POSSIBILIDADESEIMPOSSIBILIDADES EMPOLÍTICAHOJE
Entrevista com o Prof. Dr. Oskar Negt da Universidade de Hannover[1]
A vinda ao Brasil do professor Oskar Negt abre a possibilidade de pensar a ação política além dos moldes tradicionais e destituídos de sentido, como ocorre atualmente com a política estabelecida. Ele é um herdeiro sui generis da Teoria Crítica, que nunca teve a reflexão e a ação política como temas centrais de sua produção teórica. Para Negt, refletir teoricamente e motivar a ação política constituem dois pólos indissociáveis de uma trajetória de vida, que se iniciou nos arredores de Königsberg, na antiga Prússia Oriental. Depois de duas fugas para o Ocidente e de chegar a estudar com Adorno em Frankfurt, em seguida com Habermas em Heidelberg, Negt teve também uma expressiva experiência política, desde os movimentados anos 60, sua atuação junto aos sindicatos, até a sua atual participação como assessor do chanceler alemão Gerhard Schröder.
O senhor conta em seu livro, O que há de político na política?, sobre a sua infância em Königsberg durante a Segunda Guerra Mundial. Como foi isso?
Eu cresci em um sítio 30 km a oeste de Königsberg, na aldeia chamada Kapheim. Éramos literalmente uma grande família. Eu tinha cinco irmãs mais velhas e um irmão, sendo eu o mais novo. Meu pai foi, desde 1918, quando lutou no conselho de soldados e de trabalhadores, membro do partido social-democrata. E teve uma grande influência sobre o meu desenvolvimento político e intelectual. Instruiu-me bastante, apesar de ter sido um simples camponês. Logo meu irmão teve que assumir o pequeno sítio; eu mesmo comecei bem cedo a desenvolver interesses intelectuais, lia bastante e movimentava-me em meio a um rico mundo da fantasia. Em janeiro de 1945, o exército vermelho retornou à nossa aldeia. Duas irmãs mais velhas e eu fugimos para Berlim. Mas não podíamos mais sair de Königsberg, já que o exército vermelho tinha acabado de cercar a cidade. Mesmo assim fugimos para a Dinamarca em um dos últimos barcos que transportavam refugiados. Fomos então registrados como órfãos pela Cruz Vermelha. Eu tinha dez anos, uma irmã 15 e a outra 16. Permaneci dois anos e meio em um campo de refugiados na Dinamarca. Em julho de 1947, retornei à Alemanha. Meu pai conseguiu um novo sítio no território ocupado pelos soviéticos. Como era um velho socialista, logo entrou em conflito com os comunistas. Assim começamos, eu e minha família, em 1952, nossa segunda fuga. Fomos então morar nas proximidades de Oldenburg, em um sítio, onde meu pai arrumou trabalho.
Agora conte-nos um pouco sobre o seu desenvolvimento intelectual: sua colaboração com Adorno em Frankfurt e depois o trabalho com Habermas em Heidelberg.
Ao concluir o secundário em 1955, em Oldenburg, estava decidido a estudar economia ou direito. Já havia antes, na biblioteca de minha escola, lido muita literatura filosófica; as bibliotecas das escolas sempre foram para mim um lugar de permanência seguro. Depois de meu retorno da Dinamarca e morando nas proximidades de Berlim, tinha que percorrer um longo caminho até a Oberschule no centro de Berlim; foi aí que um professor de alemão bem fraterno e instruído me deu as chaves da biblioteca da escola. Os trens circulavam de tal forma que eu tinha que ir muito cedo para a escola e freqüentemente permanecer por lá, mesmo depois de a aula ter acabado. Em ambos os casos, enfurnava-me na biblioteca da escola e cheguei a lê-la praticamente toda. Com prazer, mas antes de tudo por causa do tédio. O mesmo aconteceu comigo em Oldenburg, onde morava mais ou menos a 30 km de distância da cidade. Na biblioteca da escola, em Oldenburg, li também a Dialética do esclarecimento de Adorno e Horkheimer. O que me fascinou profundamente, pois não entendi absolutamente nada, mas soou tão cheio de princípios e tão abrangente! Minhas primeiras experiências de formação foram também condicionadas meio que casualmente em razão de meu longo caminho até a escola. Lia muito não apenas na biblioteca da escola, mas também nas longas viagens de ônibus e trem. Como não era bom aluno, pude, por meio de uma boa formação geral, conquistar grande consideração entre os meus professores, pois estava familiarizado com textos filosóficos.
Essa formação filosófica ampla foi também o motivo pelo qual permaneci apenas um semestre estudando direito em Göttingen, indo depois para Frankfurt estudar com Horkheimer e Adorno. Pareceu-me claro que o direito é uma especialidade técnica e que não poderia satisfazer meus interesses intelectuais. Em Frankfurt, estudei filosofia, sociologia, mas também história antiga e germanística de modo bem intensivo. Nessa atmosfera frankfurtiana, era evidente, para muitos dos estudantes que estudavam no Instituto de Pesquisa Social, atuar politicamente na União Socialista Estudantil Alemã (SDS). Eu também era, nesse contexto, muito ativo e em 1959 tornei-me membro da SDS. Pouco depois, fundei um círculo de trabalho em torno da obra de Marx, no qual podia propagar, em meio aos jovens estudantes, a literatura fundamental do marxismo.
Não gostava particularmente dos seminários de Adorno, ficava muito retraído, sobretudo pelo medo de dar respostas erradas. Comecei a gostar de Adorno pela primeira vez, e isto foi um acontecimento decisivo, quando proferi um seminário sobre economia política, que foi trabalhado em várias sessões, recebendo dele um grande elogio. Esses seminários motivaram também Habermas a perguntar-me se não gostaria de tornar-me assistente seu em Heidelberg. Eu era também, nesse período, dirigente interino de uma escola federal da União Sindical Alemã, em Oberursel, nas proximidades de Frankfurt. Sentindo-me lá muito à vontade entre os sindicalistas, pretendia até mesmo tornar-me propriamente professor de uma escola sindical. Depois desse período, o então deputado federal Hans Matthöfer colocou-me na seção de educação do sindicato dos metalúrgicos (IG-Metall), a qual ambos ajudamos a construir. Concluí o bacharelado em sociologia com um trabalho sobre Comte e Hegel. Esse trabalho conseguiu obter um conceito muito bom, levando Adorno a propor-me desenvolvê-lo na forma de uma dissertação. Tive com Adorno uma relação bem cordial, sobretudo tendo em vista o início do movimento estudantil. Mas não pertencia àqueles considerados seus alunos diletos. Permanecia em segundo plano, trabalhando intensamente com o problema da filosofia e da política. A questão principal estava orientada, durante todo o período da graduação, para a compreensão do socialismo, o que possui uma importância fundamental na Teoria Crítica. Nunca abandonei esta posição. Até hoje me ocupo com a idéia da transformação da reflexão filosófica em orientações para a política prática. Isto aprendi em Frankfurt em um clima marcado por relações de tensão entre política (em boa medida também sob a influência dos metalúrgicos [IG-Metall]) e filosofia – que determinaram o conjunto de nossas motivações cognitivas. Desde então, a minha vida pública situa-se nesse âmbito das contradições entre teoria e prática.
Você também me pergunta sobre o meu trabalho com Habermas em Heidelberg. Foi algo inteiramente incomum o fato de ele ter escolhido justamente a mim para colaborar com ele em Heidelberg. Conhecia-me pouco, havia muita gente inteligente em torno do Instituto de Pesquisa Social, que sem dúvida alguma era tão adequada como eu para assumir um desses postos de assistente. Somente mais tarde tive clareza de por que a escolha recaiu justamente sobre mim. Habermas escolheu-me porque queria ter como interlocutores alguns marxistas ortodoxos a seu lado. Devo admitir que nunca em toda minha vida discuti tanto e tão intensamente como nesse período de Heidelberg, de quase três anos, com Habermas. Discutíamos dia e noite sobre Deus e o mundo, literalmente. Tudo era objeto de disputa. Não havia posição na qual concordássemos de imediato. Mas Habermas era um irascível fanático da verdade. Lutava por qualquer argumento. Tínhamos, naturalmente, tradições comuns, pois ambos viemos da Teoria Crítica. Mas os posicionamentos políticos, que eu continuamente dava aos meus pensamentos, abriram para nós dois a possibilidade de um gigantesco diálogo produtivo. Este foi, entretanto, estorvado pelas posições inteiramente diferentes em relação ao movimento estudantil. Mas isso foi uma desavença já passada, pois nesse meio tempo tivemos novamente uma relação bem amigável um com o outro.
Como o senhor se posiciona diante da tradição da Teoria Crítica depois da assim chamada “linguistic turn”?
Aqui também é necessário que se faça um balanço. No desenvolvimento de Jürgen Habermas, essa guinada lingüístico-filosófica era desde o início perceptível. Nos seminários em Heidelberg, fui obrigado a ocupar-me não apenas com os positivistas de todos os matizes, mas a familiarizar-me também de forma cada vez mais intensa com os textos de lingüística. A naturalidade com que Wittgenstein era discutido não podia deixar-me indiferente. Mas sempre tive uma reserva profunda em relação a essa guinada lingüística no interior da tradição de pensamento da Teoria Crítica. Não sei por que, mas sempre tive mais perto de mim a experiência política da Escola de Frankfurt, como também a reavaliação crítica de Auschwitz e sobretudo das tradições alemãs. Nunca me deixei levar, no interior de meu edifício mental, pela mudança de paradigmas, da qual se fez tanto alarido. Essa guinada lingüística do pensamento não caracteriza, a meu ver, nenhuma ruptura decisiva. Meus próprios trabalhos sobre formação política, esfera pública (Öffentlichkeit), escola e sobre o conceito de político foram profundamente instigados e motivados pelos teóricos de Frankfurt, mas também mostram caminhos próprios. É uma das direções que eu abarquei juntamente com meu amigo Alexander Kluge, mas minha relação com as organizações de trabalhadores, sindicatos, partidos, parlamentos também esteve sempre ancorada em posições teóricas que defendi publicamente. A isto pertence também a fundação, por mim, de uma escola alternativa, a Glockseeschule, em Hannover, que existe ainda até hoje. Intervenção teórica e política constituem os pólos de meu pensamento, e acredito que desse modo assimilei e ampliei uma substância da Escola de Frankfurt que está na dialética entre conservar e renovar.
O senhor conheceu Georg Lukács, Ernst Bloch e Herbert Marcuse pessoalmente?
Georg Lukács nunca conheci pessoalmente. Aprendi muito dele, como todos nós de minha geração que praticamente sabíamos de cor História e consciência de classe. Minha relação com ele é deveras discrepante. Desde 1932, seus gestos de humilhação em relação ao stalinismo afetaram também profundamente o seu pensamento. A Destruição da razão [Die Zerstörung der Vernunft] é um livro medonho. Aqui ele sacrifica completamente a sua significativa capacidade intelectual. Também a guinada ontológica do último Lukács me é algo estranho. Entre os três filósofos citados foi com Ernst Bloch que tive o contato pessoal mais intenso. Conheci-o e sua esposa pessoalmente muito bem. Visitei-o várias vezes em Tübingen, sendo a última um pouco antes de sua morte. Ao chamá-lo, em um ensaio, de o filósofo alemão da Revolução de Outubro, manifestou para mim um efusivo sentimento de amizade e gratidão. Karola Bloch consultou-me várias vezes, ao se tratar de uma determinada publicação. Ele era o grande filósofo da esperança até o final de sua vida. Ao visitá-lo, em seu apartamento em Tübingen, quatro semanas antes de sua morte e falarmos sobre tudo o que é possível, disse ao final citando a canção dos fazendeiros em retirada do campo de batalha de Frankenhausen: “Geschlagen ziehen wir nach Haus, unsere Enkel fechten’s besser aus”, (“Batidos retornamos para casa. Nossos netos continuarão a luta de melhor modo”). Ele não sonhava com o passado, sua filosofia do “ainda-não” se destina também à nova geração, que se insurgiu em 68, ampliando o horizonte das possibilidades de configuração política. Simpatizava muitíssimo com esse movimento e por isso também concordávamos profundamente do ponto de vista emocional.
Encontrei Herbert Marcuse várias vezes; como professor visitante, deu cursos em Frankfurt. Cheguei a ouvi-lo, em Heidelberg, durante o grande congresso sobre Max Weber. Assimilei de forma intensiva tudo o que escreveu. Conhecemo-nos pessoalmente, em torno de 1970, e encontramo-nos freqüentemente depois e, nos Estados Unidos, telefonávamo-nos com relativa freqüência, quando fui professor visitante em Madison e em Milwaukee. Ambos nos preocupávamos muito com a nossa aluna em comum, Angela Davis. Ela participou dos meus seminários sobre Kant, em Frankfurt, e fez algumas exposições sobre a Crítica do juízo. Depois disso, eu e Marcuse discursamos conjuntamente na praça da ópera de Frankfurt em prol do Congresso de solidariedade a Angela Davis, onde formulei então um claro distanciamento político em relação ao terrorismo do Baader-Meinhof. Era uma relação amistosa, muitas vezes cordial com Herbert Marcuse. Escrevi agora um prefácio aos seus escritos sobre democracia, uma coletânea que será publicada pela editora Klampen. Marcuse é um filósofo que posteriormente foi injustamente esquecido.
O que o senhor pensa sobre a atual ameaça política da extrema direita e dos nacionalismos, na Europa Central? Seria uma “não-contemporaneidade” (Ungleichzeitlichkeit) no sentido de Bloch?
Naturalmente, na Europa do pós-guerra, sempre deparamos repetidamente com a irrupção da extrema-direita. Essas reativações do pensamento fascista, travestidas de nacionalismo, encontraram espaço na esfera pública em quase todos os países europeus. É certo que freqüentemente nada mais são que velhas fotos de recordação empoeiradas, das quais se pode dizer, com razão: “Eles não esqueceram nada e nada aprenderam”. Isso foi dito daqueles que foram expulsos durante a Revolução Francesa e que retornaram à França na época da Restauração. São esses reacionários de diferentes agrupamentos que nunca tiveram a sorte de conseguir um efetivo poder social e influência parlamentar.
A extrema direita do tipo de Berlusconi e Haider é de uma natureza bem diferente. Eles expressam decerto simpatias por esses regimes, que ruíram conjuntamente, de tutores (Gängelung) autoritários, mas possuem um acesso bem diferente aos jovens e aos meios de comunicação de massa. Não é de modo algum um acaso que Berlusconi disponha, com seu partner neo-fascista, de um império da mídia. Pode produzir, por meio da massa de desempregados, uma matéria-prima de medo em nossa sociedade de modo bem diverso daquelas figuras tradicionais, como Le Pen, que podem ainda atacar todo o velho sistema. Algo semelhante vale para Jörg Haider. Seus principais partidários têm de 16 a 25 anos de idade. Eles usam intencionalmente símbolos nazistas e o pensamento deles não está muito distante dos que negam ou minimizam a existência dos campos de concentração, mas não passam essencialmente de oportunistas, acomodados, técnicos do poder. Isso os faz muito mais perigosos do que os tradicionalistas dos velhos espectros partidários.
Eu não denominaria esse desenvolvimento de “não-contemporaneidade” no sentido de Bloch. Este traz em si uma contemporaneidade fatal, pois na medida em que a nossa ordenação social democrática não pode cultivar o solo sobre o qual crescem os temores existenciais, surgem solucionadores da crise de todos os matizes que podem mobilizar para si este medo. Este é direcionado contra os estranhos, os estrangeiros, os perdedores da racionalização, contra os desempregados e outros, que justamente são as vítimas desta sociedade. Esses sedutores do medo das massas jamais se colocam contra os poderes econômicos. É, portanto, tarefa de nossa política desenvolver perspectivas de esperança para os homens e sobretudo solucionar o problema da massa de desempregados e do empobrecimento nos países ricos.
Quais são, na sua opinião, as possibilidades de agir politicamente na assim chamada sociedade globalizada?
A globalização constitui hoje o principal argumento, no interior deste sistema capitalista, com o qual pode ser demolido o Estado Social. Constitui essencialmente um meio de pressão. Globalizado está essencialmente o mercado de finanças e de divisas. Sobretudo no caso do comércio, mostra-se evidente que todos os países não estão de modo algum incluídos nesse processo mundial de globalização. A África possui 1% de participação no comércio mundial e está praticamente excluída da economia global. Um continente inteiro sucumbe diante da miséria, da fome e do sofrimento.
Não partilho da tese segundo a qual o Estado nacional não possui mais nenhum instrumento político para reagir contra o processo, que não é de modo algum natural, deste mercado dominante financeiro globalizado. Ao contrário, acredito que os Estados nacionais hoje devem tornar-se conscientes da responsabilidade de que o mercado globalizado, ou em outras palavras, de que a lógica do capital e do mercado não é capaz de fundar uma coesão satisfatória da ordenação social. A argumentação política deve ser novamente ampliada de modo a mostrar claramente que a globalização favorece apenas exclusivamente os países ricos e não os pobres. A globalização não é nenhuma lei natural, mas sim algo politicamente desejado. Por isso, esses processos constituem também objeto de possíveis intervenções políticas. O espaço de configuração da política é atualmente maior do que evidencia a barreira de medo dos políticos em relação aos poderes econômicos.
Os alemães superaram com a “reunificação” sua miséria alemã?
Não! Mas esta miséria alemã adquiriu com a reunificação um traço novo. Foram dois Estados alemães que ruíram por meio de uma anexação econômica, mas não por meio de uma reavaliação cultural de uma longa história de cisão. Por isso, depois da supressão do muro literal que dividia a Alemanha, um muro de diferenças culturais a dividiu, talvez muito mais eficaz do que o muro exterior. Regiões inteiras da antiga RDA foram despovoadas, outras em contrapartida tornaram-se realmente paisagens férteis. Surgiram, portanto, novas disparidades, contradições e limitações. Para a juventude alemã surgiu aqui um campo perigoso de busca de culpabilidade substitutiva (Ersatzschuldigen). Predisposições à violência e à criminalidade alcançaram entre os jovens um grau espetacularmente alto. Desse ponto de vista, é retomada a velha miséria alemã, que continua de forma modificada. Acredito que não tem mais nada a ver com a busca de uma saída para o desenvolvimento alemão, mas em boa medida com um problema estrutural do trabalho capitalista e da sociedade do lucro, cujos problemas são particularmente palpáveis. Assim, quanto mais riqueza for produzida com uma força de trabalho vivo cada vez menor, tanto mais precisamos questionar em todos os países capitalistas o que deve acontecer com os indivíduos que se tornaram supérfluos. Não me refiro absolutamente aqui à miséria daqueles países do chamado Terceiro Mundo, que têm muito menos a esperar do capitalismo, pois a miséria começa mesmo nos países desenvolvidos do capitalismo. Nos Estados Unidos, vivem 36 milhões de homens sob o limite da pobreza; na Alemanha, contam-se sete milhões. Pode-se imaginar o que significa o problema da miséria no mundo, quando não pode nem mesmo ser controlado nos países mais ricos.
Como se sente um crítico da Realpolitik na Realpolitik?
Eis uma bela questão! Mas esta é muito difícil de ser respondida, se não se sabe de antemão o que é Realpolitik. Você alude à minha proximidade com o atual chanceler alemão, em relação ao qual em muitas questões me situo a seu lado como conselheiro e amigo. Não é uma atividade de assessoria tradicional, na qual eu jamais me permitiria envolver. Também considero sincera minha crítica à Realpolitik sob estas condições, já que me coloca em certa medida próximo da Realpolitik. Acredito que o querer colocar-se inteiramente fora da realização dos negócios políticos cotidianos é uma arrogância dos intelectuais de esquerda. Considero a atividade de conselheiro em boa medida necessária, já que para a maioria dos Realpolitiker a dimensão temporal de suas possibilidades de reflexão é totalmente atrofiada em processos de desenvolvimento a longo prazo. Seu pragmatismo cotidiano é freqüentemente governado pela mídia e pouco orientado por conexões reflexivas. Como teórico é necessário perseverar na pertinácia da teoria. E a teoria não tem sobretudo a função de ser aplicada na prática, mas sim de orientar politicamente a ação prática, de desenvolver critérios que possam ser postos à prova. Se eu conseguir tornar claro para um Realpolitiker competente que há situações históricas nas quais as utopias são realistas, então posso me colocar com prazer ao lado da Realpolitik.
Quando Kissinger foi convidado para ser conselheiro do presidente americano, considerou-se muito honrado. Começou logo a dar conselhos, mas certificou-se de que o presidente não quer sempre, de modo algum, receber conselhos. Então escreveu em suas memórias que a sua principal atividade, durante muito tempo, consistiu em despertar no presidente necessidades e motivos para conselhos. Os Realpolitiker opõem-se a esses conselheiros apenas do exterior. Kissinger chega a uma teoria que contém a seguinte tese principal: “A guerra no Vietnã não pode ser ganha”. Todos que estavam a serviço consideraram sua tese uma utopia e todas as regras da Realpolitik contraditórias. Os defensores dos direitos civis, os grandes sonhadores dos campi e muitos outros haviam há muito tempo percebido que essa guerra era perdida. Eles foram os autênticos Realpolitiker. Assim gostaria de entender minha função em relação aos políticos com quem tenho amizade.
[1] Entrevista feita e traduzida por Carlos Eduardo Jordão Machado. Isabel Maria Loureiro e Raquel Lazari Leite Barbosa colaboraram na edição final do texto. A idéia desta entrevista surgiu a pretexto da vinda de Oskar Negt ao Brasil para lançamento do seu livro, em co-autoria com Alexander Kluge, O que há de político na política? (São Paulo, Editora UNESP, 1999) e para participar de um seminário no Instituto Goethe de São Paulo. As idéias apresentadas na entrevista foram debatidas com os Professores Paulo Arantes e Gabriel Cohn, da USP, no dia 8.6.2000, no auditório da Editora UNESP, Praça da Sé, 108.