QUESTÕES DE CRONOLOGIA ROUSSEAUÍSTA: O CASO DO ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LÍNGUAS

 

Mauro Dela Bandera[1]

 

 

 

Resumo: O século XX viu ganhar forma um efervescente debate travado em torno do Ensaio sobre a origem das línguas de Rousseau, sobretudo quanto à sua gênese, ao período em que foi escrito e às suas possíveis relações com o Discurso sobre a origem da desigualdade. O presente artigo, ao repassar a literatura crítica sobre o tema, propõe uma cronologia consonante com a produção especializada, colocando em foco os temas que, porventura, teriam guiado Rousseau, desde a redação da versão originária e inicial do texto até a versão definitiva: de um texto originalmente inscrito nas polêmicas musicais entre Rousseau e Rameau, o Ensaio foi paulatinamente enriquecido, abarcando de maneira unificada as reflexões do autor sobre as sociedades, as línguas, as linguagens e os sistemas musicais.

 

Palavras-chave: Rousseau. Cronologia. Ensaio. Música. Rameau.

 

 

 

 

O Ensaio apareceu em 1781 (três anos após a morte do autor), em um volume intitulado Tratados sobre a música. Sua primeira edição separada veio a lume muito tardiamente, apenas em 1968. Dentre todas as obras de Rousseau, o Ensaio é muito provavelmente aquela que suscita as mais ardentes controvérsias. Desde pelo menos o final do século XIX[2], inúmeras contendas foram travadas e muitas questões ainda hoje permanecem abertas. Os intérpretes e historiadores mais autorizados raramente chegaram a um acordo sobre o livro e, quando o fizeram, tal conciliação foi motivada por distintas razões. O problema aumenta substancialmente, em virtude de o Ensaio ser um texto sobre o qual Rousseau pouco se explicou[3] e, quando o fez, sempre demonstrou certa reticência. Uma ampla variedade de artigos e escritos foi dedicada ao tema e, ainda assim, ignora-se a data exata de sua composição e a posição real que seu autor lhe atribuía, em relação à totalidade de sua obra. Um ar de mistério ronda o livro de Rousseau.

A maior parte dos estudos concernentes ao Ensaio foi consagrada à reflexão sobre as relações de continuidade ou de ruptura existentes entre ele e o Discurso sobre a origem da desigualdade.[4] O parentesco com essa obra foi facilmente perceptível, em vista do capítulo IX do Ensaio (sobre a formação das primeiras sociedades), mas não é nada fácil concluir se há aí algum indício de derivação ou elaboração independente.

Não obstante serem flagrantes as afinidades temáticas entre o segundo Discurso e o Ensaio, não devemos ceder diante da tentação (fadada ao equívoco) de postular uma estrita continuidade entre as teses apresentadas nesses dois textos. Alguns exemplos sugerem efetivamente alterações teóricas, ao longo do percurso intelectual de Rousseau, quais sejam: i) a diferença conceitual envolvendo as noções de famílias mobilizadas; ii) os desacordos entre os estatutos conferidos à piedade, nesses dois escritos;[5] e, também, iii) entre as funções da linguagem e da música, nas cenas das primeiras festas (COLE, 2004, p. 117-118); e, por fim, iv) a ausência, no Ensaio, de toda e qualquer referência à condição de isolamento e independência absolutos que caracterizariam, nas páginas do segundo Discurso, o homem do puro estado de natureza. (MOSCONI, 1966).

Não concordamos que tais alterações sejam indícios de uma fraqueza ou inconsistência teórica de Rousseau, tal como um projeto de interpretação rigidamente estrutural poderia sugerir. Por isso, faz-se indispensável investigar a gênese e a cronologia do Ensaio em relação ao segundo Discurso. Esse empreendimento, já velho conhecido dos estudiosos de Rousseau[6], é ainda hoje necessário, pois é o único capaz de evitar mal-entendidos (sempre renovados), quando se comparam ou se distinguem noções ou passagens desses dois textos do autor e, ao mesmo tempo, ajuda a desanuviar esse ar de mistério.

Repassar os principais argumentos dos comentadores constitui uma tarefa fundamental para o esclarecimento de alguns desses problemas.[7] Sabemos que cada comentador defendeu a posteridade ou a anterioridade do Ensaio em relação ao Discurso sobre a desigualdade, de acordo com sua própria interpretação do conjunto da obra de Rousseau. Vejamos, então, de forma breve, as questões da gênese e da cronologia do Ensaio com respeito à carreira do autor, tal como desenvolvidas por alguns desses intérpretes, ao longo dos anos. Analisaremos os trabalhos de Alfred Espinas, Gustave Lanson, Pierre-Maurice Masson, Robert Derathé, Jean Starobinski, Jacques Derrida, Robert Wokler e Marie-Elisabeth Duchez. Recorrer a tal expediente se faz necessário, tanto para melhor compreender o lugar do Ensaio no pensamento de Rousseau quanto para saber qual o estatuto que o autor confere às discussões musicais presentes no texto e praticamente ausentes do segundo Discurso.

 

Espinas: defende a posteridade do Ensaio em relação ao segundo Discurso

No artigo “Le système de Jean-Jacques Rousseau” – publicado em 1895, na Revue Internationale de l’Enseignement Supérieur –, Alfred Espinas emprega um argumento externo para afirmar que o Ensaio sobre a origem das línguas é necessariamente posterior ao segundo Discurso, a saber: a presença de algumas citações do livro de Charles Duclos sobre a Gramática geral e razoada de Port-Royal, o qual veio a público somente em 1754, isto é, mesmo ano da redação do Discurso sobre a desigualdade (iniciado em 1753, foi publicado em 1755). Valendo-se também de argumentos internos, Espinas crê na existência de contradições no Ensaio que o oporiam ao segundo Discurso. Logo no início de seu Discurso, Rousseau explicita seu método investigativo: para conhecer o homem, é preciso afastar os fatos e abandonar “os livros científicos”; ou, ainda, “comecemos”, afirma Rousseau, “por afastar todos os fatos, pois eles não se prendem à questão”. A partir dessas passagens, Espinas sustenta a existência de contradições e desarranjos entre o Discurso e o Ensaio:

 

O Discurso que começa por “afastar todos os fatos” para descrever uma estrutura e uma gênese ideais, seria incompatível com o Ensaio que faz um certo apelo ao Gênesis, nomeia Adão, Caim, Noé, e maneja um certo conteúdo factual que é tanto o da história quanto o do mito. (DERRIDA, 1967, p. 273).[8]

 

Indaga-se, no entanto, se as citações da obra de Duclos – que não puderam ser anteriores à publicação do Discurso sobre a desigualdade – permitem alguma certeza quanto à data exata da redação do Ensaio. Não teriam sido elas introduzidas apenas tardiamente, em um segundo momento, já que é sabido que o texto do Ensaio foi retocado por Rousseau algumas vezes? Tal será a hipótese lançada por Gustave Lanson, em 1912.

 

Lanson: defende a anterioridade do Ensaio em relação ao segundo Discurso

Em 1912, Gustave Lanson escreve um artigo (“L’unité de la pensée de Jean-Jacques Rousseau”, publicado nos Annales de la Société Jean-Jacques Rousseau), no qual recua a redação do Ensaio o mais tardar até 1750. Tal intérprete, assim como Espinas, considera que haveria contradições entre os dois textos, mas, ao contrário deste, coloca a obra em uma posição cronológica anterior ao segundo Discurso. Tudo isso para preservar a unidade do pensamento de Jean-Jacques.

O Ensaio teria sido escrito em uma época quando as ideias sistemáticas de Rousseau ainda não estavam plenamente consolidadas, fato que, segundo Lanson, só aconteceria em 1752. A partir desse ano, os princípios norteadores do pensamento de Rousseau seguiriam uma direção constante. Em suma, Lanson quer a todo preço salvar a unidade do pensamento de Rousseau tal como ela supostamente se efetivaria em sua maioridade. Como há um desacordo entre o Ensaio e as obras maiores, o intérprete coloca aquele entre as obras de juventude ou de imaturidade intelectual. Para tanto, defende que as referidas citações de Duclos seriam inserções tardias, acrescidas quando Rousseau retocou o texto.

Contudo, uma objeção a essa hipótese pode ser formulada: é difícil conjeturar que tais citações teriam surgido posteriormente. Por exemplo, todo capítulo VII (“Da prosódia moderna”) – o qual critica os gramáticos franceses e desempenha um papel decisivo no Ensaio – é profundamente inspirado em Duclos. Os empréstimos são declarados, maciços e determinantes. Dada a importância arquitetônica desse capítulo, é difícil imaginar que as citações e as passagens tenham sido inseridas a posteriori. Além disso, o convite lançado por Charles Duclos, em seu livro sobre a Gramática de Port-Royal, ao exame filosófico da questão sobre como o caráter, os costumes e os interesses de um povo têm influência em sua língua parece ter norteado a própria redação do Ensaio em sua totalidade e não apenas no capítulo XX[9], de modo que o Ensaio pode até mesmo ser considerado a efetivação do programa filosófico concebido por Duclos.

 

Masson: defende a contemporaneidade do Ensaio em relação ao segundo Discurso

Em 1913, Pierre-Maurice Masson se pergunta (em um artigo intitulado “Questions de chronologie rousseauiste”, também publicado nos Annales de la Société Jean-Jacques Rousseau) se um dos fatos que levaram Gustave Lanson a situar o Ensaio em um período tão precoce da produção intelectual de Rousseau não teria sido motivado pela tentativa de preservar o cidadão genebrino a não cair em contradição consigo mesmo. Desse modo, se a obra não entrasse em contradição com o Discurso sobre a origem da desigualdade, talvez Lanson não tivesse recuado tanto sua primeira redação.

Ao contrário da suposição de Espinas e Lanson, Masson afirma não estar devidamente convencido da existência de contradições percebidas entre as obras citadas, razão pela qual considera – valendo-se de argumentos exteriores ao texto – que o Ensaio era no início apenas uma longa nota do segundo Discurso, retomada e retrabalhada algumas vezes por Rousseau. Citemos o projeto de prefácio escrito por Rousseau, em 1763:

 

O segundo escrito [Ensaio sobre a origem das línguas] foi de início apenas um fragmento do Discurso sobre a desigualdade, que eu suprimi por ser muito longo e fora de lugar. Retomei-o por ocasião dos Erros do senhor Rameau sobre a música – este título (retirando as duas palavras que suprimi) é perfeitamente condizente com a obra que o comporta. Entretanto, contido pelo ridículo de dissertar sobre as línguas, quando mal se sabe uma e, além disso, pouco contente deste escrito, eu havia resolvido suprimi-lo como indigno de atenção do público. Mas um magistrado ilustre, que cultiva e protege as letras, julgou-o mais favoravelmente do que eu; submeto então com prazer, como podem acreditar, meu julgamento ao seu, e tento fazê-lo passar em favor dos outros escritos, este que eu não teria talvez ousado arriscar individualmente. (ROUSSEAU, 1997, p. 13-14).

 

A argumentação de Masson parecia ser suficientemente convincente para resolver de uma vez por todas o debate. E, de fato, a maioria dos eruditos escolheram Masson contra Lanson. Todavia, dentre as exceções, podemos citar Vaughan[10], Hendel (1934, p. 66) e Starobinski (apud ROUSSEAU, OC III, 1964, p. 1330, nota 2, primeira edição).

 

Robert Derathé: filia-se à hipótese de Masson

Robert Derathé não entrou diretamente no ponto em questão, mas consagrou, em seu Jean-Jacques Rousseau e a ciência política de seu tempo (1950), uma nota sobre o assunto.[11] Na opinião do comentador, ao menos quanto aos capítulos II e IX, que estão entre os mais importantes do Ensaio, observa-se um desenvolvimento de temas muito similares aos do segundo Discurso. Nesse sentido, Derathé se vincula à hipótese de Masson. Citemos:

 

No que concerne à data de composição desse escrito, pode-se escolher entre duas hipóteses: 1749 ou 1754. Adota-se a primeira hipótese ao se admitir que o Ensaio está vinculado aos escritos sobre a música, destinados a Enciclopédia (Vaughan, Pol. Writ. e Hendel J.-J. Rousseau moralist). Alia-se à segunda ao se supor, como fez P. M. Masson, que o Ensaio foi concebido primitivamente como uma nota para ser colocada no apêndice do Discurso sobre a desigualdade. O texto que citamos, que trata das mesmas questões que o segundo Discurso, e no mesmo espírito, parece-nos confirmar a hipótese de Masson, a qual, por acréscimo, está apoiada no testemunho de Rousseau. (DERATHÉ, 2009, p. 222, nota 91).

 

Jean Starobinski: defende a anterioridade do Ensaio em relação ao segundo Discurso

As contradições internas reveladas por Espinas e Lanson entre as teses do Ensaio e aquelas anunciadas no segundo Discurso ainda incomodaram alguns intérpretes. Com base nisso, a hipótese de uma anterioridade de todo ou somente parte do Ensaio em relação ao segundo Discurso voltou à tona com Starobinski. Tudo se passa como se o pensamento de Rousseau evoluísse do Ensaio em direção ao segundo Discurso, pois, na visão de Starobinski, a partir de 1754, a doutrina não mais variará no ponto considerado, a saber, a piedade.

Sua argumentação repousa sobre a análise das versões sucessivas da teoria da “piedade”, tal como desenvolvida em três obras, quais sejam: no segundo Discurso; no capítulo IX do Ensaio; e, finalmente, no livro IV do Emílio.[12] A leitura do comentador aparece em uma nota de sua edição (primeira edição) do Discurso sobre a origem da desigualdade para o terceiro volume das obras completas de Jean-Jacques Rousseau (coleção da Pléiade), de 1964. A piedade natural (irrefletida ou pré-reflexiva), essencial para o pensamento de Rousseau, estaria ausente ou mesmo excluída do Ensaio, pois a noção de piedade precisa aí ser despertada pela imaginação e por certas luzes. Aos olhos de Starobinski, não há dúvidas de que a teoria exprimida no Ensaio é anterior à do segundo Discurso, considerada definitiva e que, ademais, coincide com a apresentada no Emílio. Mas será que é isso mesmo?

Lembremos primeiramente a doutrina do segundo Discurso. Nele, em duas passagens, Rousseau oferece uma definição da piedade natural: no prefácio e na primeira parte, por ocasião de uma crítica endereçada a Hobbes. “Meditando sobre as primeiras e mais simples operações da alma humana”, escreve o autor:

 

Creio nela perceber dois princípios anteriores à razão, um dos quais interessa profundamente ao nosso bem-estar e à nossa conservação, e o outro nos inspira uma repugnância natural por ver perecer ou sofrer qualquer ser sensível e principalmente nossos semelhantes. (ROUSSEAU, OC III, 1964, p. 125-126).

 

Na primeira parte do livro, disserta:

 

Há, aliás, outro princípio que Hobbes não percebeu: é que, tendo sido possível ao homem, em certas circunstâncias, suavizar a ferocidade de seu amor-próprio ou o desejo de conservação antes do nascimento desse amor, tempera o ardor que consagra a seu bem-estar com uma repugnância inata de ver sofrer seu semelhante. Não creio ter a temer qualquer contradição, se conferir ao homem a única virtude natural que o detrator mais acirrado das virtudes humana teria de reconhecer. Falo da piedade, disposição conveniente a seres tão fracos e sujeitos a tantos males como o somos; virtude tanto mais universal e tanto mais útil ao homem quando nele precede o uso de qualquer reflexão. [...] Tal é o movimento puro da natureza, anterior a qualquer reflexão. (ROUSSEAU, OC III, 1964, p. 154-155).

 

Vejamos qual é o estatuto da noção de piedade no Ensaio:

 

As afeições sociais só se desenvolvem em nós com nossas luzes. A piedade, ainda que natural ao coração do homem, permaneceria eternamente inativa sem a imaginação que a põe em ação. Como nos deixamos emocionar pela piedade? – transportando-nos para fora de nós mesmos, identificando-nos com o sofredor. Só sofremos enquanto pensamos que ele sofre; não é em nós, mas nele, que sofremos. Figuremo-nos quanto de conhecimentos adquiridos supõe tal transposição. Como poderia eu imaginar males dos quais não formo ideia alguma? Como poderia sofrer vendo outro sofrer, se nem soubesse que ele sofre? Se ignoro o que existe de comum entre ele e mim? Aquele que nunca refletiu não pode ser clemente, justo ou piedoso, tampouco mau e vingativo. (ROUSSEAU, OC V, 1995, p. 395-396).

 

Ora, observamos uma diferença radical entre a teoria presente no Ensaio e aquela que figura no segundo Discurso. Contudo, para decidir sobre as assertivas de Starobinski, faz-se também necessário consultar as páginas do Emílio:

 

Aos dezesseis anos o adolescente sabe o que é sofrer, pois ele próprio sofreu. No entanto, mal sabe que outros seres também sofrem; vê-lo sem o sentir não é sabê-lo e, como já disse cem vezes, não imaginando o que sentem os outros, a criança só conhece os seus males, quando, porém, o primeiro desenvolvimento dos sentidos acende nela o fogo da imaginação, começa a sentir-se em seus semelhantes, a comover-se com suas queixas e a sofrer com suas dores. É então que o triste quadro da humanidade sofredora deve trazer ao seu coração a primeira compaixão que jamais tenha experimentado. [...] Tendo refletido pouco sobre os seres sensíveis, Emílio saberá tarde o que é sofrer e morrer. As queixas e os gritos começarão a agitar suas entranhas; o aspecto do sangue que corre fará com que desvie o olhar; as convulsões de um animal moribundo dar-lhe-ão não sei que angústia antes que ele saiba de onde vêm essas novas reações. Se tivesse permanecido estúpido e bárbaro, não as teria; se fosse mais instruído, conheceria sua origem; já comparou ideias demais para nada sentir, e não o suficiente para compreender o que sente. Assim nasce a piedade, primeiro sentimento relativo que toca o coração humano conforme a ordem da natureza. Para tornar-se sensível e piedosa, é preciso que a criança saiba que existem seres semelhantes a ela que sofrem o que ela sofreu, que sentem as dores que ela sentiu e outras que deve ter ideia de que também poderá sofrer. De fato, como nos deixamos comover pela piedade, a não ser saindo de nós mesmos e identificando-nos com o animal que sofre e deixando, por assim dizer, nosso ser para assumir o seu? Só sofremos na medida em que julgamos que ele sofre; não é em nós, mas nele que sofremos. Assim, ninguém se torna sensível a não ser quando sua imaginação se excita e começa a transportá-lo para fora de si. (ROUSSEAU, OC IV, 1969, p. 504-506).

 

Curiosamente, a piedade supõe tanto no Emílio quanto no Ensaio a intervenção de certas luzes, de conhecimentos e da imaginação, o transporte para fora de si e em direção ao outro. Não obstante, o que Starobinski afirma é uma identidade entre o segundo Discurso e o Emílio, e não uma identidade entre este último e o Ensaio. Citemos o comentador:

 

A importância do impulso espontâneo da piedade, fundamento não-raciocinado da moral, foi indicada por Rousseau desde o Prefácio do Discurso. Nesta parte do Discurso, e depois no Emílio, Rousseau não cessa de afirmar que a piedade é uma virtude que “precede o uso de toda reflexão”. Tal é o estado definitivo do pensamento de Rousseau a esse respeito. Ora, o Ensaio sobre a origem das línguas, cap. IX, formula sobre esse ponto ideias bem diferentes, o que permitiria talvez atribuir a esse texto (ou pelo menos a esse capítulo) uma data anterior ao acabamento do Discurso sobre a origem da desigualdade. No Ensaio, Rousseau não admite a possibilidade de um ímpeto de simpatia irrefletida, e parece mais inclinado a sustentar a ideia hobbesiana da guerra de todos contra todos. (STAROBINSKI. apud ROUSSEAU, OC III, 1964, p. 1330, nota 2).

 

            No entanto, essa argumentação pode ser contestada por duas razões. 1) Se confrontarmos os três textos, tal como fizemos, é difícil sustentar a discordância entre as teses do Ensaio e as do Emílio.[13] Do mesmo modo, parece difícil sustentar a concordância entre o Emílio e o segundo Discurso. Nesses termos, se há mesmo uma mutação na teoria da piedade, tal ruptura não se encontra entre o Ensaio, de um lado, e o segundo Discurso e o Emílio, de outro, mas antes entre o segundo Discurso, de um lado, e o Ensaio e o Emílio, de outro. Esses dois livros contêm uma concepção intelectualista da piedade e, além disso, mobilizam as mesmas expressões.[14] 2) É difícil sustentar, tal como faz Starobinski, que essa divergência entre o Ensaio e o segundo Discurso traduziria o abandono da teoria hobbesiana do estado de guerra primitivo ou da maldade natural do homem. O Discurso contesta abertamente essa concepção, não sendo desmentido pelo Ensaio. O que se defende neste último é justamente a neutralidade do estado de natureza. Com isso, assim como no segundo Discurso o homem natural não é nem bom nem mau, no Ensaio, o estado de natureza não está nem em guerra nem em paz.[15]

 

Derrida: filia-se à hipótese de Masson

Jacques Derrida, em 1967, não deixa de tomar partido nesse caloroso debate. O autor da Gramatologia acredita que as afirmações extraídas do Ensaio, alegadas por Starobinski como incompatíveis com as teses do segundo Discurso, na verdade, não o são. Em sua análise, ele almeja demonstrar a inconsistência da argumentação de seu interlocutor. Para ele, não se pode recorrer a nenhum argumento interno para provar a anterioridade ou posteridade cronológica do Ensaio, posto que não há nenhuma mudança brusca no pensamento de Rousseau quanto a esse ponto (DERRIDA, 1967, p. 272). O filósofo da desconstrução sustenta uma conciliação entre o Discurso sobre a desigualdade, o Ensaio e o Emílio. Por isso, para Derrida, a resposta de Masson a Lanson parece “definitivamente convincente”.

Jean Starobinski acaba por reconhecer (1995) a inviabilidade de sua leitura inicial, afirmando que “as diversas definições da piedade, em Rousseau, não pertencem a períodos diferentes de seu pensamento e não fornecem nenhum índice cronológico” (STAROBINSKI apud ROUSSEAU, OC V, 1995, p. CCI-CCII). Ele cita, por exemplo, uma passagem da nona caminhada dos Devaneios do caminhante solitário, muito próxima da temática desenvolvida no Ensaio, na qual Rousseau afirma que “a imaginação, reforçando a sensação”, promove a identificação “com o ser que sofre” (ROUSSEAU, OC I, 1959, p. 1094). Desse modo, Starobinski modifica a nota que ele havia escrito em 1964 para o terceiro volume da coleção das obras completas de Rousseau, porque não é possível encontrar nas edições subsequentes quaisquer referências a esse debate.

                                           

Década de setenta: Duchez e Wokler

Já dissemos e até mesmo observamos que, na grande maioria das vezes, o Ensaio sobre a origem das línguas foi lido à luz do segundo Discurso, à margem do texto célebre. Muitos intérpretes buscaram traçar paralelos entre essas duas obras, particularmente as relações de continuidade ou descontinuidade existentes entre o Discurso sobre a desigualdade e o capítulo IX do Ensaio (“Formação das línguas meridionais”), o qual trata da formação das primeiras sociedades. Como sustentamos, o próprio Rousseau fundamenta e abre o caminho para essa leitura, uma vez que admite ser o Ensaio, em um primeiro momento, apenas um fragmento do segundo Discurso, suprimido por ser muito grande e fora de lugar.

Embora o próprio Rousseau tenha aberto essa vereda interpretativa a seus leitores futuros, relacionando definitivamente o Ensaio ao segundo Discurso, é preciso ter em mente que somente uma parte do Ensaio formava, no início, o fragmento retirado do Discurso sobre a desigualdade. As questões a se fazer são as seguintes: o que faria parte do segundo Discurso? E qual seria o fragmento originário que ajudaria a compor uma versão inicial do Discurso? A maior parte dos comentadores (vide o exemplo de Derathé) acreditou que essa parte seria composta pelo nono capítulo ou pelos capítulos do Ensaio os quais tratam da formação das línguas e das sociedades. Em contrapartida, pensamos que essa hipótese esteja bastante equivocada.

A título de elucidação, podemos citar como modelos dessa leitura as interpretações de Michèle Duchet/Michel Launay e de Marcelo Dascal. Na segunda parte do Discurso sobre a desigualdade, Rousseau apresenta o que poderia ser considerado um esboço de uma teoria da evolução da linguagem. Citemos:

 

[O homem] unia-se com eles [seus semelhantes] em bando, ou quando muito em alguma espécie de associação livre que não obrigava ninguém e não durava mais que a necessidade passageira que a formava. [...] É fácil compreender que tal relacionamento não exigia uma linguagem muito mais refinada do que a das gralhas ou dos macacos, que se agrupam quase do mesmo modo. Gritos inarticulados, muitos gestos e alguns ruídos imitativos devem ter composto por muito tempo a língua universal; juntando-se-lhes, em cada região alguns sons articulados e convencionais cuja instituição, como já disse, não é muito fácil de explicar, obtiveram línguas particulares. (ROUSSEAU, OC III, 1964, p. 166-167).

 

Para satisfazer as necessidades comunicativas extremamente reduzidas de homens que se encontravam apenas em uma espécie de associação livre, proporcionada por uma necessidade passageira, não era preciso nada mais refinado do que a linguagem das gralhas e dos macacos. O problema é que esse texto não explica claramente a passagem que leva dos gritos inarticulados à instituição de certos sons articulados e convencionais. Dentro do segundo Discurso, tal passagem não corresponde a nenhuma necessidade precisa (LAUNAY; DUCHET, 1967, p. 431). Com isso, “entre este comércio incerto, que se estabelece passageiramente entre os homens isolados e errantes e a invenção da palavra, há uma falha” (LAUNAY; DUCHET,1967, p. 431). Esta falha seria justamente – como sugerem Duchet/Launay e, posteriormente, Dascal (1980, p. 62)[16] – o lugar em que se inseriria o Ensaio sobre a origem das línguas.

A partir dos anos setenta, alguns comentadores questionaram essa crença que via no nono capítulo o fragmento descartado do segundo Discurso. Um dos primeiros a fazer isso foi Robert Wokler. De acordo com suas palavras, quase todos os comentadores (incluindo ele próprio) “acreditaram que o fragmento não identificado do Discurso destinado a se tornar o Ensaio era evidentemente uma versão do nono capítulo intitulado ‘Formação das línguas meridionais’” (WOKLER, 1981, p. 145). Todavia, continua Wokler, essa crença compartilhada pelos comentadores se fundava “sobre uma base essencialmente falsa” (WOKLER, 1981, p. 146).

A descoberta de um manuscrito de Rousseau intitulado Princípio da melodia ou resposta aos erros sobre a música veio colocar uma pá de cal nessas intermináveis discussões. Marie-Elisabeth Duchez (1974, p. 33-86) e Robert Wokler publicaram, em 1974 – e de maneira independente entre si – esse manuscrito apenas parcialmente, a saber, o Ms R60 (antigo 7877) da Biblioteca de Neuchâtel.[17] Trata-se da primeira versão do Exame de dois princípios desenvolvidos pelo Sr. Rameau em seu panfleto intitulado Erros sobre a música na Enciclopédia e, além disso, de um manuscrito o qual contém, em sua parte central (f. 7r à 17r), um desenvolvimento consagrado à origem da melodia que aparece nas páginas do capítulo XII ao XIX do Ensaio sobre a origem das línguas. É muito provável que tais desenvolvimentos constituam o fragmento descartado da versão definitiva do segundo Discurso. Citemos Wokler (1981, p. 146-147):

 

Durante o verão de 1971 descobri que a primeira versão do Exame de dois princípios de M. Rameau [o Princípio da melodia ou resposta aos erros sobre a música], de 1755, abarca uma seção central que deveria, pela sequência, constituir os capítulos 18 e 19 do Ensaio sobre a origem das línguas, e eu reproduzi esta seção no artigo sobre Rousseau e Rameau que apareceu na Studies on Voltaire, em 1974. Trabalhando independentemente, Marie-Elisabeth Duchez publicou no mesmo ano, na Revue de Musicologie, um artigo em que se aproximava de meus argumentos e acrescentava que esses capítulos deveriam constituir o fragmento descrito por Rousseau em seu projeto de prefácio, já que ele reconhecera ter retomado um fragmento do Discurso no momento em que redigia sua resposta à Rameau. Essa segunda versão [Princípio da melodia] do manuscrito original do Discurso não se encontra no texto publicado, mas ela reaparece em uma terceira versão, agora definitiva, do Ensaio sobre a origem das línguas.

 

Tendo em vista desvendar o enigma de saber o que fora descartado da redação original do Discurso, encontramos uma pista interessante já no próprio prefácio de 1763 citado anteriormente (ROUSSEAU, 1997, p. 13-14). Nesse contexto, também é importante citar a carta endereçada a Malesherbes, de 25 de setembro de 1761, na qual se explicita a relação do escrito de Rousseau com os ataques proferidos por Rameau, em virtude dos verbetes musicais da Enciclopédia:

 

Madame de Luxembourg aceitou encarregar-se de vos remeter este pequeno escrito [o Ensaio] de que vos falei e que me prometestes ler não apenas como magistrado, mas como homem de letras que se digna a interessar-se pelo autor e dispõe-se a dar-lhe seu conselho. Não penso que este borrão possa suportar uma publicação em separado, mas talvez possa passar no cômputo geral graças aos demais, embora desejasse que fosse publicado à parte por causa desse Rameau que continua a fustigar-me vilmente e que quer a honra de uma resposta direta que seguramente não lhe darei. Decidi, senhor, e vosso julgamento será minha lei em qualquer situação. (ROUSSEAU, OC V, 1995, p. CXCVIII).[18]

 

Tanto nessa carta quanto no prefácio de 1763, Rousseau apresenta a obra como uma resposta aos ataques de Rameau. Nas duas citações, o nome do compositor de Dijon é lembrado e se instaura como a figura contra a qual a concepção musical de Rousseau pretende se opor. Para melhor compreender essa querela entre os dois autores, é preciso ter em mente que Rameau havia escrito e publicado anonimamente, em 1755, os Erreurs sur la musique dans l’Encyclopédie e, em 1756, a Suíte des erreurs sur la musique dans l’Encyclopédie. Ambos os textos pretendiam desqualificar a contribuição teórico-musical de Rousseau para a Enciclopédia, criticando alguns de seus verbetes. Com isso, em seu prefácio de 1763, Rousseau se refere aos “Erros do senhor Rameau sobre a música”, isto é, ele faz uma alusão aos dois textos de Rameau, todavia, alterando aqui ligeiramente o título, ao suprimir as duas palavras “na Enciclopédia”, acrescentando o nome de Rameau, a fim de evidenciar que não ignorava o autor dos mesmos, embora tivessem sido publicados anonimamente. No Exame e no Princípio da melodia, Rousseau chega a asseverar que “não estaria fingindo ao confessar que o escrito intitulado Erros sobre a música” parece efetivamente “formigar de erros”, sendo nele “justo apenas o título” (ROUSSEAU, OC V, 1995, p. 350).[19]

A descoberta do manuscrito Ms R60 permitiu relacionar firmemente a produção do Ensaio às polêmicas musicais entre Rousseau e Rameau, as quais remontavam desde a época da Querela dos Bufões e à Carta sobre a música francesa.[20] Uma nota do Emílio vem corroborar nossa hipótese. No livro IV do Emílio, Rousseau estabelece uma distinção concernente aos objetos que interessam ao julgamento de gosto: de um lado, estariam aqueles que só fornecem um prazer físico e, de outro, aqueles que tocam verdadeiramente a alma humana, pois não ignoram as impressões morais:

 

Devemos distinguir também suas leis no que diz respeito às coisas morais e suas leis no que diz respeito às coisas físicas. Nestas últimas, os princípios do gosto parecem absolutamente inexplicáveis. Mas importa observar que as coisas morais participam de tudo o que se relaciona com a imitação;* assim se explicam as belezas que parecem físicas e na realidade não o são. (ROUSSEAU, OC IV, 1969, p. 582).

 

*Isso é provado num ensaio sobre o princípio da melodia, que encontrarão na coleção de meus escritos” [nota de Rousseau].

 

A nota associa definitivamente o Ensaio sobre a origem das línguas e o Princípio da melodia, pois, na primeira edição do Emílio de 1762, Rousseau intitula o texto como Ensaio sobre o princípio da melodia. Sabemos que uma cópia autografada e um exemplar corrigido pela mão do próprio autor substituem a menção ao Princípio da melodia pela do Ensaio sobre a origem das línguas.

O fragmento que compunha o segundo Discurso é definitivamente aquele que evoca o nascimento e a degenerescência da música, e não a formação das primeiras sociedades. Tudo parece nos indicar que os capítulos que descrevem as origens das línguas e das sociedades não são contemporâneos do segundo Discurso[21]. Portanto, muito provavelmente o capítulo nono foi redigido depois do segundo Discurso, de modo que ele não lhe faz referência, pois constitui um novo conjunto de ideias sobre o desenvolvimento da sociedade e trata de um grupo de problemas diferentes daqueles que outrora preocuparam Rousseau. Se isso for verdade, tal como acreditamos, a sugestão de inserção feita por Dascal e Duchet se mostra incorreta.

O fragmento retirado do segundo Discurso seria um desenvolvimento relativo ao nascimento e à degenerescência da música. Na parte central do Princípio de melodia, citemos Starobinski:

 

Encontram-se as ideias expostas nos capítulos XII à XIX do Ensaio sobre a origem das línguas e, naquilo que concerne os capítulos XVIII e XIX, um texto muito próximo da versão definitiva. A elaboração do Princípio de melodia data muito provavelmente o fim de 1755, isto é, o momento em que Rousseau, provocado por Rameau, prova o sentimento de lhe replicar. E é muito provável que nesta data ele teria inserido em seu manuscrito o fragmento que ele descartara do Discurso sobre a desigualdade. [...] Para Marie-Élisabeth Duchez, Charles Porset e, sobretudo, Robert Wokler, é altamente provável que a digressão central do Princípio da melodia, evocando o nascimento e a degenerescência da música, seja o fragmento que fez parte de uma versão mais extensa do segundo Discurso. É preciso, portanto, renunciar em procurar no capítulo IX do Ensaio, como muitos fizeram, o fragmento transferido de uma obra à outra. (STAROBINSKI. apud ROUSSEAU, OC V, 1995, p. CXCIX).

 

Com isso, a hipótese mais verossímil é a seguinte: o Ensaio surgiu originalmente como uma parte do segundo Discurso (1753-1754), suprimida da versão definitiva (1755) e retomada por Rousseau (também em 1755), por ocasião dos ataques de Rameau, que, até então, publicara apenas os Erreurs sur la musique dans l’Encyclopédie. A parte central do Princípio da melodia tornou-se o embrião do Ensaio sobre a origem das línguas, escrito muito provavelmente entre 1756 e 1761 (ano em que Rousseau escreve a Malesherbes, pedindo sua aprovação).

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

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[1] Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP – Brasil..    https://orcid.org/0000-0002-9672-2483    E-mail: maurodelabandera@yahoo.com.br

[2] Um caloroso debate entrou em cena quando, em 1884, Albert Jansen publicou (Jean Jacques Rousseau als musiker) um prefácio escrito por Rousseau para uma possível antologia de seus textos. Por volta de 1763, Rousseau pretendia compilar, em um pequeno volume, três textos, a saber, a Imitação teatral, o Ensaio sobre a origem das línguas e o Levita de Efraim. No entanto, esse projeto não chegou a ser concretizado, restando somente um esboço de prefácio no qual Rousseau admite ser o Ensaio, em um primeiro momento, apenas um fragmento do Discurso sobre a origem da desigualdade, suprimido “por ser muito grande e fora de lugar” (ROUSSEAU, 1997, p. 13).

[3] Quatro referências são particularmente importantes, a saber: uma carta a Malesherbes; uma passagem importante do livro XI das Confissões; o projeto de prefácio; e, finalmente, uma nota presente na primeira edição do Emílio.

[4] O título completo da obra é Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Muitas maneiras foram empregadas para se referir a ela: Discurso sobre a origem da desigualdade, Discurso sobre a desigualdade, segundo Discurso (diferenciando-a do primeiro Discurso, o Discurso sobre as ciências e as artes) ou, simplesmente, Discurso. Tomamos a liberdade de utilizar todas essas referências, sem definir um padrão fixo, já que a fortuna crítica mobilizada neste artigo e o próprio Rousseau se referiram a ela de múltiplas maneiras.

[5] Como veremos ao longo deste artigo, muitos autores abordaram a questão da piedade e seus respectivos trabalhos serão oportunamente indicados.

[6] Dois importantes predecessores brasileiros devem aqui ser lembrados: Becker (2016, p. 2011-219; Tese de Doutorado, 2008) e Marques (2010).

[7] Ver o importante artigo de Charles Porset, “L’inquietante étrangeté de l’Essai sur l’origine des langues: Rousseau et ses exégètes (PORSET, 1976, p. 1715-1758). Porset enumera diversos trabalhos e autores que escreveram sobre o assunto, porém, sua listagem está longe de ser completa.

[8] Trata-se de um comentário de Jacques Derrida sobre a interpretação de Espinas. Derrida busca deslegitimar o argumento de Espinas: “Bem entendido [o argumento de Espinas], será preciso estudar minuciosamente o uso que Rousseau faz desse conteúdo factual e se, usando-o como índice de leitura ou exemplos condutores, não os neutraliza já enquanto fatos, o que ele se autoriza a fazer também no Discurso.” (DERRIDA, 1967, p. 273-274). Ou, ainda, será preciso considerar se Rousseau realmente afasta todos os fatos, já que as notas do segundo Discurso formigam de referências factuais, científicas e conteúdos empíricos.

[9] Rousseau se aproxima bastante das reflexões de Duclos e transcreve um fragmento desse autor, no término do Ensaio (ROUSSEAU, OC V, 1995, p. 429). Citemos Duclos: “Permitir-me-ei aqui uma reflexão a respeito da tendência que temos de tornar nossa língua mole, afeminada e monótona. Temos razão para evitar a rudeza na pronúncia, mas creio que caímos por demais no defeito oposto. Pronunciávamos antigamente muito mais ditongos que hoje. [...] Esses ditongos conferiam força e variedade na pronúncia e a livravam de uma espécie de monotonia que vem, em parte, da multidão de e mudos [...]. Nossa língua se tornará insensivelmente mais adequada à conversação do que à tribuna e a conversação dá o tom à cátedra, ao tribunal e ao teatro; enquanto entre os Gregos e os Romanos não se submetiam a isso. [...] Isso seria matéria de um exame bastante filosófico: observar o fato e mostrar, por exemplo, quanto o caráter, os costumes e os interesses de um povo têm influência sobre sua língua.” (DUCLOS, 1993, p. 9-11).

[10] Vaughan sustenta, por razões externas, que o Ensaio foi projetado antes do segundo Discurso, e mesmo antes do primeiro. De acordo com o comentador, o livro se prende muito intimamente aos escritos sobre a música destinados à Enciclopédia (VAUGHAN, 1915, p. 10, n. 2).

[11] Anos antes e em outro livro, o mesmo autor também dedicou uma nota ao assunto (DERATHÉ, 1948, p. 17-18, nota 2).

[12] Hélène Bouchilloux trata da diferença entre a piedade natural e a piedade refletida (BOUCHILLOUX, 2014, p. 249-260). Ryan Patrick Hanley (2014, p. 305-318), por sua vez, utiliza os termos piedade natural e piedade desenvolvida.

[13] Rousseau afirma ainda nas Confissões que, em 1761, enquanto redigia o Emílio e o Contrato social, também se ocupava do Ensaio: “Além desses dois livros [o Emílio e o Contrato social] e do Dicionário de música, no qual trabalhava de vez em quando, tinha alguns outros escritos de menor importância, todos em estado de aparecer, e que tencionava ainda dar, quer em separado, quer na minha compilação geral, se alguma vez a empreendesse. Destes escritos, na sua maior parte ainda nas mãos de Du Peyrou, o principal era um Ensaio sobre a origem das línguas, que dei a ler a monsieur de Malesherbes e ao cavaleiro de Lorenzy, que mo elogiou. Contava que todas estas produções juntas me valessem, feitas todas as despesas, um capital de oito a dez mil francos, que eu queria transformar em uma renda vitalícia.” (ROUSSEAU, OC I, 1959, p. 560).

[14] Sobre uma interpretação que pretende conciliar as diversas manifestações do princípio da piedade, na obra de Rousseau, ver Victor Goldschmidt (1974). O intérprete considera uma falsa questão a evolução do princípio da piedade do segundo Discurso ao Ensaio/Emílio. Em vez de imaginar que Rousseau evoluiu em direção a uma concepção mais intelectualista da piedade, Goldschmidt prefere sustentar que o autor evitou projetar essa concepção mais intelectualista no puro estado de natureza, para não comprometer a simplicidade das faculdades que ele supõe no homem natural. Isso, contudo, não prejudica o fundamento imaginário que recebe a piedade em um homem já desnaturado, com as faculdades desenvolvidas. Citemos: “A evolução ou a ‘mutação’ não está somente entre o Discurso e os dois outros livros, está no próprio interior do Discurso. O homem natural não possui imaginação nem razão. Vive só. É somente bem mais tarde que ele se torna capaz de instituir comparações entre si e seus semelhantes: mesmo assim, a experiência lhe ensina somente que ‘o amor do bem-estar é o único motivo para as ações humanas’. Como conceber que este homem, encerrado em sua própria animalidade e ainda incapaz de perceber ‘as conformidades’ externas entre seus semelhantes e si próprio, possa ‘desejar que alguém não sofra’ e se identificar ‘intimamente com o animal sofredor’? Se fosse capaz de piedade (da piedade que identifica), o homem natural seria imediatamente capaz de amor-próprio: em um e em outro caso, trata-se de um ‘sentimento que deriva das comparações que ele não tem condições de fazer’. Donde se pode perguntar se a evolução (ou a ‘mutação’) não resolve somente (aqui, como em outros lugares) um problema artificial nascido de uma leitura apressada dos textos, em detrimento de um problema real colocado pelo próprio Discurso e cuja solução fará desaparecer toda aparência de contradição entre as três obras.” (GOLDSCHMIDT, 1974, p. 338). Catherine Larrère, por sua vez, defende a não existência de contradição entre o que é dito da piedade no segundo Discurso e o Ensaio/Emílio em um ponto bastante específico: ela é considerada a fonte das “virtudes sociais” (LARRÈRE, 2002, p. 178-179). André Charrak, que não contesta a mudança de estatuto da noção de piedade do segundo Discurso ao Emílio, assevera que essa mudança ou mutação é dependente de outra mais fundamental, qual seja: o amor-de-si. Para Charrak, todas as configurações da vida moral são, no Emílio, derivadas – de acordo com as circunstâncias – do amor-de-si (CHARRAK, 2013, p. 29-72).

[15] É importante notar que, nas páginas do Ensaio, Rousseau nos proíbe de considerar que, antes da atualização da piedade pela imaginação, o homem seja mau e belicoso. Ao contrário do que sugere Starobinski, o Ensaio nos interdita tomar o momento da piedade adormecida como o momento da maldade belicosa, como um momento hobbesiano. Citemos Rousseau: “Não se ligavam por qualquer ideia de fraternidade comum e, possuindo como único árbitro a força, acreditavam-se inimigos uns dos outros. Essa opinião era-lhes comunicada por sua fraqueza e ignorância. Nada conhecendo, tudo temiam: atacavam para se defenderem. Deveria ser um animal feroz esse homem abandonado sozinho na superfície da terra, à mercê do gênero humano. Estava pronto a fazer aos outros todo o mal que neles temia. As fontes da crueldade são o temor e a fraqueza. [...] Resultam daí as contradições aparentes que se notam entre os pais das nações. Tanta naturalidade e tanta desumanidade; costumes tão ferozes e corações tão ternos; tanto amor pela própria família e tanta aversão pela sua espécie. Todos os seus sentimentos, concentrados nos seres próximos, adquiriam maior energia. Tudo o que conheciam lhes era caro. Inimigos do resto do mundo, que não viam e ignoravam, odiavam-se porque não podiam conhecer-se. Esses tempos de barbárie foram a idade do Ouro, não porque os homens estivessem unidos, mas porque estavam separados. Cada um, dizem, julgava-se o senhor de tudo. Pode ser que sim, mas ninguém conhecia e desejava senão o que estava sob sua mão; suas necessidades, em lugar de aproximá-lo de seus semelhantes, distanciavam-no. Os homens – poder-se-ia afirmar – atacavam-se quando se encontravam, mas encontravam-se muito raramente. Em todos os lugares dominava o estado de guerra e a terra toda estava em paz.” (ROUSSEAU, OC V, 1995, p. 395-396). Como aponta Derathé, “dirigido ao mesmo tempo contra Hobbes e Pufendorf”, essa passagem mostra claramente que “Rousseau se serve do mesmo argumento para refutar a teoria da guerra natural de todos contra todos e a teoria oposta, da sociabilidade natural. As necessidades vitais, isto é, as necessidades físicas, não têm como efeito nem aproximar os homens, como acreditava Pufendorf, nem os tornar inimigos uns dos outros, como sustentava Hobbes, mas a ‘necessidade de buscar viver os força a fugirem-se’. O estado de natureza não é, portanto, uma guerra geral, tampouco uma ‘vida social’, mas um estado de dispersão ou de isolamento.” (DERATHÉ, 2009, p. 222-223).

[16] É preciso frisar que as implicações da sugestão de Michèle Duchet e Michel Launay serão radicalmente distintas da interpretação de Dascal.

[17] Em 1987, Wokler transcreveu a integralidade do Princípio da melodia. A transcrição figura como apêndice de seu livro Rousseau on society, politics, music and language: an historical interpretation of his early writings (WOKLER, 1987, p. 436-482).

[18] A carta de Rousseau a Malesherbes é a de número 1495, presente no tomo IX, p. 31 da Correspondance Complète, editada por Ralph A. Leigh.

[19] E também, com ligeiras alterações, Du principe de la mélodie (ROUSSEAU apud WOKLER, 1987, p. 439). O leitor desejoso de obter mais informações sobre a relação dos escritos musicais de Rousseau com as duas críticas que apareceram em 1755 e 1756, respectivamente, os Erros e a Sequência dos erros, poderá consultar o capítulo intitulado “Rousseau e o exame dos ‘Erros do Sr. Rameau’” da tese de Fábio Yasoshima (YASOSHIMA, 2017, p. 82-135).

[20] Essa carta, escrita em 1752, apareceu em novembro de 1753, período em que Paris vivia uma efervescência de debates teóricos em torno da música francesa e italiana. Tais debates ficaram conhecidos como a Querela dos Bufões, e não é exagero afirmar que eles dividiram a cidade em dois partidos “mais entusiastas do que se se tratasse de um negócio de Estado ou religião”: de um lado estavam aqueles adeptos da música francesa, de outro, os partidários da música italiana. A tese central da Carta sobre a música é que o caráter expressivo de toda música decorre, imperativamente, das inflexões ou dos acentos da língua. Tal concepção consagra, por via de consequência, a superioridade da música italiana sobre a música francesa. Se houver na Europa, afirma Rousseau, “uma língua própria à música, é certamente a italiana; pois esta língua é doce, sonora, harmoniosa e acentuada como nenhuma outra, e essas quatro qualidades são precisamente as mais convenientes ao canto” (ROUSSEAU, OC V, 1995, p. 297).

[21] Essa mesma opinião é compartilhada por Béatrice Durand-Sendrail: “O Ensaio sobre a origem das línguas se enraíza, portanto, de maneira evidente na reflexão musical de Rousseau. É somente com a última versão da redação e com o título definitivo que a preocupação linguística parece se tornar prioritária.” (DURAND-SENDRAIL, 1992, p. 82).