SOBRE A ESSÊNCIA ÍNTIMA DA ARTE[1]
Arthur SCHOPENHAUER
Tradução: Jair Lopes BARBOZA[2]
Não só a filosofia mas também as belas artes propõem-se, no fundo, a solucionar o problema da existência. Pois em cada espírito que uma vez se entregou à pura contemplação objetiva do mundo, ativou-se, mesmo se inconsciente e oculto, um esforço para compreender a verdadeira essência das coisas, da vida, da existência. Já que somente a essência possui interesse para o intelecto enquanto tal, isto é, para o puro sujeito do conhecer liberto dos fins da vontade; assim como somente os fins da vontade possuem interesse para o sujeito que conhece enquanto mero indivíduo. – Por isso, o resultado de cada concepção puramente objetiva, portantoartísticadas coisas,é uma expressãoa maisdaessênciada vida e da existência, uma resposta a mais à questão: “que é a vida?” – A essa questão responde acertadamente, à sua maneira, cada obra de arte genuína e bem elaborada. Todavia, as artes falam de modo completo apenas a língua ingênua e infantil da intuição, não a abstrata e séria da reflexão: sua resposta é, por conseguinte, uma imagem fugaz, não um conhecimento universal e permanente. Portanto, para a intuição, cada obra de arte responde àquela questão, cada quadro, cada estátua, cada poesia, cada cena teatral: também a música a responde; e na verdade mais profundamente do que qualquer outra arte, enquanto exprime, numa língua compreensível imediatamente – todavia não traduzível naquela da razão – a essência a mais íntima de toda vida e existência. As demais artes, portanto, exibem integralmente ao perquiridor uma imagem intuitiva e dizem: “Vê aqui, eis a vida!”. – Sua resposta, por mais correta que possa ser, sempre proporcionará apenas uma satisfação provisória, não uma integral e final. Pois elas fornecem sempre apenas um fragmento, um exemplo no lugar da regra, não o todo, que enquanto tal apenas poderá ser fornecido na universalidade do conceito. Por conseguinte, fornecer para este, portanto para a reflexão e in abstracto, uma resposta permanente e válida para sempre àquela questão – é a tarefa da filosofia. Entrementes, vemos aqui em que se baseia o parentesco da filosofia com as belas artes, e a partir dele podemos ter por aceite que, embora a capacidade para ambas seja bastante díspar na sua orientação e no secundário, na raiz é a mesma. Cada obra de arte está, em conformidade com o dito, propriamente empenhada em nos mostrar a vida e as coisas como elas em verdade o são, mas não podem ser imediatamente concebidas por todos através da névoa das casualidades objetivas e subjetivas. Esta névoa a arte remove.
As obras dos poetas, artistas plásticos e representativos em geral contêm indiscutivelmente um tesouro de profunda sabedoria: justamente porque a partir delas fala a sabedoria da natureza mesma das coisas, cujo depoimento elas apenas traduzem por elucidação e pura repetição. Por isso, cada um que lê poesia, ou contempla a obra de arte, decerto tem de contribuir com meios próprios para trazer à luz aquela sabedoria: em conseqüência, cada um a compreende apenas o tanto quanto permite a sua capacidade e sua formação; como no mar profundo cada navegador deixa descer sua sonda até onde alcança o comprimento do cabo. Diante de uma imagem, cada um tem de se postar como se fora diante de um príncipe, aguardando se ela falará, e o que, para ele; e, como diante dele, também não falar por si mesmo: pois senão apenas ele ouviria a si. – Por conta de tudo isso, toda sabedoria está, na verdade, contida nas obras de arte representativas, todavia apenas virtualiter ou implicite: em contrapartida, torná-la actualiter e explicite é a tarefa da filosofia, que neste sentido se relaciona para com as artes representativas como o vinho para com o cacho de uvas. O que a filosofia promete fornecer seria como que um ganho já realizado e líquido, uma posse segura e permanente, enquanto aquele proveniente das realizações e obras da arte é apenas um ganho a ser reaplicado. Em compensação, a filosofia faz exigências severas, difíceis de ser cumpridas, não só aos que criam as suas obras, mas também aos que devem fruí-la. Por conseguinte, seu público permanece pequeno, enquanto o das artes é grande.
A colaboração acima exigida do espectador para a fruição de uma obra de arte se baseia em parte no fato de que cada obra de arte apenas pode atuar através do medium da fantasia, por conseguinte, ela tem de estimular a esta e nunca permitir-lhe ficar inativa e fora do jogo. Isso é uma condição do efeito estético e por conseguinte uma lei fundamental de todas as belas artes. Dela se segue que, através da obra de arte, nem tudo pode ser fornecido diretamente aos sentidos, mas antes apenas o tanto quanto é exigido para conduzir a fantasia pelo reto caminho: para esta tem sempre de restar ainda algo a fazer e na verdade o último. De fato, o escritor tem sempre de deixar algo para o leitor pensar; Voltaire disse muito acertadamente: “Le secret d’être ennuyeux, c’est de tout dire” [O segredo para sermos tediosos, é tudo dizer]. Na arte, todavia, além do mais, o melhor de tudo é demasiado espiritual para ser fornecido diretamente aos sentidos: ele tem de nascer na fantasia do espectador, embora venha a ser engendrado pela obra de arte. Eis por que os esboços dos grandes mestres freqüentemente ocasionam mais efeito do que suas imagens pintadas; para o que decerto contribui ainda outra vantagem, a de que eles são concluídos de um jato, no instante da concepção; enquanto o quadro elaborado, na medida em que o entusiasmo não pode ser mantido até o seu acabamento, apenas é instituído sob esforço contínuo, mediante ponderação minuciosa e intencionalidade permanente. – A partir das leis estéticas aqui veiculadas, explica-se por que as figuras de cera, embora nelas a imitação da natureza possa atingir o mais elevado grau, nunca produzem um efeito estético e, por conseguinte, não são obras propriamente ditas da bela arte. Pois elas nada deixam à fantasia. A escultura na verdade fornece a mera forma, sem a cor; a pintura fornece a cor, e a mera aparência da forma: ambas, portanto, se dirigem à fantasia do espectador. A figura de cera, ao contrário, fornece tudo, forma e cor ao mesmo tempo; daí nasce a aparência de realidade e a fantasia permanece exterior ao jogo. – Em compensação, a poesia se dirige somenteà fantasia,a qualelapõe em atividademediantemeraspalavras.
Um jogo arbitrário com os meios da arte, sem conhecimento próprio do seu fim, é, em cada caso, o caráter fundamental da obra mal realizada. Isso se mostra nos suportes que nada sustentam, nas volutas sem função, nos arqueamentos e saliências da má arquitetura; nas passagens e figuras que nada dizem, ao lado do ruído sem função da música malsonante; nos sons desagradáveis das rimas de poesias pobres etc.
Em conseqüência dos capítulos precedentes e de toda minha visão da arte, o seu fim é a facilitação do conhecimento das Idéias do mundo (em sentido platônico, o único que reconheço para o termo Idéia). As Idéias, entretanto, são essencialmente algo intuitivo e, por conseguinte, em suas determinações pormenorizadas, inesgotáveis. A comunicação deste algo apenas pode acontecer pela via da intuição, que é a da arte. Quem, portanto, é assaltado pela concepção de uma Idéia, está justificado, caso escolha a arte para medium de sua comunicação. – O mero conceito, ao contrário, é algo perfeitamente determinável, por conseguinte esgotável, claramente pensável e que, segundo seu conteúdo inteiro, deixa-se comunicar de modo frio e insípido mediante palavras. Todavia, querer comunicá-lo por uma obra de arte é um desvio muito inútil, sim, pertence justamente aos jogos repreensíveis com os meios da arte, sem conhecimento do seu fim. Por conseguinte, uma obra de arte cuja concepção provém só de conceitos claros é, sem exceção, uma obra inautêntica. Se, na consideração de uma obra da arte plástica, ou na leitura de uma poesia, ou na audição de uma música (que tem por objetivo descrever algo bem determinado), transparece por todo o rico meio artístico o claro, limitado, frio, insípido conceito e ao fim vemos entrar em cena o que fora o núcleo desta obra, cuja concepção inteira, portanto, consistiu apenas conceitos claros e, assim, é esgotada no seu fundamento pela comunicação destes; então sentimos repulsa e indignação: pois nos vemos iludidos e ludibriados em nossa participação e reconhecimento. Inteiramente satisfeitos pela impressão de uma obra de arte nós só o estamos quando resta algo que, apesar de toda a reflexão sobre ele, não podemos reduzir à clareza de um conceito. A marca registrada daquela origem híbrida a partir de meros conceitos é que o autor de uma obra de arte, antes de iniciar a sua execução, pode relatar em palavras claras o que intenta representar: pois por intermédio destas palavras mesmas o seu fim inteiro seria alcançável. Por conseguinte, é um empreendimento tão indigno quanto disparatado se alguém, como hoje em dia freqüentemente se tentou, quer reconduzir uma poesia de Shakespeare, ou de Goethe, a uma verdade abstrata cuja comunicação seria o seu fim. Decerto o artista deve pensar na disposição de sua obra: mas apenas o pensado, que foi intuído antes de ser pensado, possui posteriormente, na comunicação, força sugestiva e, daí, torna-se imperecível. – Aqui, então, não queremos coibir a observação de que as obras feitas a partir de um jato, como os já mencionados esboços dos pintores, concluídos no estusiasmo da primeira concepção e como que desenhados de modo inconsciente, assim como a melodia que chega sem qualquer reflexão e inteira mediante a inspiração, por fim também a própria poesia lírica, a mera canção na qual a disposição profundamente sentida do presente e a impressão do meio ambiente se deixam aflorar involuntariamente em palavras, cujo ritmo e rima brotam por si mesmos – tudo isso, ia dizer, possui o grande mérito de ser a obra estrita do entusiasmo instantâneo, da inspiração, da livre agitação genial, sem qualquer interferência de intencionalidade e reflexão; eis por que essas obras são, do princípio ao fim, agradáveis e passíveis de fruição sem casca e caroço, e seu efeito é muito mais infalível que o das grandes obras de arte, de execução mais longa e ponderada. Em todas estas, portanto nos grandes quadros históricos, nas longas epopéias, nas grandes óperas etc., a reflexão, a intenção e a escolha premeditada possuem uma participação significativa: entendimento, técnica e rotina têm de aqui preencher as lacunas deixadas pela concepção genial e pelo entusiasmo, e uma mescla de acessórios, embora necessários, sempre tem de perpassá-las como cimento das únicas partes propriamente brilhosas e genuínas. Por aí se explica que todas estas obras – excetuando-se só as mais perfeitas obras-primas dos maiores mestres (como Hamlet, Fausto, a ópera Don Juan) – contêm misturadas a si algo de insosso e tedioso, que atrapalha a sua fruição. Provas delas são a Messiade, a Gerusalemme liberata, até mesmo Paradise lost e a Eneida: já Horácio faz a audaz observação: Quandoque bonus dormitat Homerus [Às vezes o bom Homero dorme]. Entretanto, se isso acontece, é uma conseqüência da limitação das forças humanas em geral.
A mãe das artes utilitárias é a carência; a das belas-artes, a abundância. Como pai aquelas têm o entendimento, estas o gênio, que é ele mesmo um tipo de abundância, a saber, da faculdade de conhecimento acima do grau exigido para a servidão da vontade.
[1] Über das innere Wesen der Kunst é o suplemento 34 ao terceiro livro de O mundo como vontade e como representação, obra magna de Schopenhauer publicada em 1818-1819. Tendo concedido à metafísica do belo um lugar nuclear no seu pensamento – a arte é a exposição ideacional da essência do mundo –, o filósofo procura agora, em 1842, ao notar algumas lacunas na primeira edição, preenchê-las com um aporte de conceitos a seu ver imprescindíveis para a boa compreensão do sistema. Explora em particular a diferença entre os modos de expressão conceitual e intuitivo, visando ao estabelecimento das especificidades das obras filosóficas e artísticas. (N. T.).
[2] Doutorando do Departamento de Filosofia da USP e bolsista da Fapesp.