RESENHA/REVIEW

Thelma Lessa da FONSECA*

NIETZSCHE, F. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Trad. Pedro Süssekind. São Paulo: Sette Letras, 1996.

No natal de 1872, Cosima Wagner, filha de Franz Liszt e esposa de Richard Wagner, é presenteada com um conjunto de cinco ensaios que abordavam temas diversos, relativos a um projeto de renovação da cultura alemã em que ela se engajara. Seu autor era Friedrich Nietzsche, então um jovem professor na Universidade da Basiléia, em cujo livro, O nascimento da tragédia, Richard Wagner havia encontrado a promessa de uma filosofia afeita a sua música. Nietzsche escrevera o texto como resposta às questões que Cosima costumava formular por meio da freqüente correspondência então mantida entre ambos. O conjunto desses textos recebeu o curioso título de Cinco prefácios para cinco livros não escritos.

O primeiro destes “prefácios”, Sobre o pathos da verdade, encerra uma crítica às pretensões do conhecimento racional e, em grande parte, prenuncia o tom da crítica posterior de Nietzche: a procura da verdade é vista como uma busca fadada ao fracasso e, por isso, o sofrimento é inerente ao conhecer. A arte, nesse contexto, aparece como visão de mundo alternativa, opondo a celebração da vida à aniquilação do conhecimento. O pessimismo em relação à atividade investigativa ganha, aqui, uma formulação bastante próxima, pode-se mesmo dizer, preparatória, daquela que caracterizará escritos posteriores: “... houve um astro em que animais inteligentes inventaram o conhecimento ... Eles pereceram e desapareceram com a morte da verdade”. O mesmo trecho aparece em Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, escrito um ano após.[1]

*                     Departamento de Filosofia – Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP – 17525-900 – Marília – SP.

O segundo escrito, sobre os estabelecimentos de ensino, reproduz o prefácio que Nietzsche havia redigido para apresentar suas Conferências sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino. É retratado aí o perfil do leitor a que Nietzsche se dirige, o que resulta em indicações úteis a quem deseje estudá-lo. Esse leitor deve ter três qualidades: a calma na leitura, saber não inserir no texto sua cultura e, por fim, não esperar o anúncio de novas Tábuas, ou seja, não buscar no texto nietzscheano algo como verdades últimas e nem resultados conclusivos. Aqui já se pode ter uma medida da intenção do autor ao escolher o título do livro, pois se pode cogitar a hipótese de que se trate de livros propositadamente não escritos, justamente para evitar respostas acabadas para os problemas levantados.

A essa descrição se segue o prefácio ao livro não escrito que seria denominado O estado grego. Este é tomado como parâmetro de uma crítica aos ideais modernos, tais como a “dignidade do homem e do trabalho”. Um ponto dessa crítica merece ser aqui ressaltado, já que aparece nela a problemática conotação positiva que Nietzsche atribui à escravatura, “inerente à civilização helênica” que ele tanto exalta. Certo é que, para ele, a escravatura pertence à essência da civilização helênica sendo, ainda, condição de possibilidade do desenvolvimento da arte aí. Isso porque a exigência de igualdade, tal como a que existiria no Estado comunista, seria uma ameaça à possibilidade de que surgissem grandes criações artísticas. Também o Estado moderno teria como fim perpetuar e manter a situação de miséria cultural. Ao contrário, na vida helênica o apelo seria pela diferença, pela competição: “Em comparação ao universo político helênico, eu confesso que em alguns fenômenos atuais acredito reconhecer fraquezas da esfera política tão perigosas quanto inquietantes para a arte e para a sociedade”.

Para os gregos, a escravatura surge da idéia, pensa Nietzsche, de que o direito é adquirido pela força. Mas, longe de desenhar uma defesa da escravatura, o que Nietzsche quer com essas considerações é desvelar a hipocrisia do Estado moderno, que se tornou representante de interesses específicos e terminou por reduzir homens à condição de instrumentos a seu serviço. Dessa forma, “fantasmagorias tais que a dignidade do homem e do trabalho são produtos indigentes da escravatura que dissimula a si própria”.

Da mesma forma que a ruptura com o casal Wagner parecia impensável ao jovem professor da Basiléia, nenhuma nuvem de discordância no que se refere à filosofia schopenhaueriana era sequer vislumbrada pelo Nietzsche de então. Assim sendo, o quarto “prefácio” vem para declarar Schopenhauer o “único verdadeiro filósofo” do século XIX e, além disso, a grande referência para que se possa construir uma “cultura legítima”. Trata-se de um escrito fortemente crítico em relação à cultura alemã, e, como no “prefácio” sobre o Estado grego, o elogio não pode ser compreendido quando se ignora seu contraponto. Também aqui, a apologia visa, por oposição, alvejar os “filisteus da cultura” para quem o conhecimento se resume à erudição histórica.

O termo âgon, que serve para designar o torneio usual na antiga cidade grega encerra a idéia central do quinto e último “prefácio”. Essa idéia está sintetizada na afirmação de Nietzsche de que os gregos consideravam que dar livre curso à sua ira era estritamente necessário. O mundo homérico, bem como a Teogonia de Hesíodo, nos apresenta uma vida unicamente dominada pelas “crianças da noite”, sendo elas, a discórdia, a necessidade sexual, o ludibriar, a velhice e a morte. A cultura ática não separava aquilo que no homem seriam as qualidades naturais das qualidades humanas, e é essa a lição a ser aprendida com ela. No elogio ao combate, à competição, à luta, pela doutrina órfica, os impulsos são considerados legítimos e não se trata aí, entende Nietzsche, de combater a morte, mas de enaltecer a vida, da qual os instintos são inseparáveis. Isso se atesta pelo fato de que o âgon grego não tem como finalidade que um dos combatentes seja declarado “o melhor”, pois isso fixaria uma hierarquia que encerraria o torneio, que colocaria fim à paridade necessária à manutenção do antagonismo de forças. O torneio é entendido por Nietzsche como ilustrativo do modus vivendi da cidade grega, onde se buscaria preservar sempre a possibilidade de que um novo jogo de forças se engendre, dando continuidade ao conflito. Mais do que uma analogia, a aproximação entre jogo e Estado se fundamenta na idéia de que toda criação do homem se dá a partir da sua natureza e, por essa exata razão, as qualidades “humanas” e “naturais” são inseparáveis. A ambição individual, o culto à personalidade – típicos dos modernos – não é, enfatiza Nietzsche, familiar aos atenienses que, com sua vitória, não visavam à sua glória pessoal, mas à glória da cidade, buscavam enaltecer os deuses e nesse contexto se dava a educação do jovem ateniense.

Em princípio, o livro parece se resumir em uma coletânea de escritos isolados. Entretanto, se lermos o segundo prefácio, não como resumo de pontos de vista críticos relativos à educação, mas como indicações sobre como os demais prefácios devem ser abordados pelo leitor atento às intenções do autor, é possível cogitar que cada um deles cumpre uma função distinta e, talvez, voltada para um objetivo único.

Vejamos: no “segundo prefácio”, Nietzsche adverte seu leitor de que não se propõe a apresentar resultados conclusivos e, tampouco, “novas tábuas”. Pensa ele que essa tarefa já foi empreendida por grande parte da filosofia anterior, o que levou à formação de um exército de leitores formados com essa expectativa. Não fosse isso, tal advertência não seria necessária. Entendamos, diante disso, que a leitura dos demais prefácios deve ser filtrada pela recusa à respostas prontas.

Supondo-se que essa advertência não seja apoiada na mera antipatia em relação à tradição da história da filosofia, pode-se encontrar um fundamente teórico para ela no primeiro prefácio. Aí se encontraria a justificativa filosófica necessária à condenação da noção de conhecimento norteada por verdades últimas: o intelecto humano é uma instância transitória (e isso vem da herança schopenhaueriana, como se sabe[2]) e, como tal, não poderia fundar certezas imutáveis nem absolutas. A oposição à propensão sistematizadora da história da filosofia anterior se sustenta pela constatação do fracasso reiterado quando se tratou de estabelecer verdades incontestáveis. Há indícios de que essa posição de Nietzsche tenha recebido alguma influência da noção de diaphonia do ceticismo antigo (especificamente de Sextus Empiricus).[3] De qualquer forma, Sobre o pathos da verdade fundamenta a posição crítica relativa ao estudo da filosofia apresentada em Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino.

Seguindo o mesmo caminho de leitura, o terceiro prefácio, O estado grego, poderia ser compreendido como explicitação dos objetivos da crítica encerrada nos primeiro e segundo prefácios. Lido dessa forma, ele conteria a contextualização histórico-cultural da crítica nietzscheana: tratarse-ia de denunciar a pseudofundamentação da hipocrisia do Estado moderno. Para dizer de outro modo, tratar-se-ia de denunciar a contradição presente nos ideais de igualdade, já que são escamoteadores das desigualdades efetivas. Sendo essa leitura sustentável, deve-se admitir que o tratamento da noção de verdade por Nietzsche tem como conseqüência inevitável a crítica no terreno político.

A necessidade da íntima relação entre cultura e filosofia encontra sua personificação em Schopenhauer, no quarto prefácio, pois ele teria sabido recusar tanto a erudição vazia, tão apreciada pelos acadêmicos de então, segundo pensa Nietzsche, quanto desviou-se do fácil caminho de supervalorizar o conhecimento, na medida em que evitou a tentação de apresentar um novo sistema acabado. Ele teria, portanto, evitado apresentar verdades últimas e, com isso, teria proposto ao seu leitor o desafio de confrontar-se com a tradição e de formular novos princípios para a construção de uma nova cultura. O prefácio sobre Schopenhauer teria, nesse conjunto, a função de apresentar um caso exemplar, diante do qual a crítica ao conhecimento apresentada nos prefácios anteriores poderia se tornar menos abstrata. É necessário recordar que o projeto filosófico schopenhaueriano era então tomado, não apenas por Nietzsche, mas também por Wagner, como paradigma da então buscada revolução da cultura alemã que recuperaria a sabedoria ática não contaminada pela tradição judaico-cristã. Nietzsche, aqui, alia pretensões de algumas das vertentes do romantismo alemão[4] com o ateísmo schopenhaueriano, e, muito provavelmente, foi a originalidade dessa síntese o que encantou Wagner quando de seu conhecimento de A origem de tragédia.

Assim, parece que quando o “segundo prefácio” é lido como uma espécie de “manual” de leitura dos demais prefácios, pode ser diluída a impressão de que cada um trata de um tema estanque, e, ao contrário, se desenha a idéia de que se trata de um todo teórico, constituído de projeto teórico composto de fundamentação filosófica, justificativa histórico-cultural, e paradigmas exemplares (filosófico – em Schopenhauer – e histórico – no Estado grego). Entretanto, faltaria a Nietzsche esclarecer o que poderia ser colocado no lugar da coerência teórica, da igualdade política e da democracia cultural, isto é, se tudo até aqui parece justificar a crítica, caberia ainda indagar qual o elemento positivo capaz de unificar a crítica, os casos tomados como seu modelo inspirador e o projeto nela contido. É diante dessa pergunta que o último prefácio pode ganhar sua significação.

O elemento unificador das quatro abordagens anteriores está na noção de âgon. Essa noção sintetiza a idéia de que a oposição, a contradição, a diferença e a desigualdade não são necessariamente negativas e, de uma perspectiva lúdica, podem mesmo ser vistas como escopo da vida efetiva. Ora, parece perguntar-se Nietzsche, por que não aceitar o móvel efetivo da vida e, por meio dele, formular a recusa da existência dada?

Assim, o torneio homérico não visa ao estabelecimento de uma autoridade que, uma vez estabelecida, jamais seria deposta. Ao contrário, quer exaltar o livre jogo de forças que tem como meta sua própria perpetuação. Justamente para enfatizar a idéia de que o jogo não visa a seu próprio fim é que Nietzsche menciona, reiteradamente, a repulsa provocada nos gregos antigos pelo vencedor que se pretendesse definitivo. A partir dessa noção, pode ser compreendida tanto a expectativa de Nietzsche de um leitor ativo diante de seu texto, como pode se entender sua postura desdenhosa diante dos autores consagrados pela tradição filosófica. A idéia de luta ou torneio (Wettkampf ) contém, enfim, a idéia de que não é necessário curvar-se diante de nenhuma autoridade como servus a pedibus. É, também, dessa forma que a crítica à hipocrisia do discurso democrático não se transpõe no elogio do autoritarismo e que a recusa de uma verdade única não equivale à defesa do irracionalismo, já que a oposição feita por Nietzsche nutre-se de fundamentos compreensíveis e norteia-se por objetivos explicitados.

Seis anos depois desse escrito, o rompimento de Nietzsche com Wagner e sua recusa da herança schopenhaueriana é anunciada em Humano, demasiado humano. Entretanto, se as referências dos “Cinco prefácios” passam a ser, então, renegadas, alguns dos objetivos de 1872 se preservam e ganham densidade: a nostalgia de uma cultura elevada, a condenação ao dogmatismo e a crítica à hipocrisia dos valores modernos, como se sabe, são temas que jamais perderam a relevância nas obras subseqüentes do autor.

Referências bibliográficas

ANDLER, C. V. Nietzsche, sa vie et sa pensée. Paris: Gallimard, 1958.

NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. Trad. R. R. Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1978. v.I (Os pensadores).

SCHOPENHAUER, A. Crítica da filosofia kantiana. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os pensadores).



[1] Seguindo a incomparável tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho (1978), o texto se inicia como se segue: “Em algum remoto rincão de universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da ‘história universal’: mas foi somente um minuto. Passados alguns fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer”.

[2] A noção de “intelecto” nesse sentido se encontra na Crítica da filosofia kantiana, em que Schopenhauer afirma: “Portanto, ‘conhecimento a priori’ e ‘formas próprias do intelecto’ são, no fundo, apenas duas expressões para uma mesma coisa” (1980, p.103).

[3] Há evidências de sua dedicação ao estudo do ceticismo de Sextus Empiricus em escritos datados da mesmo época. Ver, por exemplo, Rhetorik (escrito a que se refere usualmente como”Curso de retórica”), parte 1, Musarion, 1921, v. V.

[4] Ver Andler, 1958.