TEATRO E PENSAMENTO[1]

Mário Fernando BOLOGNESI[2]

!  RESUMO: Platão tem uma visão negativa da arte e da tragédia. A

“irracionalidade” da prática artística está na base dessa negação. Sua visão é contrária ao perspectivismo humanista de Eurípedes e dos sofistas. Na filosofia renascentista, o sujeito observador (temporal e racional) pressupõe o múltiplo e o infinito. O perspectivismo está na base dessa orientação e Shakespeare é a melhor expressão artística desse pressuposto defendido na filosofia por Giordano Bruno.

!  PALAVRAS-CHAVE: Perspectivismo; tragédia; subjetividade; humanismo; Platão; Eurípedes; Giordano Bruno; Shakespeare.

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A primeira reflexão filosófica grega acerca da matéria artística traz o elemento irracional como base de uma poética, visível em Platão e suas observações sobre a arte, particularmente aquelas expressas no Íon (Moreira, 1982). Em relação à beleza que se atribui às coisas e às obras, Platão admite que este valor é derivado de uma Beleza Universal (uma idéia, uma essência). As coisas são belas quando participam da transcendência desta beleza essencial. Ou seja, elas terminam sendo um aspecto do Ser, que se relaciona com o inteligível, por meio dos sentidos. A noção de beleza, para Platão, assume, primeiro, conotação estética, a partir das condições sensíveis e formais; depois, moral, quando se refere ao estado da alma e seu desejo de buscar o Bem; por fim, espiritual ou intelectual, quando almeja o mundo seguro do inteligível, das formas imutáveis.

Apenas excepcionalmente a arte se relaciona com a verdadeira beleza, pois somente a inteligência pura pode contemplá-la. Dentre as artes, Platão (Moreira, 1982) estabelece uma espécie de hierarquia, tendo a poesia maior afinidade com a inteligência. Isso porque os poetas não são artífices, não trabalham com as mãos. Pintura e escultura, artes essencialmente manuais e materiais, estão presas à imitação das aparências das coisas. Criam, portanto, simulacros, imitação de imitações, sem qualquer senso de utilidade.

Na visão platônica, os poetas são seres excepcionais, transmissores de conhecimentos extraordinários, inacessíveis à maioria. Eles se assemelham aos adivinhos: deixam-se possuir pelas divindades, vindo a ser instrumentos de suas vontades. Portanto, falam sem saber o que dizem. Os poetas são possuidores de uma inteligência que não é nem a discursiva, nem a intuitiva. O entusiasmo que deles se apodera não provém do mundo humano: é oriundo dos deuses. Platão não concebia a arte como um fazer, como fará Aristóteles, mas como inspiração.[3]

Platão, no Íon, aproxima o poeta ao sacerdote e a poesia à categoria religiosa do delírio. Os belos poemas não são efeitos da arte como atividade humana, mas sim da ação de deuses que tomam conta e habitam os poetas. O delírio, quando vem dos deuses, é melhor que o simples bom senso dos homens. No diálogo referido, pode-se ler:

De fato, todos os poetas épicos, os bons, não é por uma arte, mas por serem inspirados e possuídos que dizem todos esses belos poemas, e os líricos, os bons da mesma forma: assim como os coribantes não é em plena consciência de si mesmos que dançam, também os poetas líricos não é em plena consciência que fazem essas belas canções, mas sim quando se lançam na harmonia e no ritmo e entram em delírio, enquanto estão possuídos: como as bacantes bebem dos rios o mel e o leite quando possuídas e não estando em consciência de si mesmas, também a alma dos poetas líricos assim o faz, como eles mesmo dizem. (533 e -534 a) Por isso o deus, ao retirar-lhes a razão, usa-os para seu serviço, uns como reveladores de oráculo, outros como adivinhos sagrados, para que nós ouvintes, vejamos que não são eles que dizem coisas tão preciosas, pois a razão não lhes assiste, mas que o próprio deus é que, falando, através deles se faz ouvir por nós. (534 c - d)[4]

O poeta é receptor e veiculador de mensagens e verdades divinas. Por isso, a partir do entusiasmo, pode despertar nos homens a beleza universal. Se não o faz na plenitude do conhecimento teórico e intelectual, ao menos instiga a lembrança de uma beleza eterna, porque a poesia imita a beleza superior, por obra e intervenção dos deuses, mas não a conhece. As outras artes não se prestam a esse papel: elas não escapam da servidão da matéria e limitam-se a imitar as aparências sensíveis, cópias do mundo ideal. A imitação do mundo sensível só pode gerar simulacros: sombras de um reflexo.

Este tom ligeiramente anuançado do Íon se desfaz completamente quando a poesia é tratada na República e nas Leis. A poesia, tal como aparece para os gregos, nas formas da tragédia, comédia e epopéia, é criticada porque não deixa de ser uma arte imitativa. A imitação poética pode ser ruim por duas razões: primeiro, ela pode reproduzir de modo imperfeito os excelentes modelos; segundo, porque ela própria pode se propor maus modelos. Na primeira das categorias, inscrevem-se a epopéia e a tragédia; a comédia aproxima-se da segunda. O problema central é que esses gêneros poéticos imitam homens e não deuses. Além disso, a representação cênica apresenta os heróis em momentos de sofrimento, que se estende à platéia, levando ao abrandamento e à sensibilização da alma (Bayer, 1965, p.40).

Por meio das personagens, uma psicologia humana é representada. Mas não se poderia imitar a divindade? Desta, como essência pura, nenhuma imagem pode ser dada. Assim, Platão recomenda a criação e a divulgação de hinos em glória aos deuses e aos heróis; em suma, atividades que propagam os mitos, pois estes contêm a mais nobre transcendência divina. E isso seria tarefa exclusiva dos mais velhos.5

A tragédia é banida porque representa deuses e heróis, a partir de um prisma humano. O ponto de discórdia é justamente o “antropomorfismo” que participa da imitação épica e trágica, que evidencia uma psicologia humana. Platão, ao contrário, exige que se entregue aos deuses e heróis míticos a plenitude das virtudes humanas (Goldschmidt, 1970, p.106).

No segundo livro da República, Platão conclui que as narrativas épicas não são boas (não devem ser) para a educação das crianças. Há, pode-se dizer, uma “razão de Estado” em Platão.[5] A verdade, a moral e o útil devem imperar sobre a narrativa épica. Não há, em Platão, espaço para o prazer artístico.

Diante da comédia, as restrições são ainda maiores. Ela representa homens e almas inferiores; sua imitação é menos bela e menos verdadeira, se comparada à tragédia e à epopéia.[6]

Para Platão, poesia e retórica se equivalem. Ambas operam com falsos valores. Elas dominam a técnica particular e não o saber universal. Ao contrário do conhecimento autêntico, elas não geram ações. Nisso consiste, precisamente, a “razão de Estado” que fundamenta a reprovação da poesia. Os poetas não estão preocupados com o pensamento. Neles imperam as paixões. A ação trágica deve provir de um valor ético superior, assim como a ação dos homens provém das formas imutáveis, pela razão que a traduz, que a interpreta. Nesse itinerário, os homens e suas almas são apenas intermediários. Mas, antes de tudo, a tragédia é hostilizada porque ela está no terreno oposto ao da verdade.[7]

Por mais severo que tenha sido com as artes, e apesar de considerálas simples caricaturas das idéias, Platão chega a reconhecer que a contemplação artística exerce sobre a alma uma influência benéfica. Nesse aspecto, a música ocupa um lugar privilegiado, na medida em que, pela alma, inspira o gosto pela virtude. (Leis, II 673 a; República, III, 401 e - 402 a). Mas, apesar dessa ponderação, a atitude geral é de reprovação.

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A razão da severidade de Platão diz respeito diretamente à transformação pela qual passavam as artes, na Grécia, em seu tempo. Ele reprova os novos valores e elogia a arte tradicional do Egito, de Creta e de Esparta. A arte ancestral, depois de séculos, teria como qualidades a constância e a ausência de modificações. Ele evoca a nobreza e a grandeza dos frontões do Olimpo, a majestosidade das esculturas do Partenon e a exaltação de deuses e heróis em suas lutas. Na Política (299 d-e), defende que os artistas devem se conformar às regras codificadas pela tradição. Avesso às transformações, Platão volta-se para o passado e, a partir dele, em nome da ética e da política (do ideal de sua república) ordena todas as atividades humanas, inclusive a artística. Deuses e heróis míticos são conclamados para a formação do povo e da cidade.[8]

Uma rápida análise da história das artes plásticas de Atenas enfatiza a conquista de um valor que seria combatido pelo autor das Leis. Se no século VI a. C. a escultura grega encontrava-se ainda presa às regras egípcias, no século V, com a geração de Myron, uma certa busca pessoal e particular levou a uma representação naturalista, próxima de uma certa “psicologização”.

A procura do natural, alvo predileto da pintura e da escultura gregas do período, evidencia o vínculo da arte com o ideal de uma reprodução da natureza, dos homens e das coisas. Isso vai se acirrar ainda mais com as gerações futuras. Até o século V a. C., a arte ateniense ainda se mantinha ligada a fins estritamente religiosos. Cabe lembrar que Fídias foi o “decorador” do Partenon e suas esculturas relembravam os deuses e os feitos dos heróis míticos. No século seguinte, a arte de Atenas perde de vez esse vínculo com a vida religiosa, alcançando, pode-se dizer, um estatuto próprio, voltado exclusivamente ao culto da beleza, evidenciando um lado mercantil, com colecionadores e compradores de obras[9](Gombrich, 1979, p.66). No fim do século IV a. C., em plena época de Alexandre e do Império Macedônio, as artes plásticas conseguiram captar o caráter particular da fisionomia do retratado. Os “modelos” não são mais deuses e heróis, mas sim homens de expressão, governantes, vencedores dos concursos esportivos etc. O “retrato”, por meio dos bustos, tomou conta do fazer artístico, a exemplo de Lisipo e o seu Alexandre. Nele, a representação do particular ganhou expressão e relevância. Com isso, ao colocar sinais de rugas na testa e as sobrancelhas levantadas, o autor encontrou os meios adequados para a expressividade do rosto, além de, no caso em questão, encontrar uma expressão vigorosa da personagem e do seu poder. Contudo, o exemplar de maior impacto do período helenístico é, indubitavelmente, o Laocoonte. Com ele sela-se de vez a perda do vínculo da arte com a magia e a religião. A dramaticidade e o conteúdo explicitamente humano ganham relevância. As artes plásticas, seus temas e sua prática passaram a ser exclusivamente laicos, buscando-se a perfeição por meio das minúcias.

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A repulsa platônica à arte do seu tempo vem no bojo, de um lado, da mutabilidade que o perspectivismo defendido pelos sofistas pressupõe e, de outro, da rejeição ao esteticismo e ao psicologismo, explorados pela tragédia e pelas artes plásticas.

A noção de perspectivismo está ligada à de sujeito, sendo impossível admiti-la no interior de uma ordem rígida e hierárquica. A ordenação excessiva dos hábitos, costumes, do gosto etc. é incompatível com a disparidade espontânea do múltiplo artístico.

No caso grego do fim do século V a. C., os elementos naturalistas, individualistas e emocionais ganham importância e passam a ocupar espaços na arte, referendados certamente pela “mundanidade” dos sofistas, pela cultura “burguesa” do pensar lógico, da educação e da fluência do discurso. O conceito de relatividade e a noção de condicionamento histórico prevalecem às verdades anteriores a toda experiência humana (Guthrie, 1995, p.155-65). No campo das formas artísticas, assiste-se ao abandono do geometrismo e da frontalidade; passa-se a explorar o movimento expressivo, individual e dramático. No teatro, é sensível a evolução em busca de uma “humanização”, comparando-se Ésquilo, Sófocles e Eurípedes. Neste último, a problematização dos mitos e dos deuses e a colocação de argumentos nitidamente humanos, em oposição às razões dos deuses, é uma constante.

Eurípedes é o autêntico sofista que adota o teatro como meio de expressão: é o porta-voz inequívoco desse momento de anúncio do perspectivismo, da relatividade dos argumentos, do condicionamento e determinação do discurso. Para ele, os mitos são apenas pretextos. Seus heróis, ao contrário de Ésquilo, não são de antemão culpados, por força do destino e da maldição. Eles trazem a subjetividade como elemento questionador da vontade e verdade coletivas e míticas e suas personagens, com base em valores humanos, pessoais e psicológicos, expressam e assumem um caráter patológico. O desejo do eu confronta-se com a vontade dos deuses. O homem, a partir de valores individuais, problematiza a verdade imutável dos deuses e da pátria. Este questionamento, em Eurípedes, dá-se a partir de personagens femininas. Ifigênia talvez seja a melhor expressão de uma subjetividade sufocada pela necessidade da pátria. O individual e o coletivo estão em estado de tensão, em pleno confronto, sem solução à vista.[10]

Ifigênia em Áulide apresenta pontos de vista conflitantes, que questionam a vontade coletiva da pátria e dos guerreiros. A obra trata do sofrimento humano diante de uma injustiça, que é praticada em nome do bem comum e do nacionalismo patriótico.

Composta durante a guerra do Peloponeso, a tragédia de Ifigênia discute o sacrifício dos homens para a salvação da cidade. Como é típico de Eurípides, as personagens vacilam diante de ideais e argumentos distintos. Duvidam e se fragilizam diante da vontade coletiva, pois esta traz o aniquilamento dos íntimos desejos humanos. Por meio do psicologismo e da fragilidade das personagens, Eurípedes questiona a política, a justiça e o poder. A fraqueza dos heróis permite o vacilar em torno de situações antagônicas. Nessa dúvida, transparecem as paixões e as debilidades dos homens, bem como a crueldade das leis divinas e das decisões políticas. A pólis, os deuses e os homens são as grandes personagens euripidianas, constantemente questionadas.

Em Ifigênia em Áulide, Agamêmnon é um chefe que se deixa balançar por opiniões contrárias. Sensibiliza-se pelos argumentos dos exércitos e das necessidades da pátria, como também pelas dores de Ifigênia. Fraqueja diante das razões de sua filha. Esta, no mais viçoso desejo de viver, prefere uma vida sem glória a uma morte heróica e triunfal. A miserabilidade da existência é preferível à morte com glórias. A razão humana contrapõe-se à mítico-divina. Agamêmnon responde com as necessidades da pátria e com os interesses políticos dos gregos, superiores aos desejos individuais. O político, o divino e o humano são as instâncias cristalizadoras da ação trágica de Eurípedes, conflitantes e ao mesmo tempo interdependentes.[11]

Mas Eurípedes marca o fim da tragédia ateniense, o que coincide com o fim da experiência da pólis. O individualismo e o perspectivismo, no teatro de índole dramática, deveria esperar até o século XVI para receber de Shakespeare a revalorização merecida.[12]

4

Introduzido na filosofia pelos sofistas, a compreensão do perspectivismo, de um ponto de vista histórico, reporta-se ao Renascimento e à tônica temporal e subjetiva prevalecente nas artes, na cultura, na filosofia e na ciência. A temporalidade, lançada pelos nominalistas, é contrária ao realismo conceptual, ou das universálias, da Idade Média. A intemporalidade predominante na época medieval prevê como única realidade, origem e causa das coisas, o ser absoluto e uno, do qual provém a multiplicidade do mundo sensível. Com o nominalismo, em fins da Idade Média, prevalece uma certa consciência particular do homem, consciência esta essencialmente temporal. Os processos de abstração, que levam aos conceitos mais amplos, seriam nomes (daí nominalismo), recursos intelectivos, particulares, que almejam a realidade múltipla. No período, há um privilegiar dos fenômenos sensíveis e temporais, contrariamente ao essencialismo medieval, hierárquico e estático.

Ao valorizar o mundo temporal dos fenômenos, o pensamento abrese à observação, e, com o apoio da matemática, provoca uma revisão do conhecimento cosmológico e uma revolução científica. Há, entretanto, uma razão reguladora do curso das coisas. A matemática fundamenta esta razão. Com base nela, a ação do pensamento se apodera de um arsenal metodológico e teórico racionalista. Esta razão estende seus domínios às mais diversas instâncias: chega a admitir que, da generalidade das leis, articuladas de forma racional, derivaria o funcionamento do mundo. A matemática, nos dizeres de Galileu, é o alfabeto que propicia a leitura do universo.

Essa racionalidade, contudo, apóia-se na observação dos fenômenos. A experiência passa a ser a mediadora entre a mente humana e a razão intrínseca à natureza. O naturalismo do renascimento procura conciliar a especulação metafísica e a nova exigência da ciência natural, que valoriza o mundo sensível. O heliocentrismo, lançado como hipótese por Copérnico e precisado por Galileu e Kepler, é a verdadeira revolução científica e o referencial supremo da nova atitude epistemológica. Giordano Bruno (1988), por seu turno, é o construtor da metafísica do novo pensar, da nova ciência.

O ato de observar, contudo, prevê uma consciência e um olhar ordenadores do múltiplo. O sujeito, como categoria de pensamento, a partir de então, inicia os seus primeiros passos, essenciais a toda filosofia futura. A consciência humana (e não mais a divina) admite a temporalidade do mundo sensível e traz consigo a relativização do conhecimento. Neste complexo, o perspectivismo tem lugar assegurado. Não há mais um ser central, do qual emanam os valores, as ações, o saber e também a organização social. Abolidas as esferas das estrelas fixas, o alargamento do universo leva à filosofia do infinito. O mundo não tem limites, nem ao menos referência absoluta: cada ponto é, ao mesmo tempo, centro e extremo da circunferência. Os dois principais caracteres da filosofia de Giordano Bruno (1988) são a infinidade e a relatividade. Toda consciência (e toda coisa) é um centro. O relativismo e o perspectivismo são evidentes. O universo é múltiplo. Sua organização depende do lugar de referência a partir do qual se estabelece a observação e se coloca o olhar do conhecimento. O conhecer tem, portanto, um referencial: o homem, sua consciência e o olhar observador.

Seria enganoso admitir o perspectivismo renascentista a partir do subjetivismo, da individualidade. O antropocentrismo da renascença tem como referência o entendimento humano universal, que veio a se firmar na certeza do ego cartesiano. A dúvida metódica funda-se na segurança e na certeza do eu. Ela desfaz o universo, as coisas e os homens, para depois reconstruí-los, a partir do ego. Falar de um sujeito, na tradição racionalista, é referir-se à razão e à sua universalidade. Não é uma razão, dentre outras, mas a razão. Se o pensamento da renascença aponta para o perspectivismo, ele não demonstra a consciência de sua radicalidade. O período em questão desvia o foco de raciocínio da essência divina intemporal para a consciência humana temporal.

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No complexo da arte renascentista, o teatro de Shakespeare deixa transparecer, em forma de síntese, a temporalidade predominante no século XVI. E mais: ele já aponta para a psicologia, desviando o sentido do trágico, do mítico para o humano, para o subjetivo.

Ao essencialismo medieval corresponde o palco simultâneo. Nele, não há mutabilidade temporal. A vida é representada em sua totalidade e está exposta de modo direto e hierárquico: os vários lugares onde se desenrolam as ações correspondem à paixão de Cristo. O tempo é simultâneo e eterno; origem e fim coincidem e estão dados de antemão. O mesmo se passa com as personagens: não têm profundidade e nuanças. Como seres empíricos, são expressões de uma idéia anterior e cada um ocupa o seu lugar, tal como predeterminado pelo Criador de todas as coisas.

No palco renascentista, a idéia da relativização espacial corresponde à individuação da personagem e da cena. Não há mais aquela exposição hierárquica: qualquer lugar pode ser considerado um ponto central. A perspectiva toma conta da cena.

O recurso artístico que revolucionou a arte da pintura – a perspectiva – transfere-se para a arte do palco. Ela significa a possibilidade de reconstruir o mundo aparente a partir de uma consciência e um olhar humanos. A vida e a natureza são conquistadas e reconstituídas no ilusionismo da tridimensionalidade, a partir dessa consciência. Sem dúvida, essa consciência tem um tom de idealidade, na medida em que projeta no centro da face um olhar único e idealizado, porta ideal de contato da consciência interna com o mundo exterior. Porém, diferentemente do essencialismo anterior, esse antropocentrismo é assumido a partir da ótica do sujeito. É a consciência humana que assume o lugar central, até então ocupado pelo “logos divino”.

No entanto, apesar do acentuado individualismo da maioria dos pensadores renascentistas, o universo é concebido como imensa totalidade em que tudo está em relação com tudo, em que nada pode ser separado de nada. A mesma alma cósmica anima todos os entes, apesar de toda a sua singularidade monádica. Também nisso Giordano Bruno é porta-voz de um sentimento de vida geral que, em termos poéticos, encontrou cristalização expressiva na obra de Shakespeare. Os seus heróis não se encontram inseridos somente em “campos” sociais muito ricos, mas vivem como que em correspondência profunda com as forças mais amplas e poderosas da natureza. Há liames simpatéticos que os prendem às raízes do ser. As irrupções elementares das suas paixões se comunicam por canais misteriosos com os próprios elementos da natureza. Não sabemos se é a desordem cósmica que se manifesta neles ou se, ao contrário, forças demoníacas, irrompendo de dentro deles, corrompem o universo. O crime de Macbeth, as feridas causadas pelo seu punhal no corpo do bondoso rei Duncan “abrem brechas na natureza” (Macbeth, II, 2). Em Rei Lear, Gloster, referindo-se aos últimos eclipses do sol e da lua e ao mal que prenunciam, diz que a natureza se sente flagelada pelos efeitos daí decorrentes. “O amor esfria, a amizade deserda, os irmãos se desunem; nas cidades, rebelião, nos campos, discórdias, nos palácios, traição, e entre filhos e pais rompem-se os laços” (Rei Lear, I, 2). Na noite do assassínio de Duncan, toda a natureza é atingida na sua ordem. Os cavalos de Duncan se tornam selvagens e, “contra todas as ordens”, põem-se a correr, como se quisessem lutar contra os homens, chegando mesmo a se devorarem mutuamente. Durante nenhum momento a ave das trevas deixou de gritar, a terra teve febre e tremeu (Macbeth, II, 2,3). (Rosenfeld, 1973, p.138-9)

O teatro elisabetano introduz aquilo que mais tarde viria a ser o palco do futuro, expressão do mundo burguês: a cena italiana, com vocação a reproduzir o real, por meio da perspectiva central. Nesse palco, o homem, sua história e sua subjetividade ganham autonomia. Separando o palco da platéia, a cena italiana amplia o ilusionismo.

A cena elisabetana incorpora as inovações da perspectiva, sem romper totalmente o vínculo com o teatro medieval, principalmente nas representações dos interlúdios cômicos, dos saltimbancos e da relação direta do palco com a platéia. Outro fator que a distingue do palco italiano diz respeito à configuração social do teatro: ele não se destina a públicos e classes sociais específicas (Frye, 1992, p.13-28).

No teatro de Shakespeare (Campbel, 1930), as personagens vivem em um ambiente que não é mais explicado a partir de fora: o mundo, a vida e os atos dos heróis são questionados a partir da angústia. A perspectiva, portanto, é subjetiva e individual e cada obra demanda uma ação única e irrepetível, aliás, de acordo com a noção de temporalidade da existência, ausente na época medieval.

Shakespeare antecipa a principal característica do teatro moderno e burguês: a psicologização das personagens. Os mandos e desmandos dos heróis estão inscritos na dimensão humana, subjetiva e existencial. A dúvida é internalizada e o mundo, as coisas e os homens são problematizados a partir deste ser que duvida. Hamlet é expressão dessa dúvida. Ele é o centro do mundo, questionador e, ao mesmo tempo, ordenador das podridões do reino da Dinamarca. Esta personagem cética é a manifestação da nova visão trágica, que antecipa toda a literatura moderna e psicológica: é a tragédia do desmoronamento íntimo, de uma subjetividade que carrega consigo as dores do mundo. Nessa nova visão trágica, o homem, individual e solitário, enfrenta a decadência moral, vivencia e age em plena falência dos valores. O ambiente de corrupção dominante em Hamlet deriva da decomposição e das ruínas da moralidade. O universo não é ordenado: a desordem da Dinamarca recebe um último balanço e uma tentativa de resolução, a partir de um único indivíduo, ele mesmo desordenado, porém com razoável equilíbrio e sensatez para seguir seu intento.

Ao anunciar o teatro, futuro Shakespeare avançou para além do conhecimento da época. A psicologização das personagens trouxe uma concepção desconhecida da ciência e da filosofia renascentistas. Essa característica, contudo, não esteve alheia às demais: ela está ao lado do naturalismo, do humanismo, do relativismo e do perspectivismo, marcas da filosofia renascentista.

!  ABSTRACTS: Plato has a negative vision of art and of the tragedy. The “irrationality” of the artistic practice is in the base of that denial. His vision is contrary to the perspectivism humanist of Eurípede and of the sophists. In the renaissance philosophy the subject observer (temporary and rational) presuppose the multiple and the infinite. The perspectivism is in the base of that orientation and Shakespeare is the best artistic expression of that presupposition defended in the philosophy by Giordano Bruno.

!  KEYWORDS: Perspectivism; tragedy; subjectivity; Humanism; Plato; Euripedes; Giordano Bruno; Shakespeare.

Referências bibliográficas

BAYER, R. Historia de la estetica. México: FCE, 1965.

BRUNO, G. A causa, o princípio e o uno. São Paulo: Nova Stella; Istituto Italiano di Cultura, 1988.

CAMPBELL, L. B. Shakespeare’s Tragic Heroes. Cambridge: Cambridge University Press, 1930.

DELLA VOLPE, G. Schizzo di una storia del gusto. Roma: Riuniti, 1971.

FRYE, N. Sobre Shakespeare. São Paulo: Edusp, 1992.

GOLDSCHMIDT, V. Le probléme de la tragédie d’apres Platon. In: Questions platoniciennes. Paris: J. Vrin, 1970.

GOMBRICH, E. H. A história da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

GUTHRIE, W. K. C. Os sofistas. São Paulo: Paulus, 1995.

MOREIRA, L. de M. Para uma poética de Platão: Íon. Assis, 1982. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Letras, História e Psicologia, Universidade Estadual Paulista.

ROSENFELD, A. Texto/contexto. São Paulo: Perspectiva, 1973.

SCHUHL, P. M. Platon et l’art de son temps: arts plastiques. Paris: PUF, 1952.

VERNANT, J. P., VIDAL-NAQUET, P. Mito e tragédia na Grécia Antiga. São Paulo: Duas Cidades, 1977.



[1] Este artigo é parte de um trabalho apresentado na mesa-redonda Perspectivismo e formas de irracionalidade, no IV Encontro de Filosofia Analítica, realizado em Florianópolis (SC), de 6 a 9 de outubro de 1997, e também de um outro, apresentado na mesa–redonda Perspectivismo, racionalidade e o progresso da ciência cognitiva, no X Colóquio de História da Ciência – Universalidade, Racionalidade e Progresso na Ciência, realizado em Campos do Jordão, de 8 a 12 de setembro de 1997.

[2] Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP – 17525-900 – Marília – SP – Brasil.

[3] Nos dizeres de Della Volpe: “Platone aveva caratterizzato la poesia come ‘sacro furore’ (theia mania), entusiasmo e raptus: come un che di irrazionale e quindi immorale; lasciandocene una teoria negativa” (1971, p.15).

[4] Tradução de Lino de Miranda Moreira (1982, p.38-40). No Íon, Platão oferece como exemplo o ímã, que forma uma cadeia de anéis. O mesmo se daria com a arte: o ímã seria o deus, a musa; o primeiro anel seria o poeta; o segundo, o rapsodo ou o ator; o público espectador seria o terceiro e último anel. 5 “Car il font défigurer le moins possible la verité (religieuse, philosophique, morale) par les necessaires mensonges (narration, affabulation, style) qui devront la figurer. Aussi est-ce aux seuls vieillards que les Lois confient la narration des mythes” (Goldschmidt, 1970, p.105).

[5]C’est parce que les jeunes auditeurs, encore depourvus de raison et n’ayant pas encore à leur disposition les savantes méthodes d’exégèse allégorique, seront incapables de comprendre ces mythes” (op. cit. p.106).

[6]L’utilité, elle, découle de la verité. Or l’imitation de la comédie semble pouvoir être véridique, sans cependant être utile. Mais la vérité, selon Platon réside uniquement dans les Formes et dans la raison qui les connaît. La comédie, représentant des hommes inférieurs et, d’une manière générale, la parte inférieure de l’âme humaine, imite un objet non seulement moins beau que celui de la tragédie et de l’épopée, mais encore moins vrai. En peignant le vice et le ridicule dont la cause est une ignorance, le poète comique montre non seulement des hommes loin de la vérité, mais un objet faux, un non-être, comparable, dans ses convulsions désordonnées, à ce non-être qu’est la matière précosmique” (op. cit. 1970, p.106-7).

[7]Ce n’est pas ‘l’immoralité’ des poètes qui suffit à expliquer la profonde hostilité de Platon à l’égard de la tragédie. En ceci même que la tragédie représente ‘une action et la vie’, elle est contraire à la vérité” (op. cit. p.136).

[8]Le sentiment qu’avait Platon de l’action profonde que l’art exerce sur les esprits explique son attitude sévère à l’égard des artistes. La rigueur de ses solutions nous scandalise et parfois nous révolte; mais le problème qu’il pose n’a pas cessé d’être actuel; et l’emploi des procédés mécaniques de réproduction et de transmission, qui assurent à présent aus oeuvres d’art une diffusion et une force de pénétration plus grande encore que par le passé, nous impose plus que jamais de rechercher comment on peut parvenir à former le gôut du public sans pour autant l’asservir, et d’étudier comment l’art peut aider les hommes à rétablir en eux l’équilibre dont ils ont tant besoin, aujourd’jui comme au temps de Platon” (Schuhl, 1952, p.xxi-xxii).

[9] “Os gregos educados discutiam agora pinturas e estátuas como discutiam poemas e teatro; elogiavam sua beleza ou criticavam sua forma e concepção” (Gombrich, 1979, p.66).

[10] Vale lembrar que não é atribuído a Eurípedes o final de Ifigênia em Áulide, dada a brusca mudança de atitude dessa personagem que, sem explicações, cede ao desígnio dos deuses e dos guerreiros.

[11] “Para que haja ação trágica, é preciso que se tenha formado a noção de uma natureza humana que tem seus caracteres próprios e que, em conseqüência, os planos humano e divino sejam bastante distintos para oporem-se; mas é preciso que não deixem de aparecer como inseparáveis” (Vernant & Vidal-Naquet, 1977, p.29).

[12] A comédia grega tardia e a latina trabalharam com perspectivas particulares e pessoais, em oposição às vontades divinas. Contudo, não o fizeram a partir de um prisma psicologizante, mas sim da tipificação.