“RIR É O PRÓPRIO DO HOMEM”

Carlos Arthur R. do NASCIMENTO[1]

!  RESUMO: Este pequeno texto tenta investigar as origens do conhecido exemplo “o riso é o próprio do homem”. Conclui-se que, se não a origem, a difusão do exemplo encontra-se na Isagoge de Porfírio.

!  PALAVRAS-CHAVE: Riso; o próprio; predicáveis; lógica; Porfírio.

A crônica Gargantua de François Rabelais começa com um pequeno poema de dez versos dirigido aos leitores:

Amis lecteurs, qui ce livre lisez,

Despouillez vous de toute affection, Et, le lisant, ne vous scandalisez: Il ne contient mal ne infection.

Vray est qu’icy peu de perfection

Vous apprendrez, si non en cas de rire;

Aultre argument ne peut mon cueur elire,

Voyant le dueil qui vous mine et consomme;

Mieulx est de ris que de larmes escripre,

Pour ce que rire est le propre de l’homme.

Na tradução de Aristides Lobo, tem-se:

Caros leitores, que este livro vedes,

Libertai-vos de toda prevenção;

E não vos melindreis, ó vós que o ledes,

Que nenhum mal contém, nem perversão.

É verdade que pouca perfeição,

Salvo no riso, aqui podeis obter:

Outra coisa não posso oferecer,

Ao ver as aflições que os consomem;

Antes risos que prantos descrever, Sendo certo que rir é próprio do homem (Rabelais, 1986, p.39).

Mesmo sem pretender discutir os detalhes dessa tradução, nota-se a omissão do artigo definido antes de “próprio” no último verso. No francês tem-se “rire est le prope de l’homme” e no português, “rir é próprio do homem”. Talvez seja procurar pêlo em ovo ou chifre em cabeça de cavalo, mas o tradutor, quem sabe, perdeu uma nuança do original. Essa nuança é possível que nos escape também. Dediquemo-nos, então, à ingrata tarefa de explicar uma piada.

Quando Rabelais diz que “rir é o próprio do homem”, está aludindo a uma conhecida teoria lógica e a um exemplo milenar. No Quinhentos, qualquer aluno de lógica elementar sabia que o “próprio” era um dos cinco predicáveis, isto é, uma das cinco classes de predicáveis: o gênero, a espécie, a diferença, o próprio e o acidente. A origem dessa classificação encontra-se em Aristóteles, Tópicos, Livro 1, caps. 5-6; ver também Tópicos, Livro 5, cap.1 e seguintes. Aristóteles caracteriza o próprio da seguinte maneira:

O próprio é o que, sem exprimir a essência do sujeito, só a este pertence, de maneira que é com ele convertível; por exemplo, é próprio do homem a capacidade de aprender gramática, porque, se A é homem, é capaz de aprender gramática, e se é capaz de aprender gramática, é homem. (Tópicos, I, 102a)

O neoplatônico Porfírio (233-304) (1965) retomou e sistematizou as indicações de Aristóteles no pequeno livro Introdução às Categorias de Aristóteles (Eisagogè èis tàs kategorías) ou, como ficou conhecido no Ocidente latino, simplesmente Isagoge. Este opúsculo mereceu vários comentários em grego (da parte de Amônio, Elias, Davi) e foi traduzido para o latim por Mário Vitorino (?-380) e Boécio (470-525), que também o comentou.

A Isagoge, mais duas obras de Aristóteles (as Categorias e o tratado Sobre a interpretação), além de algumas compilações de Boécio, vieram a constituir o que ficou conhecido, a partir do fim do século XII, como a “lógica velha”. Este conjunto de obras continuou em uso nas universidades a partir do século XIII. Constituiu a base do estudo da lógica ou dialética que, junto com a gramática e a retórica, formava o trívio, isto é, o conjunto dos estudos da linguagem ou as “artes sermocinales”.

Pois bem, o capítulo 4 da Isagoge é dedicado ao estudo do próprio. Porfírio distingue quatro sentidos do próprio. O primeiro designa o predicado que convém a uma única espécie, mas não a toda ela; por exemplo, para o homem exercer a medicina ou conhecer geometria. O segundo indica o predicado que cabe a toda a espécie, embora não seja exclusivo dela; por exemplo, ser bípede para o homem. O terceiro é o predicado que convém a uma única espécie, a toda ela, mas não sempre; o exemplo dado por Porfírio é o encanecer na velhice em relação ao homem. Citemos literalmente o que Porfírio diz do próprio em quarto sentido:

Em quarto lugar, é o concurso de todas essas condições ao mesmo tempo: ser de uma só espécie, de toda, e sempre, como, para o homem, a faculdade de rir. Com efeito, mesmo que ele não ria sempre, do homem, ao menos se diz que é capaz de rir, não porque ri sempre, mas porque pode fazêlo naturalmente; é uma qualidade que faz sempre parte de sua natureza, como para o cavalo a faculdade de relinchar. Estas últimas qualidades são com justiça chamadas próprias, porque elas se reciprocam também com o sujeito: se há cavalo, há a faculdade de relinchar, e se há faculdade de relinchar, há cavalo. (Isagoge, 4, 16-23)

Eis aí, senão a origem, pelo menos a causa da difusão do famoso exemplo que se tornou um lugar-comum, embora nem sempre seja homérico, apesar do Dicionário das idéias feitas de Flaubert (1974).

Como vimos, o exemplo de próprio para Aristóteles nos Tópicos é a capacidade de aprender gramática. Enfoca ele o riso no tratado sobre as “Partes dos Animais” (Livro 3, cap.10, 673a, 5-10) ao deter-se no diafragma. Eis a passagem em questão: “Que apenas os entes humanos são suscetíveis às cócegas é devido à finura de sua pele e ao fato de que os entes humanos sejam os únicos animais que riem” (Partes dos animais, III, 673a, 9).

Depois de Aristóteles e antes de Porfírio, outros mencionaram a capacidade de rir como exclusiva do homem. Podem ser citados Quintiliano (c. 30-c. 100), Luciano de Samósata (c. 125-c. 195) e Júlio Pollux (século II d. C.). Luciano põe em cena um filósofo peripatético capaz de distinguir um homem de um asno, pois o primeiro é dotado de riso, ao contrário do segundo, que, além do mais, não constrói casas nem navega (Samósata, 1912).

Num certo momento, não propriamente a capacidade de relinchar do cavalo, mas a faculdade de zurrar do burro teve sucesso. Abelardo (1079-1142) (1994) recorre a este exemplo, que devia provocar ataques de riso entre seus alunos. De fato, em latim, há uma espécie de trocadilho na substituição de risibilis (que tem a faculdade de rir) por rudibilis (que tem a faculdade de zurrar). Aliás, diga-se de passagem, a filosofia medieval está cheia de asnos: desde pelo menos o Burnellus de Abelardo (vide O nome da rosa, Primeiro dia, Primeira) até o asno de Buridano hesitando entre seus dois montes de capim, passando pela ponte dos asnos (pons asinorum) e Guilherme de Ockham, que qualifica um enunciado de “simplesmente falso e dito asinino” (simpliciter falsum et asinine dictum), sem esquecer os sophismata asinina e a tardia mula do papa de Alphonse Daudet.

Os sérios e respeitáveis “Messieurs de Port-Royal” reproduzem a classificação de Porfírio, mas sintomaticamente trocam o exemplo. Na sua Lógica ou Arte de Pensar, Arnault & Nicole (1965) dizem a respeito do próprio o seguinte:

Neanmoins on a quelques fois étendu plus loin ce nom de propre, et on en a fait quatre espèces.

La 1. est celle que nous venons d’expliquer, quod convenit omni soli, et semper; comme c’est le propre de tout cercle, et du seul cercle, et toujours, que les lignes tirées du centre à la circonference soient égales. (I, VII, p.63)

Ao analisar, no periódico Le Moyen Âge, uma introdução ao pensamento medieval dirigida a leitores do nível mais elementar (Price, 1992), o resenhista Jacques Paul observa que, no primeiro capítulo, o autor define e faz a história de todos os termos costumeiros do cristianismo. Este “não hesita em explicar que o nome de Cristo vem de Jesus de Nazaré, recebido como messias, o que se traduz em grego por Cristo, que significa ungido. De acordo com este modelo, ele explica tanto o mártir como a vida de anacoreta, a criação do mundo e a salvação individual” (J. Paul in Price, 1992).

Creio que a observação final do resenhista tem algo a ver com a explicação aqui apresentada:

Estremece-se à idéia de que seja hoje preciso explicar até as noções elementares do cristianismo. Evitar-se-á, é claro, crer que o que é feito nesta obra é inútil. É com este tema, pedagógico, pode-se dizer, que a meditação deve se ocupar (p.522).

Talvez seja bom pedir desculpa por uma conclusão tão sisuda numa comunicação sobre o riso.

AGRADECIMENTO

Agradeço a Vera Cecília Machline por ter chamado minha atenção para o texto de Aristóteles em “As partes dos animais, bem como por ter posto ao meu alcance um bom número de textos referentes ao riso em Rabelais e na Idade Média.

! ABSTRACT: This brief paper attempts to investigate the origins of the wellknown example “laughter is the proper of man”. It is concluded that the diffusion of this example, if not its origins, stems from Porphyry’s Isagoge.

! KEYWORDS: Laughter; the proper; predicables; logic; Porphyry.

Referências bibliográficas

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[1] Departamento de Filosofia – Instituto de Filosofia Letras e Ciências Humanas – 13081-970 – Unicamp – Campinas – SP – Brasil.