UMA QUESTÃO DE VAIDADE: RELAÇÕES ENTRE NIETZSCHE E MANDEVILLE

 

Ricardo de Oliveira Toledo[1]

 

Resumo: O artigo discute aspectos de relativa congruência entre as críticas da moral em Nietzsche e Mandeville, atentando principalmente para a questão da vaidade. Considera-se que Nietzsche e Mandeville, guardadas as devidas peculiaridades, foram imoralistas em suas respectivas épocas. Através de pesquisas nas obras publicadas e em fragmentos póstumos, sabe-se que Nietzsche conhecia o pensamento de Mandeville. Porém, não se pôde verificar a extensão das leituras que o filósofo alemão fez de seu antecessor. O livro pesquisado de Mandeville foi A Fábula das Abelhas: Vícios privados, benefícios públicos. Devido à extensão da obra de Nietzsche, a discussão filosófica nesse filósofo centrou-se nos dois volumes de Humano, demasiado humano, Aurora e A Gaia Ciência. Mandeville entendia que a existência e não a revogação dos vícios era a mola propulsora do enriquecimento da sociedade. Um dos traços da natureza humana é a vaidade. Não é a humildade que subjaz às ações virtuosas, mas o orgulho, bem como a vaidade. A virtude moral seria um artifício para a obtenção de benefícios individuais. Para Nietzsche, a vaidade é o que torna a visão do ser humano suportável, dissimulando paixões e emoções que moralmente são tidas como vergonhosas. A vaidade tem o papel de humanizar o indivíduo, para que seja mais sociável e cumpra as exigências de uma moralidade estabelecida.

 

Palavras-chave: Moralidade. Vaidade. Nietzsche. Mandeville.

 

INTRODUÇÃO

O intento de Bernard Mandeville (1670-1733) jamais foi o de apreender superficialmente ou de defender condutas supostamente baseadas em uma moralidade incondicionada, mas de refletir sobre as motivações e consequências de tais atos. Em seu entendimento, uma ação moral é um meio para a obtenção de benefícios sociais. Por trás dela se esconde o egoísmo humano, bem como o orgulho e, por conseguinte, a vaidade. Longe de considerar os frutos do egoísmo algo pernicioso, o holandês enxerga neles aquilo que une e, concomitantemente, permite o desenvolvimento de uma sociedade. Quando se dá vazão aos vícios, e não à prática moral altruísta e desinteressada, é que ocorre a busca pelas melhorias sociais.

A partir da hipótese de que há referências a Mandeville em textos de Nietzsche, iniciou-se uma investigação sobre as possíveis leituras que este teria empreendido a respeito de seu antecessor. O primeiro passo dado foi o exame das obras, notas e cartas de Nietzsche. Como este trabalho mostrará, há paráfrases do pensamento de Mandeville encontradas em alguns pontos de obras publicadas do filósofo alemão, assim como menções em suas notas. O segundo passo se deu pela procura de vestígios de leituras diretas e indiretas sobre Mandeville, nos catálogos do acervo particular de Nietzsche. [2] Essa empreitada contribuiu para o terceiro passo, o qual compreendeu a apreciação de algumas obras estudadas por Nietzsche e que continham reflexões sobre Mandeville. Finalmente, com base na análise das linhas mestras do pensamento de Mandeville e da percepção de uma espécie de imoralismo inerente a elas, decidiu-se realizar um estudo comparativo sobre aquilo que nelas se relaciona com o imoralismo de Nietzsche.

Escolheu-se o problema da vaidade, além dos seus desdobramentos na moral, como o principal assunto para o estudo comparativo. Sabe-se que Nietzsche dialogou com uma tradição de imoralistas, e que esse diálogo serviu para os balanços críticos que fez dos valores morais e, obviamente, da moralidade. Uma das principais tarefas desta pesquisa foi o garimpo de elementos que indicassem possíveis congruências entre os dois pensadores, o que poderia servir como subsídio para futuros estudos interessados pelo papel de Mandeville no arcabouço intelectual de Nietzsche. Apesar de este trabalho reconhecer que os dois intelectuais não tivessem exatamente os mesmos intuitos, em seus esforços para a compreensão dos fundamentos da moralidade, pois Mandeville mantinha uma predileção por questões socioeconômicas, enquanto estas eram apenas tangenciadas por Nietzsche, é curioso notar que tanto um quanto o outro apresentam o egoísmo, o orgulho e a vaidade entre os pilares de uma moralidade volátil, a qual não se sustenta sob princípios incondicionados, que extrapola os seus limites e se estende a outras dimensões da vida humana.

Respectivamente, nas três seções seguintes, o estudo abordará a) os resultados da pesquisa sobre o contato de Nietzsche com Mandeville, acompanhados por um balanço bibliográfico e crítico sobre a relação entre ambos, b) um exame das noções de orgulho e vaidade como centrais na reflexão sobre a suposta conduta estritamente moral, mas com implicações bastante distintas daquelas postuladas pelos moralistas e, finalmente, c) um debate sobre a questão da vaidade e as suas interfaces no pensamento moral de Nietzsche. Vale dizer que a pesquisa se incumbiu de operar as devidas relações entre Mandeville e Nietzsche, em todas as seções deste texto.

 

1 O POSSÍVEL ITINERÁRIO DE NIETZSCHE EM DIREÇÃO A MANDEVILLE

A única menção de Friedrich Nietzsche (1844-1900) ao nome de Bernard Mandeville (1670-1733) se encontra em uma nota do verão de 1883. Ao longo de uma brevíssima consideração, a qual tinha como principal objetivo apreciar o posicionamento de Claude-Adrien Helvétius (1715-1771) alusivo ao prazer, um trecho entre parênteses contrapõe, supõe-se, o prazer em Epicuro (341-271 a.C.), como via para a felicidade, ao paradoxo do prazer em Mandeville.[3] Apesar de a influência do holandês no pensamento do filósofo alemão não se resumir a tão poucas palavras, constitui uma dura empreitada delimitar todos os aspectos tangenciais dos escritos de Mandeville, na construção da obra de Nietzsche.[4]

Esta pesquisa não logrou sucesso em seu objetivo de verificar como se deu o contato entre Nietzsche e Mandeville. Não foram encontrados quaisquer registros de livros de Mandeville, nos vários catálogos referentes à biblioteca pessoal de Nietzsche ou nas listas de empréstimos de livros que ele fez, em bibliotecas que frequentou. Uma obra que foi acessada e comentada por Nietzsche, ainda durante a sua juventude, História do materialismo, de Friedrich Albert Lange (1828-1875), possui menções a Mandeville, tanto no primeiro quanto no segundo tomos. Em ambos, Lange comenta diretamente o principal texto de Mandeville: A Fábula das Abelhas. Ou vícios privados, benefícios públicos. Ele enfatiza o que considera ser a máxima central do livro, de que os vícios contribuem para o bem geral.

Preciosos registros acenam para aparentes atenciosas leituras que Nietzsche fez de Geschichte des Materialismus und Kritik seiner Bedeutung in der Gegenwart, publicado em 1866. Nessa leitura, Nietzsche foi apresentado a grandes figuras da tradição filosófica. Numa carta a Carl von Gersdorff (1844-1904), do outono de 1866, Nietzsche (2003, p. 2.159)[5] relata seu interesse e suas conclusões retiradas da obra de Lange. Correspondendo-se com Hermman Mushacke (1845-1905), em novembro de 1866, Nietzsche (2003, p. 2.184) novamente elogia os escritos de Lange, ao afirmar que teria sido a obra filosófica mais importante que havia surgido nas últimas décadas.

A recepção de Mandeville na Alemanha é anterior ao pensamento de Lange. Na Crítica da Razão Prática (KANT, 2003), Immanuel Kant (1724-1804), ao procurar distinguir os princípios materiais da moralidade em subjetivos e objetivos, elenca Mandeville no primeiro tipo. Aparecem ao lado deste Michel de Montaigne (1533-1592) e Epicuro. Os princípios revelados por Mandeville dizem respeito à constituição civil quanto à moralidade.[6] O espaço dedicado por Kant a essa discussão é tão pequeno que torna pouco plausível a tese de que o trecho despertaria em Nietzsche o desejo de empreender estudos complementares para ir além dele.

Outra hipótese a ser avaliada é de que Nietzsche teria vislumbrado um pouco de Mandeville através de John Stuart Mill (1806-1873). Há registros de que Nietzsche leu e sinalizou volumes da obra do utilitarista, nos quais está contido o nome e considerações sobre Mandeville. Porém, uma lacuna perdura, embora a hipótese aqui indicada se confirmasse. Os registros mais seguros revelam que as leituras de Nietzsche da obra de Mill parecem ter se iniciado apenas em 1880.[7] No entanto, em sua obra, em dois momentos na década de 1870, o filósofo alemão praticamente parafraseia o subtítulo da obra máxima Mandeville. O primeiro deles é em Schopenhauer como educador, extemporânea de 1874, e o segundo em Humano, demasiado humano, publicado em 1879.

A primeira paráfrase, ou paródia, é o trecho:

E se alguém com razão diz do preguiçoso, ele mata o tempo, então é preciso atentar seriamente que um período que coloca a sua salvação na opinião pública, isto é, na preguiça particular, está em tal época realmente morto; quero dizer, que está eliminado da verdadeira libertação da vida. (NIETZSCHE, 1999, p. 1.338).[8]

 

O texto análogo em Humano, demasiado humano é a íntegra do aforismo 482: “Dizendo mais uma vez. – Opiniões públicas – indolências privadas.” (NIETZSCHE, 1999, p. 2.316). Numa nota crítica da Kritische Studienausgabe (KSA) de Nietzsche, organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari, atesta-se que houve explícita correlação dos dois trechos acima e o subtítulo de A Fábula das Abelhas. Diante do que se expôs, uma coisa parece bem plausível, segundo Colli e Montinari: Nietzsche conhecia e se apropriou a seu modo de Mandeville, já no ano de 1874.

Dois pesquisadores que recentemente propuseram uma aproximação entre Nietzsche e Mandeville são Fornari (2006) e Losurdo (2009). Em uma obra que percorre a trajetória de Nietzsche pelos escritos dos utilitaristas britânicos, Fornari observa que o filósofo alemão parece seguir a mentalidade utilitarista clássica – de Helvétius, Mandeville e Jeremy Bentham (1748-1832) – de que as ações altruístas são, de fato, realizadas para a satisfação de interesses egoístas. Nesse sentido, a moral do altruísmo seria impossível, pois o que se ama no outro é a representação de si mesmo.

A regra de ouro de origens comteanas, a “vivre pour altri”, e todo esforço pela felicidade geral são infactíveis e irrealizáveis. Essa crítica aparece em nota de Nietzsche (1999, p. 9.036), após as suas leituras, em 1880, da obra August Comt and Positivism. Fornari destaca que o posicionamento de Mandeville era uma resposta à noção de “bondade inata” do Conde de Shaftesbury (1607-1713). Indica a repreensão de Willian Lecky (1838-1903) a Mandeville, de que este havia exposto o princípio utilitarista egoísta, mais baixo e repelente, tornando-se uma medíocre emulação de Thomas Hobbes (1558-1679). Nietzsche era leitor de Lecky. Destaca-se aqui o exemplar da obra Sittengeschichte Europas (1870), da biblioteca particular do filósofo alemão (BROBJER, 2008). No livro, há grifos e comentários nas passagens que tratam de Mandeville. O nome deste e considerações sobre o autor de A Fábula das Abelhas ocorrem diretamente no texto de Lecky, pelo menos meia dúzia de vezes.[9]

Além de Lecky, Maxwell (1951) e Kennedy (2004) notaram influências de Hobbes em Mandeville, concebendo que os mecanismos do poder não são e nem se propõem ser essencialmente morais, mas que a sua virtude está em sua efetividade. De acordo com Kennedy, dentre outros objetivos, ao desvincular ética e poder, Mandeville buscou emancipar o governo das nações europeias da influência da religião institucionalizada, bem como da sua moral.

Por seu turno, Losurdo, ao tecer um balanço crítico e uma biografia intelectual, também não traz à luz indícios de que Nietzsche tivesse lido direta ou indiretamente o autor de A Fábula das Abelhas. A convergência entre ambos diz respeito à crítica ao trabalho servil e ao trabalho assalariado. Losurdo ressalta o entendimento de Mandeville de que a prosperidade e a harmonia da sociedade burguesa[10] dependem do trabalho duro e sujo realizado pelos filhos dos pobres. Não haveria diferença de dignidade entre os servos, os escravos das colônias inglesas e os operários da nação que o acolhera, a Inglaterra.

Nesse ponto, há certa semelhança entre Mandeville e Nietzsche. Porém, a crítica do último é mais sofisticada, para a qual os operários existiriam, em seu enfadonho e embrutecido anonimato, como cegas toupeiras da cultura. Ambos concordam que não é útil para o Estado que o conhecimento do trabalhador exceda àquilo que precisa saber para a realização das suas tarefas.[11] Entretanto, isto não é visto com bons olhos por Nietzsche, uma vez que é um acinte para a cultura.

As aproximações não param nessas breves considerações. Mandeville, assim como Nietzsche, enxerga forte relação entre a religião e o serviço de conformação intelectual dos pobres, para que servissem obedientemente aos propósitos do Estado. Losurdo chama o fruto dessa doutrinação, a saber, a obediência das massas, de celebração do espírito gregário por excelência. As análises seguem em direção a uma discussão sobre aspectos modernos e contemporâneos da política e da economia, colocando Mandeville como um dos importantes nomes na construção do espírito da Contemporaneidade. Ao mesmo tempo, lista suas convergências e contrapontos quanto a Nietzsche. Por ser um assunto razoavelmente extenso, será evitado aqui, esperando-se que seja avaliado em um estudo posterior.

 

2 ORGULHO E VAIDADE NO PENSAMENTO MORAL DE MANDEVILLE

Mandeville pode muito bem estar incluído entre os moralistas que não se preocuparam em defender os valores, os quais, durante uma época, passam por virtudes, segundo o defensores da moral vigente. Ao invés disso, seu interesse estava em desvendar os fundamentos da moralidade humana, mesmo que para alcançar seu intento recebesse a alcunha de imoral. Isso pode ser muito bem estimado como uma semelhança entre ele e Nietzsche, guardadas as muitas diferenças, obviamente. Noutras palavras, ambos poderiam ser considerados imoralistas.

Para Mandeville (2017), a busca pelo aperfeiçoamento moral é uma dissimulação que concorre a vantagens conferidas pelo respeito alheio. As virtudes se resumem a meios socialmente persuasivos para a satisfação dos apetites egoístas, sem que o indivíduo seja perturbado em excesso. Aqueles que são vistos como modelos de bom comportamento moral são hipócritas, pois sabem que a reverência a eles destinada lhes oferece privilégios, como riquezas e regalias. Os imitadores dos chamados moralmente superiores não estão interessados no desenvolvimento pessoal de uma moralidade desinteressada, mas na possibilidade de que consigam usufruir de alguma parcela das vantagens destinadas aos melhores. Intervenções políticas aparentemente comprometidas com a formação intelectual e moral dos menos favorecidos não representam um apelo altruísta de promoção social dos pobres, porém, constituem um instrumento de direcionamento para a geração de mais benefícios para os mais ricos. Em contraste, se houvesse um efetivo favorecimento e esclarecimento dos mais pobres, estes poderiam vislumbrar o prazer proporcionado pelos novos recursos e se sentiriam impelidos por uma crescente insatisfação a um desordenamento social. A distribuição igualitária das riquezas daria lugar a uma acomodação que emperraria o enriquecimento e o progresso da própria sociedade.[12]

Em sua Fábula, Mandeville (2017, p. 47) escreve que somente “[...] os tolos se esforçam para tornar honesta uma grande colmeia.” Uma sociedade que anulasse totalmente os vícios privados obstruiria o seu próprio enriquecimento, bem como a disponibilidade de riquezas para um maior número de pessoas. Utopicamente, se o luxo e o orgulho diminuíssem, por meio de um adestramento moral, o resultado seria o abandono dos maiores empreendimentos vistos até o seu tempo. Mandeville previa que os mares seriam gradativamente abandonados, as indústrias deixariam de ser abastecidas, as artes e ofícios seriam postos de lado. Tal processo representaria para o Estado o seu completo enfraquecimento, com risco para a subsistência daqueles que dele fazem parte. Uma das etapas da ruína do Estado seria a redução do comércio derivada da contenção da gastança engendrada pelo orgulho e pelo luxo.[13] Diante desse cenário, a prescrição do texto é: “O vício é tão necessário ao Estado/Quanto a fome que nos faz comer./A virtude sozinha não pode fazer as nações viverem.” (MANDEVILLE, 2017, p. 47).

Mandeville radicalmente adverte que a frugalidade e a honestidade são virtudes medíocres e malnutridas, que se prestam apenas às pequenas sociedades de homens bons e pacíficos, sempre dispostos à pobreza, em nome da tranquilidade. São inúteis para um país com grandes ambições comerciais. A prosperidade material do Estado deve ser o objetivo central do corpo político. As virtudes morais que impeçam o crescimento econômico de uma nação deverão ser vistas negativamente. Se a frugalidade é estéril, uma virtude “[...] ociosa e sonhadora que não sabe o que fazer com as mãos” (MANDEVILLE, 2017, p. 105), a prodigalidade é inventiva, com mil maneiras para impedir que as pessoas fiquem de braços cruzados. Dumont (1975) admite que houve um pioneirismo, nessa postura intelectual de Mandeville, para o pensamento econômico do futuro capitalismo, uma vez que se pôde admitir uma distinção entre a ética, de um lado, e a economia (tendo o comércio como sua força motriz), de outro.

Em sua ética geral, Comparato (2006) situa Mandeville no alvorecer do utilitarismo e da sua razão de mercado. A sua obra máxima, A Fábula das Abelhas, provocou reações repressivas por parte das autoridades, semelhantes àquelas enfrentadas por O Príncipe, de Nicolau Maquiavel (1469-1527) (KENNEDY, 2004). Sua visão fisiológica do ser humano concebia a sociedade como um organismo, cujo equilíbrio natural independeria da vontade de seus indivíduos. O ser humano é um complexo de paixões e impulsos contraditórios. Todavia, é a contradição que provoca uma compensação recíproca entre os vícios e o bem coletivo. Embora imoralista, Mandeville não gostava de se definir como um defensor dos vícios e, se fosse possível a existência próspera de uma nação sem eles, concordaria se todos fossem abandonados.

Contudo, o intuito de Mandeville era, antes, de mostrar que os vícios são um fato e não podem ser coibidos ou erradicados por leis ou preceitos. Certos vícios são males menores que previnem males maiores. É o caso do luxo dos ricos, que não permitia que milhares de artesãos ficassem sem o seu sustento e evitava que caíssem na miséria e criminalidade. Comparato faz coro aos estudiosos que ressaltam a concepção de Mandeville da natureza humana egoísta. Não existem bons sentimentos, isto é, sentimentos puros e altruístas, mas simples manifestações de egoísmo.

Como se nota, de acordo com Mandeville, os vícios impelem os indivíduos à ação, enquanto a virtude moral não é de todo sincera, mas recorrentemente aparece como uma máscara que dissimula as suas verdadeiras intenções. A prática motivada pelo vício gera a satisfação dos apetites, ao passo que a virtude moral engendra posturas que contrariam as inclinações da natureza humana, com o fim de promover um pretenso benefício. O ser humano, em seu estado natural, isto é, antes das convenções morais estabelecidas pela sociedade, agiria do mesmo modo que os animais não domesticados, ou selvagens, conduzidos por suas inclinações.

Em antecipação a noções semelhantes de Nietzsche, Mandeville aprofunda a sua explanação sobre a moral, com a indicação de que o bem e o mal são uma invenção humana, a qual, por sua vez, não encontra repetição ou respaldo na natureza. A dependência da vida pacífica em coletividade pode indicar deficiência de raciocínio e a falta de apetites nos animais selvagens. Em contrapartida, para certos animais, que, como os seres humanos, possuem apetite e inclinações exacerbados, a única forma de contenção dos seus intentos é o “freio do governo”. Enganosamente, a força desse artifício não faz cessar a extraordinária obstinação e o egoísmo que prevalecem no ser humano.

A vida moral em sociedade é fruto de um convencimento almejado pelos governantes - e operado pelos filósofos, moralistas e religiosos - de que seria mais vantajoso para a maior parte de indivíduos, se aceitasse o refreamento público do seu egoísmo. Por conseguinte, não foram os governantes que criaram, por exemplo, certas distinções morais, como entre bem e mal, mas os religiosos.[14] Porém, tais distinções serviram para a manutenção de status quo benéfico para as elites. Nos termos de Mandeville (2017, p. 56), “[...] é evidente que os primeiros rudimentos da moral encetados por hábeis políticos com vista a tornar os homens úteis, bem como dóceis, uns aos outros, foram tramados para atender à ambição daqueles que poderiam colher o benefício da vasta maioria.” Para tanto, foi necessário forjar uma recompensa imaginária. Os estamentos majoritários examinaram todas as “[...] forças e fragilidades da nossa natureza” e perceberam que “[...] ninguém é tão selvagem a ponto de não se encantar com um elogio, e nem tão baixo para suportar pacientemente o desprezo.” Disso, concluíram“ [...] que a lisonja deve ser o mais poderoso argumento usado com as criaturas humanas.” (MANDEVILLE, 2017, p. 52).

Quando alguém age virtuosamente, quer, concomitantemente, ser chamado de bom. Noutro trecho, é possível ler que “[...] quanto mais de perto examinarmos a natureza humana, mais estaremos convencidos que as virtudes morais são a prole política que a bajulação engendra no orgulho.” (MANDEVILLE, 2017, p. 59). Assim, o governo usou a seu favor a vaidade humana.[15] Já que nenhum sistema moral pode levar a cabo todas as promessas de vantagens derivadas da supressão individual das inclinações e apetites, o governo deve se valer do próprio egoísmo, transfigurado vaidosamente em bons modos, polidez, erudição, civilidade, dentre outras atitudes semelhantes.

A luta pela vitória sobre apetites e inclinações jamais seria algo natural, e é contra o que é natural que o ser humano, para a sua glória, deveria se insurgir. A soma dos esforços resultaria em uma convivência razoável. Todavia, Mandeville defende que a plena negação das inclinações e apetites tornaria a convivência quase inviável. Fingimento e lisonja caminham lado a lado, para que as coisas continuem a funcionar para a sociedade. Dito isso, resta saber que ninguém, por mais capaz ou inteligente que seja, é imune ao encantamento da bajulação. Um retrato fiel do ser humano deverá mostrar que algumas virtudes, como a humildade, se encontram apenas nos discursos moralistas.

Mandeville não propõe uma distinção tão elaborada entre orgulho e vaidade quanto aquela feita por Nietzsche, como se verá mais adiante aqui. Logo, em muitos casos, é melhor pensar nessas duas noções como imbricadas, sendo a segunda um desdobramento da primeira. Em um ponto de sua obra, Mandeville descreve a vaidade como um sinal do orgulho. De maior relevância é apontar o seu aspecto central na formulação dos constructos humanos. O holandês assim define o orgulho: “O orgulho é aquela faculdade natural por meio da qual todo mortal com alguma inteligência superestima e imagina coisas melhores a respeito de si que nenhum juiz imparcial, totalmente a par de suas qualidades e circunstâncias, poderia lhe atribuir.” (MANDEVILLE, 2017, p. 129). Além de ser a qualidade humana mais útil à sociedade, é a mais necessária para enriquecê-la.

A vaidade é uma face do orgulho nem sempre fácil de ser percebida, pois nela a ocultação do próprio orgulho alcança alto grau de maestria. Muitas vezes, é o mais modesto, ou seja, aquele que mais parece desavisado de sua grandeza, quem está prestes a explodir de vaidade. O vaidoso se faz passar por desinteressado, para obter os privilégios que almeja, entre eles, o aumento do seu prazer. Nesse sentido: “Embora chafurde no mar de luxúria e da vaidade e dedique-se inteiramente a provocar e a entregar-se a seus apetites, deseja que o mundo pense que está totalmente livre do orgulho e da sensualidade, dando uma interpretação favorável a seus vícios mais gritantes.” (MANDEVILLE, 2017, p. 156).

Os grandes modelos de humildade da sua sociedade, a Inglaterra dos séculos XVII e XVIII, sabiam quais benefícios materiais e morais a sua postura poderia lhes trazer. Em função disso, abriam mão de seus vícios e diziam abdicar de seus prazeres. Lançando mão desses artifícios, logravam muito mais do que ganhos financeiros para a sua sobrevivência, mas respeito e, consequentemente, bajulação.

Hundert (2005) expõe, em sua preciosa lição sobre o pensamento de Mandeville, que a história da moralidade está ligada ao desenvolvimento dos costumes e, simultaneamente, da moda. Logo, grande parte da humanidade não se governaria pelas regras morais e religiosas que distinguem o certo do errado, porém, pelas leis da moda. A própria moral seria uma espécie de moda, semelhantemente aos hábitos de vestuário. No fim, o que se tem em grande conta num comportamento moral é a busca pela estima, atendendo às expectativas do orgulho e, consequentemente, dando-se lugar à vaidade.

É curioso como o pensador do século XVIII rejeitava a incondicionalidade e a absoluta atemporalidade dos valores morais, noções que se encontrariam, a seu modo, no centro das reflexões de Nietzsche sobre a moral, especialmente naquelas posteriores a Humano, demasiado humano. Hundert ressalta que Mandeville deu voz ao provérbio latino de que “a moda é muito mais poderosa do que qualquer tirania”. Em civilizações como a grega e a romana, costumes moralmente desejados, como a polidez, cresceram ao lado do consumo e do luxo. Esses dois vícios encorajam a manufatura e a circulação de bens. Sociedades opulentas são dirigidas sobretudo pelos excessos, e não pela moderação, bem como são caracterizadas por uma extravagância mascarada como refinamento. Nelas, são a criação, abundância dos desejos e a sua satisfação que constituem o mecanismo propulsor para as mudanças nos interdependentes domínios da moda e da moral. Os gostos e desgostos, algo que direta ou indiretamente implica os desejos individuais, dependem da moda e dos costumes, das orientações e dos exemplos que são adquiridos a partir daqueles que as pessoas veem como superiores ou exemplares para elas.

 

3 UMA DISCUSSÃO SOBRE A VAIDADE EM NIETZSCHE, NO CONJUNTO DE HUMANO, DEMASIADO HUMANO, AURORA E A GAIA CIÊNCIA

De acordo com o aforismo 83 de Humano, demasiado humano, o papel central da vaidade é tornar a visão do ser humano suportável. Nietzsche a chama de pele da alma. O indivíduo pensa que, se as suas paixões e emoções se manifestassem em toda a sua nudez, a sua figura seria socialmente insuportável. Daí a necessidade de que a sua alma seja envolvida pela membrana da vaidade, tal qual a pele envolve os ossos, a carne, as entranhas e os vasos sanguíneos, deixando mais agradável a visão do corpo humano. Logo, a vaidade não deve ser desconsiderada nas ações virtuosas que, em geral, escondem os sentimentos mais baixos que os indivíduos carregam em si. O aforismo 84 complementa esse raciocínio, ao dizer que os “homens não se envergonham de pensar coisas sujas, mas ao imaginar que lhes atribuímos esses pensamentos sujos.” (NIETZSCHE, 1999, p. 2.087).

Outro aforismo que ilumina esse argumento é o 593. Este mostra que a vaidade opera para completar o trabalho mais grosseiro. A vaidade humaniza o indivíduo nas pequenas coisas, para que seja mais sociável, indulgente e suportável. No aforismo 240, intitulado “Desejo de mostrar-se vaidoso”, de Opiniões e sentenças diversas, uma das definições dadas à vaidade é que ela é a máscara de polidez do orgulho. Atitudes como a expressão de pensamentos seletos e elogiosos são mera dissimulação do orgulho. O aforismo 373, de Humano, demasiado humano, explicita que um dos desdobramentos do orgulho é a presunção, e que não há fama pior que a de ser alguém presunçoso. Para evitá-la, aprende-se a mentir por delicadeza. O orgulhoso não quer que o seu comportamento seja percebido como presunçoso.

Porém, Nietzsche considera que pode haver “[...] presunção na cordialidade, na demonstração de respeito, na intimidade benévola, no carinho, no conselho amigo, na confissão de erros, na compaixão por outros.” (NIETZSCHE, 1999, p. 2.260). A presunção é o julgamento que alguém tem de estar acima dos demais, de modo que as opiniões destes não contam, somente a própria. A presunção é um cálculo errado, uma erva daninha, uma superestimação.[16]

No decorrer da obra Humano, demasiado humano, bem como nas subsequentes, o orgulho é sinônimo da sobrevalorização que se dá a si mesmo, quando alguém julga ser o centro do universo. O orgulho da espécie pressupõe, em sua face moral, por exemplo, que tudo gira em torno do destino humano sob a confiança de que a sua história é a essência e o coração das coisas. Em Aurora, atribui-se ao orgulho a crença no grande hiato que haveria entre o ser humano e a natureza. Se, em Opiniões e sentenças diversas, a vaidade é definida como a “máscara de polidez do orgulho”, em Aurora, no aforismo 365, surge um suposto contrassenso, pois apareceria como uma falta de orgulho. A comparação dos textos e seus relativos não sustenta o contrassenso.

No trecho em questão, a vaidade é o temor de se parecer original, o que seria uma falta de orgulho, pressupondo-se que o orgulho seria o regozijo por ser o que se é. Mas é pelo orgulho que se teme e se cria a máscara para que ele mesmo não seja ferido. E manifestar sempre o que subjaz detrás da máscara é frequentemente menos aceitável do que a dissimulação. O aforismo seguinte indica, oportunamente, que é comum a falta de remorso nos criminosos. O que eles temem não é a sua consciência, contudo, a vergonha pública pelo crime descoberto. No lugar do remorso, alguns sentem certa nostalgia pelos delitos praticados, o que é uma mostra do seu orgulho.

O orgulho não tem apenas um sentido pejorativo, em Nietzsche. Higgins e Solomon dão uma grande contribuição em sua definição sobre o orgulho, em Aurora:

Orgulho é frequentemente listado como um dos sete pecados mortais no cristianismo. Mas para Nietzsche, tanto quanto para os gregos, ele significa muito mais respeito próprio. [...] Nietzsche fala sobre o orgulho como um motivo definitivo – por exemplo, em Aurora (no aforismo 32), onde analisa o orgulho como a base da moralidade e pergunta [...] se uma nova compreensão de moralidade (nomeadamente, a sua) requererá mais orgulho. Um novo orgulho. Também considera que o orgulho é um sintoma de saúde e de satisfação para a existência [...]. (HIGGINS; SOLOMON, 2000, p. 193). [17]

 

No aforismo 79 de Humano, demasiado humano, Nietzsche ressalta que o espírito humano seria muito pobre sem a vaidade. Porém, como se lê no aforismo 84, ela é mais do que a busca pelo benefício trazido pela opinião pública. É, antes, a tentativa de criar nos demais indivíduos a mesma imagem elevada que alguém possui de si mesmo, porque o julgamento dos outros é mais confiável do que o próprio, no que diz respeito à autoafirmação, embora seja o que se espera no final. O aforismo 545 endossa essa interpretação: “O vaidoso não quer tanto se distinguir quanto se sentir distinto; por isso não desdenha nenhum meio de iludir e lograr a si mesmo. Não é a opinião dos outros, mas a sua opinião sobre a opinião dos outros que lhe interessa.” (NIETZSCHE, 1999, p. 2.329). E o maior contentamento trazido pela vaidade é inveja que ela pode causar. O vaidoso não quer ter algo para se satisfazer, como posses ou virtudes, mas para que desperte a inveja em seus semelhantes.

Esse entendimento demarca uma diferença entre Nietzsche e Mandeville. É ingênuo pensar que a vaidade tenha como propósito máximo motivar o indivíduo para a busca de riquezas ou favorecimento social. Noutras palavras, as reflexões sobre a vaidade, em Nietzsche, não servem como apologia do fisiologismo pragmático na política e na economia[18]. Apesar disso, o filósofo concorda com a máxima de que demonstrações consonantes a uma moral vigente (as quais possuem como pano de fundo a vaidade) podem resultar em vantagens sociais.

A glória, isto é, a ratificação da crença da imagem elevada que alguém possui de si mesmo, leva-o a ações extremas ligadas à vaidade. Dentre elas estaria o heroísmo e o martírio. O mártir, por exemplo, não teria o prazer propriamente em sua entrega. Ao contrário, a sua ação estaria ligada ao temor quanto à opinião negativa dos demais. O aforismo 141 explica que a vaidade está atrelada à sede de glória. Em nome dela, o herói se dispõe à morte, evitando ser estigmatizado como covarde, ao mesmo tempo que o santo se abstém dos prazeres mundanos, para que o seu nome seja louvado por aqueles que não alcançam a sua suposta força moral. O aforismo 73 diz que enquanto as ações extremas estão atreladas à vaidade, as medíocres são oriundas do costume e as mesquinhas do medo.

A visão suportável propiciada pela vaidade esconde o que é mais terrível e rejeitado aos olhos da moralidade, o egoísmo. Em seu lugar, surge uma máscara: o altruísmo. O altruísmo como virtude dissimula o desejo pela admiração alheia. É notório como Nietzsche tece, assim como Mandeville, considerações a respeito do egoísmo com alta conta na refutação da crença na moralidade altruísta. Em Opiniões e sentenças diversas, no aforismo 38, Nietzsche parece estender a vaidade a todo gênero humano.[19] No trecho, defende que quem nega possuir a vaidade é especialmente aquele que a detém de forma mais brutal. Isto se deve ao fato de a palavra “vaidade” não comportar sentidos muito prezados por quem a detém. Se há vaidade, toda ação virtuosa deixa de ser vista como honesta. Ao negar instintivamente a vaidade, o indivíduo tenta não se desprezar.

Mais do que um empecilho para o reconhecimento da própria baixeza, a vaidade é o principal inimigo do mais forte conhecimento, nomeadamente, aquele da total não liberdade da vontade humana. O indivíduo insiste em se ver como possuidor de um livre-arbítrio, fundamentado em sua racionalidade. Em Humano, demasiado humano, essa crença encontraria um termo nos argumentos do aforismo 106. Ali, o livre-arbítrio é chamado de ilusão. E, no aforismo seguinte, essa ilusão é enfrentada com estas palavras: “A total irresponsabilidade do homem por seus atos e seu ser é a gota mais amarga que o homem do conhecimento tem que engolir, se estava habituado a ver na responsabilidade e no dever a carta de nobreza de sua humanidade.” (NIETZSCHE, 1999, p. 2.104). Se é o livre-arbítrio que está na base da crença de que cada ação é uma escolha entre duas instâncias absolutas, ou seja, entre o bem e o mal, a noção de total irresponsabilidade implica o equívoco de se censurar ou se louvar os atos considerados, respectivamente, imorais e morais.

No aforismo 91, Nietzsche fala de uma moralidade lacrimosa (Moralité larmoyante), a qual se surpreenderia ao ver que a sua suposta fonte de prazer e elogios provenientes das ações nobres e generosas desapareceria, diante da crença na irresponsabilidade total. Já o aforismo 107 explicita que, assim como o indivíduo “[...] ama a boa obra de arte, mas não a elogia, pois ela não pode ser senão ela mesma, tal como ele se coloca diante das plantas, deve se colocar diante dos atos humanos e de seus próprios atos.” (NIETZSCHE, 1999, p. 2.104). No lugar de se elogiar a nobreza moral de um ato, apenas se pode admirar nele algo como a força, a beleza ou a plenitude. Não se decide pelo motivo mais forte, mas é o motivo mais forte que decide acerca do indivíduo. O mais alto (ou novo) conhecimento é a descoberta de que tudo é inocência, assim como a compreensão de que o prazer, o egoísmo e a vaidade foram fundamentais para a geração dos fenômenos morais, tendo como seu rebento mais elevado o sentido para a verdade e justiça no conhecimento.

A relação entre a vaidade e a crença no livre-arbítrio é levada às últimas consequências, no aforismo 12, de O andarilho e sua sombra. Nele, o homem é caracterizado como sendo a vaidade das vaidades, por acreditar ser o único ser livre em um mundo de não-liberdade. Como se nota, a vaidade não tem efeito meramente individual, ou seja, para que haja distinções apenas entre os seres humanos. O gênero humano se regozija, ao se distinguir dos demais animais, considerando-se o superanimal. Se a vaidade é a arqui-inimiga da consciência da total irresponsabilidade em favor da crença no livre-arbítrio, ela é, não obstante, a coisa humana mais vulnerável e, estranhamente, a mais invencível. Por ela, o vaidoso pode ser humilhado ou sujeitado, enquanto, na mesma proporção, pode crescer nele e se tornar gigantesca a própria vaidade, conforme se vê no aforismo 46, de Opiniões e sentenças diversas.

Aurora questiona, no aforismo 128, se a doutrina do livre-arbítrio não teria por pais o orgulho e o sentimento de poder humanos. No aforismo 360, de A Gaia Ciência, Nietzsche dá continuidade e aprofunda a noção da vaidade como negação do conhecimento da causa da ação. O que se lê é: “O objetivo, o fim, não seria frequentemente um pretexto embelezador, um posterior fechar de olhos da vaidade, que não quer admitir que o barco segue a corrente na qual fortuitamente caiu? [...] Necessitamos de uma crítica do conceito de finalidade.” (NIETZSCHE, 1999, p. 3.607).

Como se apontou anteriormente, o aforismo 38, de Opiniões e sentenças diversas, pressupõe que a vaidade seja algo bastante censurado por seus detentores. É o aforismo 60, de O andarilho e sua sombra, que aprofunda o assunto. Há uma crítica ética aos moralistas que se atrevem a enxergar a vaidade no fundo das ações morais. Nietzsche acentua o contrassenso da vaidade, a qual, apesar de ser uma coisa plena e rica de conteúdo, é designada por um termo que expressa o que é verdadeiramente vazio e nulo: vanitas. Para ele, “[...] algo grande é expresso com um diminutivo, e até mesmo com traços de caricatura.” (NIETZSCHE, 1999, p. 2.579). A análise da vaidade de Nietzsche coloca sob suspeita qualquer tese de que ações morais não sejam despretensiosas, como discute o aforismo 40, do texto acima mencionado. Louva-se a conduta moral por sua luta contra todo interesse pessoal e o seu ódio contra a utilidade. Em contraste, Nietzsche indica que a moral nasceu da utilidade, pois esta teve grande empenho em se impor contra as utilidades privadas. Noutras palavras, retomando os argumentos do aforismo 593, de Humano, demasiado humano, se a vaidade não tivesse realizado o seu trabalho de tornar o indivíduo humano sociável, cada pessoa só faria valer violentamente, perante os outros, os seus impulsos.

O entrelaçamento entre utilidade ética (ou mesmo estética) e vaidade está presente novamente no aforismo 181, de O andarilho e sua sombra: “Conhecemos a vaidade apenas em suas formas atenuadas, em suas sublimações e doses mínimas, pois vivemos num estado de sociedade tardio e bastante suavizado: originalmente ela é de grande utilidade, o mais forte meio de conservação.” (NIETZSCHE, 1999, p. 2.629). Segundo se vê, novamente Nietzsche e Mandeville concordam quanto à utilidade da vaidade. No entanto, o que não se pode negligenciar é a atmosfera intelectual em que cada um se encontra. A crítica de Mandeville à moralidade ainda carece do aporte filosófico e científico do qual Nietzsche se serviu, para os seus constructos críticos, especialmente quanto aos subsídios advindos dos debates antropológicos da segunda metade do século XIX (FORNARI, 2006).

Em nome da sua vaidade, o aforismo 457, de Humano, demasiado humano, denuncia que o antigo escravo prefere se colocar na condição de operário, que é pior que a anterior, de acordo com Nietzsche, para fazer valer o que crê ser mais digno para ele. Pensa que o trabalho assalariado seja mais louvável. A única vantagem que o operário tem sobre o escravo é o fato de se declarar livre e, portanto, publicamente superior. Assim, a concepção contemporânea de “dignidade humana” não é exatamente uma exigência por segurança, moradia e demais confortos. A glorificação e as máximas contemporâneas sobre a bênção do trabalho[20] são artifícios de uma moralidade recente, na qual o indivíduo se encontra fragmentado e diluído, pelo chamado interesse geral. A vaidade do trabalhador, que o faz requerer uma espécie de dignidade que o apequena, é útil para o Estado como novo ídolo e degradante para a cultura (aforismo 369, de Aurora). O operário que tudo faz por sua segurança, não trabalha pela cultura. Como está indicado no aforismo 177, de Aurora, o trabalho na Modernidade é a melhor polícia, um empecilho para o desenvolvimento da razão, dos desejos e do gosto pela independência. Seu objetivo é mesquinho, de fácil satisfação. Nada precisa ser maior do que a organização e que a repetição. A escravidão se fez culturalmente necessária, para que o senhor pudesse dedicar tempo a si mesmo, num exercício de crescimento físico e intelectual. A agitação da vida cotidiana impede a tranquilidade do pensamento.

Como decorrência, aparece a falta de paciência, que gera a intolerância (o ódio) a opiniões alheias. Tudo se torna mecanizado. Diferentemente de Mandeville, o qual via na acomodação dos estamentos menos favorecidos uma via para a conservação do status quo e até para o enriquecimento da nação, Nietzsche compreenderia, mais tarde, que a vaidade de certos indivíduos os levaria a dar lugar e assumir uma cultura decadente. Para o alemão, o que conta não é a força ou a riqueza do Estado, das suas instituições e mecanismos, mas a cultura. De acordo com Mandeville, se os vícios fossem abolidos, a colmeia – em sua metáfora social – viria a se tornar economicamente inviável.

Por seu turno, Nietzsche entendia que a economia, movida pelo comércio, poderia ser a promotora daquilo que ele chama, no aforismo 179, de Opiniões e sentenças diversas, de a “colmeia de mal-estar” europeia, caracterizada pela agitação desenfreada dos trabalhadores e a consequente falta de tempo, para que cada um dedicasse esforços para a própria formação, para a contemplação e para o fortalecimento da cultura (TOLEDO, 2017). A preocupação com a cultura por excelência, ultrapassando o problema da economia e da moral, também faz com que as críticas de Nietzsche em relação à vaidade e o seu papel na moralidade tenham uma abrangência maior do que as reflexões sobre questões semelhantes, em Mandeville.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não se pode negar que Mandeville é um dos precursores de uma guinada para o pensamento da moral, mesmo para quem não admite que o conjunto das suas ideias não seja totalmente inovador. A sua perspectiva fria e descomprometida com os apelos moralistas de sua época permitiu a ele uma crítica contundente e radical à moralidade, ainda que isso não fosse sua principal preocupação. Nietzsche segue, apesar da falta de provas cabais de que tivesse lido direta e abundantemente as reflexões de seu antecessor, na esteira desse tipo de postura mais interessada com a compreensão dos fenômenos morais e menos (ou em nada) com a defesa deles. Nietzsche e Mandeville trabalharam para a desconstrução de concepções moralistas como aquela da moral inata, confiante de que a natureza humana procura o cumprimento desinteressado das virtudes morais. Também se alinharam na compreensão de que os sistemas morais estão em constante mutação, desenvolvendo e depondo valores.

Ainda que este artigo não tenha comprovado que Nietzsche tivesse lido diretamente os textos de Mandeville, prática que aqui se denominou contato direto, é notório o fato de que ambos possuem uma reflexão valiosa, no que diz respeito ao papel da vaidade e do orgulho na formulação e manutenção da moral e dos atos morais. Além disso, a relação entre vaidade e moralidade é fator considerável para a dinâmica social. Se Mandeville vê nos vícios privados uma forma de continuidade da hierarquização, Nietzsche enxerga na vaidade uma transformação, como a ascensão de uma nova classe social: a dos operários. Se, para Mandeville, o que guia as suas reflexões é um foco político e econômico, o que se destacou do pensamento de Nietzsche prioriza a cultura, com sérias ressalvas quanto ao aparecimento do operariado e de uma instrução tecnicista, para atender exclusivamente a demandas do mercado e ao Estado – mas isso deve ser objeto de estudos à parte.

O discurso de Nietzsche quanto à moral assume um tom mais sofisticado, pela conclusão da nulidade da doutrina do livre-arbítrio e pela consideração de que vaidade da espécie é a mais alta inimiga deste conhecimento. A despeito de Mandeville enxergar na natureza humana a justificativa para o egoísmo e, consequentemente, para o orgulho, mesmo nas ações consideradas virtuosas, não vislumbrou uma tese como a da irresponsabilidade total, capaz de desconstruir radicalmente pretensões moralistas que lançam mão de distinções sobre as ações como sendo boas ou más. A contribuição dos dois pensadores estudados nesta pesquisa abre veredas para se analisar a existência de uma moralidade estética – ou de uma estética da moralidade –, a partir de um discurso sobre a relação entre a vaidade e a moral. Isso é algo que pode muito bem ser alvo de reflexões e críticas de outros estudiosos.

 

A QUESTION ABOUT VANITY: RELATIONSHIP BETWEEN NIETZSCHE AND MANDEVILLE

 

Abstract: The paper discusses points of some congruence between the criticism of morality in Nietzsche and Mandeville, focusing primarily on vanity. This research considers that Nietzsche and Mandeville, keeping the proper peculiarities of each one, were immoralists in their respective epochs. Through research in published works and in posthumous fragments, it is known that Nietzsche knew the thought of Mandeville. However, was not possible ascertain the extent of the German philosopher's readings on his predecessor. The searched book of Mandeville was The Fable of Bees: Private Vices, Public Benefits. Due to the extension of Nietzsche's work, the philosophical discussion about this philosopher focused the two volumes of Human, All Too Human, Daybreak and The Gay Science. Mandeville understood that the existence and not the repeal of vices was the driving force behind the enrichment of society. One of the traits of human nature is vanity. What underlies virtuous deeds is not humility, but pride and vanity. Moral virtue would be a way to gain individual benefits. According Nietzsche, vanity is what makes the view of the human being bearable, disguising passions and feelings that are morally shameful. Vanity fulfills the role of humanizing the individual to be more sociable and fulfills the demands of an established morality.

 

Keywords: Morality, Vanity, Nietzsche, Mandeville

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 30/7/2018

Aceito: 08/8/2020


 

 



[1] Doutor em Filosofia. Professor Adjunto da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), São João del-Rei, MG – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6346-1563. E-mail: ricardotoledo@ufsj.edu.br.

[2] Os catálogos utilizados são: FÖRSTER-NIETZSCHE, Elisabeth. Friedrich Nietzsches Bibliothek. In: BERTHOLD, Arthur (org.). Bücher und Wege zu Büchern. Berlin-Stuttgart: W. Spemann, 1900. p. 427-456. Publicado novamente em: Deutscher Bibliophilen-Kalender für das Jahr 1913. Wien 1912. p. 103-123. CAMPIONE, Giuliano; D’IORIO, Paolo; FORNARI, Maria Cristina; ORSUCCI, Andrea. Nietzsches persönliche Bibliothek. Berlin, New York: Walter de Gruyter, 2003.

[3] Es war ein Verdienst des Helvétius, eine Sache der Bravheit, sich der Lust (intérêt) anzunehmen (so Socrates mit dem Nutzen): ganz wie Epicur (im Gegensatz zu der Lust am Paradoxen, wie bei Mandeville): und es war vielleicht plaisir zu sagen, wie Stendhal wünschte, ihm doch schon zu verletzend (für den moralischen Geschmack, aus dem er selber erwuchs). Foi um mérito de Helvetius, uma questão de bravura, atentar-se para o prazer (intérêt) (como Sócrates quanto ao útil): assim como Epicuro (em oposição ao paradoxo do prazer, como em Mandeville): e talvez falar do plaisir, como quis Stendhal, fosse para ele, contudo, bastante ofensivo (para o gosto moral a partir de onde ele mesmo se desenvolveu). (Nachlass/FP 1883 7[19], KSA 10.243). As versões das obras publicadas não terão o texto original inserido neste trabalho, levando-se em consideração a validade da tradução realizada por Paulo César Souza para a editora Companhia das Letras.

[4] Stafford (1997) comenta que o posicionamento intelectual de Mandeville causou um grande desconforto em seus contemporâneos. Uma série de livros, ensaios, cartas e até sermões foram publicados, com o objetivo de refutar as suas ideias, como se contivessem uma opinião monstruosa. Não obstante, Mandeville não teria recebido a mesma atenção de boa parte dos pensadores oitocentistas. Para se compreender a dimensão da recepção mais imediata dos escritos de Mandeville, recomenda-se a leitura da obra de Stafford aqui referenciada. Brito enfatiza: “O escândalo não está em Mandeville ter escrito que todos procuram o que lhes apetece, mas sim que a boa sociedade é constituída pela união dessas buscas egoístas.” (BRITO, 2006, p. 11).

[5] As citações referentes ao breviário (KSB) e à edição crítica das obras de Nietzsche (KSA) terão os volumes indicados pelo primeiro algarismo (antecedente ao ponto) da designação da página das citações diretas - ou das mais pontuais - na referenciação bibliográfica.

[6] De acordo com os catálogos de possíveis leituras de Nietzsche, o filósofo teria em mão a obra há pouco mencionada de Kant já na década de 1860. Quem também afirma que esse contato intelectual direto ocorreu entre os dois pensadores é Losurdo: “No Kant da Crítica do Juízo Nietzsche pôde ler a discussão crítica [...]”. (LOSURDO, 2009, p. 398).

[7] As leituras de Nietzsche em Mill datam de 1880, mas suas discussões sobre o filósofo inglês são anteriores e estabelecidas em suas digressões filosóficas com Paul Reé (1849-1901), como se comprova em uma carta deste, de 10 de outubro de 1877, para seu amigo (NIETZSCHE et al. 2011, p. 29).

[8] O texto original é: “Und wenn man mit Recht vom Faulen sagt, er tödte die Zeit, so muss man von einer Periode, welche ihr Heil auf die öffentlichen Meinungen, das heisst auf die privaten Faulheiten setzt, ernstlich besorgen, dass eine solche Zeit wirklich einmal getödtet wird: ich meine, dass sie aus der Geschichte der wahrhaften Befreiung des Lebens gestrichen wird.”

[9] Sobre menções de Nietzsche a Lecky: KSA 9, FP 1881 11[85], p. 473 e KSA 10, FP 1883 7[8], p. 240. Sobre correlações entre os escritos de Lecky e as obras de Nietzsche: nota crítica em KSA 14, p. 208.

[10] Transcreve-se aqui a mesma expressão utilizada por Losurdo: “sociedade burguesa”.

[11] No aforismo 206 de Aurora, os operários das fábricas são chamados de escravos, peças de uma máquina que encontram seu valor social em sua utilidade. No salário, troca-se autonomia pela subserviência social, o pessoal pelo impessoal. Na sociedade da máquina, movida por suas engrenagens humanas, a vergonha da escravidão antiga é ressignificada, passando a ser chamada de virtude (TOLEDO, 2015).

[12] Brito (2014) expõe que Mandeville ainda não possuía uma noção de progresso gradual e ininterrupto, porque essa expectativa só se desenvolveria no seio da sociedade que viria a gozar dos primeiros efeitos da industrialização. Embora soubesse que a situação da sociedade na qual vivia fosse melhor do que nas épocas anteriores, não garantia que tudo não pudesse ruir repentinamente. A ênfase da sua visão econômica estava no consumo, e não na produção. Logo, o seu pensamento não poderia ser considerado uma apologética capitalista. Era uma ponderação sobre o universo mercantilista e, portanto, voltado para o comércio.

[13] Hundert (2005) menciona a crítica de Mandeville às suspeitosas tentativas filantrópicas de se disseminar uma moralidade de supressão aos vícios, nas camadas menos favorecidas da sociedade. Dentre os malefícios, isso poderia encorajar o enfraquecimento das hierarquias estabelecidas do poder e, consequentemente, de toda sociedade. Em certo sentido, a pobreza e a ignorância dos trabalhadores eram males menores, os quais garantiam o luxo para os mais ricos. O luxo, por seu turno, fazia a roda do comércio girar, proporcionando a cada um uma prosperidade relativa e, ao Estado, a prosperidade geral. Os proponentes das escolas para a reforma de maneiras e esclarecimento dos pobres não seriam nada mais do que hipócritas presunçosos. O comentador relata que os críticos de Mandeville se detinham em pontos como este, a fim de considerá-lo um defensor da ignorância e da pobreza dos trabalhadores, em benefício das elites sociais. Durante boa parte do mercantilismo, era convencional crer que a demanda de consumo das massas era economicamente insignificante. Relevante era o trabalho delas para a manutenção do consumo dos mais ricos. Por conseguinte, a dependência dos pobres de favores das elites era um instrumento de disciplina social. Mas essa mentalidade estava em processo de mudança, principalmente numa Inglaterra em industrialização. Por sua doutrina economista, Mandeville não poderia ser classificado como um pensador liberalista. Em contraste, foi duramente criticado por importantes figuras do liberalismo, como Adam Smith (1723-1790). Sobre algumas críticas de Smith a Mandeville, ver Smith (1999, p. 285-388).

[14] Gregos e romanos seguiram em via oposta ao ascetismo moralista que se estabeleceu na Europa, quando a sua religião foi eclipsada. No lugar de só apresentar a virtude de seus deuses, como se não pudessem ter paixões, apetites ou inclinações, a sua religião parecia “[...] antes forjada para justificar os seus apetites e encorajar seus vícios.” (MANDEVILLE, 2017, p. 58). Foi essa atitude que permitiu a esses dois povos a glória da qual gozaram na economia, no governo e na guerra. As supostas virtudes morais serviam, sobretudo, para que a honra de seus heróis e líderes fosse exaltada nos inúmeros monumentos. Daí a pergunta de Mandeville: “[...] não eram vazios, ridículos e absurdos os sentimentos que nutriam a respeito dos assuntos sagrados?” (MANDEVILLE, 2017, p. 58).

[15] Brito (2006) salienta que o principal motivo filosófico do escândalo em relação a Mandeville não é novidade de sua obra A Fábula das Abelhas. Apareceu pela primeira vez em um poema publicado anonimamente, em 1705, com o título The grumbling give, or knaves turned honest (A colmeia murmurante, ou canalhas tornados honestos). No pequeno texto, Mandeville já propunha que não eram as virtudes, como a humildade e a moderação, que estavam na base do desenvolvimento econômico e social, mas os vícios, como o orgulho, a vaidade, a luxúria, a inveja e a avareza.

[16] Outro aforismo que reforça esses argumentos é o 316, de Humano, demasiado humano. O caráter interpretativo e perspectivista do pensamento de Nietzsche justifica a sua crítica à presunção, especialmente quanto à moralidade e ao conhecimento. Quem pode ajudar nessa compreensão é Tongeren (2012), em seu livro A moral da crítica de Nietzsche à moral: estudo sobre Para além de bem e mal. Para o estudioso, uma das maneiras com que o filósofo do século XIX expressou o caráter hipotético, interpretativo e perspectivista do seu discurso é no uso de fórmulas retóricas, com perguntas no lugar de afirmações, com termos como “se”, “supondo que” e “talvez”. Embora a análise de Tongeren se volte para a obra Para além do bem e do mal, não é descabida para o conjunto de Humano, demasiado humano e Aurora. Sobre a terminologia utilizada aqui, especialmente a respeito do perspectivismo de Nietzsche, recomenda-se a leitura de determinados textos, como: GERHARDT, V. Die Perspektive des Perspektivismus. In: Nietzsche-Studien, n. 18, p. 260-281, 1989.

[17] Sobre o assunto, ver, também, SOLOMON (2003).

[18] O que em nada se refere ao que, por exemplo, Machado chama em Nietzsche de fisiologia da potência. Assim escreve Machado: “Que sentido tem essa valorização da animalidade, dos sentidos ou do corpo, realizada pela fisiologia da potência em detrimento da consciência, senão a afirmação de que a perspectiva da vida é fundamentalmente a perspectiva dos instintos, isto é, de um sistema hierarquizado de forças em relação? Por conseguinte, a consciência não pode ser erigida em mestre dos instintos: ela nem é mais fundamental do que eles, nem é uma força capaz de controlá-los.” (MACHADO, 1999, p. 93).

[19] Sobre isso, ver também o aforismo 583, de Humano, demasiado humano.

[20] Ver também o aforismo 359, de A Gaia Ciência. Nele, Nietzsche denuncia as virtudes morais (como a bênção do trabalho e o ascetismo) como rebentos da vaidade de indivíduos que se voltam contra o espírito e a cultura. O que requerem é uma aparência de superioridade: “[...] desses natos inimigos do espírito surge ocasionalmente o raro espécime de humanidade que o povo reverencia como santo e sábio; desses homens procedem os monstros da moral que fazem barulho, que fazem história.” (NIETZSCHE, 1999, p. 3.606).