de Carl Schmitt que corresponde ao conceito arendtiano de desmundanização (wordlessness).

[6] Segundo a leitura que apresento, as origens do totalitarismo seriam à condição humana o que a vontade de saber é ao uso dos prazeres e ao cuidado de si.

[7] Curiosamente Dana Villa (1996, cap.3), que liga Arendt ao Nietzsche que celebra a estilização da existência na Gaia ciência, esquece, no entanto, Foucault, apesar de vincular, no mesmo texto, a noção de ação de Arendt num mundo despolitizado ao conceito de resistência foucaultiano.

Todavia, as convergências com a noção de estética da existência de Foucault são ignoradas.

[8] Cf. Ortega, 1999a. Sobre ética e política, cf. a entrevista Politique et éthique: une interview (Foucault, 1994, p.586): “Concordaria em dizer que, com efeito, me interessa mais a moral que a política ou, em todo caso, a política como uma ética”.

[9] O movimento fundamental da ética da amizade de Foucault visa devolver o elemento do prazer ao vínculo da amizade, dissociado do desejo desde Platão. Costa (1999) mostra as aporias dessa intensificação do prazer no último Foucault. Também Deleuze (1994) é crítico dessa reabilitação do prazer.