DO SAGRADO AO LÚDICO: A FESTA DO ASNO

Francisco Benjamin de SOUZA NETTO[1]

!  RESUMO: Este texto trata de certas comemorações de caráter profano dentro do espaço sagrado ou litúrgico. Além do carnaval, enfoca-se a Festa do Asno, notadamente a celebrada na cidade de Rouen, que compreendia uma procissão com grande aparato, acompanhada pelo clero e pelo povo.

!  PALAVRAS-CHAVE: Riso; carnaval; Festa do Asno; liturgia; Idade Média.

O tema tratado aqui poderia ter outros subtítulos; poderíamos subdenominar: “Liberdade, libertários e libertinagem” ou “Libertários e libertinos”; mas poderíamos subdenominar também: “Festas, farsas e sátiras”. Entretanto, no que concerne à Idade Média, o que mais interessa, em um primeiro momento, quanto à abordagem de certas comemorações que se desdobram então, é exatamente aquele caráter de poderem resultar, seja por elas próprias, seja por alguns desdobramentos, em algo que poderia considerar-se uma profanação e assim foram consideradas muitas vezes, dado o uso do espaço sagrado ou litúrgico para ações que em geral se consideravam estranhas a esse espaço e mesmo opostas ao espírito cristão. A referência para compreensão da relação com o lúdico é a liturgia. Circunscrita por toda uma série de práticas que vão primeiro se desenvolver no meio monástico, os famosos ofícios canônicos vão resultar numa figura que, talvez, aqueles que tiveram contato com o catolicismo mais tradicional conheçam e que é a figura do breviário: um livro que contém os ofícios concernentes às horas do dia. Isso vai se desenvolver realmente em meio monástico e vai amparar por todos os lados a ação litúrgica sacramental, a qual vai permanecer principal. Pois bem, em torno desta é que vai se desenvolver todo um conjunto de práticas. Assim, se se consultar o Glossarium Mediae et Infimae Latinitatis de Du Cange (1938) – glossário sobre a média e ínfima latinidade, obra muito longa, extensa e pormenorizada, que não explica apenas a etimologia das palavras ou as alterações e significados contrários a essa etimologia, mas descreve as ações por elas significadas, vê-se que a festa é de início definida como festum: Festum é uma celebração do mistério ou dos mistérios e da memória dos santos. Só em seguida é que Du Cange vai contemplar o fato de a palavra festum aplicar-se a outras ordens de realidade que não são assim tão santas, mas que se desdobram a partir de algo que se tem em conta de tal. Vamos ter um exemplo disso na famosa Festa do Asno que pode surpreender e mesmo escandalizar, por se passar no espaço litúrgico.

Há outra festa, da qual muitos de nós perdemos a memória de ter sido uma festa de origem litúrgica, que foi associada com as Bacanais, bem como com as Saturnais. Heers (1987) não concorda muito com essas associações, mas elas não estão de todo excluídas. É a festa do carnaval, palavra cuja etimologia parece decorrer de carnevalet, quer dizer vale: é permitido comer carne; isto porque a quaresma vai começar na Quarta-Feira de Cinzas e, a partir daí, durante quarenta dias será proibido comer carne. É, pois, a festa que se desenvolve em torno da manducação da carne, o que se faz a partir da Igreja com vínculo menor com a liturgia especial do que outras festas como, por exemplo, a dos Inocentes que está ligada à liturgia do Natal. O Cristo nasce menino e a liturgia do Natal celebrase por uma oitava. Os inocentes, mortos quando, segundo consta, Herodes teria tentado atingir aquele que ele temia fosse o seu sucessor, tem nela sua comemoração aos 28 de dezembro. Há, por fim, a Festa do Asno da qual vou me permitir um relato que não se encontra no texto de Heers em pormenor.

Este só a menciona, o que nem mesmo fazem outros textos. Encontrei-a exatamente no Glossarium Mediae et Infimae Latinitatis de Du Cange (1938). Esta festa, Festum asinorum cuius officium die natalitio Christi celebratur – Festa dos asnos, cujo ofício é celebrado no dia natalício do Cristo e cuja nomenclatura adquire seu significado a partir do ordinário, quer dizer, da ordem das festas, da Igreja de Rouen.

Para que se tenha uma idéia do quanto esta Festa do Asno realmente ampliava o espaço de celebração, é bom caminhar devagar em direção ao que interessa e não se precipitar. Reza a rubrica: se a festa dos asnos se realiza, ordene-se a procissão após a hora de terça. Se não se realiza a festa, então realiza-se uma procissão como for prenotado. A ordem da procissão dos asnos (este é o caso da realização da festa segundo o uso de Rouen) é a seguinte: terminado o canto da hora de terça, paramentados os profetas segundo a sua ordem, e acesa uma fogueira de lençóis e farrapos no meio da nave da igreja, a procissão se move do claustro e dois clérigos da segunda sede com capas cantam os versos: Gloriosi, famosi cujus orti. Du Cange só cita o início dos versos. Depois comparecem duas ordens de personagens: os judeus ímpios em primeiro lugar (que vão repetir estes cantos) e os gentios. Ao canto Israel infiel, os invocadores interpelam as duas partes. Os judeus nos seguintes termos: Ó judeus, o verbo de Deus – evidentemente a estrofe deveria prolongar-se – vós que sois testemunhas de vossa lei; e os judeus respondem: Nós temos a lei, nos mandatum nobis – nós é que transmitimos a lei. Os invocadores, então, se dirigem aos gentios. Tais invocadores se desdobram na figura que nos ofícios canta os invitatórios, os convites à oração. Eles dizem: E vós gentios não crentes. E os gentios respondem: o Deus verdadeiro é o rei das coisas. Depois eles vão invocar personagens históricas. Primeiro, dois grupos não-cristãos, nãocrentes: os judeus juntos de um lado e os gentios do outro. Entram, então, em cena no espaço da igreja personagens da história sagrada. O primeiro a ser chamado é Moisés – Tu Moisés legislador. Então, entra Moisés trazendo as tábuas da Lei abertas, vestido de alva e capa e com a face cornuda. Moisés compareceu à presença de Deus sobre o Sinai e desceu com dois fachos luminosos, dois cornos luminosos na testa. Vem ele trazendo a vara com que tirou a água da pedra e diz: Um varão virá após mim, nascido. Aí o desdobramento deveria ser cristão. Du Cange (1938) não o traz, mas presume-se ser nascido da descendência de Davi. O curioso é que, um pouco aleatoriamente para uma leitura mais crítica da Bíblia, os invocadores vão chamando outros personagens e cada um deles diz o seu oráculo mais conhecido. O profeta Amós e depois Isaías. Isaías barbado, vestido de alva, cingido ao meio da fronte por uma estola rubra diz: É necessário que a vara de Jessé floresça. Eles chamam Aarão que, ornado de vestes pontificais, com mitra como bispo medieval, barbado, trazendo na mão uma flor, vai cantar o florescimento da vara de Jessé; seguindo-se Jeremias, Daniel, Habacuc, que como profeta menor vem revestido de dalmática, que era a veste do diácono e não do presbítero. Em seguida, vê-se o que leva o asno. Aparece quem? Dois mensageiros enviados pelo rei Balac (livro de Números, cap.24), que vêm interpelar o profeta Balaão, contratado por Balac para profetizar a desgraça dos hebreus. Balaão ornado, assentando-se sobre o asno, donde o nome da festa, é obstado por um jovem que sustenta um gládio (uma espada), que vai impedir Balaão de profetizar. Quer dizer: após Balaão que introduz a figura do asno, este entra na igreja por ele montado. É por intermédio dele que Deus lhe falou, proibindo-o de profetizar a desgraça do povo de Israel. Seguemse outros profetas. Como se disse, a ordem é aleatória. Vão até Jonas, Naum, Ageu e por fim Zacarias (filho de Baraquias); de Ezequiel a Malaquias e Zacarias (pai de João Batista), todos eles vestidos de modo a representar e expressar sua missão e sua condição, quer dizer: é toda uma pedagogia pela imagem e encenada. Segue-se o ancião Simeão e por fim o poeta Públio Virgílio, que teria profetizado de forma incônscia o nascimento virginal do Cristo. Por fim, o rei Nabucodonosor aparece. A ordem é espantosa. Com Nabucodonosor, comparecem os jovens que no livro de Daniel foram lançados à fogueira e não foram consumidos e tudo se desenvolve até o fim, sem que se entenda perfeita e totalmente, mesmo nos termos da reconstituição de Du Cange, por que tanta ênfase na figura do asno. Isto vai aparecer exatamente na tradição que Du Cange tem em conta de mais problemática. A tradição até aqui descrita é a de Rouen.

Surge, em seguida, a figura de Maria. A crítica que as fontes de Du Cange (1938) fazem é exatamente de que a jovem era bonita demais. Caprichava-se na beleza da jovem; sempre se escolhia uma jovem muito bonita, que trazia uma criança de colo e estava elegantemente ornada. A procissão se desenvolve da igreja catedral até a paróquia de Santo Estêvão com grande aparato, acompanhada pelo clero e pelo povo. Quando chega à paróquia, esse grupo processional – Compactus ille coetus – entra na igreja com aquela menina e com o asno e se dirige ao lado do evangelho. Aí é que vão introduzir-se as novidades que incomodam Du Cange: o Intróito, Kyrie, Glória e Credo vão ser concluídos por uma modulação estranha: hinam. No fim da missa, o sacerdote, voltado para o povo, em lugar de ite missa est, canta três Hinam e o povo repete. Sem mais explicações da parte de Du Cange.

A partir daí, a festa se desdobra e no Códex 500 encontramos inclusive um hino: das partes do oriente achegou-se o asno, belo e fortíssimo, aptíssimo para as cargas. Aí vem um responso francês em que se faz uma referência: Ó senhor asno por que cantais? Com bela boca relinchais.

Vós tendes feno suficiente e aveia à vontade. Um texto latino segue-se de novo: era lento de pés a não ser que se usasse o báculo para bater no asno para ele andar; a que se seguem várias referências a Siquém, a Rúben, ao Jordão, a Belém. A idéia, portanto, é de que o asno ingressa: ele emerge da liturgia porque ele é o asno da fuga para o Egito e do retorno do Egito. É o asno que serviu de instrumento de salvação para o Messias.

O poema continua a desdobrar-se e Du Cange (1938) vai dizer que em outros lugares não se celebrava com menor pompa, nem de maneira mais decente este culto. Mas a verdade é que às vezes coroavam o asno com uma mitra. Tratavam o asno como eram tratados os bispos e prestavam ao asno reverências que se prestavam ao bispo; isso não era feito simplesmente por baderneiros, mas por clérigos menores e até por clérigos maiores.

Evidentemente, terminada essa parte que se desenvolvia dentro da igreja, a festa se prolongava do lado de fora e aí é que havia ensejo para tudo, porque este extravasamento, uma vez desbloqueada a regra segundo a qual o lugar litúrgico se reserva ao culto, permitia que se desdobrassem também outras práticas. Regada pelo vinho, a festa levava a orgias e, no interior das orgias, inclusive, à libertinagem, práticas que, infelizmente, para a nossa informação, não sabemos quais eram. A preocupação dos autores que se insurgiram contra isso nos revela que se ia até extremos limites, na prática inclusive, da fornicação, distinguindo fornicação de concubinato. Concubinato é a união permanente de pessoas que não se submetem no seu unir-se à lei da Igreja ou, em casos de povos não-cristãos, a alguma lei. Fornicação é simplesmente a prática sem freios e sem normas da relação sexual, do concúbito carnal.

Mas o importante aqui é que nos inteiremos do que está por detrás de tudo isto: carnavais, festas de loucos, festas de crianças em que se coroam dentro da igreja, loucos, em que se reverenciam essas figuras, em que reverenciam a criança vestida de bispo, se reverencia até um asno que se adorna com a mitra. O que estava por detrás disso? Quem estava por detrás disso, e o que estava por dentro disso? Pois bem, quem estava por detrás disso eram muitas vezes os cônegos de determinada igreja. Não eram personagens secundárias em hipótese alguma. De início não eram os goliardos nem talvez jamais tenham sido estes mais do que instrumentos de concretização de tudo isso. Nem eram os goliardos, nem eram quem se possa pensar. Quem seriam? Seriam os cônegos mesmo. Por quê? Porque eles tinham franquias, regalias e direitos que lhes eram próprios e que não eram conferidos pelo bispo. Muitas vezes, ao pensarmos a igreja de ponta a ponta, pensamos segundo o modelo tridentino em que há um centralismo romano que se reflete no centralismo episcopal e o bispo põe e dispõe a seu bel-prazer na sua igreja. Isso começa a se esboçar no século XI com a famosa reforma gregoriana, mas só vai se implantar definitivamente em razão das crises desencadeadas pela Reforma. Vai ser um fato de vultosa importância, um fato que importou em perdas imensas para que isso se desenvolvesse e aí vamos deparar com quem? Os cônegos. Alguns sugerem: em vista do clero menor, que era constituído em geral por crianças, em vista da própria população, mas em vista deles próprios também, para que houvesse um espaço, um tempo de lazer; um espaço e um tempo lúdico, durante o qual se suspende o interdito, quanto ao uso do espaço litúrgico, e se reservava um tempo para o riso.

!  ABSTRACT: This essay is concerned with certain profane commemorations within the sacred or liturgical space. Besides Carnival, it focuses on the Festum asinorum, particularly the one celebrated in the town of Rouen, which comprised a magnificent procession, congregating the clergy and the people.

!  KEYWORDS: Laughter; Carnival; Festum asinorum; liturgy; Middle Ages.

Referências bibliográficas

DU CANGE, D. C. S. Glossarium mediae et infimae latinitatis. Veneza: Nova Impressão. Paris: S. Coleti, 1938. v.1-10.

HEERS, J. Festas de loucos e carnavais. Lisboa: Dom Quixote, 1987.



[1] Departamento de Filosofia – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – 13081-970 – Unicamp – Campinas – SP – Brasil.