DIFERENÇAS ENTRE AS DEDUÇÕES NAS DUAS EDIÇÕES DA CRÍTICADARAZÃOPURA

Ricardo MUSSE[1]

 RESUMO: Comparação entre as duas versões da dedução kantiana dos conceitos puros do entendimento, a da 1ª edição de 1781 e a de 1787. Focam-se aqui principalmente as discrepâncias referentes à dedução objetiva, isto é, aquela encarregada de demonstrar que as categorias são as condições de possibilidade dos objetos de experiência

 PALAVRAS-CHAVE: Dedução transcendental; entendimento; categorias; imaginação; sensibilidade.

No prefácio da primeira edição da Crítica da razão pura (1781) (designado por A), Immanuel Kant divide a dedução dos conceitos puros do entendimento em duas partes: uma subjetiva e uma objetiva. A parte subjetiva “diz respeito ao entendimento puro, em si mesmo, do ponto de vista da sua possibilidade e das faculdades cognitivas em que assenta” (Kant, 1781, AXVI) e, logo, tem por objetivo mostrar como é possível a própria faculdade de pensar. Por sua vez, a dedução objetiva “reporta-se aos objetos do entendimento puro e deve expor e tornar compreensível o valor objetivo desses conceitos a priori” (Kant, 1781, AXVI). Tem, portanto, por escopo delimitar o que podem e até onde podem o entendimento e a razão conhecer, independentemente da experiência.

Projetada, de certo modo, como uma descrição psicológica, a dedução subjetiva deveria ter somente um valor hipotético, restringindo-se a mostrar que, na nossa consciência, categorias estão indissoluvelmente ligadas às intuições.[2] À dedução objetiva, por sua vez, caberia demonstrar que as categorias são as condições de possibilidade da experiência, ou melhor, dos objetos da experiência.

Na segunda edição, em 1787 (designado por B), Kant abandona essa distinção e deixa, pois, de lado tudo aquilo que caracteriza – enquanto momentos essenciais – a dedução subjetiva. Por conseguinte, ainda que não seja totalmente impossível detectar a presença de elementos psicológicos na segunda edição, só podemos propriamente falar de uma dedução subjetiva quando nos referimos à primeira edição.

Assim, a diferença mais evidente entre as deduções nas duas edições da Crítica da razão pura é a ausência, em B, de uma dedução subjetiva. Com isso, não é só o enfoque subjetivo, psicologizante, e a ênfase na determinação das faculdades que são abandonados. Os principais elementos da dedução subjetiva exercem, na segunda edição, um papel bastante reduzido – a ausência da noção de consciência empírica e mesmo de objeto transcendental, por exemplo, altera em pontos cruciais a explicitação da doutrina de Kant.

No entanto, para evitar que a nossa comparação desvie para a listagem de disparidades entre duas deduções que têm – por definição – objetivos e âmbitos distintos, procuraremos confrontar, aqui, apenas as duas versões da dedução objetiva inseridas, respectivamente, na primeira e na segunda edição. Para tanto, começaremos por uma recapitulação sucinta da dedução objetiva presente em A.

A parte referente à dedução objetiva na primeira edição (A) pode ser segmentada em dois momentos independentes: a dedução von oben an (via descendente) e a dedução von unten auf (via ascendente).

O caminho descendente, como o próprio nome já explicita, tem como itinerário um percurso que, partindo da apercepção segue até atingir o extremo oposto, isto é, a percepção.3 Ao final desta trajetória, Kant conclui que é o entendimento – por meio das categorias – que estabelece as regras de unidade para os fenômenos. Por outro lado, uma vez que os[3]fenômenos devem estar adaptados à consciência, a intuição recorre à apercepção transcendental como fonte ou fundamento de sua unidade. A apercepção é, portanto, enquanto princípio a priori, ou melhor, enquanto “princípio transcendental da unidade”, a principal responsável pela unidade sintética de todo o múltiplo das nossas representações, logo, do diverso da intuição.[4]

Mais ainda, essa unidade, considerada no sentido crítico, é a própria forma da experiência, o que nos permite entender porque a parte formal da experiência regula-se pelo entendimento. A dedução von oben an culmina, então, na demonstração da dependência da intuição frente ao entendimento, isto é, com uma confirmação que nos assegura, simultaneamente, que “o entendimento puro é, por intermédio das categorias, um princípio formal e sintético de todas as experiências e os fenômenos têm uma relação necessária ao entendimento” (Kant, 1781, A119).[5]

O caminho ascendente, por sua vez, parte da sensibilidade e remonta até a apercepção.[6] No entanto, nada de novo é encontrável aqui, pois a dedução von unten auf consiste apenas em uma retomada e resumo de partes ou trechos anteriores. A opção escolhida por Kant para reafirmar que a mais simples percepção é ininteligível sem a apercepção não vai além de refazer passos já indicados nas outras deduções. Trata-se de mostrar que as impressões postulam a apreensão, a apreensão a reprodução ou a associação, estas a afinidade, a afinidade a síntese e que esta, finalmente, postula a unidade da apercepção (cf. Vleeschauwer, 1976, t.II, p.347).

Com a conclusão de que todos os fenômenos, enquanto momentos de uma experiência possível, residem a priori no entendimento, ou melhor, devem conformar-se a uma forma que lhes é atribuída pelo entendimento (enquanto núcleo da possibilidade formal), Kant considera terminada a tarefa da dedução que, afinal, ele próprio definiu como o intuito de tornar compreensível esta relação do entendimento à sensibilidade e, mediante esta, a todos os objetos da experiência, por conseguinte, a validade objetiva dos seus conceitos puros a priori e estabelecer assim a sua origem e a sua verdade (Kant, 1781, A128).

Na edição B, de 1787, a disposição da dedução objetiva é de tal forma semelhante que somos tentados, analogicamente, a pensar que também na segunda edição repete-se a bipartição entre um caminho ascendente e um descendente[7]. Porém, apesar de manter a segmentação em duas partes, na segunda edição, a intenção de Kant é completamente diferente.[8] Preocupado com o modo de conexão entre a sensibilidade e o entendimento, ele reconstrói a dedução segundo essa lógica e não mais, como em A, seguindo um vetor direcional. Assim, ao fazer, no parágrafo 21, um balanço do andamento da dedução, ele nos dirá que:

Na proposição acima deu-se, portanto, início a uma dedução dos conceitos puros do entendimento na qual, já que as categorias surgem só no entendimento independente da sensibilidade, preciso ainda abstrair do modo como o múltiplo é dado a uma intuição empírica, para me ater somente à unidade que o entendimento acrescenta à intuição mediante a categoria. (Kant, 1787, B144).

Devemos situar, então, o parágrafo 21 como um autêntico ponto de inflexão. Reconstruindo a dedução nesta óptica, podemos dizer que até aqui, ou melhor, com o parágrafo 20, completou-se a primeira fase da dedução. Nesta parte, Kant procurou estabelecer apenas a relação das categorias com uma intuição dada, qualquer que ela seja, negligenciando, por conseguinte, o modo pelo qual ela nos é dada. Tomando por referência primordial o valor objetivo das categorias, considera-se aqui unicamente o entendimento, ou seja, a investigação prescinde da maneira de operar da sensibilidade.9

As categorias, entretanto, devido a seu intelectualismo, nada podem nos dizer acerca do modo como intuições nos são dadas. Assim, se Kant pôde trabalhar até aqui apenas com o fato de que intuições nos são dadas, o fundamental, doravante, na segunda fase da dedução, é a deter[9]minação das relações entre as categorias e a forma particular dessa intuição, isto é, o nosso modo sensível. Kant arrisca-se a resumir a sua tarefa nos seguintes termos: “No que segue (§26), a partir da maneira comoaintuiçãoempíricaédadanasensibilidademostrar-se-áqueasuaunidadenão é senão a que a categoria, segundo o anterior (§20), prescreve ao múltiplo de uma intuição dada em geral” (Kant, 1787, p.B144-5).

Na primeira edição, a dedução completa-se com a referência das categorias à experiência em geral, isto é, com a seguinte conclusão: “os conceitos puros do entendimento são possíveis a priori e, mesmo em relação à experiência, necessários” (Kant, 1781, Al30). Mostrou-se, portanto, ao longo da dedução, que a síntese e a unidade dos fenômenos, condições constitutivas da representação de um objeto, encontram-se em nós. Assim, as categorias não só precedem toda experiência, mas, sobretudo, tornam-na, quanto à forma, possível.

Na segunda edição, por seu turno, a dedução completa-se com a referência das categorias ao “conhecimento empírico”: “não podemos pensar objeto algum senão mediante categorias; não podemos conhecer objeto pensado algum senão mediante intuições correspondentes àqueles conceitos. Ora, todas as nossas intuições são sensíveis, e tal conhecimento, na medida em que o seu objeto é dado, é empírico” (Kant, 1787, B165).[10] O intuito de Kant aqui – além de demonstrar que “categorias são conceitos que prescrevem leis a priori aos fenômenos, por conseguinte, à natureza como conjunto de todos os fenômenos”[11] – é ressaltar o caráter empírico de todo conhecimento humano. Assim, além de assegurar que o múltiplo da intuição está submetido não só às condições formais do espaço e do tempo, mas também à unidade sintética originária da apercepção, a dedução transcendental dedica-se a provar – ainda que enquanto subproduto de sua tese central – a limitação das categorias, em seu uso objetivo, ao empirismo.

Essa tendência empirista, o famoso “fenomenalismo” da segunda versão (cf. Vleeschauwer, 1976, t.III, p.39-41), altera o andamento e até mesmo o foco da dedução, desdobrando a atenção – central na primeira edição – da necessidade inelutável das categorias enquanto condição de possibilidade da experiência para o papel da intuição empírica no conhecimento objetivo.

Adotando esse acento fenomenalista como uma hipotética matriz das diferenças entre as deduções nas duas edições da Crítica da razão pura, podemos localizar uma antecipação desta diferença de matiz já no prefácio à segunda no qual, para salientar a utilidade positiva da Crítica,[12] Kant elabora a – posteriormente célebre – separação entre pensar e conhecer.

Porém, apesar de introduzida no prefácio, a distinção entre pensar e conhecer só adquire o seu sentido próprio no decorrer da dedução. Essencial para a compreensão dos diversos usos possíveis das categorias, esta distinção é retomada, significativamente, imediatamente após a inflexão do parágrafo 21. Assim, Kant abre a segunda fase da dedução, reafirmando que pensar um objeto e conhecer um objeto não são a mesma coisa. “O conhecimento requer dois elementos: primeiro o conceito pelo qual em geral um objeto é pensado (a categoria), e em segundo a intuição pela qual é dado” (Kant, 1787, B146). As categorias, portanto, enquanto formas de unidade segundo as quais o entendimento representa um objeto em geral, são condições necessárias tanto para pensar quanto para conhecer um objeto. No entanto, não são por si só suficientes para o “conhecimento”, uma vez que este exige, além das formas do pensamento ou mesmo da função sintética, a presença de uma intuição empírica.

Restringindo a atribuição de valor objetivo unicamente aos casos em que as categorias se referem aos dados da experiência, determinando as regras para um uso objetivo do entendimento, a dedução estabelece também limites para o campo da metafísica. Esta tese, recorrente na Crítica da razão pura, é reforçada aqui pela contraposição entre o entendimento humano e um entendimento em geral.13

Na[13] apercepção transcendental essa diferença revela-se em toda a sua nitidez. Sabemos que a unidade sintética é um princípio necessário apenas para aquele tipo de entendimento no qual a matéria lhe é fornecida de fora. Neste caso, para que esta aceda à consciência exige-se a síntese, ou melhor, o condicionamento transcendental da síntese. Assim, posto que somente o nosso entendimento requer o ato sintético que unifica a multiplicidade na unidade da consciência, fica claro que somente o entendimento humano adota a unidade sintética como o seu princípio mais alto.[14] Por conseguinte, o entendimento humano – assim definido, enquanto uma faculdade discursiva, logo, inabilitada para intuir – discrepa de qualquer “outro entendimento possível, seja de um que intuísse ele mesmo, seja de um que, embora possuísse como fundamento uma intuição sensível, esta fosse de tipo diverso da que se encontra no espaço e no tempo” (Kant, 1787, B139).

As categorias, enquanto agentes da síntese, pressupõem uma diversidade dada e independente.[15] Assim, tampouco a “dedução”, ao apoiar-se nelas como fio condutor e roteiro, pode abstrair do fato de queo múltiplo nos é dado antes da síntese do entendimento. Ao insistir sobre esse ponto, Kant (1787, B145-6) reafirma que a dedução é uma demonstração totalmente adequada apenas para o entendimento humano, sem que se possa estender a sua validade para um entendimento em geral.

Além disso, eis o ponto que mais nos interessa, Kant utiliza essa contraposição como um elemento auxiliar na tarefa de completar a dedução. Procurando especificar, na segunda parte, o dado indeterminado pressuposto na primeira fase da dedução, aduz que as categorias só têm valor objetivo em relação à intuição sensível, delimitando assim, ainda que indiretamente, o campo da metafísica. Por outro lado, Kant nos remete para a investigação das relações entre as categorias e a maneira como a intuição empírica é dada na sensibilidade. Nesta óptica, a distinção entre um possível entendimento em geral e o entendimento humano recobre e abarca um momento essencial dessa inquirição, isto é, a separação entre uma intuição em geral e a intuição humana.

A redução de uma possível intuição em geral à intuição humana, ou seja, às formas do espaço e do tempo, ata indissoluvelmente a objetividade ao conteúdo da intuição sensível. Essa restrição fenomenalista, o fato de que só pode haver conhecimento de fenômenos, não é, no entanto, a única modificação importante da segunda edição. Se há algum sentido na tentativa de identificar o ponto nodal das alterações introduzidas na edição de 1787, este deve estar associado, sem dúvida, à nova teoria dos juízos.

Elemento condutor da dedução na primeira versão, ao desempenhar uma função mediadora entre a diversidade empírica e a unidade da apercepção pura, a síntese é substituída em 1787, de acordo com a orientação pouco psicologizante e mais lógica da segunda edição, pelas categorias. Estas, por sua vez, têm a sua atividade moldada pela novidade de uma doutrina objetivista do juízo, em cuja constituição Kant localiza até mesmo o fundamento da síntese,[16] enunciando, doravante, apenas uma modalidade particular da forma do juízo. Em suma, enquanto em 1781 a determinação da relação entre a apercepção originária e as categorias era feita por intermédio da imaginação, isto é, da faculdade das sínteses, na edição B, a objetividade das categorias, é garantida pela nova doutrina dos juízos, dita transcendental.

Podemos, então, discernir, a partir da forma lógica do ato de julgar, a modalidade de unidade objetiva que a apercepção transfere às representações. Em contraposição à unidade subjetiva e, logo, à validade subjetiva das leis da imaginação reprodutiva, a cópula do juízo contém – ainda que formalmente – os elementos da determinação objetiva de todos os fenômenos, explicitando assim que as categorias devem ser consideradas, daqui por diante, como o veículo por excelência da objetividade.17

É, portanto, a inserção, em plena[17] dedução transcendental, de um parágrafo dedicado expressamente a desenvolver uma definição do juízo distinta da proposta pela lógica formal que permite às categorias assumirem o estatuto específico que possuem na segunda edição. Neste novo contexto, as categorias cedem à tarefa de mediação que passa a ser exercida, particularmenteapósoparágrafo21,pelaintuiçãoformal,mas adquirem, em compensação, a primazia de serem as condutoras do ato sintético.

A intuição a priori, por sua vez, ao intermediar o confronto que separa a sensibilidade e o entendimento, amortece a distância que separa o sensível do intelectual. A sua matéria consiste na diversidade pura das formas sensíveis, mas também, por outro lado, pode ser considerada como um momento do desdobramento da atuação unificante do intelecto. Assim, a intuição formal torna-se o elo, o ponto de passagem,[18] que possibilita a integração da sensibilidade na órbita da atividade construtiva do pensamento e a conseqüente redução do dualismo inicial, delimitado pela heterogeneidade entre as faculdades.

Em suma, ao tomar como fio condutor da segunda fase da dedução a atenção à “maneira como a intuição empírica é dada na sensibilidade”, Kant é levado a estabelecer, na edição B, um outro papel para a intuição formal, instaurando assim uma diferença crucial em relação à dedução da primeira edição.[19] Este novo enfoque, por sua vez, conduziu Kant à descoberta de duas espécies distintas de síntese. Examinemos em detalhe essa distinção, pois nela se concentram elementos chaves da diferença entre as deduções nas duas edições da Crítica da razão pura.

A edição B discrepa da edição A também pelo fato de não determinar mais a função sintética de maneira uniforme, delimitando duas formas distintas de síntese. Na realidade, trata-se apenas de um acréscimo. Kant (1787, B150) desenvolve, em 1787, uma modalidade de síntese que, válida para uma intuição em geral, opera apenas entre faculdades cognitivas e que, por conseguinte, não deve ser atribuída à imaginação, mas apenas ao entendimento.

Em contraposição a esta síntese intelectual na qual, nas palavras de Vleeschauwer, “não executamos nenhuma ligação efetiva entre um dado e um conceito puro, mas representamos unicamente a forma de uma ligação possível, ou seja, a forma que uma ligação poderá tomar, uma vez que a matéria lhe seja submetida” (Vleeschauwer, 1976, t.III, p.182), Kant discrimina o modo de síntese que é próprio à nossa intuição. Assim, enquanto na primeira o que está em jogo é a pura forma de uma síntese ainda não efetivada, a segunda trata da ligação efetiva entre uma forma – as categorias – e uma matéria, a diversidade a priori da intuição. Esta consiste, portanto, propriamente, no ato que liga a multiplicidade espaço-temporal determinando, assim, a forma que os dados empíricos devem ter para que se tornem conscientes.

Kant desdobra, então, a distinção entre um entendimento em geral e o entendimento humano num movimento que separa duas formas de síntese. A primeira, a síntese do múltiplo da intuição sensível, a priori possível e necessária, pode denominar-se figurada (synthesis speciosa) para distingui-la daquela que seria pensada na mera categoria com respeito ao múltiplo de uma intuição em geral, e que se chama ligação do entendimento (synthesis intelectualis) (Kant, 1787, p.B151).

A separação entre modelos possíveis de intuição, dada pela consideração ou não do nosso modo sensível, preside à delimitação dessas espécies diferentes de sínteses preenchendo integralmente o propósito da segunda fase da dedução. Porém, o mais importante a ressaltar aqui é que a atribuição do papel de mediador à intuição a priori, todavia, não relega a imaginação a um papel subalterno, pelo contrário, eliminada apenas da síntese intelectual, ela reforça a sua importância para o conhecimento humano reaparecendo como matriz da “síntese figurada”.[20] Se, conforme o próprio Kant, o mais correto seria denominar esta synthesis speciosa “síntese transcendental da capacidade da imaginação”, a imaginação reassume, assim, enquanto fundamento da “síntese figurada”, a sua função de mediadora entre a sensibilidade e o entendimento.

 ABSTRACT: This essay develops a comparison between the two versions of the Kantian deduction of the pure concepts of the understanding as present in the first (1781) and second (1787) editions of KrV. Emphasis is stressed on the discrepancies between the two versions of the objective deduction, that is, the one which demonstrates that the categories are conditions of possibility of the objects of experience.

 KEYWORDS: Transcendental deduction; understanding; categories; imagination; sensibility.

Referências bibliográficas

KANT, I. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985.

KANT, I. Crítica da razão pura. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

TORRES FILHO, R. R. Dogmatismo e antidogmatismo: Kant na sala de aula. Tempo Brasileiro (Rio de Janeiro), n.91, p.11-27, 1987.

VLEESCHAUWER, H. J. de. La déduction transcendentale dans l’oeuvre de Kant. New York: Garland Publishing, 1976. (reprint)



[1] Departamento de Filosofia – Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP – 17525-900 – Marília – SP – Brasil.

[2] Segundo certos intérpretes Kant foi além. Vleeschauwer, por exemplo, chega mesmo a atribuir-lhe um caráter objetivo, ao considerar as partes desenvolvidas por Kant como complementação da dedução subjetiva – ou seja, a teoria do objeto (Gegenstand) e o detalhamento da noção de afinidade – como uma garantia de objetividade.

[3] As diversas exegeses da obra de Kant não concordam quanto à delimitação das deduções (cf. Vleeschauwer, 1976, t.II, p.208-17). Seguiremos aqui, sempre que possível, a demarcação adotada por Vleeschauwer. Segundo ele, a dedução von oben an está compreendida no trecho que vai de A115 a A119.

[4] Kant conclui assim: “Ora a unidade do diverso num sujeito é sintética; assim, a apercepção pura fornece um princípio da unidade sintética do diverso em toda a intuição possível” (Kant, 1781, A116-117).

[5] Ou ainda, em outra versão: “o entendimento puro é, portanto, nas categorias, a lei da unidade sintética de todos os fenômenos e torna assim primeira e originariamente possível a experiência quanto à forma” (Kant, 1781, A128).

[6] A dedução von unten auf pode ser delimitada pelo trecho que estende-se de Kant, 1781, A 120-8.

[7] Vleeschauwer defende explicitamente esta tese (cf. Vleeschauwer, 1976, t.III, 24-7).

[8] Embora muitos comentadores visualizem, em B, a presença de duas deduções distintas (cf. Vleeschauwer, 1976, t.III, p.23-4), a intenção de Kant, expressa enfaticamente no parágrafo 21, foi reescrever uma dedução única, ainda que segmentada em duas partes (cf. Kant, 1787, B144-5).

[9] O resultado dessa primeira fase é resumido por Kant, no parágrafo 20, nos seguintes termos: “na medida em que é dado numa só intuição empírica, todo o múltiplo é determinado com respeito a uma das funções lógicas para julgar, pela qual, a saber, é conduzido a uma consciência em geral. As categorias, entretanto, não são senão justamente essas funções para julgar, na medida em que o múltiplo de uma intuição dada é determinado com respeito a elas. Portanto, numa intuição dada também o múltiplo está necessariamente sob categorias” (Kant, 1787, B143).

[10] Para o nosso fito pouco importa que na seqüência do texto Kant afirme que “conhecimento empírico, porém é experiência. Conseqüentemente, não nos é possível nenhum conhecimento a priori senão unicamente com respeito a objetos de experiência possível” (Kant, 1787, B165-6), pois não pretendemos demonstrar a existência de nenhuma diferença substancial entre uma dedução e outra, mas apenas salientar que elas se compõem seguindo matizes diversos.

[11] Cf. particularmente o parágrafo 26 da segunda edição da Crítica da razão pura.

[12] Para uma análise detalhada do trecho do prefácio em que Kant trata das utilidades “negativa” e “positiva” da Crítica da razão pura cf. Torres Filho, 1987.

[13] Essa contraposição, uma das novidades da segunda versão da dedução, ao limitar o uso objetivo do entendimento às intuições sensíveis, substitui uma função que era exercida, na edição A, por intermédio de um exame das faculdades cognitivas, ou seja, primordialmente, pela dedução subjetiva.

[14] “Essa proposição fundamental (o “eu penso”) não é contudo um princípio para todo entendimento possível em geral, mas somente para aquele ao qual, mediante sua apercepção pura na representação eu sou, ainda não foi dado absolutamente nada de múltiplo. Um entendimento, mediante cuja autoconsciência o múltiplo da intuição fosse ao mesmo tempo dado e mediante cuja representação os objetos desta ao mesmo tempo existissem, para a unidade da consciência não necessitaria um ato particular da síntese do múltiplo, mas a qual é necessitada pelo entendimento humano, que apenas pensa e não intui” (Kant, 1787, B138-9).

[15] Neste contexto, torna-se óbvio que um entendimento dotado de intuição intelectual atribuiria às categorias um papel pouco significativo no processo de conhecimento, pois então a síntese entre representações heterogêneas, conceitos e intuições seria desnecessária.

[16] Segundo Vleeschauwer, na edição B, o conceito de síntese perde a sua capacidade transcendental. Porém, aduz ele, “não devemos nos deixar enganar por esta constatação. A síntese não é abandonada, longe disto, embora tenha perdido a sua posição central e sua situação dominante ... Em vez de analisar o próprio processo sintético, Kant descobriu que a constituição do juízo é o fundamento da síntese. Em suma, a síntese deixa de ser absolutamente essencial, para tornar-se um simples elemento” (Vleeschauwer, 1976, t.III, p.35).

[17] Assim, embora seja sempre necessário recorrer à experiência para o conhecimento das leis empíricas da natureza, sua objetividade, contudo, advém precisamente de sua inserção no juízo, ou seja, de uma das modalidades da atividade sintética do pensamento.

[18] Vleeschauwer nos alerta que “esta substituição da imaginação pela intuição a priori não acarreta uma contradição absoluta entre as duas redações. A imaginação é a faculdade sintética que, em sua função produtiva, criaria as intuições a priori” (Vleeschauwer, 1976, t.III, p.39).

[19] A principal diferença, o específico da determinação da intuição apriori em B, é que esta, superando a condição de elemento unicamente receptivo, passa a exercer, pela estreita colaboração do entendimento, uma função ativa.

[20] “a capacidade da imaginação é nesta medida uma faculdade de determinar a priori a sensibilidade, e a sua síntese das intuições, conforme às categorias, tem de ser a síntese transcendental da capacidade da imaginação; isto é, um efeito do entendimento sobre a sensibilidade e a primeira aplicação do mesmo (ao mesmo tempo o fundamento de todas as demais) a objetos da intuição possível a nós” (Kant, 1787, B152).