O CONCEITO DE VONTADE NA FILOSOFIA POLÍTICA
DE ROUSSEAU E DE CONDORCET
Cristina Foroni Consani[1]
RESUMO: Este texto analisa o conceito de vontade na filosofia política de Rousseau e busca reinterpretá-lo à luz da filosofia de Condorcet. Defende-se que Condorcet consegue tornar o conceito de vontade geral rousseauniano menos ambíguo, a partir da adoção de três critérios, a saber: a elaboração de um rigoroso método para a identificação da vontade coletiva, a defesa da instrução pública e a opção por um republicanismo democrático.
PALAVRAS-CHAVE: Rousseau. Condorcet. Vontade geral. Razão coletiva.
1 Introdução
O conceito de vontade geral, delineado na obra de Rousseau, é um dos mais retomados na filosofia política e nas teorias democráticas, a fim de se fazer referência ao ideal da soberania popular. Esse conceito, contudo, apresenta ambiguidades e pontos obscuros que criam problemas sobre os quais estudiosos ainda se debruçam para resolver, como, por exemplo, o modo de identificação da vontade geral ou do interesse comum. A questão central expressa por Rousseau, que também se coloca para as sociedades contemporâneas, é saber como conciliar a liberdade ou a autonomia política e a submissão a uma autoridade. Em outras palavras, o problema teórico a ser enfrentado é se é possível, ao mesmo tempo, ser livre e submetido a uma autoridade político-jurídica.
A construção do conceito de vontade geral, na teoria de Rousseau, é uma tentativa de responder a essa questão. Como se sabe, a resposta dada por ele é que um indivíduo é livre, mesmo quando submetido a uma autoridade política, porque obedece a leis às quais ele próprio deu seu consentimento. É nesse ponto que repousa a questão da autonomia, isto é, o indivíduo é livre, porque obedece a uma vontade que é a sua própria vontade, a qual está abarcada pela lei à qual ele está submetido. Não se trata da submissão a qualquer autoridade, mas à autoridade da lei, considerada legítima. Por essa razão, a liberdade não está igualmente atrelada a qualquer Estado, mas a um Estado legítimo, que é o republicano. Uma República é “[...] todo Estado regido por leis, qualquer que seja a sua forma de administração” (monarquia, aristocracia ou democracia). Lei, por sua vez, é toda norma que reúne a generalidade da vontade e a do objeto, ou seja, é o resultado de uma ordenação da vontade geral sobre um objeto que também seja de interesse comum de todos os cidadãos. Contudo, embora pareça bastante simples compreender o que está sendo proposto por Rousseau, não é claro o que exatamente é a vontade geral ou como esse conceito pode ser acessado pelos cidadãos que precisam, para se manter livres, coordenar suas vontades particulares com a vontade geral (ROUSSEAU, 1999, p. 47s./III, p. 379).[2]
Hodiernamente, tem-se defendido que muitos dos aspectos ambíguos do conceito de vontade geral de Rousseau foram posteriormente desenvolvidos por Condorcet, em seu teorema do júri. Partindo dessa orientação, este artigo pretende apresentar e comparar os conceitos de vontade política delineados nas obras de ambos os filósofos. Todavia, diferentemente de outros intérpretes que estudam as proximidades entre o conceito de vontade geral em Rousseau e em Condorcet, a análise aqui realizada não tem como base apenas o teorema do júri condorcetiano, mas também diversos outros elementos de sua teoria política expostos em textos posteriores, sobretudo aqueles escritos após a Revolução Francesa, nos quais a teoria democrática de Condorcet vai sendo delineada e fortalecida. Isso será feito em dois momentos: primeiramente, apresenta-se o conceito de vontade geral, na obra de Rousseau, e os problemas teóricos em torno desse conceito; em um segundo momento, aborda-se o conceito de vontade geral, ou razão coletiva, na obra de Condorcet, a fim de verificar em que medida essa proposta mostra avanços, quando equiparada àquela de Rousseau.
2 Rousseau e o problema da formação e da identificação da vontade geral
O conceito de vontade geral, na teoria rousseauniana, pode ser estudado, e não raras vezes o é, atribuindo-se à vontade geral um sentido substantivo, o qual a identifica com o interesse comum, e um sentido procedimental, segundo o qual a vontade geral é o resultado da decisão coletiva dos cidadãos, tomada segundo procedimentos e critérios específicos. A apresentação do modo como tais conceitos são definidos pelo filósofo genebrino é necessária, para se verificar em que medida ambos se entrelaçam, em sua filosofia política.[3]
2.1 Vontade geral em sentido substantivo
Definições da vontade geral, em sentido substantivo, podem ser encontradas de forma bastante clara tanto no Discurso sobre a economia política (1755)[4] quanto no Contrato social (1762). No primeiro texto, Rousseau afirma que a vontade geral “[...] tende sempre à conservação e ao bem-estar do conjunto e de todas as partes, e que é a fonte das leis, consiste na regra do que é justo e injusto, para todos os membros do Estado, com respeito a eles mesmos e ao próprio Estado.” (ROUSSEAU, 2003, p. 7/III, p. 245). Do mesmo modo, ao discorrer sobre as funções do governo, Rousseau assevera que, no exercício de suas atribuições, o governo não precisa recorrer frequentemente ao povo para agir de acordo com a vontade geral, “[...] pois os governantes sabem perfeitamente que a vontade geral está sempre do lado mais favorável ao interesse público, ou seja, do lado mais equitativo. Assim, basta agir de forma justa para que se tenha a certeza de estar seguindo a vontade geral.” (ROUSSEAU, 2003, p. 13/III, p. 251). Nesse sentido, a vontade geral está atrelada a um ideal de justiça, o qual, por sua vez, remete ao bem-estar do todo e de cada uma das partes (consideração importante, que afasta uma leitura utilitarista do conceito de bem-estar geral ou mesmo de vontade geral, no sentido de que Rousseau não admitiria sacrificar as partes em prol do todo).[5]
No contrato social, a vontade geral aparece associada ao ideal do bem ou interesse comum, mas também, assim como no Discurso sobre a economia política, Rousseau equipara a vontade geral à justiça e à equidade. A associação da vontade geral com o bem comum é feita no capítulo a respeito da inalienabilidade da soberania, de modo que a vontade geral é apresentada como um elemento capaz de conduzir “[...] o Estado em conformidade com o objetivo de sua instituição, que é o bem comum.” O conceito de soberania é, a seguir, definido como “o exercício da vontade geral” o qual, por conseguinte, deve dirigir-se apenas ao que concerne ao bem comum, encontrando aí os seus próprios limites. A vontade geral é assim diferenciada da vontade particular, que, “[...] por sua própria natureza, tende às predileções, enquanto a vontade geral propende à igualdade.” (ROUSSEAU, 1999, p. 33s/III, p. 368ss). É nesse mesmo sentido que é estabelecida a clássica distinção entre vontade geral e vontade de todos, segundo a qual “[v]ia de regra, há muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral; esta se refere somente ao interesse comum, enquanto a outra diz respeito ao interesse privado, nada mais sendo do que a soma das vontades particulares.” (ROUSSEAU, 1999, p. 33s/III, p. 371, grifo nosso).[6]
A estreita relação entre a vontade geral e o ideal de justiça e equidade aparece novamente no Capítulo IV do Livro II, no qual Rousseau (1999, p. 41/III, p. 374) enfatiza que
[...] o que generaliza a vontade é menos o número de votos que o interesse comum que os une, pois, nessa instituição, cada qual se submete necessariamente às condições que impõe aos demais: admirável acordo entre o interesse e a justiça, que dá às deliberações comuns um caráter de equidade que vemos desaparecer na discussão de qualquer negócio particular, pela falta de um interesse comum que una e identifique a regra do juiz com a da parte.
A partir desses excertos, é possível identificar a vontade geral com o bem ou o interesse comum e também com um ideal de justiça e de equidade. Porém, isso ainda é bastante abstrato. Para que o próprio conceito de vontade geral se tornasse mais claro, seria preciso compreender o que Rousseau entendeu por bem ou interesse comum ou mesmo como ele delineou os conceitos de justiça e de equidade. Como ressalta Cohen, Rousseau pouco discorreu a esse respeito. Na tentativa de tornar menos abstrato o conceito de vontade geral, Cohen sugere, com base em uma leitura mais ampla da obra rousseauniana, que o conteúdo do bem comum poderia ser delimitado em função de quatro considerações, a saber:
i) o bem comum é distributivo e não agregativo – isso significa que o bem comum não é a maximização do prazer agregativo, isto é, não pode ser entendido em termos utilitaristas, como a maximização das satisfações individuais, mas, ao contrário, deve ser pensado como o compartilhamento de interesses com relação à segurança pessoal, de bens e da liberdade (COHEN, 2010, p. 40-42);[7]
ii) o bem comum é a igualdade, compreendida como igual consideração atribuída a todos os membros da sociedade política, haja vista o contrato social estabelecer entre os cidadãos uma igualdade tal que todos comprometem a si mesmos sob as mesmas condições e todos devem gozar dos mesmos direitos, sendo totalmente arbitrário o estabelecimento de uma condição mais onerosa para alguns. Nesse sentido, o principal comprometimento dos indivíduos não seria imediatamente com o bem comum, mas apenas reflexivamente, porque o acordo essencial é aquele que busca uma convivência conjunta em uma sociedade política governada por um compromisso compartilhado para limitar os encargos sobre outros. A igualdade, nesse caso, equipara-se à justiça (COHEN, 2010, p. 42-44);[8]
iii) o bem comum visa à proteção da independência dos indivíduos – Rousseau teria defendido a independência individual (associada às liberdades pessoais e de consciência, à liberdade dos modernos, como definida por Constant), ao estabelecer os limites dentro dos quais o poder soberano pode atuar, ou seja, a proteção à independência dos indivíduos configura-se pela estreita vinculação da lei ao bem comum e, nesse sentido, propostas de regulamentação que não possam ser plausivelmente sustentadas como contribuindo ao bem comum são tidas por arbitrárias e não permitidas, porque não encontram suporte em razões apropriadas.[9] Sobre esse aspecto, vale mencionar que Cohen parte do pressuposto de que a vontade geral não funda uma comunidade na qual os interesses particulares são completamente subsumidos no ideal de bem ou interesse comum. Segundo ele, a vontade geral não demanda que os indivíduos renunciem a todos os seus interesses particulares, mas apenas que concedam prioridade ao interesse comum. Em outras palavras, a vontade geral pode ser considerada uma suprema direção, todavia, não uma direção exclusiva: ela aponta para a necessidade da primazia do cidadão sobre o indivíduo, do público sobre o privado, mas não para a exclusão do privado. A vontade geral estabelece, desse modo, uma unidade por integração e não uma unidade cívica completa, como em Platão (COHEN, 2010, p. 44-49);[10]
iv) a igualdade é a base para o bem comum – se a igualdade de consideração de todos os membros é a condição sob a qual o próprio contrato social se funda e deve assegurar a independência em todas as áreas que não dizem respeito ao bem comum, a igualdade é tomada como o principal elemento definidor do bem comum. Esse ideal de igualdade deve ser levado em conta tanto em sentido formal (igualdade perante a lei) quanto em sentido material (igualdade de condições de vida). A igualdade formal ou de direitos encontra sua fundação na autoridade da vontade geral, uma vez que todos os direitos são fundados pelo contrato social e nenhum direito anterior é reconhecido, por todos os direitos serem fundados sob a consideração do bem comum que funciona como um padrão supremo da comunidade política.[11] No que diz respeito à igualdade material, Rousseau não afirma expressamente que os direitos de propriedade, por exemplo, não seriam reconhecidos pelo pacto social, mas considera necessário o estabelecimento de limites para a desigualdade como conditio sine qua non para a própria liberdade dos cidadãos e para a estabilidade da comunidade política (COHEN, 2010, p. 49-53).[12]
Em resumo, as considerações feitas por Cohen a respeito do conteúdo do bem comum dão suporte a um conceito substancial de vontade geral, isto é, a vontade geral pode assim ser definida como a vontade do corpo político que visa ao bem comum, o qual é distributivo e não agregativo, busca conformar os interesses individuais ao interesse comum, preservando a independência dos indivíduos, na medida em que vincula a formulação da lei geral àquilo que diz respeito unicamente ao bem comum e, principalmente, tende à igualdade e à justiça. Tal definição acrescenta um pouco de concretude ao conceito abstrato de vontade geral, mas ainda assim um grande nível de abstração permanece, na medida em que os conceitos de justiça, equidade, independência, bem como a ponderação entre interesses particulares e interesse comum não é facilmente acessada na vida política de um Estado. Em outras palavras, há ainda necessidade de acrescentar mais conteúdo a esse ideal que exerce, em última análise, um papel regulador para o procedimento de decisão ou votação do povo em uma lei geral, haja vista que, como estabelecido por Rousseau, não é perguntado ao povo, no momento da emissão de seu voto, se ele concorda ou não com a lei que está sendo proposta, porém, a pergunta formulada é se a lei proposta está ou não de acordo com a vontade geral. Ou seja, o próprio autor pressupõe que há uma vontade geral que servirá de guia para a votação (ROUSSEAU, 1999, p. 130/III, p. 440s).
Por outro lado, Rousseau também reconhece ser uma tarefa árdua para o povo acessar a vontade geral. No Discurso sobre a economia política, ele estipula que “[...] a primeira e mais importante regra do governo popular ou legítimo é acompanhar em tudo a vontade geral”, entretanto, pondera ele, “[...] para isso é necessário conhecê-la, e acima de tudo distingui-la da vontade particular, começando com a do próprio observador: distinção sempre muito difícil, para a qual só a virtude mais elevada proporciona suficiente esclarecimento.” (ROUSSEAU, 2003, p. 10/III, p. 247s). Ou ainda, no Contrato social, Rousseau levanta a seguinte questão:
Como uma multidão cega que muitas vezes não sabe o que quer, porque raramente sabe o que lhe convém, levará a bom termo uma empresa tão grande e difícil como o é um sistema de legislação? O povo, por si, quer sempre o bem, mas nem sempre o reconhece por si só. A vontade geral é sempre reta, mas o julgamento que a guia nem sempre é esclarecido. É necessário fazer com que veja os objetos tais como são, às vezes tais como lhe devem parecer, mostrar-lhe o bom caminho que procura, preservá-la da sedução das vontades particulares, relacionar aos seus olhos os lugares e os tempos, contrabalançar o atrativo das vantagens presentes e sensíveis ao perigo dos males distantes e ocultos. (ROUSSEAU, 1999, p. 48s/III, p. 380).
A saída apontada por Rousseau para os problemas acima mencionados demanda dois elementos, a saber: o recurso a um legislador e o forjamento de uma comunidade política uniforme, sem grandes desigualdades de fortunas e de costumes.
O legislador idealizado por Rousseau é o portador de virtude e inteligência elevadas, aquele que conhece as paixões humanas, mas não as experimenta, ou seja, “um homem extraordinário no Estado” (ROUSSEAU, 1999, p. 50/III, p. 382), uma figura que ocupa um lugar único, o qual não é nem de soberania (soberano é o povo que aprova as leis e é, portanto, o titular do poder legislativo), nem de magistratura (magistrados são aqueles que exercem o poder executivo, isto é, exercem as funções de governo), porém, de elaboração das leis, de framer, para utilizar um termo bem conhecido do constitucionalismo moderno.[13] Esse cargo, salienta Rousseau, “[...] que constitui a República, não entra em sua constituição. É uma função particular e que nada tem em comum com o império humano, porque, se aquele que manda nos homens não deve mandar nas leis, aquele que manda nas leis não deve tampouco mandar nos homens.” (ROUSSEAU, 1999, p. 50s/III, p. 382). O legislador de Rousseau tem a tarefa de reconhecer o que é a vontade geral, ou o bem comum, para uma comunidade política, em um determinado espaço e tempo, isto é, de acordo com suas condições geográficas, climáticas e históricas.[14] Para levar a cabo sua tarefa, compete ao legislador não apenas instituir leis e costumes, mas também destruir, por meio das próprias leis, hábitos considerados perniciosos ao bem comum.[15] Nesse sentido, a tarefa do legislador pode até mesmo gerar a modificação da natureza dos indivíduos, ao delinear um sistema que funcione de modo a fazer com que coloquem o interesse comum à frente de seus próprios interesses (ROUSSEAU, 1999, p. 50/III, p. 381s).
O que cabe ao povo soberano, assim, não é identificar e colocar em um sistema de leis a vontade geral em primeira mão – esse é o trabalho do legislador. Ao povo resta a tarefa de aprovar as leis propostas, analisando a sua concordância com a vontade geral como um critério, ou seja, trata-se de um segundo momento de identificação da vontade geral, haja vista que o primeiro já teria sido feito pelo legislador. Ainda assim, exige-se do povo acessar o conteúdo da vontade geral que serve como guia para essa decisão.
Rousseau pensa ser possível o povo conhecer a vontade geral, desde que certas condições sejam preenchidas. Em suas palavras: “[e]nquanto muitos homens reunidos se consideram como um só corpo, têm uma só vontade que se refere à conservação comum e ao bem-estar geral. Então, todos os móbeis do Estado são vigorosos e simples, suas máximas são claras e luminosas, não existem interesses confusos e contraditórios.” (ROUSSEAU, 1999, p. 125/III, p. 437). Tais condições remetem ao Estado ideal, com extensão reduzida, identidade ética, sem desigualdades econômicas extremas e com pouca possibilidade de mudanças.[16] O ideal de Estado rousseauniano vai sendo delineado em várias de suas obras. No Manuscrito de Genebra, Rousseau ressalta que “[...] uma regra geral para toda sociedade bem constituída e governada de forma legítima deve ser a de que todos os seus membros possam ser reunidos facilmente toda vez que isso for necessário.” Dessa maneira, “[...] o Estado deve estar limitado a uma cidade, no máximo.” (ROUSSEAU, 2003, p. 155/III, p. 322s). Na dedicatória que precede o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Rousseau também menciona outras características do Estado ideal, a saber:
Se tivesse que escolher o lugar de meu nascimento, escolheria uma sociedade de um tamanho limitado pela extensão das faculdades humanas, isto é, pela possibilidade de ser bem governada, e na qual cada um, cumprindo seu encargo, não fosse compelido a incumbir outros das funções de que foi encarregado; um Estado onde todos os indivíduos se conhecessem entre si, onde as manobras obscuras do vício ou a modéstia da virtude não pudessem se furtar aos olhares e ao julgamento público, e onde o doce hábito de se ver e de se conhecer fizesse do amor à pátria o amor aos cidadãos mais do que o amor à terra. (ROUSSEAU, 2013, p. 21s/ III, p. 111s).
Vale lembrar que o tamanho de um Estado assume grande relevância, tanto para a política quanto para a ética. No que diz respeito à política, em razão de não admitir a representação da soberania, isto é, do exercício do poder legislativo, Rousseau precisa de um modelo de Estado no qual o povo possa manifestar sua vontade sempre com sua presença física na assembleia e, assim, um Estado de grandes dimensões territoriais se torna indesejável. Do ponto de vista ético, quanto menor o Estado, mais fácil de manter a uniformidade de costumes e o amor à pátria, como enfatizado em seus esboços constitucionais, notadamente, no Projeto de Constituição para a Córsega e nas Considerações sobre o governo da Polônia, nos quais Rousseau tem a possibilidade de aplicar sua tese a modelos concretos.
Nesses textos, sobressaem-se as propostas para uma comunidade política bastante independente quanto às relações internacionais e bastante coesa quanto a seus costumes. A Córsega, nesse sentido, apresenta condições melhores do que a Polônia, pois se trata de uma ilha na qual as condições geográficas facilitam o isolamento e o fechamento da comunidade política para influências e interferências externas, assim como as condições históricas (o povo corso havia se libertado do domínio de Gênova) possibilitavam a criação de um povo novo, por meio de instituição de uma boa constituição. No Projeto de Constituição para a Córsega, Rousseau ressalta a importância de se instaurar um Estado cuja economia seja essencialmente agrícola, haja vista considerar a agricultura útil para multiplicar a população e seus meios de subsistência, mantendo, assim, a independência, ao evitar o recurso a outros Estados para se adquirir alimentos. Ele exalta a simplicidade da vida rural, que produz corpos sadios e robustos (ideais para se tornarem bons soldados) e evita a desordem e o vício. A agricultura também tem, em seu entendimento, a capacidade de vincular o homem ao solo e ao seu país, favorecendo o surgimento do amor à pátria (ROUSSEAU, 2003, p. 183s/III, p. 904s). É exatamente essa vinculação à pátria e a simplicidade de costumes proporcionada pela vida agrícola que tornam mais fácil observar as regras de justiça e o espírito de equidade; por exemplo, assevera Rousseau, “[...] o primeiro a encontrar mel nas montanhas, e nos ocos das árvores, está certo de que ninguém lhe disputará esse mel.” (ROUSSEAU, 2003, p. 192/III, p. 913). Por conseguinte, a vida simples, o amor à pátria, a identidade de gostos e interesses fazem com que os homens se unam em torno de um mesmo objetivo, tornando mais fácil se chegar ao conhecimento do bem comum ou da vontade geral.[17]
No caso da Polônia, Rousseau se depara com um Estado de grandes dimensões e com um povo com vícios morais. Seus conselhos, assim, dirigem-se para a modificação dos costumes e das instituições existentes. Contudo, assim como no caso da Córsega, Rousseau reforça a ideia de que é preciso haver identidade nacional, isto é, identidade de costumes e amor à pátria. Pergunta ele: “Como é possível mobilizar o coração dos homens, para fazê-los amar a pátria e suas leis?” (ROUSSEAU, 2003, p. 226/III, p. 955). Essa é uma tarefa a ser realizada por meio de instituições políticas e da educação. Um bom legislador deve criar laços que unam os cidadãos à pátria e também uns aos outros. Esses vínculos são formados e mantidos a partir de determinados costumes, tais como festivais, cerimônias cívicas e religiosas de caráter nacional, jogos que mantenham os cidadãos reunidos por bastante tempo, espetáculos, todos voltados à formação de um culto nacional. Seguindo essas diretrizes, a identidade nacional deveria ser exaltada: “Se inclinarmos as paixões dos poloneses em outra direção daremos a suas almas uma fisionomia nacional que os diferencie dos outros povos, o que os impedirá de com eles misturar-se, sentir-se à vontade ou aliar-se.” (ROUSSEAU, 2003, p. 231/III, p. 960). Para a realização dessa tarefa, a educação dos cidadãos assume uma importância crucial, cabendo a ela “[...] dar aos espíritos uma formação nacional, orientando seus gostos e opiniões de modo que sejam patriotas por inclinação, por paixão e por necessidade.” (ROUSSEAU, 2003, p. 237/III, p. 966). Em uma sociedade delineada segundo tal modelo, a identificação da vontade geral pelos cidadãos não seria, de fato, tarefa tão árdua, tendo em vista a uniformidade dos costumes, que levaria a não haver um desacordo profundo a respeito do que seria o bem comum.
Por essa razão, o conceito de vontade geral como um ideal normativo é vinculado a uma comunidade política localizada no espaço e no tempo. Assim, não se trata do bem comum de toda a humanidade. Daí a importância da gênese desse termo, na obra de Rousseau, derivado de sua réplica a Diderot, o qual tratou o conceito de vontade geral como um sentimento que os cidadãos poderiam ter em relação ao gênero humano, ou seja, era um conceito cosmopolita. Para Rousseau, o bem comum atrelado à ideia de vontade geral só pode ser compartilhado por uma comunidade situada e bem delimitada: trata-se da vontade geral dos corsos ou dos poloneses, por exemplo, não da humanidade (SHKLAR, 1969, p. 169; PINZANI, 2006, p. 219-221).
2.2. Vontade geral em sentido procedimental
A vontade geral substancial funciona, desse modo, como um ideal normativo que irá orientar a votação do povo em assembleia. No Contrato social, ao colocar a questão sobre se a vontade geral pode errar, Rousseau apresenta a seguinte resposta: “[d]ecorre do exposto que a vontade geral é invariavelmente reta e tende sempre à utilidade pública; mas daí não se segue que as deliberações do povo tenham sempre a mesma retidão.” (ROUSSEAU, 1999, p. 37/III, p. 371). Logo, para que o resultado da votação popular se encontre de acordo com o ideal normativo de vontade geral, pode-se aludir (parafraseando Habermas), a “condições ideais de votação”, as quais correspondem aos seguintes critérios:[18]
i) todos os cidadãos devem participar do processo de decisão: segundo Rousseau, “[p]ara que uma vontade seja geral, nem sempre é necessário que seja unânime, mas sim que todos os votos sejam contados. Qualquer exclusão formal rompe a generalidade.” (ROUSSEAU, 1999, p. 34/III, p. 369).[19] Aqui se verifica a relevância atribuída à igualdade formal, uma vez não serem admitidas exclusões formais;
ii) informação suficiente, ausência de comunicação entre os cidadãos e inexistência de facções: esses critérios são encontrados na seguinte passagem do Contrato social:
Se, quando o povo suficientemente informado delibera, os cidadãos não tivessem nenhuma comunicação entre si, do grande número de pequenas diferenças haveria de resultar sempre a vontade geral, e a deliberação seria sempre boa. Mas, quando se estabelecem facções, associações parciais a expensas da grande, a vontade de cada uma dessas associações se faz geral em relação aos seus membros, e particular em relação ao Estado; pode-se, então, dizer que já não há tantos votantes quantos são os homens, mas apenas tantos quantas são as associações. (ROUSSEAU, 1999, p. 37s/III, p. 371s, grifo nosso).
Esse excerto contém elementos bastante relevantes para o pensamento político de Rousseau, os quais serão analisados separadamente. Primeiramente, no que diz respeito à informação suficiente, trata-se de dois tipos de informação, a saber, os cidadãos devem estar suficientemente informados tanto a respeito dos detalhes relativos ao caso sob apreciação, como também devem conhecer o conteúdo da vontade geral, isto é, a vontade geral em sentido normativo, o ideal de bem comum compartilhado que deve ser claro e evidente para os cidadãos de uma determinada comunidade política. Esse critério, embora não seja fácil de ser alcançado, é menos polêmico do que os seguintes, no que concerne à interpretação da obra de Rousseau. A questão da ausência de comunicação entre os cidadãos é tema bastante controverso entre os intérpretes do filósofo genebrino, podendo-se citar pelo menos duas interpretações bastante distintas (ambas levando em consideração não apenas essa passagem, mas a obra de Rousseau de forma mais ampla).
De um lado, encontram-se aqueles que sustentam ser Rousseau o teórico de uma espécie de democracia direta e aclamatória, isto é, de um modelo democrático no qual a assembleia popular é muda, pode votar, mas não pode discutir ou deliberar publicamente. O termo “deliberação” utilizado por Rousseau, como sugere Manin, deve ser entendido no sentido de “decisão” (MANIN, 1985, p. 72-93). Os problemas oriundos da ausência de comunicação comprometeriam o projeto de Rousseau, uma vez que, numa perspectiva democrática, a participação dos cidadãos na autoria legislativa ficaria prejudicada, ao se atribuir mais poderes aos delegados (oficiais encarregados do exercício das funções executivas, a quem cabe discutir, deliberar e decidir sobre inúmeros assuntos) do que ao povo soberano (URBINATI, 2006, p. 60ss); e, numa perspectiva de conciliação entre autonomia coletiva e autoridade, a compatibilidade proposta ficaria prejudicada, pois, na ausência de discussão e de deliberação para a formação da vontade geral, Rousseau acaba tendo que recorrer a outros meios para conseguir a coesão social almejada, a fim de coadunar a vontade geral substancial ao resultado da votação, como, por exemplo, ao legislador, à religião civil, à censura e a um modelo de Estado ideal que se pauta fortemente na igualdade e na fraternidade, fazendo com que o indivíduo se subsuma na comunidade e que sua vontade, a qual deve estar presente na lei à qual ele se submeterá, seja forjada pelos valores da comunidade, o que abre espaço, embora apenas potencialmente, para um Estado autoritário (PINZANI, 2006, p. 185ss).
De outro lado, situam-se aqueles que entendem que Rousseau não pode ser tratado como um autor que não admite a comunicação entre os cidadãos, e interpretam a passagem acima citada não como uma oposição à discussão e à deliberação pública, mas como uma recusa à intriga e à formação de facções. Segundo esse entendimento, o filósofo não estava preocupado em evitar a discussão, porém, em assegurar que cada cidadão pudesse opinar de acordo com seu próprio ponto de vista, e não conforme o ponto de vista de um grupo ou de uma associação particular ou facção. O problema da existência de facções é que elas tendem a fazer prevalecer uma vontade parcial, em detrimento da vontade geral, ao exercer pressão sobre os cidadãos, impedindo-os de expressar seus próprios julgamentos. Seria uma contradição da parte de Rousseau exigir que os cidadãos estejam suficientemente informados e impedir a discussão, a qual desempenha igualmente um significante papel no esclarecimento dos cidadãos (ESTLUND; WALDRON, 1989, p. 1318-1328). Essa leitura aproxima Rousseau da tradição da política participativa e também interpreta sua teoria de modo mais liberal, na medida em que a admissão da deliberação pública reforça a ideia de que não há necessidade de rejeitar desacordos políticos no conteúdo da vontade geral e, por conseguinte, torna-se mais fácil conciliar a concepção de autonomia política com o resultado da votação, sem ter que recorrer tão enfaticamente a um Estado ideal, no qual a vontade dos cidadãos é forjada pelos valores comunitários (COHEN, 2010, p. 75ss; RAWLS, 2007, p. 231).
Há, de fato, ambiguidades na obra de Rousseau que dão sustentação a ambas as leituras. Apenas para exemplificar, no Contrato social, na passagem já citada, o filósofo considera que, se não houver comunicação entre os cidadãos, a deliberação será boa e dela resultará a vontade geral, isto é, a não comunicação seria uma entre as condições de infalibilidade do processo de votação. No mesmo sentido, no Livro IV, Cap. II, o filósofo associa a comunicação e longas discussões a dissensões e tumultos que fazem prevalecer os interesses particulares, em detrimento do interesse público (ROUSSEAU, 1999, p. 128/III, p. 439). Contudo, no parágrafo imediatamente anterior, no Livro IV, Cap. I, há um excerto com considerações em sentido contrário, a saber: “[n]esta altura eu teria muitas considerações a fazer sobre o simples direito de votar em qualquer ato de soberania; direito este que nada pode subtrair aos cidadãos; e sobre o direito de opinar, de propor, de dividir, de discutir, que o governo tem sempre o grande cuidado de reservar apenas aos seus membros.” (ROUSSEAU, 1999, p. 127/III, p. 438s). As interpretações apresentadas também encontram suporte em outros textos de Rousseau. Não cabe aqui levar essa discussão adiante, haja vista que isso demandaria um texto à parte e, por ora, o desenvolvimento desse tema não é relevante para o ponto que se pretende defender, neste artigo. Importa apenas apontar para os desacordos em torno desse critério da “não comunicação” e sua relação com a exigência de informação suficiente e de inexistência de facções.
Quanto à inexistência de facções, cabe ainda ressaltar que esse critério está vinculado à exigência de que cada cidadão manifeste sua própria opinião, no momento da emissão de seu voto, o que, como já mencionado acima, não é mais possível quando se formam facções. Segundo Rousseau, é importante, “[...] para se chegar ao verdadeiro enunciado da vontade geral, que não haja sociedade parcial no Estado e que cada cidadão só venha a opinar de acordo com seu próprio ponto de vista.” (ROUSSEAU, 1999, p. 38/III, p. 372). Entretanto, a opinião dos cidadãos não pode expressar seu interesse privado, mas, ao contrário, deve ser expressão da melhor compreensão do que venha a ser o bem comum;
iii) a matéria submetida à votação deve ser geral: de acordo com Rousseau, “[...] não existe vontade geral acerca de um objeto particular.” (ROUSSEAU, 1999, p. 46/III, p. 378). Isso significa que as matérias submetidas à votação devem ser de interesse de todos, devem regular situações nas quais qualquer cidadão possa estar envolvido e não podem jamais regular uma situação particular. A lei é definida pela generalidade da vontade e pela generalidade do objeto;
iv) aceitação da regra majoritária: como sabido, Rousseau exige unanimidade apenas para o pacto social. Para todas as demais leis a serem aprovadas no Estado, “[...] o voto da maioria obriga sempre os demais – é uma consequência do próprio contrato.” (ROUSSEAU, 1999, p. 129/III, p. 440).[20] Isso não significa, porém, que a unanimidade não seja desejável. As decisões devem aproximar-se da unanimidade, à medida que sejam mais graves e importantes. Por outro lado, assuntos que exigem rapidez na tomada de decisão podem ser objeto de uma votação por maioria simples (ROUSSEAU, 1999, p. 131/III, p. 441). Assim, decisões tomadas por maioria dos votos são legítimas, desde que os demais critérios acima apontados sejam também respeitados. Entretanto, aqui surge novamente a questão da compatibilidade entre liberdade e autoridade: “[...] como pode um homem ser livre e ao mesmo tempo forçado a se conformar com vontades que não são a sua? Como podem os oponentes ser livres e, ao mesmo tempo, submetidos a leis que não consentiram.” (ROUSSEAU, 1999, p. 129/III, p. 440). Para responder a essas questões, Rousseau tem que lançar mão do conceito substancial de vontade geral e reconhecer que nem sempre o resultado da votação conhecerá de fato esse conceito. Para ele, a pergunta feita aos cidadãos no momento da votação “[...] não é precisamente se aprovam a proposta ou rejeitam, mas se ela está ou não de acordo com a vontade geral que é a deles.” (ROUSSEAU, 1999, p. 130/III, p. 440s). A vontade geral, por conseguinte, é extraída do cálculo dos votos. É exatamente recorrendo ao conceito substancial de vontade geral que Rousseau pretende escapar ao problema da tirania da maioria. Segundo ele, “[...] quando o resultado contrário ao meu prevalece, isto só prova que eu me enganei e que aquilo que eu imaginava ser a vontade geral não o era. Se meu parecer particular tivesse prevalecido, eu teria feito o que não desejava e então não seria livre.” (ROUSSEAU, 1999, p. 130/III, p. 441). Essa questão remete a discussão para o último critério a ser aqui apresentado;[21]
v) clareza por parte de cada cidadão a respeito do que é a vontade geral: antes de discorrer sobre o sufrágio e sobre o procedimento de contagem dos votos, no Contrato social, Rousseau faz uma série de considerações que servem como máximas a regular o procedimento de votação, nas quais o conhecimento da vontade geral substancial surge como condição à qual todas as demais se encontram subordinadas. Em seu entendimento, é provável que o resultado da votação reflita o conteúdo da vontade geral, e não meramente a vontade da maioria, se os “[...] homens reunidos se consideram como um só corpo, têm uma só vontade que se refere à conservação do bem comum e ao bem-estar geral”. (ROUSSEAU, 1999, p. 125/III, p. 437, grifo nosso). Diante dessa condição, “[...] todos os móbeis do Estado são vigorosos e simples, suas máximas são claras e luminosas, não existem interesses confusos e contraditórios, o bem comum mostra-se por toda parte com evidência e não exige senão o bom senso para ser percebido.” (ROUSSEAU, 1999, p. 125/III, p. 437). Contudo, o próprio Rousseau reconhece que, para que a relação entre vontade geral e vontade da maioria consiga conciliar liberdade e autoridade, deve estar condicionada ao fato de que “[...] a vontade geral seja mais ou menos fácil de conhecer e o Estado esteja em maior ou menor declínio.” (ROUSSEAU, 1999, p. 129/III, p. 440).
Desse modo, se a vontade geral resultante do procedimento de votação, não obstante a observância de todos os critérios acima mencionados, está subordinada ao conhecimento, por parte dos cidadãos, do conteúdo da vontade geral enquanto ideal normativo e, tendo em vista que as condições nas quais esse conhecimento é possível são bastante difíceis de serem encontradas, em Estados concretos, parece que o procedimento proposto por Rousseau, apesar da observância de todos os critérios formais, resultará mais frequentemente na vontade da maioria e, raramente, na vontade geral. Ou, para fazer com que o resultado do procedimento de votação se coadune com a vontade geral enquanto ideal normativo, Rousseau tem que recorrer às condições do Estado ideal (pequeno, sem desigualdades econômicas extremas e com forte identidade cultural).
Parece haver, então, um círculo vicioso na proposta de Rousseau, no qual o procedimento de votação está subordinado a um ideal normativo de vontade geral, que assume, por sua vez, o caráter de uma verdade a ser descoberta pelo próprio procedimento (concepção epistemológica de democracia). Mas, por outro lado, entre os critérios para a legitimidade e para funcionamento do procedimento, está a clareza dos votantes a respeito do que venha a ser esse ideal normativo. Trata-se de um procedimento que precisa de uma sociedade coesa em costumes. Ele daria conta de desacordos a respeito da interpretação do bem comum, no entanto, não daria conta de desacordos acerca do significado do próprio bem comum. No caso de haver desacordo sobre o que é o bem comum, a intersecção de interesses que permite a aplicação do método matemático, proposto no Cap. III do Livro II do Contrato social, parece não ter sucesso.
3 Condorcet e a formação e a identificação da razão coletiva
Muitas das ambiguidades e obscuridades existentes na obra de Rousseau a propósito do conceito de vontade geral têm sido recentemente enfrentadas, a partir da retomada do trabalho de Condorcet. Filósofos e cientistas políticos têm se dedicado, especialmente, à compreensão da metodologia proposta no teorema do júri[22] e suas implicações para a teoria da escolha social, a qual estuda o modo pelo qual as preferências individuais formam preferências públicas. Neste artigo, todavia, serão analisados ainda outros textos do filósofo e matemático francês, notadamente, os textos nos quais ele propõe um modelo de democracia deliberativa, pois são nesses textos que se verifica uma transição de Condorcet, de uma perspectiva meramente epistêmica da democracia para uma concepção também procedimental, mudança esta bastante significativa, no que concerne à identificação da vontade geral ou coletiva. Nesse contexto, uma diferença relevante entre ambos os autores é que, diferentemente de Rousseau, Condorcet aceita a representação e delineia, em sua obra, uma estrutura institucional capaz de conciliar representação e ampla participação política dos cidadãos.
A obra do filósofo iluminista é marcada por circularidades, a saber, as relações complementares entre verdade e processo de votação, entre forma (a matemática do processo eleitoral) e conteúdo (a necessidade de homens esclarecidos) e entre instrução pública e liberdade individual (KINTZLER, 1984, p. 27s). Essas circularidades podem ser entendidas como elementos que se inter-relacionam em vários níveis. Assim, a formação da vontade também se insere nesse processo circular, no qual forma e conteúdo se entrelaçam. A legitimidade das decisões que expressam essa vontade depende tanto da observância da forma legal estipulada para o processo de votação e de deliberação quanto da racionalidade daqueles que decidem. A vontade não é algo dado, ela é construída. Sua construção depende de elementos metodológicos (voto e deliberação, realizados dentro de instituições democráticas) e substanciais (o sujeito esclarecido e a igualdade de direitos). Dessa maneira, para se chegar ao conceito de vontade ou de razão coletiva, na obra de Condorcet, três elementos precisam ser analisados, a saber: o método para a identificação da vontade, as instituições democráticas e a formação do cidadão esclarecido.
3.1 O método para identificação da vontade e as instituições democráticas
No estudo da metodologia é que aparece, ao lado do filósofo e do político, também o matemático Condorcet. Antes de se dedicar à teoria e à prática política, o autor foi reconhecido como um brilhante matemático, consagrado pelo estudo do cálculo de probabilidades (CHOUILLET, 1993, p. 19ss). Seus estudos matemáticos foram a base para o desenvolvimento da teoria por ele chamada de matemática social,[23] cujo objetivo era “[...] contribuir para o aperfeiçoamento da espécie humana.” (CONDORCET, 1847, I, p. 541).[24] Essa ciência tinha por objeto o estudo do homem em suas relações sociais, sendo que o termo “social” abarca tanto a política quanto a moral. Segundo Alengry, o método utilizado por Condorcet, em sua matemática social, mescla elementos do empirismo de Hume e de Locke com o racionalismo e apriorismo cartesiano (ALENGRY, 1904, p. 129ss; BAKER, 1975, p. 129ss). Por um lado, ele “[...] parte da sensação para chegar imediatamente à ideia e ao cálculo” (ALENGRY, 1904, p. 784s), mas, por outro lado, em sua teoria, o raciocínio por análise assume a forma do cálculo. Condorcet teria transportado para o domínio das ciências morais e políticas a matemática de Descartes, o que lhe permitiu afastar, em nome da razão, a autoridade da Igreja, a superstição e a intolerância.
Ao aplicar a matemática às ciências sociais e à política, seu objetivo foi aproximar, tanto quanto possível, as ciências sociais das ciências exatas, em relação à precisão dos resultados.[25] Esse tema está presente em muitos de seus escritos, porém, pode ser encontrado de forma mais detalhada nos seguintes textos:
Ensaio sobre a aplicação da análise de probabilidade às decisões tomadas por pluralidade de votos (1785); Ensaio sobre a constituição e as funções das assembleias provinciais (1788), Sobre a forma das eleições (1789), Projeto de Constituição Francesa (1793), Sobre as eleições (1793) e Quadro geral da ciência que tem por objeto a aplicação do cálculo às ciências políticas e morais (1795).[26] Nesses escritos, ele discorre sobre os procedimentos de votação, de deliberação e sobre o cálculo das maiorias (simples ou qualificada). Mas em todos esses textos há uma questão central, a saber, a formação da vontade coletiva, à qual Condorcet atribuirá, como se verá, nomes diferenciados.
No primeiro desses textos, o Ensaio sobre a aplicação da análise à probabilidade de decisões tomadas por pluralidade de votos, Condorcet revisa a teoria da formação da vontade, seguindo o critério da decisão majoritária. O autor considera que,
[...] quando o costume de submeter todos os indivíduos à vontade do maior número se introduziu nas sociedades e os homens concordaram em considerar a decisão da maioria como a vontade comum de todos, eles não adotaram esse método como um meio de evitar o erro e de se conduzir de acordo com decisões fundadas na verdade, mas eles acreditaram que para o bem da paz e da utilidade geral era preciso colocar a autoridade no lugar da força e que, visto que era preciso deixar-se guiar por uma vontade única, era a vontade do pequeno número que naturalmente devia sacrificar-se àquela do maior número. (CONDORCET, 1785, p. iii).
Para Condorcet, contudo, essa justificação inicial da opção pela decisão majoritária não parece ser suficiente. Por isso, ele busca algo mais além da paz e da utilidade geral: ele almeja aproximar-se da verdade. Nesse texto, o filósofo iluminista revisita o conceito de vontade geral de Rousseau, tentando, segundo alguns de seus intérpretes, esclarecer muitos dos aspectos desse conceito deixados obscuros pelo genebrino. (GROFMAN; FELD, 1988, p. 567-576; ESTLUND; WALDRON, 1989, p. 1317-1340; YOUNG,1988, p. 1231-1244; PONS, 1993).[27]
É nesse texto que Condorcet desenvolve o seu teorema do júri, que trata da utilização do cálculo de probabilidade para demonstrar que as decisões coletivas podem ser corretas, dependendo do tamanho, da competência dos membros do corpo votante e do número de alternativas sob consideração. O principal argumento presente nesse texto é que cidadãos esclarecidos tentarão honestamente avaliar qual decisão será mais adequada à sociedade. Os cidadãos esclarecidos e bem-intencionados podem ocasionalmente julgar errado, mas, assumindo-se que eles estarão mais frequentemente certos do que errados, a opinião da maioria provavelmente será a correta.[28] Assim, o que Condorcet visa com o teorema do júri é garantir um meio seguro e aplicável de atribuir conteúdo ao ideal abstrato representado pelo conceito de vontade geral.
O teorema do júri é, pois, um mecanismo de justificação por meio do qual, dada uma determinada forma e matéria, seria possível chegar muito próximo da verdade, no contexto jurídico, ou da vontade geral, no contexto político. Nesse momento, não há ainda no texto condorcetiano um viés democrático, no sentido de possibilitar a ampla participação popular na tomada de decisões. Todavia, há a justificação de um determinado procedimento metodológico (cujo funcionamento é de difícil compreensão, uma vez que se trata da aplicação da matemática às decisões coletivas) que depende de elementos formais e substanciais, para alcançar ou aproximar-se da decisão correta (cf. CONDORCET, 1785, p. lxiv/lxv). Logo, o autor está mais preocupado em ter participantes esclarecidos decidindo do que em ter um grande número de indivíduos participando da vida pública, porque, aplicando seu método, se uma assembleia (ou tribunal) for formada por indivíduos esclarecidos, quanto maior o tamanho do corpo deliberante, maior a probabilidade de a decisão aproximar-se da verdade. Por outro lado, se os membros forem pouco esclarecidos, quanto maior o número de participantes, maior a probabilidade de que decidam errado, isto é, maior a probabilidade de que decidam de acordo com seus interesses privados em detrimento do interesse comum ou da vontade geral (CONDORCET, 1785, p. xxiv).
Paradoxalmente, embora o Ensaio de 1785 seja quase em sua totalidade dedicado à forma, ou seja, ao método capaz de aproximar as decisões coletivas da verdade, a conclusão do autor é que o método apenas funcionará adequadamente, se for utilizado por cidadãos esclarecidos. Em suas palavras:
Assim a forma das assembleias que decidem a sorte dos homens é bem menos importante para a felicidade deles do que o esclarecimento daqueles que as compõem, e os progressos da razão contribuirão mais ao bem dos Povos do que a forma das constituições políticas. (CONDORCET, 1785, p. lxx).
Forma e cidadãos esclarecidos: esses são os dois elementos que Condorcet exige, para que as decisões coletivas se aproximem da verdade, ou seja, para que a vontade resultante do processo de eleição e deliberação seja um reflexo do interesse comum. Antes de se analisar o problema do esclarecimento dos cidadãos, é preciso primeiro entender melhor como Condorcet aplica a matemática social à formação da vontade, através dos processos de eleição e deliberação, pois, segundo ele, a eleição e a deliberação, entendidas como processos de tomada coletiva de decisões, são as bases de uma constituição livre (CONDORCET, 1847, VII, p. 561). Com efeito, como ressalta Granger, em seu estudo sobre a matemática social de Condorcet, o voto não é apenas um problema parcial de ciência política, mas é uma questão que diz respeito ao “[...] sistema arquitetônico da fisiologia social por inteiro”, já que do direito de participar igualmente da elaboração das leis dependem todos os demais direitos (GRANGER, 1989, p. 95).
Esse método, trazido a público em 1785, é reapresentado pelo autor em outros textos, antes e após a Revolução Francesa, nos quais ele traduz para a linguagem da filosofia e da teoria política algo explicado inicialmente a partir da matemática.[29] Neles, Condorcet analisa detalhadamente os procedimentos e métodos de eleição e de deliberação que podem aproximar as decisões coletivas da verdade. Com relação ao modo de eleição e de deliberação, a exposição mais clara e precisa encontra-se no Projeto de Constituição Francesa de 1793, embora os fundamentos de suas teses tenham sido expostos em textos anteriores, notadamente, no Ensaio sobre a constituição e as funções das assembleias provinciais (1788) e em Sobre a forma das eleições (1789).
Ao analisar o procedimento eleitoral, Condorcet sustenta que as eleições não deveriam seguir o método mais comum segundo o qual é eleito o candidato que recebeu o maior número de votos. O principal argumento aqui é que essa metodologia pode levar ao erro para eleições nas quais o número de candidatos for superior a dois, haja vista que o candidato com maior número de votos não é necessariamente aquele que tem a aprovação da maioria dos votantes, todavia, ao contrário, os votos dados aos seus concorrentes podem, se somados, representar a vontade da maioria. Por conseguinte, o autor entende que esse método não proporciona aos eleitores um direito de eleição, mas um direito de exclusão dos candidatos menos desejados. Ele sugere um método no qual a resolução da maioria sobre o mérito de todos os concorrentes seja tomada a partir da comparação entre os candidatos, cujos nomes seriam inscritos em listas seguindo a ordem do mérito que cada eleitor atribuir ao seu candidato (CONDORCET, 1847, IX, p. 305).
Essa ideia encontra-se mais bem delineada no Título III, Seção III do Projeto de Constituição Francesa (1793), no qual Condorcet propõe um método de escolha que implica a eleição em duas etapas, realizada por meio de duas votações: “[...] a primeira, simplesmente preparatória, servirá apenas para formar uma lista de apresentação; a segunda, aberta somente aos candidatos inscritos na lista de apresentação, será definitiva e consumará a eleição.” (CONDORCET, 2013, p. 135). Na primeira votação, cada eleitor inscreverá em seu boletim de votação o “[...] número de nomes igual àquele de cargos a eleger.” (CONDORCET, 2013, p. 135). A lista de apresentação será formada pelos cidadãos que obtiveram o maior número de votos. O número total de candidatos que passará da primeira para a segunda etapa da eleição será três vezes maior do que o número de cargos a serem preenchidos. Na segunda e última votação. cada eleitor receberá “[...] um boletim com duas colunas, divididas cada uma com tantas casas quanto houver sujeitos a nomear. Uma dessas colunas será intitulada: primeira coluna da eleição; a outra, coluna suplementar.” (CONDORCET, 2013, p. 137). No momento da votação, cada eleitor inscreverá “[...] na primeira coluna tantos indivíduos quanto houver de cargos a eleger; e, em seguida, na coluna suplementar, um número de nomes igual àquele inscrito na primeira coluna.” (CONDORCET, 2013, p. 135).
Quando há apenas um cargo a ser preenchido, o procedimento de escolha é um pouco distinto daquele acima descrito. Embora também se realize por meio de duas votações, na votação de apresentação, cada eleitor escreverá apenas um nome em seu boletim de votação, porém, a lista de apresentação não conterá o número de candidatos equivalentes a três vezes o número do cargo vago, mas um número previamente determinado, que é o de treze. A votação definitiva se fará em duas colunas e “[...] se durante a contagem geral dos votos contidos na primeira coluna um dos candidatos reunir a maioria absoluta, ele será eleito.” Caso contrário, “[...] serão reunidos os votos em favor de cada candidato contidos nas duas colunas: aquele que então obtiver mais votos será eleito” (CONDORCET, 2013, p. 139), sempre seguindo a ordem do maior número de votos.
Esse método de eleição apresenta três aspectos que são dignos de nota. Primeiramente, ele permite aos eleitores não apenas escolherem seus representantes, mas também possibilita aos cidadãos formarem a lista de candidatos a representantes. Em segundo lugar, ele faz com que o eleitor faça um escalonamento de suas preferências, uma vez que ele terá que se pronunciar a respeito de todos os candidatos, realizando um juízo de valor acerca de cada um deles, de modo a escolher qual será sua primeira, segunda ou terceira opção e assim por diante, o que não é possível na forma tradicional, porque, ao optar por um candidato, o eleitor está automaticamente impedido de manifestar sua opinião sobre os demais. Assim, surge a possibilidade de, através do voto, mostrar-se não apenas a aceitação, mas também a rejeição a um determinado candidato ou projeto político. Por fim, esse método, ao fazer com que o eleitor realize um juízo de valor sobre cada candidato (ou projeto político), força os indivíduos a fazerem uso de seu julgamento, de sua capacidade racional e, dessa maneira, passa a ser um coadjuvante na tarefa de formar cidadãos mais esclarecidos.[30]
Em Sobre a forma das eleições (1789), Condorcet discorre sobre a importância de um bom método de eleger. Segundo ele, é preciso “[...] procurar em um método de eleição a probabilidade de escolher frequentemente o mais digno, e a garantia de fazer apenas raramente a má escolha.” (CONDORCET, 1847, IX, p. 289). Um bom método deveria conseguir lidar com situações sociais inóspitas, nas quais “[...] não é à razão, à virtude, à identidade de interesses dos cidadãos e de seus delegados que a nação pode então confiar sua sorte; é ao equilíbrio das paixões opostas, dos interesses contrários, dos preconceitos que se combatem.” (CONDORCET, 1847, IX, p. 288).
Condorcet aplica ainda a sua matemática social ao processo de deliberação. Esse tema vem a público de forma bastante minuciosa, em 1788, no Ensaio sobre a constituição e as funções das assembleias provinciais. Nesse texto, o método proposto consiste em reduzir os temas a serem deliberados a proposições simples, de sorte que os votantes possam decidir por sim ou não. Os responsáveis pela redução do tema em debate a proposições simples devem de todo modo evitar combinações contraditórias. Uma proposição que apresentasse tais contradições deveria ser considerada nula e, nesse sentido, Condorcet buscou prescrever uma forma de votação que tornasse impossível a emissão de uma resolução baseada em informações contraditórias ou absurdas.
Ora, Condorcet define o modo pelo qual um tema pode ser preparado para ser decidido por uma assembleia, por meio da emissão da concordância ou discordância dos votantes. Contudo, como e por quem esse trabalho deveria ser feito? O autor reconhece que esse não pode ser um trabalho atribuído a todos os membros da assembleia, sob pena de se tornar o processo todo de deliberação demasiadamente lento. Sugere, então, que seja designado um comitê, formado por membros da própria assembleia, os quais se dedicariam exclusivamente a essa tarefa. Mas, ao se incumbir um pequeno número de membros da realização de uma atividade de extrema importância, não se estaria retirando dos representantes do povo o direito de discutir e de opinar sobre aquilo que será colocado em votação? Ele não estaria aqui repetindo o modelo aclamatório delineado por Rousseau? Esse é o primeiro ponto relevante na discussão apresentada por Condorcet acerca da deliberação no Ensaio de 1788 (o segundo será a discussão a respeito dos tipos de maioria e do quorum de votação). De acordo com o autor, esse método não pretende substituir os representantes do povo pelos membros do comitê. Ele adverte que não se deve confundir
[...] a instituição de um comitê encarregado de fazer a análise de uma questão de modo que ela possa ser decidida segundo uma forma que não deixe nenhum espaço para o medo enganar a resolução da maioria, com o direito de conceder a um corpo, ou a um só homem, propor os objetos que devem ser colocados em deliberação. (CONDORCET, 1847, VIII, p. 599).
Dessa forma, observa-se que, enquanto os membros de uma assembleia estão no exercício de um direito, os membros do comitê estão apenas exercendo uma função, uma função de demasiada importância que é tratada pelo autor como se fosse efetivamente um trabalho intelectual, aquele de transformar em proposições simples questões complexas, possibilitando o bom desempenho dos representantes, durante as votações. Os membros dos comitês não são mais do que “[...] comissários encarregados pelo próprio corpo de representantes de submeter a uma análise exata um objeto sobre o qual ele resolveu deliberar.” (CONDORCET, 1847, VIII, p. 599). Em razão das características desse comitê, nada impede que a discussão sobre o tema que será reduzido a proposições simples seja feita por todos os membros da assembleia, já que é somente após o debate geral entre todos os representantes que a questão será submetida ao comitê encarregado de analisá-la e reduzir todas as possíveis soluções, as quais poderão resultar em uma série de proposições simples. Logo, como ele mesmo observa, “[...] concilia-se a liberdade da discussão nas deliberações ao método e à precisão na forma das decisões.” (CONDORCET, 1847, VIII, p. 213).
Para tornar o resultado da deliberação ainda mais preciso, além da decisão ter que ocorrer por meio da concordância ou discordância com proposições simples previamente preparadas por um comitê, deve-se pré-estabelecer, de acordo com a natureza do tema, o tipo de maioria, simples ou qualificada, que se exigirá no momento da votação. Esse é o segundo ponto que deve ser ressaltado no Ensaio de 1788. Conforme Condorcet, a determinação de uma regra que estipule o quorum a ser exigido para cada votação é uma das questões que exige mais cuidado por parte de uma assembleia (CONDORCET, 1847, VIII, p. 216s).
Condorcet sugere que, quando se tratar de restringir ou limitar direitos, deve-se sempre exigir maioria qualificada. Por outro lado, no caso de ampliar esses direitos, a maioria simples é suficiente. Também pode ser adotada maioria simples para a aprovação de questões urgentes (CONDORCET, 1847, VIII, p. 216). Desse modo, ele considera não haver razão para se temer as decisões tomadas por assembleias, pois esse método permitiria que as decisões necessárias não fossem retardadas, uma vez que seriam tomadas por maioria simples, e aquelas que demandariam mais cuidado seriam tomadas por maioria qualificada.
Em 1793, ao estabelecer, no Projeto de Constituição Francesa, as formas de deliberação, Condorcet permanece fiel a esse método criado em 1788, estipulando, quanto a ele, apenas pequenas alterações. Antes de iniciar a exposição acerca das mudanças metodológicas, deve-se ressaltar que, entre 1788, quando Condorcet apresentou pela primeira vez seu método de deliberação, e 1793, muitos dos pressupostos de sua teoria política e constitucional foram reformulados, tendo sido estendidos a praticamente toda a população adulta os direitos políticos e a possibilidade de tomar parte nas decisões coletivas. Essa ressalva se faz necessária, porque a “guinada democrática” do autor tem implicações no que se enfatizará a seguir, a respeito do método e do papel desempenhado pelas instituições da República, as quais devem ser democráticas.
Como já mencionado, Condorcet admite a representação e busca conciliá-la com a ampla participação política dos cidadãos, na tomada de decisões coletivas. A representação, nos moldes propostos por autores como Sieyés ou Madison, foi uma tentativa de tornar o processo de decisão o mais indireto possível, a fim de evitar a interferência das paixões e interesses pessoais na formação da vontade geral. Em razão do temor despertado pela possível ação da paixão na vida pública, a participação intensa dos cidadãos na política foi sempre objeto de preocupação de grande parte dos pensadores políticos das sociedades pós-revolucionárias. Para Condorcet, todavia, o problema não é a participação em si, mas a ausência de regras que a regulem. O verdadeiro obstáculo ao bom funcionamento da ordem social é, pois, a decisão sem mediação e não a participação popular. Sua meta foi “[...] prevenir a participação ‘imprudente’ pelos cidadãos ou por seus representantes, expostos à ignorância, a interesses sectários e à intemperança das paixões.” (URBINATI, 2006, p. 183). A fim de evitar esse tipo de problema, o autor propôs, em seu Projeto de Constituição, a multiplicação dos locais de debate e um complexo sistema de aumento do tempo para a tomada de decisões, criando assim outro modo de formação indireta da vontade.
O ideal de soberania popular é a ponte entre a forma (representativa) e o conteúdo da Constituição condorcetiana, pois, ao mesmo tempo em que a participação popular é o objeto e o sustentáculo da República, ela é também um dos principais direitos reconhecidos pela Constituição. O direito de soberania compreendia muitos direitos e não somente a possibilidade de escolher candidatos e eleger representantes: pressupunha revisar a Constituição de tempos em tempos, sugerir emendas constitucionais a qualquer tempo e propor novas leis, o que se pode chamar de poderes positivos. Os cidadãos poderiam ainda rejeitar leis e medidas contrárias aos seus direitos e interesses e, em algumas ocasiões especificadas por normas e critérios rigorosos, provocar novas eleições. Nesse sentido, exerceriam uma espécie de poderes negativos.
Em uma Constituição verdadeiramente livre, ressalta ele, “[...] não somente todo poder emana do povo, e se refere à vontade unânime de se submeter à opinião da maioria [...] mas também toda a força dos poderes delegados se reduz àquela do próprio povo, de modo que ela cai necessariamente com sua confiança [...]” (CONDORCET, 1847, X, p. 611). Assim, a formação da vontade soberana ocorre por meio de deliberações mediadas por procedimentos que estabelecem critérios objetivos a respeito do tempo e do lugar, além, de certo modo, do conteúdo daquilo que será deliberado, porque, caso os cidadãos considerem que seus representantes estão afrontando seus direitos ou a própria Constituição, podem destituí-los de seus cargos. Com esse desenho político-institucional, Condorcet acreditou estar prevenindo a flutuação fortuita do povo entre um estado de despolitização passiva e um estado de mobilização extralegal. Ele buscou conciliar o grande espaço do governo representativo com pequenos espaços de participação política.
Todos os poderes, todas as funções, quer nacionais, quer regionais, quer ainda distritais ou locais, têm origem por meio de eleição direta. As eleições, embora não sejam o único modo de exercício do direito de soberania, são o primordial. Os cidadãos devem eleger todos os seus representantes nas assembleias primárias. Logo no início do Projeto de Constituição Francesa, Condorcet define que o território francês deverá ser dividido em departamentos e estes deverão ser subdivididos em comunas, as comunas em seções municipais e estas em assembleias primárias. Essa divisão territorial é realizada no intuito de tornar possível a participação direta e frequente dos cidadãos nos atos de governo, principalmente buscando evitar que as assembleias primárias fossem compostas por um grande número de membros, o que inviabilizaria a participação, a discussão e a deliberação, nos moldes idealizados para manter o poder decisório com o povo. Essas assembleias são as instituições nas quais os cidadãos exercem todos os seus direitos políticos (escolha de candidatos, votação em eleições, deliberações, referendos, direito de censura, provocação da revisão constitucional, colocação de funcionários públicos em julgamento).[31]
Pode-se mencionar duas principais diferenças entre o processo de deliberação proposto em 1788 e aquele de 1793. A primeira é que, no lugar de um comitê escolhido pelos representantes eleitos, quem deve reduzir a questão sob debate a uma proposição simples é o presidente da assembleia primária e o escritório (composto por membros da própria assembleia, escolhidos a cada convocação). A segunda diferença é que Condorcet estipulou um rigoroso sistema de prazos para a realização da deliberação em duas etapas (CONDORCET, 2013, p. 140ss).
Após formada a assembleia primária e havendo uma questão a ser deliberada, “[...] o presidente fará conhecer o assunto da deliberação, reduzido a uma questão simples que se possa responder com sim ou não; no final da sessão, ele suspenderá a assembleia por oito dias para produzir a decisão.” (CONDORCET, 2013, p. 140). Dessa maneira, nessa primeira sessão, os cidadãos tomam conhecimento do tema a ser deliberado e têm o prazo de oito dias para se esclarecerem e discutirem a respeito disso. O espaço físico da assembleia primária pode ser utilizado como local de encontro para troca de informações e debate, mas, nesse primeiro momento, a discussão se dá de modo informal, como Condorcet faz questão de ressaltar, na Exposição dos princípios e dos motivos do plano de constituição: “[...] o primeiro gênero de discussão pertence mais a homens isolados do que a uma assembleia deliberante; mais a uma sociedade particular do que a uma assembleia de funcionários públicos.” (CONDORCET, 2013, p. 69). O segundo gênero de deliberação, ao contrário do primeiro, deve obedecer às formas estipuladas. Encerrado o prazo de suspensão da assembleia, os cidadãos devem se reunir para deliberar. Nessa ocasião, o presidente relembrará os cidadãos a respeito do assunto da deliberação e os membros do escritório “[...] afixarão no interior da sala um placar contendo a exposição sumária da questão submetida à assembleia e, em duas colunas as palavras sim e não, com a explicação precisa da vontade que cada uma destas palavras exprime.” (CONDORCET, 2013, p. 140s). Depois dos esclarecimentos, “[...] cada votante escreverá ou fará escrever sobre seu boletim sim ou não, e o assinará ou o fará assinar em seu nome, por um dos membros do escritório, antes de depositá-lo na urna.” (CONDORCET, 2013, p. 141). Os cidadãos não precisam apresentar os seus votos todos ao mesmo tempo, após os esclarecimentos prestados pelos membros do escritório. A votação tem início após o encerramento dos oito dias concedidos para que os cidadãos se esclareçam sobre o tema a ser deliberado e “[...] será fechada apenas na sessão da tarde do segundo dia, às quatro horas; durante esse intervalo, cada cidadão será livre para apresentar-se na sessão na hora que melhor lhe convier para emitir sua resolução.” (CONDORCET, 2013, p. 141).
Condorcet acredita ser esse o melhor método para assegurar a aproximação do resultado das decisões coletivas (sejam elas eleições, sejam deliberações) da verdade, quer dizer, o melhor método para se descobrir qual é o interesse comum. No entanto, em Sobre as eleições (1793), ele afirma novamente que apenas uma boa forma não basta, é preciso também que os sujeitos que participam da tomada de decisões sejam esclarecidos (CONDORCET, 1847, XII, p. 637). A princípio, a conciliação dos métodos e procedimentos de tomada de decisão coletiva e o esclarecimento dos cidadãos parecem dar suporte a uma teoria da democracia elitista, a qual tende a excluir da participação política os cidadãos menos instruídos. Essa impressão poderia ser desfeita, ressalvando-se que o autor, ao longo dos anos, passou a atribuir um peso maior à forma do que ao esclarecimento dos cidadãos.
Mas esse não é o caso, Condorcet continua a sustentar, em todos os seus textos, que o esclarecimento daqueles que decidem é mais relevante do que a boa forma legislativa. Como, então, conciliar a ampla participação popular nos processos decisórios e a decisão próxima à verdade? Condorcet não opta por excluir do processo de participação aqueles que não são esclarecidos. Ele toma o caminho contrário, decidindo instruir os cidadãos, de sorte que eles possam participar adequadamente do processo de tomada de decisões. Essa é uma escolha republicana e democrática: é uma escolha republicana, na medida em que conta com instituições para a realização do projeto de instrução dos indivíduos e de formação dos cidadãos; é uma escolha democrática, porque está fundamentada no princípio da igualdade, ou seja, visa a estender a todos os cidadãos o direito de aprimorar os seus conhecimentos e de tomar parte nas decisões coletivas.
3.2 A formação do cidadão esclarecido
O cidadão esclarecido assume relevância política, na teoria de Condorcet, porque o autor estabelece uma estreita relação entre o indivíduo esclarecido e a possibilidade de formação de uma vontade coletiva pautada no interesse público. O homem esclarecido é aquele que, “[...] conhecendo os seus direitos, aprende a deles conhecer também os limites” (CONDORCET, 1785, clxxxvi), isto é, o homem esclarecido é aquele que consegue realizar a ponderação entre os seus interesses e direitos e aqueles de seus concidadãos, é aquele que consegue pensar de forma abstrata, de modo a fazer essa ponderação. Ele contrapõe-se ao ignorante, definido como aquele que é guiado por um mestre e que, ciente de seus interesses e direitos, clama por independência, entretanto, não é capaz de orientar-se na vida pública, realizando a construção abstrata de abdicar de seu interesse privado em prol do interesse público. Logo, por não reconhecer os limites inerentes aos (seus) direitos, o ignorante também desconhece a liberdade que surge desses limites e dá origem a uma dupla relação de dominação: por um lado, devido à sua falta de conhecimento, torna-se uma vítima em potencial de relações de dominação e de sujeição; por outro lado, por não conseguir colocar-se abstratamente no lugar dos outros, torna-se um potencial tirano (cf. KINTZLER, 1984, p. 56ss).
Assim, é dever da República criar um sistema de instrução capaz de proporcionar o desenvolvimento das faculdades intelectuais dos indivíduos, considerados iguais em sua capacidade racional (JAUME, 1989, p. 232). É por essa razão que o filósofo iluminista não poupa esforços para erigir um modelo de instrução pública que, por um lado, define e delimita um conjunto de saberes a ser estudado, assim como o método adequado para a difusão desses saberes e, por outro lado, protege o desenvolvimento da episteme em dois campos: no campo individual, para que a instrução pública não adentre a esfera privada e viole as liberdades pessoais; e no campo do próprio conhecimento, tomado como um conjunto de saberes independentes da interferência político-ideológica do poder público. Condorcet afirma o dever da República de promover a instrução pública de forma universal e gratuita, possibilitando aos indivíduos o esclarecimento necessário para participação na vida política de seu país e para controlar o desenvolvimento da ciência e da técnica, sem que sejam dominados por elas (KINTZLER, 1984, p. 87ss).
Os dois principais textos do autor sobre esse tema são Cinco memórias sobre a instrução pública (1791-1792) e Relatório e projeto de decreto sobre a organização geral da instrução pública (1792). O modelo de instrução pública delineado nesses textos apoia-se no princípio da igualdade, consubstanciado na proposta de acesso universal (incluindo as mulheres) e gratuito à formação e ao conhecimento, e da liberdade, sustentado pela ideia de independência individual frente a qualquer tipo de dominação. Esses princípios se entrelaçam sem, contudo, confundirem-se. A instrução pública tem por objeto tornar real a igualdade de direitos e não deixar subsistir nenhuma desigualdade que leve à dependência. Para tanto, é preciso que a sociedade assuma como seu dever “[...] proporcionar a cada homem a instrução necessária a exercer as funções comuns do homem, do pai de família e do cidadão, para sentir e conhecer todos os seus deveres.” (CONDORCET, 2008, p. 21).
De modo geral, o objetivo final da instrução pública é tornar a razão popular (CONDORCET, 2008, p. 65). Todavia, o que significa tornar a razão popular? Qual é a concepção de razão à qual o filósofo iluminista se refere? De acordo com Condorcet, o homem é um “[...] ser sensível, capaz de formar raciocínios e de adquirir ideias morais.” (CONDORCET, 1993, p. 135). A razão, por isso, é algo inerente ao indivíduo, é uma faculdade que, entretanto, precisa ser desenvolvida. A razão, salienta ele, é o único instrumento que nos foi dado para reconhecer a verdade (CONDORCET, 1993, p. 143). Mas, como observa Kintzler (1984, p. 37), a razão em Condorcet é como um talento natural, ela apenas se desenvolve, se for descoberta ou formada. Ao explicar esse conceito, a autora considera que Condorcet pensa a razão por meio de sua aplicação aos objetos, ou seja, ela não existe senão na realidade dos atos de conhecimento. Consequentemente, “[...] não se pode ser virtuoso sem ser um pouco instruído, e a legitimidade de toda decisão prática (ética ou jurídica) se mede pelo grau de verdade que ela pode alcançar.” (KINTZLER, 1984, p. 37). Assim, tornar a razão popular significa instruir os cidadãos e fazer com que a racionalidade que cada indivíduo possui em potencial seja desenvolvida. Isso cria uma relação de interdependência entre a epistemologia e a política, pois, por um lado, a legitimidade das decisões coletivas subordina-se ao uso da razão e, por outro lado, a racionalidade dos sujeitos que decidem depende de seu grau de instrução. A institucionalização da instrução pública é a via adotada por Condorcet para sair dessa situação circular.
Conforme Condorcet, é fundamental que a instrução pública seja institucionalizada e assegurada, por meio do direito. Segundo Kintzler (1984, p. 145), na concepção condorcetiana, “[...] a instituição jurídica é necessária ao funcionamento da episteme exatamente da mesma maneira que os interditos e as leis garantem a existência da liberdade.” É por estar assegurada pelo direito e por tornar os cidadãos iguais em direito que a instrução pública conduz à autonomia intelectual[32], conceito que se vincula à independência ou à extirpação da dependência no campo dos saberes elementares, tais como o domínio da leitura, da escrita e da própria língua, da matemática e de conhecimentos básicos sobre direitos e sobre a legislação em geral.[33] A autonomia intelectual é o que possibilita ao cidadão o exercício crítico da razão, a fim de avaliar, julgar, concordar ou discordar das decisões políticas tomadas ou, ainda, permite que os cidadãos participem adequadamente da tomada de decisões.
Autonomia intelectual e independência são conceitos que conduzem à ampliação do grau de liberdade política e individual, porque Condorcet admite a existência de graus de liberdade, os quais podem ser aumentados segundo arranjos político-institucionais. Assim, a liberdade pessoal (os direitos individuais) pode existir com ou sem liberdade política (participação igual na elaboração da lei), porém, nesse caso, ela não será uma liberdade completa. Aqui entram em cena os graus de liberdade. Condorcet visualiza, na história, a existência de casos de semiliberdade, como, por exemplo, em sociedades em que apenas alguns participam da elaboração da lei e todos devem obedecer, ou onde a participação de todos ocorre, mas de forma desigual. Segundo Cahen (1914, p. 589), “[...] um homem livre é aquele que goza da liberdade social. Um povo livre é aquele em que todos os membros alcançaram a idade da razão, gozando dessa liberdade.” Desse modo, a concepção de liberdade de Condorcet tem uma dupla finalidade: por um lado, ela é um ideal para o qual indivíduos e sociedades devem caminhar; por outro lado, ela é um parâmetro de avaliação do aperfeiçoamento pessoal, social e político.
A instrução pública é aquilo que deve impulsionar esse aperfeiçoamento. Fazendo uso das categorias apresentadas por Kintzler, a instrução deve possibilitar a transição do cidadão no sentido restrito, isto é, aquele que meramente exerce o direito de participar da soberania nacional, ao cidadão em sentido filosófico, aquele que, além de ter o direito de participar das decisões coletivas, também é “[...] capaz de formular uma vontade universal graças à autonomia de sua razão.” (KINTZLER, 1984, p. 194s).
3.3 A vontade geral ou razão coletiva
Chega-se então ao ponto no qual é possível voltar a abordar a formação da vontade coletiva. Condorcet apropria-se do vocabulário rousseauniano e faz uso do termo vontade geral; entretanto, em sua teoria, esse termo assume um sentido mais preciso do que aquele cunhado pelo genebrino, haja vista as condições procedimentais e epistemológicas pelas quais Condorcet tenta qualificar de forma pormenorizada esse conceito. Em alguns momentos do texto condorcetiano, o termo vontade não adjetivado (geral, comum) é usado para denotar um interesse privado. A vontade geral, termo relacionado ao interesse público, recebe o nome de razão coletiva, porque Condorcet pensa que as decisões coletivas devem conter tanto a vontade dos cidadãos quanto o seu julgamento. Assim, é importante frisar que a probabilidade de que a decisão coletiva esteja correta é erigida com base no julgamento e não apenas na vontade, como se vê em Sobre a forma das eleições:
Uma eleição, como toda outra decisão, deveria exprimir somente o julgamento [jugement] daqueles que têm o direito de decidir ou de eleger; mas os homens agem frequentemente segundo seu interesse ou suas paixões bem mais do que segundo sua razão; assim, de fato, toda decisão, toda eleição exprime realmente apenas a vontade [volonté] da maioria dos opinantes ou dos eleitores. Um bom método de eleição deve então ter dois objetos: o primeiro de certificar-se que em geral a resolução [voeu] dos eleitores seja conforme à sua opinião; o outro, que o resultado da eleição seja conforme a resolução [voeu] da maioria dos eleitores. É sobretudo para o último objeto que a escolha do método de eleger é importante [...]. (CONDORCET, 1847, IX, p. 289, grifo nosso).[34]
Aqui Condorcet reconhece que o resultado das eleições é em geral produzido pela vontade dos eleitores, e a vontade, por sua vez, é formada a partir de interesses e paixões, associadas ao interesse privado. O julgamento, por outro lado, implica a capacidade do eleitor de refletir e decidir de acordo com o interesse público. Portanto, nessa passagem, deve ser assinalada a diferença entre vontade (volonté) e resolução (voeu). A resolução deve ser compreendida como uma decisão tomada após reflexão. É exatamente nesse ponto que as condições procedimentais e as condições epistemológicas se cruzam e se complementam. Como o próprio autor ressalta, o método de eleger é importante, como já visto, pois ele deve prever a possibilidade de que a votação seja precedida de discussão e de deliberação. É na deliberação que os cidadãos esclarecidos podem colocar em prática o seu julgamento, a sua capacidade de raciocínio abstrato, a fim de fazer a ponderação entre o interesse privado e o interesse público. No entanto, a deliberação em si também assume um papel coadjuvante na tarefa de proporcionar o esclarecimento dos cidadãos a respeito do que seria o interesse público. Por isso, na Exposição dos princípios e dos motivos do plano de constituição, Condorcet ressalta que não há necessidade de os cidadãos terem lido ou se informado acerca de todos os aspectos relacionados a um tema sob apreciação, antes de serem admitidos no processo de tomada de decisões coletivas, ou seja, o cidadão comum, o qual possua apenas a formação oferecida pela instrução pública elementar, é capaz de participar adequadamente nesse processo. Enfatiza o autor:
Ao examinar a marcha de uma assembleia deliberante, vê-se facilmente que as discussões têm aí dois objetivos bem distintos: aí se discutem os princípios que devem servir de base à decisão de uma questão geral; examina-se essa questão em suas partes diversas, nas consequências que resultariam das maneiras diferentes de decidi-la. Até ali as opiniões são pessoais, todas diferentes entre si; nenhuma, como um todo, reúne a maioria dos votos. Então se sucede uma nova discussão, à medida que a questão se esclarece, as opiniões se aproximam, se combinam entre si: forma-se um pequeno número de opiniões mais gerais, e logo se pode reduzir a questão em discussão a um número maior ou menor de questões mais simples, claramente colocadas, sobre as quais é possível consultar a resolução da assembleia e ter-se-á atingido uma espécie de ponto de perfeição se estas questões forem tais que cada indivíduo, ao responder sim ou não a cada uma delas, tiver verdadeiramente emitido a sua resolução.(CONDORCET, 2013, p. 69, grifo nosso).
Esse é o ápice da relação forma/conteúdo. O autor tem como pressuposto, evidentemente, que os cidadãos tenham uma instrução elementar, mas é a própria forma do procedimento de tomada de decisões que ensejará um esclarecimento mais aprofundado a respeito do assunto a ser decidido. Por um lado, o método de simplificação das proposições possibilita aos cidadãos fazerem uso de seu esclarecimento na ponderação dos interesses, particular e público, sob análise. Por outro lado, o método não seria eficaz se os cidadãos já não tivessem sido impulsionados ao desenvolvimento de sua faculdade racional. Assim, em Condorcet, não é a vontade, mas a razão coletiva que funciona como fonte das normas criadas por meio das decisões coletivas. Em sua perspectiva,
[...] a razão, de acordo com a natureza, coloca um só limite à independência individual, acrescenta uma única obrigação social àquelas da moral particular: é a necessidade e a obrigação de obedecer nas ações que devem seguir uma regra comum, não à sua própria razão, mas à razão coletiva do maior número; eu disse à sua razão e não à sua vontade [volonté], pois o poder da maioria sobre a minoria não deve ser arbitrário; ele não se estende até violar o direito de um só indivíduo; ele não vai até obrigar a submissão quando ele contradiz evidentemente a razão. Essa distinção não é fútil: um conjunto de homens pode e deve, bem como um indivíduo, distinguir aquilo que ele quer daquilo que ele acha razoável e justo. (CONDORCET, 1847, X, 589s).
Aqui não é a vontade, mas a razão o fundamento último da legalidade. A razão coletiva não preexiste à atividade política, ao contrário, ela surge da interação e da reflexão dos cidadãos, no momento em que participam do processo de discussão e de deliberação. Logo, não basta que os cidadãos cheguem a um consenso para dar origem à lei: é também preciso que esse consenso seja racional. Como bem observado por Kintzler, na teoria condorcetiana, “[...] não é porque a maioria é majoritária que ela tem razão; é porque ela tem razão que ela deve ser majoritária.” (KINTZLER, 1984, p. 79).[35]
Condorcet acredita que as condições procedimentais e epistemológicas por ele estipuladas, para o processo de tomada de decisões coletivas, podem levar à produção dessa razão coletiva, na medida em que o interesse privado seja submetido ao interesse público. Isso não implica, todavia, que os direitos das minorias possam ser desrespeitados, pois está implícito na ideia de razão coletiva que os diversos interesses em questão em um processo de deliberação foram devidamente pesados, de maneira a não violar direitos. A submissão da minoria “[...] à resolução da maioria é então fundada sobre a necessidade de ter uma regra comum de ação, e sobre o interesse de preferir a regra comum, que será mais frequentemente conforme à razão e ao interesse de todos.” (CONDORCET, 1847, X, p. 590). Assim, verifica-se que o esclarecimento sustenta a confiança na produção da razão coletiva.
4 Considerações finais
A análise do conceito de vontade, nas obras de Rousseau e de Condorcet, aponta para uma similaridade e para algumas diferenças. A similaridade consiste no seguinte: o conceito de vontade geral de Rousseau se assimila em sentido ao conceito de razão coletiva em Condorcet. Ambos os conceitos buscam a realização do equilíbrio entre os interesses particulares e o interesse público ou bem comum, de modo que os interesses particulares sejam contemplados na vontade geral ou na razão coletiva, sem que prevaleçam sobre o interesse público.
Quanto às diferenças, verifica-se que Condorcet desenvolveu um método para a formação e para a identificação da vontade coletiva, para a eleição, discussão e deliberação, algo pouco explorado na obra de Rousseau e que ainda é objeto de disputa entre seus intérpretes. Quanto à formação da vontade coletiva, Condorcet aposta na instrução pública e no processo de discussão e de deliberação, para promover o esclarecimento dos cidadãos a respeito do interesse público. No que concerne ao processo de formação do cidadão, a proposta de Condorcet é mais liberal que a de Rousseau, pois não recorre à identidade de costumes ou ao patriotismo, em sentido forte. Seu projeto requer, obviamente, que a República se encarregue da instrução pública para assegurar o critério da igualdade de influência e de participação dos cidadãos nas decisões coletivas, assim como uma espécie de educação cívica, o respeito às leis e às instituições e o fortalecimento das instituições democráticas, mas ele se preocupa em manter claros os limites entre os conhecimentos que são gerais e necessários para todos os cidadãos e os conhecimentos que se misturam com valores culturais, religiosos ou político-ideológicos, nos quais o Estado não deve adentrar, na formação do cidadão.
Nesse sentido, a vontade coletiva, na proposta de Condorcet, é formada tanto pela instrução pública, que tem o condão de diferenciar o interesse público dos interesses particulares, quanto pelo próprio processo de discussão e de deliberação, no qual o cidadão debruça-se sobre o tema objeto da decisão e pode refletir sobre as consequências da adoção de um determinado posicionamento. Nesse momento ocorre, ainda, a identificação da vontade ou razão coletiva.
Pode-se considerar, pois, que a obra de Condorcet de fato lança luz sobre os pontos obscuros da teoria de Rousseau, no que tange à formação e identificação da vontade geral. Mas, ao concluir isso, é igualmente necessário reconhecer que Condorcet acaba por aceitar elementos que Rousseau claramente recusou, como a representação, ou que também são ambíguos e obscuros, na proposta rousseauniana, como o papel desempenhado pela discussão.
The concept of will in Rousseau's and Condorcet's political philosophy
ABSTRACT: This paper analyzes the concept of will in the political philosophy of Rousseau and reinterpret it in the light of the philosophy of Condorcet. It is argued that Condorcet can make the Rousseau’s concept of general will less ambiguous adopting three criteria, namely: the development of a rigorous method for identifying the collective will, the defense of public instruction and the option for a democratic republicanism.
KEYWORDS: Rousseau. Condorcet. General will. Collective reason.
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[1] Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora Adjunta do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná. E-mail: crisforoni@yahoo.com.br
[2] As citações aos textos de Rousseau são feitas a partir das traduções para a língua portuguesa cotejadas com os textos em língua francesa. Por essa razão, nas referências, indicam-se inicialmente os dados das traduções utilizadas e, após a barra, o volume e a página das Oeuvres complètes de Rousseau, publicadas pela Editora Gallimard.
[3] A respeito da ambiguidade substância/procedimento no conceito de vontade geral ver, por exemplo, Cohen (2010, p. 23-96). Nesse mesmo sentido, Reis (2010, p. 11-34) estabelece uma distinção entre vontade geral padrão (vinculada ao conteúdo da vontade, ao bem comum) e vontade geral decisão (associada ao resultado do sufrágio). Pinzani (2006, p. 219-231) também aponta para a ambiguidade presente no conceito de vontade geral de Rousseau, que, por um lado, se refere ao bem comum do corpo político, o qual é sempre claro para os cidadãos no Estado ideal, isto é, em Estados pequenos nos quais vigora a igualdade entre os cidadãos e no qual há uma Constituição justa. Por outro lado, em Estados corrompidos, nos quais o conteúdo do bem comum não é evidente, a vontade geral é alcançada através de um método matemático, pelo cálculo por meio do qual são retirados os mais e os menos das vontades particulares, os quais se destroem mutuamente.
[4] De acordo com Judith Shklar (1969, p. 169), o conceito de vontade geral já havia sido empregado, antes de Rousseau, por Montesquieu e por Diderot. Montesquieu utilizou-o de forma vaga, para referir-se à opinião pública. Diderot lançou mão desse conceito, para expressar um sentimento de benevolência dos homens com relação à humanidade. Rousseau teria desenvolvido sua concepção de vontade geral exatamente em contraposição à de Diderot, considerando-a nada mais do que o interesse pessoal de cada cidadão, ainda que tal interesse fosse por eles compartilhado. A generalidade da vontade consistiria na prevenção da desigualdade, o maior interesse que os homens em sociedade compartilham, independentemente de outros fins que tenham. O Discurso sobre a economia política foi publicado pela primeira vez em 1755, no tomo V da Enciclopédia, organizada por Diderot (DERATHÉ, 2011, p. LXXII-LXXXI).
[5] Esse tema será retomado posteriormente, neste texto, inclusive se mencionando posicionamentos distintos a esse respeito.
[6] Não serão aqui exploradas as distinções entre “bem comum” e “interesse comum”. Para a análise de tais distinções, ver: Bernardi (1998, p. 75-106). Também sobre vontade geral, bem comum e interesse comum, John Rawls (2007, p. 225) estabelece a seguinte relação: a vontade geral equipara-se ao bem comum; o bem comum, por sua vez, surge como resultado das condições sociais que tornam possível os cidadãos vincularem seus interesses comuns, isto é, o bem comum é, na intersecção dos interesses dos cidadãos, aquilo que resulta comum mediante certas condições sociais.
[7] Sobre a defesa da vontade geral em termos utilitaristas, ver Allen (1961, p. 263-275). Segundo o autor, "[...] a vontade geral é de fato nada mais do que um critério para a decisão social, o critério do maior bem do maior número, segundo o qual se assume que cada indivíduo deseja seu próprio bem." Discordo dessa interpretação, por entender que ela restringe o conceito de vontade geral rousseauniano apenas ao processo de decisão. No Discurso sobre a economia política, Rousseau é enfático, ao asseverar a impossibilidade de sacrifício de um único indivíduo em nome da pátria, como se verifica no seguinte excerto: “[d]e fato, não é certo que o compromisso da nação a obriga a defender a segurança do menor dos seus membros com o mesmo interesse que tem pela segurança de todos os outros? O bem-estar de um único cidadão não é um problema comum, como o bem-estar de todos? Pode-se dizer que é bom que um cidadão possa perecer em lugar de todos. Estou pronto a admirar essa afirmativa quando ela é feita por um patriota virtuoso, que movido pelo dever queira sacrificar-se voluntariamente pelo bem do país. Mas se devemos entender que é legal para o governo sacrificar um inocente pelo bem da multidão, considero essa regra a mais execrável já inventada pela tirania, a maior falsidade que pode ser proferida, a admissão mais perigosa, uma contradição direta com as leis fundamentais da sociedade.” (ROUSSEAU, 2003, p. 19s/III, p. 256). Do mesmo modo, em várias passagens do Contrato social, há excertos que mostram ser a vontade geral muito mais do que um critério para se alcançar o bem maior para o maior número (ver, por exemplo, Livro II, Cap. I; Livro II, Cap. III; Livro II, Cap. IV; Livro III, Cap. IX;). Por essa razão, entendo ser a interpretação de Cohen a esse respeito mais coerente com a proposta de Rousseau. Também John Rawls (2007, p. 229) recusa uma versão utilitarista do bem comum em Rousseau.
[8] Nesse sentido, são as passagens constantes do Livro I, Cap. VI e também do Livro II, Cap. IV do Contrato social.
[9] Essa leitura encontra suporte no Livro II, Cap. IV do Contrato social.
[10] Nesse mesmo sentido é a interpretação de Maurizio Viroli (2002, p. 123-124), segundo a qual Rousseau não exige que os indivíduos sacrifiquem seus interesses privados ou subordinem sua vontade individual à vontade geral. A interpretação de Cohen a respeito da relação entre vontades particulares e vontade geral contrapõe-se àquela de Benjamin Constant (1872, p. 11ss), Allan Bloom (1997, p. 143-167) e de Ernst Cassirer (1999, p. 52-54).
[11] Essa interpretação apoia-se nas seguintes passagens do Contrato social: “Bem compreendidas, essas cláusulas se reduzem todas a uma só, a saber, a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, a toda a comunidade. Pois, em primeiro lugar, cada qual dando-se por inteiro, a condição é igual para todos, e, sendo a condição igual para todos, ninguém tem interesse em torná-la onerosa para os demais. Além disso, como a alienação se faz sem reservas, a união é tão perfeita quanto possível, e nenhum associado tem algo a reclamar, pois, se restassem alguns direitos aos particulares, como não haveria nenhum superior comum capaz de decidir entre eles e o público, cada qual sendo em algum ponto seu próprio juiz, logo pretenderia sê-lo em todos; o estado de natureza subsistiria e a associação se tornaria necessariamente tirânica ou vã.” (ROUSSEAU, 1999, p. 21/III, p. 360s).
[12] No Discurso sobre a economia política, Rousseau posiciona-se em diversas passagens sobre a relação que se estabelece entre igualdade e propriedade, no Estado civil. Essa relação ocorre de forma que a propriedade é reconhecida como um fundamento do contrato social, mas é também condicionada a outras finalidades da sociedade civil, tais como a redução de desigualdades extremas, o financiamento das atividades do Estado e a promoção de segurança social aos cidadãos. Veja-se, por exemplo, os seguintes excertos: “É certo que o direito à propriedade é o mais sagrado de todos os direitos da cidadania, e sob certos aspectos ainda mais importante do que a própria liberdade, ou porque afeta mais de perto a preservação da vida ou porque, como a propriedade é mais facilmente usurpada e mais difícil de defender do que a vida, a Lei deveria dar maior atenção ao que pode ser mais facilmente tomado. Ou ainda, finalmente, porque a propriedade é o fundamento da sociedade civil, e a verdadeira garantia dos esforços do cidadão. Se a propriedade não respondesse por ações pessoais, nada mais fácil do que escapar dos deveres e evadir-se da Lei.” (ROUSSEAU, 2003, p. 26/III, p. 262s). “Vale lembrar que o fundamento do contrato social é a propriedade, e sua primeira condição é que todos possam manter a posse pacífica do que lhes pertence. É verdade também que, pelo mesmo contrato, todos se obrigam, pelo menos tacitamente, a contribuir para atender as demandas públicas.” (ROUSSEAU, 2003, p. 34/III, p. 269s). Em outra passagem, ele assevera que “[...] uma das funções mais importantes do governo é impedir a extrema desigualdade de fortunas.” (ROUSSEAU, 2003, p. 22/III, p. 258). Nesse mesmo sentido: “Não basta ter cidadãos e protegê-los, é preciso também levar em conta a sua subsistência.” (ROUSSEAU, 2003, p. 26/III, p. 262). Nesse texto, Rousseau apresenta grande preocupação com a formação do cidadão virtuoso, pois o considera um dos pilares de sustentação da comunidade política. Por essa razão, ele delineia uma relação de reciprocidade entre o Estado e os cidadãos, a qual se desenvolve da seguinte maneira: o Estado deve fornecer aos cidadãos proteção contra a usurpação de seus bens e de sua liberdade, deve impedir a extrema desigualdade de fortunas e deve educar os cidadãos para o exercício da cidadania. A consequência dessa atitude do Estado é o patriotismo, o amor à pátria e a colocação, pelos cidadãos, do interesse comum acima do interesse particular. (ROUSSEAU, 2003, p. 19-34/III, p. 252-269). Ainda sobre a relação entre propriedade e igualdade, no Livro II, Cap. XI do Contrato social, Rousseau afirma o seguinte: “[...] a respeito da igualdade, não se deve entender por essa palavra que os graus de poder e riqueza sejam absolutamente os mesmos, mas sim que, quanto ao poder, ela esteja acima de qualquer violência e nunca se exerça senão em virtude da classe e das leis, e, quanto à riqueza, que nenhum cidadão seja assaz opulento para poder comprar o outro, e nenhum assaz pobre para ser obrigado a vender-se. O que supõe, da parte dos grandes, moderação de bens e de crédito, e, da parte dos pequenos, moderação de avareza e de cobiça.” (ROUSSEAU, 1999, p. 62s/III, p. 391s).
[13] A respeito do papel do legislador na filosofia política de Rousseau, ver Putterman (2005, p. 145-151).
[14] Rousseau reconhece como forma legítima de Estado a República, mas não manifesta, a princípio, preferência por uma forma específica de governo. Se o governo será uma monarquia, uma aristocracia ou uma democracia, isso dependerá exatamente das condições geográficas (tamanho do Estado, condições climáticas e de riquezas do território), das características da sua população e de suas particularidades históricas. No Capítulo 5 do Livro III, contudo, Rousseau reconhece que a aristocracia eletiva pode ser a melhor forma de governo, desde que observadas algumas condições, tais como: um governo exercido em nome do povo e não em benefício da própria aristocracia governante, a moderação dos ricos e o contentamento dos pobres.
[15] A esse respeito, Rousseau estipula, no Discurso sobre a economia política, que compete ao legislador estabelecer leis “[...] para todas as necessidades de lugar, clima, solo, costume, vizinhança e todas as relações próprias do povo.” (ROUSSEAU, 2003, p. 13/III, p. 250). No mesmo sentido, no Contrato social, tem-se a seguinte passagem: “O que torna penosa a obra da legislação não é tanto o que cumpre estabelecer como o que cumpre destruir; e o que torna o sucesso tão raro é a impossibilidade de encontrar a simplicidade da natureza junto com as necessidades da sociedade. Todas essas condições, é verdade, dificilmente se acham reunidas. Eis por que se vêem poucos Estados bem constituídos.” (ROUSSEAU, 1999, p. 62/III, p. 391). Ainda nessa linha são as seguintes considerações: “As opiniões de um povo nascem de sua constituição. Conquanto a lei não rege os costumes, é a legislação que os faz nascer [...]” (ROUSSEAU, 1999, p. 153/III, p. 459).
[16] Nesse sentido, há passagens no Manuscrito de Genebra. Cf. Rousseau (2003, p. 155/III, p. 322s). Sobre o Estado ideal de Rousseau, ver Pinzani (2006, p. 242-259).
[17] Nesse sentido são os comentários de Rousseau a respeito dos suíços, quando levavam uma vida agrícola e simples: “Sua vida simples e isolada os tornava tão independentes quanto robustos, sem reconhecer a superioridade de ninguém. Como todos tinham os mesmos gostos e os mesmos interesses, não era difícil que se unissem com o mesmo objetivo, e sua lei era dada pela uniformidade da sua vida.” (ROUSSEAU, 2003, p. 195/III, p. 916).
[18] Sobre critérios formais, ver também Reis (2010, p. 20ss).
[19] Tal excerto encontra-se na nota de rodapé no início do Cap. II do Livro II do Contrato social.
[20] Tradução modificada.
[21] Em um artigo recente, Annelien Dijn analisa a relação entre regra da maioria e tirania da maioria, na obra de Rousseau. Conforme a autora, que vincula Rousseau à teoria republicana, quando as decisões coletivas refletem o interesse público, ao invés de interesses particulares, todos devem ser capazes de reconhecer que essas decisões seguem também seus interesses particulares (contidos nos interesses gerais) e, nesse caso, verifica-se o uso da regra da maioria e não de uma espécie de tirania da maioria. Os interesses gerais ou públicos, por sua vez, são os interesses duradouros da sociedade como um todo, e não os interesses de grupos, sejam eles maioria ou minoria. Assim, a regra da maioria difere da tirania da maioria, porque persegue o interesse público, ao invés de interesses privados. Nesse sentido, o estabelecimento de imposto progressivo sobre a renda, por exemplo, ainda que contrariasse o interesse dos mais abastados, não poderia ser considerado uma violação de sua liberdade, haja vista os benefícios de longo prazo que poderiam ser oferecidos para a sociedade (DIJN, 2015, p. 9-10).
[22] O teorema do júri é desenvolvido por Condorcet em um texto de 1785, denominado Ensaio sobre a aplicação da análise de probabilidade às decisões tomadas por pluralidade de votos (Essai sur l'application de l'analyse à la probabilité des décisions rendues à la pluralité des voix). Cf. Condorcet (1785).
[23] Tal conceito é apresentado em Quadro geral da ciência que tem por objeto a aplicação do cálculo às ciências políticas e morais (Tableau général de la science qui a pour objet l’application du calcul aux sciences politiques et Morales). Esse texto foi publicado apenas em 1795, após a morte de Condorcet, entretanto, as ideias nele contidas já vinham sendo defendidas publicamente, desde 1785, quando foi publicado o Ensaio sobre a aplicação da análise de probabilidade às decisões tomadas por pluralidade de votos (Essai sur l'application de l'analyse à la probabilité des décisions rendues à la pluralité des voix). (CONDORCET, 1847, I, p. 539-573; CONDORCET, 1785).
[24] A maioria das citações aos textos de Concorcet é feita a partir da edição francesa de seus escritos de 1847 – Œuvres de Condorcet, editada por Arthur Condorcet O’Connor e François Arago e, desse modo, é citado o nome do autor, o ano da obra, o volume e a página. No caso de obras já traduzidas para a língua portuguesa, será feito o uso das traduções.
[25] A adoção desse método faz com que Condorcet seja considerado o precursor de Saint-Simon, de Augusto Comte e do positivismo. Contudo, cabe ressaltar que, em Condorcet, essa metodologia ainda possui um caráter crítico e revolucionário, na medida em que busca afastar das ciências sociais qualquer dogma que não possa ser justificado racionalmente (como, por exemplo, os dogmas da religião e aqueles que sustentavam a monarquia e a aristocracia, legitimando assim as desigualdades de direitos). O filósofo iluminista não concordaria com os aspectos conservadores, em relação à ordem social, os quais foram introduzidos nas ciências sociais por Comte. Isso pode ser observado na forma pela qual Condorcet concebe a lei em geral e a constituição. Em sua perspectiva, as leis positivas são o produto do meio social e, portanto, a evolução jurídica deve acompanhar a evolução social. (ALENGRY, 1904, p. 784 e 851; LÖWY, 2000, p. 37-39).
[26] Essai sur l'application de l'analyse à la probabilité des décisions rendues à la pluralité des voix (1785); Essai sur la constitution et les fonctions des assemblées provinciales (1788), Sur la forme des élections (1789), Projet de Constitution Française (1793), Sur les élections (1793) e Tableau général de la science qui a pour objet l’application du calcul aux sciences politiques et morales (1795). Entre os textos citados, apenas o Projeto de Constituição Francesa tem tradução para o português. Exceto quando nas referências bibliográficas for indicado distintamente, todas as traduções das obras citadas são de minha autoria.
[27] Grofman e Feld (1988, p. 569) consideram que o teorema do júri de Condorcet reavalia três aspectos inerentes ao conceito de vontade geral de Rousseau, a saber: o bem comum; a ideia de que os cidadãos não estão sempre certos em seus julgamentos sobre o que é o bem comum; e a suposição de que, quando os cidadãos tentam seriamente identificar o bem comum e votam de acordo com as percepções que fazem dele, o voto da assembleia popular pode ser considerado um meio confiável de determinar o que é o bem comum.
[28] A afirmação da existência de uma resposta correta, ou da verdade, é o que faz McLean e Hewitt definirem Condorcet como um “realista platônico” que acreditou em verdades morais objetivas. Condorcet teria sustentado que as falhas do ser humano em alcançar o entendimento são falhas de percepção. Nesse sentido, quando os indivíduos se tornam mais esclarecidos, a probabilidade de que a maioria deles pense corretamente aumentará. (McLEAN; HEWITT, 1994, p. 32).
[29] Apenas recentemente as implicações da metodologia utilizada por Condorcet, no Ensaio sobre a aplicação da análise à probabilidade de decisões tomadas por pluralidade de votos, que combina a teoria da escolha social com a probabilidade matemática, começaram a ser exploradas. Como observam Mclean e Hewitt (1994, p. 35), “[...] parte do argumento de Condorcet não foi esclarecido até as investigações de Michaud (1985) e Young (1988).” Sobre as implicações do emprego do método de Condorcet na teoria da escolha social contemporânea, ver: (YOUNG, 1988, p. 1231-1244; McLEAN; HEWITT, 1994, p. 32-48; McLEAN; URKEN, 1992, p. 445-457).
[30] Pensando no método proposto por Condorcet, à luz dos dados das eleições municipais de 2012, e tomando a cidade de Florianópolis como exemplo, pode-se sustentar que, aplicado seu método, se poderia ter um resultado diferente daquele que fora alcançado. Os resultados obtidos no primeiro turno das eleições foram, em linhas gerais, os seguintes: candidato A (PSOL) 14,4%; candidato B (PCdoB/PT) 25%; candidato C (PMDB) 27%; candidato D (PSD) 31,6%. Com esse resultado, os candidatos C e D foram para o segundo turno, sendo o candidato D vitorioso. Tomando-se agora a forma de eleição proposta por Condorcet, poderiam ser tecidas as seguintes considerações: é muito provável que os eleitores do candidato A tivessem como segunda opção o candidato B e, sabendo-se da antiga rivalidade entre os partidos dos candidatos C e D, é muito provável que o candidato B teria o maior número de votos e ganharia a eleição, uma vez que o candidato B seria aquele que teria o menor índice de rejeição, de maneira que ele receberia quase a totalidade dos votos do candidato A e uma razoável parcela dos demais candidatos.
[31] O Título III do Projeto de Constituição Francesa trata da organização das assembleias primárias. Essas instituições deveriam ser distribuídas por todo o território e cada uma delas deveria ter inscritos, em seus quadros, no mínimo 450 e no máximo 900 membros. Após formada a assembleia primária, deveria ser constituído um escritório para coordenar os trabalhos. Esse escritório deveria ser formado pelos membros da própria assembleia primária, à proporção de um membro para cada 50 cidadãos inscritos no quadro da assembleia. Os membros que compõem o escritório deveriam ser renovados a cada nova convocação da assembleia primária.
[32] O conceito de autonomia intelectual é apresentado por Kintzler em contraposição ao de autossuficiência intelectual. Segundo a autora, a autossuficiência intelectual é um conceito empírico que repousa sobre condições impossíveis de serem cumpridas, pois é impensável dar a cada qual um saber, permitindo-lhe fazer face a todas as situações que ele encontrará, sem ter a necessidade do auxílio de outro. A autonomia intelectual, por sua vez, é um conceito jurídico e consiste na liberação dos homens da sujeição, fazendo-os iguais em direitos e em dignidade, e criando os meios de desenvolvimento de suas faculdades intelectuais, para que exerçam o controle e a crítica sobre os saberes necessários ao desempenho de suas atividades cotidianas, seja na vida pessoal, seja na vida pública. (KINTZLER, 1984, p. 182).
[33] Recentemente, Amartya Sen, em sua obra A ideia de justiça, reporta-se a Condorcet, entre outros, de sorte a buscar fundamentos teóricos para sua concepção de justiça. Um dos pontos ressaltado por Condorcet, e retomado por Sen, é justamente que a efetivação da liberdade individual e política depende de alguns fatores determinantes, entre os quais se destaca a eliminação de dependência em saberes elementares, como leitura, escrita e conhecimentos básicos de matemática. (SEN, 2011, p. 260; SEN, 2000, p. 52).
[34] A palavra voeu pode ser traduzida como desejo, voto, prece, promessa, compromisso ou resolução. Opto aqui pela tradução de voeu por “resolução”, no sentido de uma decisão, individual ou coletiva, tomada após reflexão a respeito de um tema sob análise, por entender ser o termo que mais se aproxima do sentido a ele atribuído originalmente pelo autor, principalmente a partir dessa passagem na qual ele contrapõe volonté e voeu. Essa distinção apresentada no texto supracitado, que data de 1789, é mantida em textos posteriores, nos quais o autor continua a fazer uso concomitante desses dois conceitos.
[35] A esse respeito, ver também: Alengry (1904, p. 850-851), Magrin (2001, p. 57-58) e Rosanvallon, (2000, p. 69).