O “PRIMEIRO” HABERMAS: “TRABALHO E INTERAÇÃO” NA EVOLUÇÃO EMANCIPATÓRIA DA HUMANIDADE

Wolfgang Leo MAAR[1]

 RESUMO: O objetivo deste artigo consiste em examinar a obra do primeiro Habermas, anterior à virada lingüística, localizada a partir dos estudos preparatórios à Teoria da ação comunicativa. Pretende-se investigar o ensaio “Trabalho e interação”, de 1967, no qual Habermas, discutindo com Lukács, procura legitimar sua concepção de história como evolução emancipatória do homem enquanto ser genérico a partir de textos de Hegel, do período de Iena, até mesmo sugerindo uma releitura do jovem Marx.

 PALAVRAS-CHAVE: Habermas; Hegel; Marx; trabalho.

O materialismo histórico como interlocutor

Numa entrevista das mais elucidativas de seu trajeto intelectual, Habermas (1987, p.79) explicita:

Desde o início meus interesses teóricos foram determinados consistentemente por aqueles problemas filosóficos e sócio-teóricos que surgiram a partir do movimento do pensamento que conduz de Kant a Marx. Minhas intenções e convicções fundamentais foram cunhadas na metade dos anos 50 pelo marxismo ocidental, através de uma relação crítica com Lukács, Korsch e Bloch, Sartre e Merleau-Ponty, e, obviamente, com Horkheimer, Adorno e Marcuse. Tudo o mais de que me apropriei adquire significado somente em relação ao projeto de uma renovação da teoria social fundada nesta tradição.

Junto ao impacto provocado pela leitura de História e consciência de classe situar-se-iam em Habermas (p.78) os efeitos de De Hegel a Nietzsche de Karl Löwith, sob a batuta sistematizadora de Heidegger. Assim, à aparente exclusividade da filiação “Marx–Hegel” anunciada por Lukács, sobrepõe-se uma outra derivação para a filosofia prática: “Kierkegaard–Hegel”. Mais adiante no trajeto habermasiano, como se sabe (p.79), situa-se “o pragmatismo americano como uma terceira resposta produtiva a Hegel, depois de Marx e Kierkegaard”, o que permite a Habermas, ao assumir a cadeira que fora de Horkheimer em 1964, “se distanciar de um conceito forçado de teoria, derivado de Hegel”, e “compensar o problema da debilidade do marxismo em relação à teoria democrática”. Assim a obra que resume este período, escrita entre 1964 e 1968, Conhecimento e interesse, representa o procedimento habermasiano em sua inserção na “tradição filosófica” acima mencionada, no percurso Kant-Marx. Trata-se do que ele caracterizaria como “teoria duplamente reflexiva, isto é, tanto em relação ao seu contexto de origem, como ao seu contexto de aplicação” (p.80). Em outras palavras, por essa via, “a teoria crítica não precisa provar suas credenciais em primeira instância em termos metodológicos”. Leia-se: legitimar-se no trajeto de derivação conceitual na história da filosofia. Mas “necessita uma fundamentação substantiva que permita escapar dos afunilamentos produzidos pelos parâmetros conceituais da filosofia da consciência e permita superar o paradigma da produção sem abrir mão das intenções do marxismo ocidental” (Habermas, 1981, p.80).

Eis um resumo do trajeto intelectual de Habermas por ele mesmo, a revelar sua estratégia no plano de sua inserção no percurso acima anunciado. Na fase inicial de sua obra – objeto do presente estudo –, Habermas “precisa provar suas credenciais em termos metodológicos”: o percurso intelectual Kant-Marx será relido de um modo em que a leitura estrutural dos textos não prescinde de uma perspectiva interpretativa sustentada no “contexto de aplicação”, isto é, exterior à obra. Contudo, essa perspectiva deslocaria afinal as dificuldades a uma dimensão mais “substantiva”, como diria Habermas: qual é o pressuposto que permite examinar “contexto de origem” e “contexto de aplicação”? Por isso, posteriormente, Habermas questionaria a teoria do conhecimento como via regia.

Mas essa questão não se colocava para Habermas no período de elaboração dos textos a serem aqui examinados. Estes são centrados em torno da releitura da obra de Hegel do período de Iena para contracená-la com Marx: os ensaios contidos em Técnica e ciência como “ideologia” escritos entre 1967 e 1969. Neles procura-se legitimar o que o autor denomina “contexto de aplicação”, isto é, uma determinada apreensão de questões extrateóricas, pelo seu “contexto (filosófico) de origem”. Nesse sentido, pode-se afirmar que está em causa em Habermas uma tentativa de utilizar – no que caracteriza como plano “metodológico” – a legitimidade cultural da tradição filosófica que se estende por Kant até o jovem Hegel como argumento a favor de um contexto de aplicação do materialismo histórico. Vale dizer, como corolário, utilizar esse trajeto Kant-jovem Hegel contraaquelematerialismohistóricoqueprocuraselegitimarpelaviacontrária: como herdeiro da filosofia do idealismo alemão, em particular de Hegel. Nessa medida, Habermas se situa como antípoda do hegelo-marxismo, em particular da tradição iniciada por Lukács.

A espinha dorsal do projeto habermasiano nesse período consiste em, ao assumir como pressuposto que há ganhos de racionalização – que denomina ganhos de “diferenciação” (Habermas, 1985a, p.9) – no processo histórico capitalista, interferir no chamado materialismo histórico, procurando caracterizá-lo como teoria de uma ação prática voltada para a emancipação sem, porém, qualificá-lo como crítica à socialização nos termos do modo de produção capitalista.

Há uma diferenciação básica que sustenta tal iniciativa, a saber: a que distingue, por um lado, a ação política pautada por uma crítica a “constelações históricas atuais”, e, por outro, aquela pautada por uma história nos termos de “realização do gênero humano“ (Jaeggi & Honneth, 1977, p.455). Conforme a primeira vertente, o sujeito histórico precisa ser apreendido de acordo com a orientação da ação imanentemente presente na crítica ao presente histórico. De acordo com a segunda perspectiva, o ser genérico homem se desenvolve conforme orientações normativas no seu trajeto de desenvolvimento. No primeiro caso, a orientação emancipatória da ação se sustenta numa apreensão dialética do trabalho social e há uma teoria dialética do sujeito no plano das contradições de classe. No segundo caso, há uma teoria evolutiva do sujeito como ser humano genérico; o trabalho, apreendido como processo de reprodução social do ser genérico, é indiferente quanto à orientação da ação; a orientação emancipatória, assim, seria providenciada num âmbito distinto, quanto a conteúdo e lógica: o da interação.

Já em Mudança estrutural na esfera pública, Habermas optara por uma gênese histórico-empírica da opinião pública e das instituições envolvidas no desenvolvimento da vontade política, em detrimento de uma apreensão do plano político institucional como reflexo do conflito social. “Trabalho e interação” constitui iniciativa similar: a tentativa de rastrear a gênese histórico-filosófica do sujeito, apreendido como síntese, tanto como produto do trabalho, quanto como efeito da interação em suas distintas lógicas.

Com efeito, em Técnica e ciência como “ideologia”, Habermas (1969) propõe a substituição do par conceitual “forças produtivas e relações de produção” pelo par conceitual “trabalho e interação”. No ensaio intitulado “Trabalho e interação”, por sua vez, este último par conceitual seria remetido ao próprio trajeto hegeliano. Nesses termos, evidencia-se que o intuito da fundamentação metodológica na obra hegeliana tem como alvo, em última análise, a legitimação de uma determinada leitura da obra marxiana, centrada numa orientação histórico-evolutiva da história e não conforme a crítica a uma “constelação histórica”, a da alienação correspondente à socialização capitalista resultante da luta de classes.

Haveria na obra hegeliana (Habermas, 1969, p.38) dois modelos de apreensão do processo formativo do “espírito” (Geist): um, idealista, em que o espírito constitui um processo dialético de exteriorização-alienação e posterior superação desta alienação; e outro, comunicativo, em que o espírito se forma num procedimento interativo de reconhecimento inter-subjetivo. Na obra do filósofo, teria havido um movimento de substituição do segundo pelo primeiro; este modelo, no entanto, longe de se vincular à emancipação, terminaria por consagrar o Estado (prussiano!) como solução ao continuado e inevitável conflito na sociedade cindida. Nesse sentido, para Habermas se revelaria a inépcia desse modelo de formação idealista, motivando uma necessidade de recorrer ao modelo inicial intersubjetivo, desenvolvido no período de Iena e sustentado pelas lógicas distintas, embora complementares na síntese, de trabalho e interação. Marx, por sua vez, também recorreria a este modelo inicial – ainda que inconscientemente, sem conhecê-lo – como base de sua dialética entre forças produtivas e relações de produção.

Segundo a tese a ser defendida neste estudo, no percurso entre os textos da época de Iena e o período iniciado com a Fenomenologia do espírito, Hegel efetivamente transita de uma apreensão de “trabalho” e “interação” obtida no “elemento da singularidade” à apreensão do “trabalho” no plano da “universalidade”. Isso significa antes de tudo que nos respectivos períodos estão em causa conceitos distintos de trabalho. É certo, além disso, que em sua apreensão do trabalho no plano da universalidade, ao não distinguir entre objetivação e alienação, Hegel não consegue equacionar o problema da orientação normativa. Esta seria a principal conclusão de Georg Lukács em O jovem Hegel (Lukács, 1983, p.834), como destaca, aliás, Jean Hyppolite em sua análise dessa obra (Hyppolite, 1955, p.100). A própria Filosofia do Direito situa o trabalho e sua lógica, como se sabe, articulado a um “sistema das necessidades” (Bedürfnisse) com sua lógica específica.

O projeto marxiano, a ser compreendido em seu conjunto, seja como teoria da história enquanto luta de classes, seja como teoria crítica da totalização capitalista, pode ser encarado como uma tentativa de equacionar a questão desta orientação normativa, mas situando-se no plano de uma universalidade que, apesar de formada, se constitui objetivamente, para além da intencionalidade subjetiva, ainda que como sujeito transcendental. Isto é: sem abrir mão do trajeto que conduz dos textos de Iena e suas abordagens no plano do entendimento à concepção de razão dialética e à especulação como auto-reflexão neste âmbito. Posteriormente a Marx apontariam na mesma direção as tentativas de Lukács em História e consciência de classe, de Horkheimer em Teoria tradicional e teoria crítica e O eclipse da razão e na Dialética do esclarecimento de Horkheimer e Adorno. Para este último o decisivo na formação histórica seria mesmo a experiência viva da contradição, com o que se declara a favor do modelo dialético confrontado pelo modelo intersubjetivo habermasiano.

Conhecimento reflexivo: inserção “metodológica” na história da filosofia

Habermas segue – no período focalizado no presente estudo – um curso inverso ao proposto em nossa tese. Inicia pelas dificuldades da solução de Marx, que resultariam de uma inferência direta e sem solução de continuidade do passo – equivocado – com que Hegel substitui sua intuição inicial de trabalho e interação. A solução para as dificuldades seria o recuo, no plano teórico-metodológico, a análises que apresentassem melhor desempenho prático. A conceituação habermasiana aqui se realiza como “auto-reflexão” esclarecedora, metodológica. O contexto de aplicação exige um esclarecimento metodológico. Tal auto-reflexão, contudo, não explicitaria – por ora, este seria o escopo posterior de Habermas, mormente em sua Teoria da ação comunicativa – o nexo entre análise empírico-fatual e derivação conceitual-metodológica. A saber: a própria realidade efetiva e seus problemas seriam pressupostos – de modo mais ou menos inadvertido – em termos conceituais e metodológicos que, num segundo momento, formariam o conteúdo explícito das análises; após serem aflorados, constituindo então a demonstração circular de si próprios.

Em outras palavras, seria essa questão que – conforme o próprio Habermas reconheceria posteriormente em seu prefácio à reedição de A lógica das ciências sociais (1985b, p.10) – dividiria a obra habermasiana em um período anterior e um período posterior à sua “virada lingüística”. Nesse sentido, ele recusaria posteriormente os termos de possibilidade de uma solução para a reconstrução do marxismo no âmbito metodológico, da chamada teoria do conhecimento; este não seria doravante apreendido, em suas próprias palavras, como via regia (p.11). Isto é: como aprensão objetiva. Isso porque no plano da teoria do conhecimento não seria possível equacionar adequadamente a dimensão subjetiva. Tal equacionamento poderia ocorrer, segundo Habermas já indicaria em germe em Trabalho e interação, por uma das duas acepções de “espírito” aí sugeridas: a idealista, pela qual se pauta a relação dialética sujeito-objeto; e a comunicativa, pela qual a referência seria apreendida no âmbito da intersubjetividade e da análise do discurso.

Note-se (ressalvando que essas questões serão apenas indicadas, não estando em discussão no presente texto): a opção pela análise do discurso significa a possibilidade, para Habermas, de obter referenciais de apreensão da realidade com pretensão de universalidade (Geltungsansprüche) para além da interpretação subjetiva – de classe – em termos da tradição intelectual marxista, por exemplo. Nesses termos, a preocupação principal de Habermas não seria com uma possível prática pautada por alguma interpretação da sua teoria, mas em ressalvar a universalidade – ou seja objetividade – das pretensões de validade de seu empreendimento teórico, que seriam pressupostos de qualquer destinação prática. Esta, em resumo, seria a causa principal do abandono por parte de Habermas do par conceitual trabalho e interação – ainda compreendido nos termos de uma neutralidade provedora de sentido e fundamentada na teoria do conhecimento – pela mudança de paradigmas, do paradigma da produção ao paradigma da comunicação. Junto a essa transição – da “interação” ao paradigma da comunicação – também ocorreria uma transferência da interlocução principal de Marx a Adorno.

Retornemos aos textos em causa. A finalidade explícita de Habermas é uma crítica desse trajeto marxiano acima destacado. Trata-se de “uma crítica positiva do marxismo” (Outhwaite, 1994, p.17). Como destaca Martin Jay (1984, p.474), reside em “uma tentativa de reconstruir o marxismo em bases mais firmes” (Jay, 1984, p.474). Bases mais firmes do que as encontradas por ele no marxismo apoiado na herança de Kant a Hegel, que não lhe possibilitariam fazer frente às exigências contemporâneas apresentadas pela sociedade capitalista avançada.

Mas também críticos marxistas de Habermas insistem neste prisma de auto-reflexão – uma reflexão imanente e não exterior ao marxismo – apreendido como confronto e correção da proposição marxista, o que na etapa habermasiana inicial significa uma reinterpretação de suas bases enquanto sustentada na história das idéias, em particular do idealismo alemão. “É possível argumentar que seu pensamento em parte toma forma como resultado de sua leitura e crítica do materialismo histórico” (Rockmore, 1989, p.7). Habermas, em pararelo ao prisma de rejeição da fundamentação ontológica proposto por Heidegger, em certo sentido rejeita a filosofia pós-kantiana, procurando criticar a posição hegeliana no pós-kantismo (Rockmore, 1994, p.106). Tal rejeição não significa, contudo, rejeição do marxismo, mas se explicaria como argumentação a favor de uma mudança de paradigma propugnada por Habermas em contraposição ao paradigma da crítica ideológica que resumiria o trajeto do marxismo na vertente criticada por Habermas; conduziria de Kant passando por Hegel a Marx, sintetizado como filosofia da consciência ou aprensão do marxismo nos termos de uma filosofia da história com finalidade prática.

A auto-reflexão seria motivada pelo contexto de aplicação, apreendido independentemente do próprio trajeto marxista alvo da discussão, pelo pressuposto assumido da teoria do conhecimento, como visto acima. Por isso, a interlocução, como assinalado, deixaria de ser com Marx para se voltar contra Adorno, mais dedicado a discutir essa questão diante do pressuposto positivista da neutralidade da descrição dos fatos a serem interpretados, como se dispensassem qualquer dimensão subjetiva.

As exigências contemporâneas do contexto de aplicação que colocariam em xeque o trajeto tradicional de encadeamento do marxismo na história das idéias – o hegelo-marxismo – seriam justamente as explicitadas no texto Técnica e ciência como ideologia”, homônimo da obra em que seria publicado como primeiro capítulo o ensaio “Trabalho e interação”. Habermas toma posição munido das análises de Herbert Marcuse quanto à função social da tecnologia na sociedade capitalista avançada, expostas por este em seu famoso ensaio “Industrialização e capitalismo na obra de Max Weber” (Marcuse, 1998, p.113). No segmento VIII de Técnica e ciência como ideologia”, Habermas (1969, p.92) explicita:

as forças produtivas em que se acumulam os processos de aprendizagem organizados nos subsistemas de ação instrumental foram certamente desde o princípio o motor da evolução social, mas parece que, em sentido contrário ao da suposição de Marx, não representam em todas as circunstâncias um potencial de libertação nem provocam movimentos emancipadores – de qualquer modo deixam de os provocar desde que o incremento incessante das forças produtivas se tornou dependente de um progresso técnico-científico, o qual assume também funções legitimadoras da dominação. Tenho a suspeita de que o sistema de referência desenvolvido em termos da relação análoga, mas mais geral, de marco institucional (interação) e subsistemas da ação racional dirigida a fins (”trabalho” no sentido amplo da ação instrumental e estratégica) se revela mais adequado para reconstruir o limiar sociocultural da história da espécie.

É notável como Habermas não expõe o quadro teórico-conceitual no âmbito do qual se verifica a situação que ele apresenta como crucial, pressupondo uma apreensão estritamente descritiva, positivista, de “fatos”, entre os quais “o progresso técnico-científico que assume funções legitimadoras”, porque afinal ciência e técnica se converteram em forças produtivas. Essa situação, como se sabe, contudo, se verifica apenas no âmbito do modo capitalista de produção, o que nos coloca num quadro conceitual que precisa também ser inserido nas condições do problema que Habermas pretende investigar. Há uma teoria que precede a situação fatual. Habermas, porém, não explicita o quadro referencial, mas este está presente como um pressuposto implícito: a rejeição do modelo do modo de produção. O progresso técnico-científico que assume função legitimadora constitui uma exacerbação no plano interativo de conteúdos técnicos. Importa mantê-los separados. Essa exacerbação tem raízes num desvio da história da espécie no plano sociocultural: as suposições de Marx que articulam movimentos emancipadores ao progresso das forças produtivas. Eis o pressuposto metodológico: existe uma equivocada apreensão conceitual de situações reais efetivas, impedindo sua apreensão adequada. Não há nenhuma vinculação entre situações reais de fato e apreensão conceitual.

Como destaca McCarthy (1978, p.36), autor de um estudo já clássico sobre Habermas e que adere ao seu pensamento, trata-se de evitar que se coloquem num denominador comum

progresso técnico e a conduta racional da vida ... racionalização não é emancipação. O crescimento das forças produtivas e da eficácia administrativa por si próprio não conduz à substituição de instituições baseadas na força por uma organização de relações sociais vinculada à comunicação desprovida de dominação. Os ideais do domínio técnico da história e da emancipação, em relação às forças quasi-naturais da dominação social e política, bem como os meios para a sua realização, são fundamentalmente diferentes. Por isso é decisivo para uma teoria crítica da sociedade explicitar estas distintas dimensões da prática social; só então é possível compreender suas interdependências.

Delineia-se nestes termos um conjunto problemático composto por uma articulação entre demanda empírico-social e empreendimento teórico, queconstituiráareferênciacontinuadadaobrahabermasiana.Segundoseus próprios termos, estaria em causa a relação entre teoria e prática.

Numa entrevista Habermas (1981, p.8) explicaria:

Nos anos 30, o círculo frankfurtiano ainda subscrevia explicitamente um conceito de razão e o desenvolvia de acordo com a filosofia da história. Isso era feito conforme uma apropriação ideológico-crítica da filosofia burguesa. Isso se encontra ... sobretudo nos artigos da Zeitschrift, inclusive os artigos de Horkheimer e Marcuse de 1937, em que eles argumentam que, com certas limitações, os ideais burgueses estão presentes na arte e na filosofia, sobrevivem como potenciais. Eles podiam apelar a esses potenciais porque, enquanto teóricos sociais marxistas, podiam se apoiar em grupos políticos no movimento operário europeu – quando não o proletariado no sentido lukacsiano – para liberar e realizar historicamente o potencial racional da sociedade burguesa como um resultado do desenvolvimento em curso das forças de produção. É isso que denomino conceito de razão na perspectiva da filosofia da história. Nos anos 30, começaram a aparecer dúvidas em relação a esta questão entre os teóricos frankfurtianos, e os resultados emergiram na Dialética do esclarecimento e no Eclipse da razão. Considero que a grandeza de Adorno na filosofia da história está em que foi o único a, sem qualquer remorso, enfrentar e expressar os paradoxos dessa forma de construção teórica, e da dialética do esclarecimento que revela o todo como o falso...

Na medida em que o todo se revela falso, a teoria crítica da sociedade não poderia mais se apoiar em “experiências sociais do presente” (Jaeggi & Honneth, 1977, p 456); haveria que se apoiar em um processo de formação de experiências no âmbito da história da reprodução social do gênero humano. Neste, mediante o desenvolvimento de uma auto-reflexão desse processo de formação histórica, se apresentariam claramente “as condições que possibilitariam reconhecer os universais nas estruturas da comunicação lingüística, providenciando critérios para uma crítica que não mais pode ser baseada na filosofia da história” (Habermas, 1981, p.9).

Assim se apresenta o divisor de águas: por um lado, uma história dialética; por outro, o lado habermasiano: uma história evolutiva emancipatória, de racionalização-diferenciação progressiva. Essa opção se apresenta claramente no trajeto intelectual de nosso autor.

Habermas havia sido saudado no instituto frankfurtiano justamente pelo seu enfoque social: “Enfim um cientista social” (Wiggershaus, 1985, p.597). Reflete nesse momento as dificuldades da visada humanista, isto é, de fundamentação filosófico-antropológica do marxismo como projeto de emancipação. Por um lado, recusa o viés diretamente “humanista-romântico” (Heller, 1984, p.287) sem optar, contudo, pelas formulações estrutural-funcionalistas estritas, nos moldes althusserianos e de sua ruptura com o trajeto filosófico de Kant a Hegel (Pinto, 1972, p.56). O posicionamento singular de Habermas adquire um contorno mais nítido na medida em que se atenta à obra de Theodor Litt. Este, que ao lado de Erich Rothacker fora professor de Habermas (Wiggershaus, 1985, p.598) – ambos discípulos de Dilthey (Glockner, 1977, p.1045) –, no entanto se distinguia daquele por suas posições críticas em relação à ontologia fundamental. Sua obra procura fazer face à tarefa da formação cultural sem sustentá-la nos termos de uma antropologia filosófica baseada “falsamente numa ontologia do ser humano”, mas sim “numa auto-reflexão do homem em relação ao infindável processo de sua humanização“ (Schmied-Kowarzik, 1983, p.86). Litt, nessa medida, trilha pela direção explicitada em toda sua pregnância como problema central colocado por Husserl em suas conferências reunidas em A crise da ciência européia (determinantes no texto inaugural da atividade de Habermas na Universidade de Frankfurt, Conhecimento e interesse): com o progresso das modernas ciências naturais apresentou-se simultaneamente a perda de seu significado para a vida humana. Contudo, para Litt, em consonância com Weber, nesta auto-reflexão sobre o trajeto de humanização no referente à contribuição das ciências naturais, não é mais possível abdicar dos progressos representados pela racionalidade científica. Caberia então dedicar-se à proposição de sentido para a formação cultural diante desta situação, o que caracterizaria esta auto-reflexão, diferenciando-a em relação àquela dirigida para a ação política transformadora.

Estabelecem-se assim duas interpretações para a auto-reflexão emancipatoriamente orientada: por um lado, aquela que vincula a crise a um processo inexorável de diferenciação racional, dirigindo-se a suprir as demandas de sentido originadas pelo processo civilizatório.

Por outro, aquela que, ao considerar a própria crise como resultado do processo de auto-realização, centra-se na intervenção ativa nesse processo de auto-realização, apreendido como trabalho social no trajeto que conduz de Kant, passando por Hegel, a Marx. Configuram-se assim os dois planos pelos quais se contrapõem duas leituras para a auto-reflexão.

Pela primeira, essa se situa no âmbito de um referencial racional a ser garantido em sua dimensão formativa; a obrigação da racionalidade deliberativa, contudo, não implica a obrigação à ação. O problema maior seria o desequilíbrio entre desenvolvimento da sociedade e desenvolvimento cultural – como, aliás, Habermas ainda caracterizaria a questão em seu Discurso filosófico da modernidade (Habermas, 1985a, p.11).

Pela segunda, trata-se de apreender a produção da racionalidade no processo de autoconstituição, de modo que intervir no plano da razão implica intervir no plano da própria constituição do sujeito. Nesse sentido, a auto-reflexão racional implica uma ação de intervenção no plano da autoconstituição e não é indiferente em relação à transformação da orientação racional em ação efetiva, tal como demonstrado, por exemplo, em Teoria tradicional e teoria crítica de Horkheimer.

Essas duas vertentes para a auto-reflexão constituiriam doravante a interlocução filosófica habermasiana. Com efeito, a partir de seu posicionamento que poderiamos caracterizar como sociopragmático – centrado no que seriam ganhos de racionalização no plano social, conforme uma leitura weberiana –, Habermas infere uma perspectiva de leitura do trajeto Kant-Marx sustentada num duplo espectro: a contraposição entre o prisma da constituição formativa da subjetividade conforme o que seria o modelo da Bildung (objetivação/alienação e posterior superação formativa desta alienação), por um lado; e, por outro, a perspectiva social da intersubjetividade. Isso posto – o que posteriormente evoluiria como a célebre contraposição entre paradigma da produção e paradigma da comunicação –, caberia acompanhar o trajeto, que nesse sentido seria legitimador do encadeamento estrutural na história da filosofia rastreando no trajeto de Kant a Marx em questão, seja a variante da formação da consciência, seja a variante da interação comunicativa.

Habermas, nesse momento de sua elaboração teórica, procuraria legitimar sua argumentação mediante a caracterização de determinadas dimensões na cadeia das inferências estruturais imanentes à história da filosofia – sobretudo em Hegel – que sustentassem a sua leitura, com as duas variantes acima indicadas igualmente ancoradas num encadeamento lógico. Como se sabe, tal empreendimento, posteriormente ao período que aqui pretendemos submeter a exame, conduziria a um programa de reconstrução do marxismo como corpo teórico estruturado segundo a perspectiva comunicativa, “limpando-o” dos efeitos da vertente formativa da Bildung, da filosofia da consciência e da história.

O objetivo do presente estudo reside em procurar investigar, em maior aproximação, um momento de realização efetiva dessa leitura interpretativa da história da filosofia pós-kantiana – em que se insere a singularidade da posição habermasiana em relação ao marxismo, em especial em sua vertente formativa nos termos lukacsianos e em parte também seguidos na teoria crítica da sociedade de Adorno e Horkheimer.

O contexto filosófico da leitura habermasiana em “Trabalho e interação”

O interlocutor de Habermas é Lukács, em sua leitura do jovem Hegel. Como já destacado pelo próprio Habermas, ele foi marcado por De Hegel a Nietzsche de Löwith; como este, procuraria legitimar na própria obra hegeliana uma outra apreensão da prática – no caso, a prática kierkegaardiana, centrada na imanência do ideal na existência singular –, não baseada no modelo do trabalho conforme Marx. Este modelo representaria a interpretação dominante dos textos de Iena, tornando-os mero laboratório, mera preparação da Fenomenologia do espirito. Contra essa visão, Habermas (1969, p.9) pretende demonstrar que os dois textos de Iena testemunham uma “sistemática diferente para o processo formativo, que seria posteriormente abandonada pelo próprio filósofo”.

Nos textos de Iena

Habermas observa que haveria em Hegel talvez dois diferentes modos de espírito (Geist). Um é um modelo intersubjetivo, em que Geist serve não como fundamento mas como meio de comunicação; por exemplo num meio de acesso intersubjetivo. O outro modelo é identificado por Habermas como o modelo idealista, em que o infinito é um infinito, um geral (das Allgemeine) realizado por reflexão; não é um infinito social. Nesse caso, o Geist absoluto é concebido como um sujeito transcendental que inconscientemente produz a natureza e então redescobre a si mesmo em suas investigações da natureza e assim retorna a si mesmo (por exemplo tornando-se consciente de si) a partir da natureza como seu outro. (Williams, 1993, p.547.)

Duas apreensões da auto-reflexão derivariam desse pressuposto; pela via intersubjetiva, a auto-reflexão deriva do contexto concreto. A auto-reflexão seria basicamente um “conhecimento reflexivo” (Reijen, 1986, p.165) da sociedade. Aqui, em que pese a crítica habermasiana ao positivismo, pode-se inferir de seu posicionamento uma apreensão positiva – não negativa, crítica – da realidade social. O espírito seria basicamente o espírito objetivo.

Por outro lado, a derivação idealista do espírito absoluto rejeitaria sua derivação social (tal seria o trajeto seguido por Hegel sobretudo na Fenomenologia do espírito); desde que social seja apreendido nos termos positivos propostos. Aqui estaríamos em presença da derivação proposta por Lukács. Mas poderíamos avançar aqui, guiados por Horstmann (1977, p.50) para uma incongruência nesta “comparação” das reflexões e das concepções de Geist: a reflexão em Iena refere-se justamente aos limites encontrados pelo entendimento ante a impossibilidade de superar as dicotomias “sujeito e objeto”, “finitude-infinito”. Já na Fenomenologia do espírito, procurar-se-ia justamente abrir a perspectiva de uma reflexão – agora no rumo à sua dimensão “especulativa”, no plano da razão (Vernunft) – apta a superar esta limitação do entendimento. Por mais que Habermas interprete a história da filosofia de modo soberano (Heller, 1984, p.286), a questão envolvida aqui não diz respeito à história da filosofia, mas a uma questão efetiva: as possibilidades de uma crítica aos resultados graves, de perda do significado vital numa realidade centrada no cientificismo das ciências naturais, fundada estritamente numa razão sustentada nos moldes cognitivos da ciência. Até que ponto uma reflexão no plano do entendimento seria apta a superar as limitações do próprio entendimento? Com efeito, Habermas, tal como explicitaria no segundo prefácio à Lógica das ciências sociais, abandonaria esta perspectiva. No entanto – esta é a nossa tese aqui – mesmo procurando ultrapassar as limitações de sua apreensão da racionalidade nos moldes estritos do entendimento – Habermas não empreende igual iniciativa no âmbito da prática, mantendo aqui as mesmas limitações com que apreendera seja o âmbito do trabalho, seja o âmbito do próprio processo formativo. Ambos apreendidos de modo positivo, concreto, formal.

Lukács tematizaria o movimento dos textos de Iena à Fenomenologia sobretudo no âmbito deste movimento. Trabalho e interação, dadas as limitações postas pelo entendimento, haveriam que se somar diante de suas limitações. Mas o que corresponderia a esta reflexão seria posto em cena após 1807 no âmbito de uma reflexão agora no plano da razão especulativa. E seria essa razão a diretriz, por exemplo, da Teoria Crítica de Horkheimer, e não o plano do entendimento em que se move a teoria tradicional.

A leitura de Lukács, por sua vez, tornara Hegel um precursor de Marx. Assim, o questionamento da apreensão lukacsiana dos textos de Iena significa para Habermas um questionamento da apreensão marxiana da formação no âmbito do trabalho. Com efeito, para Habermas a relação Marx-Hegel não se apresenta apenas em termos histórico-concretos, como hipótese no plano da história das idéias, mas em termos sistemáticos. O sistema de Iena, abandonado posteriormente, corresponderia a uma alternativa presente também no âmbito da obra marxiana,emquesua potencialidade alternativa também seria abandonada. Assim, muito mais do que pretende Martin Jay ao afirmar que Habermas volta Hegel contra si próprio (Jay, 1984, p.474), Habermas procuraria voltar Marx contra si próprio.

Como explicita Habermas, até mesmo pela dedicatória de seu texto (”Trabalho e interação” é dedicado a Karl Löwith), sua inspiração provém precisamente de um trecho de De Hegel a Nietzsche em que ficaria claro que há uma articulação sistemática, teórica, entre a obra de Marx e Hegel no âmbito do movimento dos chamados “jovens hegelianos” (Junghegelianer). Löwith referiu-se também ao parentesco subterrâneo que existe entre as posições dos jovens hegelianos e os motivos que configuram o pensamento do jovem Hegel. Assim Marx, sem ter conhecimento dos manuscritos de Iena, redescobriria na dialética de forças produtivas e relações de produção essa conexão do trabalho e interação que atraíra, durante alguns anos, o interesse filosófico de Hegel.

Mas a cisão permanece como uma “pressuposição” da filosofia. A outra é a unidade como o objetivo posto previamente. Essa dupla pressuposição do absoluto Hegel vivenciou no período de Berna e Frankfurt como “a fonte da necessidade da filosofia”, explicitou na inflexão do período frankfurtiano em nexo com a situação geral do mundo e pensou conceitualmente nos primeiros anos dos textos de Iena como a “identidade da identidade e da não-identidade”. A crise de Hegel não se documenta na reflexão sobre si mesmo, mas na análise da “crise mundial” em uma época de transição. A tendência previamente decidida de unificação com a época se expressa inicialmente em uma crítica do existente, porque esta crítica é a pressuposição para uma possível concordância com o que é. Nessa caracterização da crise mundial vigente que na época permaneceu inédita, Hegel já antecipou traços decisivos daquela crítica que Marx retomaria novamente e, por outro lado, as contradições que Marx pretende revelar nas mediações hegelianas são as mesmas que Hegel pretendia conciliar. O surgimento das análises mediatizadas da Filosofia do Direito, a partir de uma crítica do existente que pela primeira vez descobre as contradições, possibilitou a Marx a conexão crítica à justificativa hegeliana do existente. Sem ter podido conhecer a crítica hegeliana, o jovem Marx de 1841 procurou no Hegel de 1821 o jovem de 1798 – assim como também a religião de Feuerbach e a crítica do cristianismo de Bauer recorrem objetivamente aos escritos teológicos do jovem Hegel. A crítica dos jovens hegelianos repetiu a crise que Hegel havia passado ele próprio antes de superá-la em seu sistema. Nessa medida, não é por acaso que Marx caracterize a crise da sociedade civil freqüentemente no mesmo modo pelo qual a descrevera Hegel, até imaginar que pudesse se assenhorar dos “extremos perdidos” da eticidade em um Estado determinado em termos de Platão e Rousseau e que, empiricamente, era o Estado prussiano. (Löwith, 1978, p.181)

Por essa via, Habermas vincula não apenas historicamente, mas sistemicamente, a alternativa esboçada nos textos de Iena e posteriormente abandonada, a uma igual alternativa no âmbito do marxismo – a ser examinada na última parte deste estudo – com o que retornamos ao escopo inicial, ou seja, a mudança estrutural no plano do marxismo no que se refere ao movimento formativo do sujeito no âmbito do trabalho social.

O fim perseguido por Habermas estaria em argumentar em prol de uma revisão do marxismo nos termos de correção de um equívoco que poderia ser retrospectivamente inferido a partir de uma posição assumida pelo jovem Hegel. Nesses termos, Habermas sugere a necessidade de uma reconsideração da equivocada leitura da história da filosofia no trajeto de Kant passando por Hegel a Marx. E, para além, atingindo até mesmo a Teoria Crítica que incidiria também nesta equivocada tendência. Esta última seria tematizada particularmente a partir do momento da obra dedicado às considerações preliminares e à posterior apresentação de sua Teoria da ação comunicativa, onde se volta em particular à discussão da Dialética do esclarecimento.

Também a Teoria Crítica passaria pela mesma ressonância da dimensão crítica já focalizada em Marx em sua – inconsciente – vinculação com o Hegel de Iena. Esse momento estaria na tematização da autoreflexão em Teoria tradicional e teoria crítica. Essa auto-reflexão também admite duas leituras e Habermas se atém àquela que remete mais diretamente à continuidade do projeto kantiano. Kant, como Habermas destaca em Conhecimento e interesse, fora o último filósofo a refletir adequadamente a ciência. Assim, a auto-reflexão destacada como característica da Teoria Crítica passaria também por uma leitura a ser analisada em duas vertentes: a mais diretamente vinculada a Kant, e aquela que passaria pelo já assinalado trajeto Hegel-Marx.

Nesse sentido, Habermas distingue sua apreensão da auto-reflexão da de Horkheimer (Rockmore, 1989, p.41-2). Para Habermas, a razão enquanto Vernunft contempla tanto a vontade como a consciência; para sua auto-reflexão, no entanto, estas esferas devem ser mantidas separadas, tal como procede a razão apreendida como Verstand.

O jovem Hegel contra o velho Marx

Como já foi destacado, a meta principal da leitura dos textos do jovem Hegel está em sua relevância nos termos de uma interpretação do trajeto marxiano. O derradeiro segmento do texto de Habermas, neste sentido, é explícito ao anunciar o que seria o principal argumento do ensaio Técnica e ciência como “ideologia”, pouco posterior (dedicado, como se sabe, aos 70 anos de Herbert Marcuse). Marx, mesmo desconhecendo os manuscritos de Iena, redescobriria “a conexão trabalho e interação nas relações entre forças produtivas e relações de produção” (Habermas, 1969, p.45). Em outras palavras: a idéia de emancipação, os ideais presentes no plano das formulações centradas no desenvolvimento das forças produtivas – isto é, nos termos do debate em questão: no plano do trabalho como ação estratégico-instrumental –, são “ideologia”, ou seja, não dizem respeito aos ideais de emancipação. Nas suas palavras:

A emancipação relativamente à fome e à miséria não converge necessariamente com a libertação da servidão e da humilhação, uma vez que não existe uma conexão evolutiva automática entre trabalho e interação. Apesar de tudo, existe uma relação entre os dois momentos, mas nem a filosofia de Iena, nem A ideologia alemã a esclareceram de forma satisfatória ... dessa conexão entre trabalho e interação depende essencialmente o processo de formação do espírito e da espécie. (Habermas, 1969, p.45)

O argumento de Habermas seria exemplar para caracterizar a sua diferença em relação ao empreendimento de crítica ideológica da Teoria Crítica na versão de Adorno. Para Habermas, embora existissem condições para eliminar a fome do mundo, ela ainda estaria presente em dois terços da humanidade. O processo de desencadeamento das forças produtivas técnicas, contudo, para resolver este problema de carência material, não se identifica com a constituição de normas éticas nos termos de umasituaçãosocialde reciprocidadee desprovidade relaçõesde coação.

Adorno remeteria ao mesmo problema num trecho de sua Introdução à controvérsia do positivismo na sociologia alemã. A possibilidade técnica para a solução do problema da forme implica a possibilidade de superar a exterioridade das normas pela apreensão imanente de um critério ético no âmbito do quadro social delimitado. Enquanto Adorno formula uma apreensão negativa, crítica do referencial normativo – o que ocorre no âmbito de sua apreensão do trabalho social –, Habermas postula o mesmo critério em termos evolutivo-positivos – o que se verifica nos seus pressupostos, de uma dualidade entre “trabalho” e “interação”.

Para Habermas, os trabalhadores definidos por seu nexo às forças produtivas nem por isso estão dotados de critérios normativos emancipatórios. Adorno (1999) a rigor não discorda; os trabalhadores hoje estariam “semi-formados”, conforme sua famosa caracterização.

Mas Adorno explicitaria como, nesta experiência viva da reificação (que é a abordagem negativa, de crítica a uma constelação histórica atual alienada, de uma realidade que poderia tecnicamente ser mas não se verifica por motivos não-técnicos), se desenvolvem, a partir das contradições, as orientações para a ação, as intervenções no plano do que denomina “trabalhador coletivo” no que se refere à sua adequação – ou não – aos padrões de reprodução vigentes. Só quando o trabalhador coletivo se percebe sujeito da alienação que ele mesmo provoca se desenvolvem imanentemente as referências normativas de sua atuação.

Os problemas normativos erguem-se a partir de constelações históricas, que de igual maneira exigem silenciosa e “objetivamente” a partir de si próprias sua transformação ... Não seria possível, por exemplo, decretar abstratamente que todos os homens precisam ter o que comer enquanto as forças produtivas não fossem suficientes para a satisfação das necessidades primitivas de todos. Contudo, quando, numa sociedade ... aqui e agora, em face da abundância de bens existentes ... da mesma maneira existe a fome, então isto exige a abolição da fome pela intervenção nas relações de produção. Esta exigência brota da situação, de sua análise em todas as dimensões, sem que para isto se precisasse da universalidade e da necessidade de uma representação de valor. (Adorno, 1999, p.182-3)

O trabalhador coletivo se apreende como sujeito de uma possível eliminação da fome, a qual, no entanto, não efetiva por sua própria condição de trabalhador coletivo. A crítica dessa situação se apresenta a partir da auto-reflexão crítica, que expõe a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção. Eis aqui uma experiência de crítica imanente reflexiva.

O novo aqui se refere à intervenção no plano das relações de produção, à mudança no plano social, à verdadeira efetivação do sujeito no âmbito da composição do trabalhador coletivo. Não é relativo à produção, como objetos, de novas necessidades e de suas satisfações por novos métodos na formação social vigente: essas dimensões são vinculadas às relações de produção vigentes. Por isso, não se trata de uma supressão do sujeito falso, mas de sua formação no âmbito da aptidão à experiência viva. Vale dizer para Adorno: à articulação entre trabalho intelectual e trabalho físico.

Por um lado, como exemplifica esta última referência a Adorno, há uma articulação entre o plano da emancipação e o plano da produção, até uma possível inferência lógica entre ambos, remetendo, como indica Habermas nesta útlima parte de sua argumentação, à Ideologia alemã de Marx, em que este, como se sabe, articula sistema de trabalho e sistema de necessidades, e, portanto, trabalho à alienação social, à sociedade cindida.

Por outro, para Habermas a apreensão de uma conexão entre trabalho e interação no âmbito de um processo de autogeração, de formação do homem objetivo, nos termos do processo de trabalho coletivo, também estaria presente na obra marxiana, conforme a leitura dos Manuscritos econômico-filosóficos. Aqui o trabalho em sua acepção hegeliana não seria articulado à sociedade cindida, isto é, à questão da emancipação. Esta última questão mostraria como também na obra marxiana, seguindo a indicação de Löwith, haveria uma tentativa posteriormente abandonada de desenvolver as concepções hegelianas da fase de Iena, mantendo separados os planos do trabalho e da alienação.

Eis aqui aparente a parcialidade da leitura habermasiana. Ao mesmo tempo em que Marx (1974, p.38) destaca o mérito da apreensão do trabalho por Hegel, critica nele a apreensão meramente “positiva”.

Nessa leitura, como se sabe, baseia-se Lukács (1983, p.834) para concluir em O Jovem Hegel que o filósofo de Stuttgart não distinguira entre “objetivação” (Vergegenständlichung) e “alienação” (Entfremdung). Lukács insiste em como para a leitura marxiana o trabalho não só forma o homem, mas também constitui sua alienação, dando motivos à interpretação de Adorno acima indicada. Desde o início, portanto, o percurso de Hegel a Marx seria pautado pela constatação da deficiência das análises do trabalho hegelianas nos termos de seu déficit normativo, e pela tentativa de equacionar a questão.

Como se sabe, a crítica de Marx a Hegel se desenvolve por dois momentos. No primeiro, exemplificado especialmente pelos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx censura em Hegel o uso meramente “positivo” da sua formação pelo trabalho contrapondo esta focalização hegeliana à sua perspectiva de análise a partir do trabalho alienado. Para Hegel, o enfoque do trabalho se refere ao âmbito do “espírito” (cultura). Passa ao largo da questão da alienação (Entfremdung) efetiva, abordando-a no âmbito da objetivação exteriorizada (Entäusserung) e sua superação no próprio trajeto formativo.

A alienação efetiva se apresenta para Hegel fora da abrangência do trabalho, como cisão inevitável e real no plano da sociedade civil-burguesa, constituída nos termos de um “sistema de necessidades” (Bedürfnisse). É interessante destacar nesta oportunidade que para Hegel o “trabalho forma”, porém não interfere na cisão efetiva da sociedade civil-burguesa; ou seja, não se articula ao plano onde se verifica a alienação real.

Por outro lado, porém – o que é decisivo –, Marx, simultaneamente à sua restrição, elogia em Hegel o empreendimento pelo qual, conforme esta sua focalização do trabalho em nexo com a formação, apreende a história como processo de autoformação humana, ainda que hegelianamente isto se verifique só no âmbito do espírito. Dessa dupla perspectiva diante de Hegel se origina o passo definitivo empreendido pela crítica marxiana: articular trabalho formativo à alienação.

Caberia, num segundo momento, apreender esse processo de autoformação humana num âmbito em que o nexo entre formação e trabalho envolva a alienação material-histórica efetiva (Entfremdung). A novidade marxiana seria articular, mas sem identificar, alienação e exteriorização. Isso seria apresentado na Ideologia alemã, onde o trabalho hegeliano seria reconceitualizado como produção e trabalho social num processo material-histórico que articula formação e alienação efetiva em que a formação se descortina como ideologia.

Com essa crítica a Hegel, Marx atinge seu alvo: uma crítica imanente da alienação, enquanto deformação autogerada pelos homens em seu trabalhosocial,críticaquedispensaquaisquerrefererenciaisexteriores ao próprio processo de produção social.

Por um lado, a lógica do trabalho social engloba a própria produção de necessidades, eliminando assim o diferencial que distinguia o plano formativo do trabalho e o sistema das necessidades. Por outro, a formação apreendida como deformação tornava desnecessário o telos pressuposto da emancipação que comandaria o movimento histórico. Seriam duas as conseqüências desse movimento marxiano na sua crítica a Hegel: a ruptura com qualquer ciência positiva da essência humana, articulada com o abandono de qualquer perspectiva de filosofia da história como movimento de superação da alienação.

Tal prisma de um movimento imanente de formação e de um referencialnormativoimanenteanimatambéma teoriacríticada sociedade.

Nesses termos, é forçoso admitir que não procede – e cabe apenas como interpretação antropologizante do jovem Marx – derivar de uma citação apenas parcial da relação de Marx com a apreeensão do trabalho em Hegel que aquele baseado nas formulações hegelianas “tentou reconstruir o processo histórico-mundial de formação do gênero humano a partir das leis de produção da vida social” (Habermas, 1969, p.45).

Hegel reconstruído:

Geist como intersubjetividade

Em que pesem as inconsistências deste rastreamento da leitura habermasiana de Hegel no trajeto marxiano subseqüente, o restante do texto, constituído pelos seus cinco segmentos iniciais, constitui uma tentativa de caracterizar uma duplicidade – mais do que uma ambigüidade – na concepção hegeliana de Geist.

Para Habermas (1969, p.13), em oposição a Kant, Hegel determina Geist como Mitte, mediação que é meio-termo entre singular (Einzelnem) e geral (Allgemeinem): “O espírito não é o ‘fundamentum’, mas o ‘medium’ em que o Eu se comunica com um outro, e só a partir de que ambos se formam (bilden) unicamente como sujeitos enquanto uma mediação absoluta”.

A crítica hegeliana se voltaria sobretudo ao apriorismo e à autonomia da solução kantiana: concebe a sociedade constituindo-se fora do âmbito das ações morais. “O conceito hegeliano do Eu como identidade do individual e do geral se dirige contrariamente àquela identidade abstrata da consciência pura, que se refere a si mesma, da apercepção originária” (Ibidem, p.22).

Em sua crítica à moral kantiana, Hegel mostra como aquele descarta a intersubjetividade, que seria somente um caso específico do que hoje denominariamos ação estratégica, dirigida à autonomia da ação moral. Este seria o principal alvo: caracterizar a ação comunicativa ante esta ação dirigida ao fim imperativo da moral pela auto-reflexão individual, por exemplo, recorrendo à luta pelo reconhecimento mútuo caracterizada nos textos de Iena, em que se pressupõe a intersubjetividade, a comunicação possível entre sujeitos opostos (Gegenspieler); registre-se que Gegenspieler tem aqui a função de se contrapor à visão do trabalho vinculada à objetivação, à realização de objeto (Gegenstand) (Ibidem, p.23). Habermas, nesse sentido, restringe a intersubjetividade ao plano subjetivo.

Nessa medida, o Eu não resultaria de uma reflexão do individual, mas sim de um processo de formação. Processo este caracterizado como formação de uma concordância unificada (Einigung) comunicativa de sujeitos contrapostos entre si. O Eu não seria reflexão do individual, mas processo de formação. Contrariamente a Kant, para quem a cultura seria a diposição pressuposta de realização de uma ação teleologicamente orientada à autonomia, para Hegel, o “Eu cultivado” seria o resultado de um processo histórico. Processo formativo em que, “a partir da experiência originária da identidade do individual e do geral se formaria, num processo, a identidade da consciência de si (no plano do espírito)”. Haveria conforme a filosofia do espírito de Iena três modelos para essa formação: no plano da consciência que representa com um nome (símbolo – Ernst Cassirer), que forma nos termos da astúcia (trabalho – Georg Lukács) e do reconhecimento (interação – Theodor Litt) (Ibidem, p.30). Dos três modelos da formação, as relações apresentadas pelos dois últimos constituem o tema principal para Habermas (p.32): “Os meios pelos quais este Eu, agora como espírito, adquire existência, são as ferramentas, os instrumentos de trabalho e a linguagem”.

Nos escritos de Iena, Hegel constrói esse nexo de modo simples: sendo apreendido basicamente no plano individual, no trabalho só pela via do reconhecimento mútuo, isto é, pela divisão do processo de trabalho e dos produtos do trabalho, onde o produto de um serve para suprir as necessidades de outro, se realiza – como astúcia para além da vontade manifesta – a possibilidade de formação de um sujeito como identidade – formada – de individual e geral. Nesses termos, efetivamente trabalho e interação precisam se articular; só assim não se perderiam os fundamentos racionais do social, evitando sua redução aos referenciais técnicos do trabalho como produtor de objetos de uso. Eis a causa da suspeição lançada por Habermas sobre o trabalho. No entanto, esta seria uma formação que contempla, seja trabalho, seja interação, no plano do individual (Einzelnem). Ele nem reduz trabalho a interação, nem inversamente, esta àquele; importa aqui a conexão entre ambos. Hegel articula trabalho e interação sob a perspectiva da emancipação, organizando o processo de trabalho e a distribuição dos produtos, mas o resultado da emancipação depende das normas a que obedecem os indivíduos em suas ações complementares.

O sistema da vida ética da fase de Iena é um sistema de formação do geral dependente da complementaridade, da articulação de vontades, apreendidas no plano individual. A Fenomenologia do espírito representa uma ruptura com esta posição. Hegel (1973, p.29) seria explícito em relação a esta novidade:

Que o que é representado se torne propriedade da consciência de si pura, esta elevação ao geral como tal ainda não é a formação completada, mas apenas um dos lados. O modo de estudo do passado tem esta diferença em relação àquele dos novos tempos, que aquele era a formação da consciência natural. Esta ... filosofando sobre tudo, se formava a si própria em uma generalidade ativada. Nos novos tempos, ao contrário, o indivíduo encontra a forma abstrata pronta; o esforço em apreendê-la ... é mais revelação do interior e produção separada do geral do que uma geração do mesmo geral a partir do concreto e da diversidade da existência. Agora o trabalho nãoresidetantoempurificaroindivíduodoseumodosensívelconvertendo-o em susbtância pensada e pensante, mas pela superação dos pensamentos determinados fixos efetivar o geral e lhe conferir espírito. Mas é muito mais difícil fluidificar o pensamento fixo do que a existência sensível...

No percurso entre os textos de Iena e a Fenomenologia do espírito, a apreensão do trabalho transitaria em Hegel de um plano da singularidade a um plano de generalidade (Allgemeinheit), de tal modo que nesta última os elementos do geral estão contidos estruturalmente no processo formativo em sua objetivação, em vez de o geral ser construído como somatório de perspectivas individualizadas em termos de necessidades a serem satisfeitas.

O trabalho aqui seria apreendido como trabalho “no elemento do geral” (Wolf, 1980, p.164). Isso significa que a própria objetivação no processo de trabalho social, no âmbito do conflito social, enquanto realização como “coisa”, enquanto coisificação (Zum Ding machen) constitui um plano de generalidade, ainda que abstrata, em que Lukács veria um prenúncio do conceito de “fetichismo da mercadoria” posteriormente desenvolvido por Marx. O geral aqui não depende de alguma vontade subjetiva, mas, ao se exteriorizar, ao se autonomizar em relação ao trabalhador, representa objetivamente um universal.

Há uma gama extensa de comentadores que destacam a necessidade de atentar a esta diferenciação nos níveis de conceituação do trabalho na obra hegeliana (Riedel, 1969, p.29; Göhler, 1974, p.489; Wolf, 1980, p.196; Rüddenklau, 1982, p.162; Lukács, 1983, p.431; Rockmore, 1989,

p.46; Santos, 1993, p.38).

Nos textos de Iena haveria duas formas fenomênicas do trabalho convivendo, mas não paralelamente, e sim num processo pelo qual ocorre uma transição de uma a outra (Göhler, 1974, p.489): trabalho individual nos termos da economia liberal e trabalho socialmente mediatizado. Essa dupla apreensão “não é congruente com a distinção entre trabalho e interação apresentada por Habermas”. Como mostra Manfred Riedel (1969, p.75), há em Hegel a transição entre duas apreensões distintas do trabalho: a transição entre o conceito clássico e o conceito da economia política, que se mantêm simultâneos nos textos de Iena, onde o conceito de trabalho é ambivalente.

No primeiro, “poiesis” se contrapõe à “práxis”: nesta última o sujeito não se desgasta, não se dissolve no objeto, mas adquire conhecimento de si (Göhler, 1974, p.490). No segundo, o decisivo no plano social é a objetivação (Vergenständlichung) aumentando o valor do objeto e não se referindo diretamente ao sujeito. Ambos, porém, estão no plano individual. Faltaria ver como a própria universalidade social é produzida no plano do trabalho. Segundo Lukács (1974, p.702) há um movimento do imediato natural ao universal. Existe “uma dialética de universalização no plano do trabalho”.

De fato a divisão do trabalho para satisfazer necessidades de todos, e não só suas necessidades, por um trabalho “geral”, mostrando a divisão do trabalho como movimento em direção à universalidade. Mas em Hegel esta lógica da universalidade é um sistema de necessidades, e não se identifica à lógica do trabalho. Há uma diferenciaçãoem Hegel entre a lógica do trabalho e a lógica da satisfação das necessidades; esta última seria a promotora da universalização social.

Mas Lukács ultrapassa em sua análise a postulação de Riedel – restrito como seu mestre Löwith ao “elemento da individualidade” – mostrando como o sujeito na relação com o objeto se forma, em contraposição ao imediato, em termos mediatos: no plano de uma subordinação objetiva às leis do trabalho, constituindo-se como “coisa” (Ding) que independe da vontade do indivíduo (Ibidem, p.697). A alienação do trabalhador no processo de trabalho social representa o geral, e não a articulação coletiva de vontades individuais.

Assim, no processo de trabalho, há um movimento em direção à universalização que é abandono do imediato (como satisfação imediata das necessidades) e subordinação ao mediato objetivo, não individual. A lógica do trabalho impõe uma universalização, uma humanização – alienada – geral e objetiva dos homens, na medida em que o trabalho se situa entre “desejo” (Begierde) e sua “satisfação” (Erfüllung). Como mostra Lukács, o universal não se instala pela satisfação de necessidades gerais e não apenas individuais, mas no próprio movimento de formação, de transformação das formas, de dar forma (Formwandlung) à matéria. Ao se converter em objeto, ao se converter em coisa (Ding), expressa o seu caráter universal – sob a forma do trabalho alienado, conforme mostrará Marx a seguir, nos Manuscritos econômico-filosóficos.

Essa caracterização do trabalho já estaria segundo Lukács presente nos textos de 1805 e 1806 e não é considerada por Habermas ou por Riedel, que incidem na sua apreensão no plano individual apenas. Em Marx, nestes termos, não é o trabalho em sua caracterização individual que determina a lógica a que se subordina também a interação. Nem passaria a interação por uma caracterização antropológica. Mas seria o trabalho no sentido universal que implicaria a perspectiva correspondente a um sujeito de classe social, e não indivíduo. A classe seria determinada por esta existência objetiva determinada pela objetivação (Vergenständlichung) no processo do trabalho alienado.

Habermas, contudo, mantém o trabalho nos termos pressupostos do indivíduo, conforme a ideologia liberal, para assim sustentar a interação intersubjetiva fora do trabalho. O trabalho, porém, universaliza – ainda que abstratamente – o trabalhador em termos objetivos, independentes de sua vontade. Tal universalização não resulta de uma formação evolutiva baseada nos indivíduos, articulando seus trabalhos e seus produtos exteriormente, mas resulta objetivamente, no plano de necessidades não satisfeitas, desejos não efetivados no curso de um processo pelo qual a evolução rumo à emancipação se articula com a evolução alienante, e que só se revela com base na crítica à sua apresentação fixa, dissolvendo-a.

Como Habermas não apreende o trabalho em sua ambivalência e transitando à dimensão de sua universalidade, a interação acabaria se contrapondo ao trabalho social em sua dimensão geral, e não ao trabalho em sua forma fenomênica individualizada, o trabalho concreto capitalista existente, e não produtor da universalidade. Eis o equívoco argumentativo – no plano do contexto de aplicação – cujo corolário seria a apreensão da formação do geral, do Geist, como imposição exterior e não estrutural; um Geist desprovido de dialética. Se tivesse disposto o problema das relações entre forças produtivas e relações de produção em termos da sua dimensão geral, Habermas teria, aliás, sido mais fiel à intenção explicitada por Marcuse a que se reporta: a função social ideológicacorrespondenesteà tecnologia,enãoàtécnicanosentido “técnico” do trabalho individual. Mas Habermas também vê a técnica unicamente “no elemento da individualidade”; sua generalidade social da, para ele, só seria implementada pela interação subjetiva. Em suma: dialética – já então – para Habermas seria uma questão atinente só ao plano culturalsubjetivo.

 ABSTRACT: The objective of the article is to examine the work of the “early Habermas” prior to the linguistic turn, localized in the preparatory studies at the Theorie des kommunikativen Handels and later works. We intend to investigate the essay Arbeit und Interaktion, of 1967, in which Habermas, discussing with Lukács, aims to legitimate his conception of history as emancipatory evolution of man as generic being, from Hegel’s texts in Jena’s time, besides suggesting a new reading of the young Marx.

 KEYWORDS: Habermas; Hegel; Marx; work.

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[1] Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar.

Trans/Form/Ação, São Paulo, 23: 69-95, 2000 https://doi.org/10.1590/S0101-31732000000100004