TRADUÇÃO

 

A DIALÉTICA DA INTUIÇÃO E DO INTELECTO: O CRITÉRIO DA FERTILIDADE[1]

 

Peter A. Y. Gunter

Introdução, notas e tradução de Evaldo Sampaio[2]

 

Apresentação

“The dialetics of intuition and intelect: fruitfulness as a criterion” foi publicado originalmente como o primeiro capítulo da coletânea Bergson and modern thought: towards a unified science. O livro registra uma série multidisciplinar de conferências, proferidas em Galveston, Texas, em 1984, com o objetivo de discutir as implicações da Filosofia de Bergson para a ciência contemporânea. Desde então, a obra se tornou uma das principais referências da recepção anglo-americana do bergsonismo. A tradução de um de seus textos, talvez o mais programático, visa a divulgar ao leitor de língua portuguesa uma das principais vias interpretativas dessa recepção. O autor, Peter A. Y. Gunter, além de um dos organizadores do volume, juntamente com A. Papanicolaou, é Professor Emérito da North Texas University, USA, e conhecido especialmente pela edição de Henri Bergson: a bibliography.

Procurei ser fiel ao estilo literário do texto, conservando tanto quanto possível os aspectos conceituais e formais do original e complementando, entre parênteses, as eventuais referências a outros capítulos do compêndio. Quanto às citações de Bergson, traduzi-as diretamente do inglês. Daí a opção por manter inclusive as respectivas abreviaturas das traduções lá utilizadas. Algumas destas, como Matter and memory, deveriam mesmo ser tidas como “segundos originais”, pois foram revistas pelo próprio Bergson e aqui e acolá oferecem uma variante esclarecedora da versão em francês[3]. Há eventuais ambiguidades ou peculiaridades idiomáticas, difíceis de serem transpostas para outra língua. Apesar disso, optei por indicar entre colchetes somente alguns poucos termos técnicos sem equivalente estabelecido em português (pelo menos até onde sei), ciente de que os proficientes em língua inglesa poderão conferir o original e fazer as ressalvas que julgarem cabíveis. Para evitar uma assimilação passiva da interpretação de Gunter, proponho aqui um breve comentário da Dialética da intuição e do intelecto, cujas teses ambiciosas e controversas nos lançam por vezes ao encontro do coração do bergsonismo – ou seria de encontro ao?

Uma das principais objeções à filosofia bergsoniana, quando de sua primeira recepção crítica, era de que ela pressuporia ou resultaria numa apologia ao “irracionalismo”. O tópico que mais acirrou tal leitura foi a distinção, consagrada em A evolução criadora, entre o intelecto e o instinto. Num ensaio influente, Bertrand Russell debochou que o intelecto fosse tido como a fonte dos infortúnios dos homens, enquanto o instinto (isto é, a “intuição”) seria a maior das dádivas para as formigas, as abelhas e Bergson (1912, p. 323)! Para Julien Benda, um dos mais vigorosos opositores da “nouvelle philosophie”, o método bergsoniano seria inclusive contraditório, pois, uma vez que a inteligência fora definida pela “negação” da intuição, não faria sentido que, n’A introdução à metafísica, se fizesse uso de uma noção como “simpatia intelectual”, já que a simpatia é um aspecto da intuição (1914, p. 74-76)[4]. Entre os germânicos, os quais consolidaram uma leitura do bergsonismo como um “filósofo da vida”, E. Cassirer lastimava que o antikantismo de Bergson o tivera conduzido, em As duas fontes da moral e da religião, a “fundar” a ética num sentimento irracional (apud RATES, 2017, p. 191).

Tais críticas não ficaram sem respostas. As análises de Russell receberam, dentre outras, uma réplica detalhada por parte de Emil Carr, sendo ambos os textos depois reeditados conjuntamente (RUSSELL; CARR, 1914). Diante das vozes contrárias aos seus ataques ao bergsonimo, Benda chegou a publicar uma “resposta aos defensores da doutrina”. Em meio àquela atmosfera saturada pelo neokantismo e a nascente fenomenologia, Ernst Troeltsch via em Bergson a oportunidade para a superação da filosofia transcendental, e Georg Simmel o considerava “o maior filósofo vivo” (apud RATES, 2017, p. 191-192). Muitos outros exemplos poderiam ser aqui aduzidos, mas apenas para reforçar o que já está dito: o ponto central de louvor e de censura na recepção de Bergson pelos filósofos que lhe foram contemporâneos esteve vinculado diretamente ao seu “anti-intelectualismo”. Havia então aqueles que interpretaram tal anti-intelectualismo como um mero irracionalismo e os que o viram como uma crítica aos excessos do pensamento simbólico e conceitual.

É nesse cenário que a hipótese de P. Gunter se torna tão inovadora quanto polêmica: Bergson não seria nem um irracionalista nem um mero crítico dos limites da razão, porém, ele próprio um “positivista heterodoxo”. O positivismo bergsoniano teria uma matriz epistemológica calcada na Biologia, a qual, bem compreendida, permitiria uma interpretação mais cuidadosa da relação entre intelecto, instinto e intuição. Para justificar que um filósofo tantas vezes acusado de “irracionalista” seria, na verdade, uma versão melhorada do positivismo, Gunter, inicialmente, (i) resume as decisivas críticas que assolaram os positivistas “ortodoxos”. Em seguida, (ii) tenta mostrar como Bergson considerava que seria possível “verificar” empiricamente uma intuição. Temos aqui então duas flechas: quais acertam o alvo?

(i) Por “positivismo”, Gunter não tem em mente o movimento que se estabeleceu em torno de Augusto Comte ou os desdobramentos deste, no pensamento filosófico e científico francês, no qual floresceu o bergsonismo. O que ele visa é à reencarnação lógico-matemática daquele, a qual se consolidara quase cem anos após a publicação do Curso de filosofia geral. Por uma análise dos pressupostos do “neopositivismo”, dentre os quais se coligiam membros do Círculo de Viena e pensadores da tradição anglo-americana, almejava-se explicitar os pressupostos (não verificáveis) da crítica ao anti-intelectualismo bergsoniano.

Quanto às dificuldades teóricas do neopositivismo apontadas por Gunter, não tenho ressalvas. São, basicamente, os “dois dogmas do empirismo” que Quine, ele mesmo um herdeiro do Círculo de Viena, convenceu aos seus pares serem insuperáveis e exigirem, assim, uma revisão do projeto de seus predecessores. Já que até os mais destacados ascendentes do neopositivismo aceitam que este fora incapaz de restringir “sentenças factuais a sentenças empíricas e sentenças empiricamente significativas àquelas que pudessem ser ou não verificadas empiricamente”, isso talvez já fosse o bastante para desmerecer o lugar mesmo do qual emergiram as principais acusações ao anti-intelectualismo bergsoniano. Entretanto, Gunter não procura simplesmente neutralizar a leitura dos positivistas ortodoxos quanto à filosofia de Bergson. Ele quer mostrar como esta pode dar um aporte racional à nossa compreensão da realidade, que seus opositores não lograram em obter.

(ii) Se não podemos demonstrar uma afiguração entre a linguagem e a realidade que estabeleça a priori o que (não) é empiricamente verificável, poderíamos, garante-nos Gunter, fazê-lo a posteriori, por uma adequada compreensão da interação entre a intuição e o intelecto, porque tal interação não seria, como sugerido pelos primeiros escritos de Bergson, um dualismo intransponível, sendo mais bem esclarecida no contexto de uma teoria do conhecimento, em consonância com a teoria (neo)darwiniana de que as espécies foram selecionadas por um processo de adaptação ao seu meio ambiente.

Uma vez que as ideias, conceitos e representações da inteligência seriam ferramentas selecionadas em vista da adaptação ao nosso meio ambiente, as teorias científicas, enquanto um subgrupo dessa atividade inteligente, seriam elas mesmas partes dessa evolução sempre em curso. A seleção destes ou daqueles conjuntos de sentenças científicas sugeriria que estes se mostraram viáveis para a nossa adaptação e, por conseguinte, verificáveis empiricamente.

Desse modo, o papel da intuição, nesse processo, seria o de fornecer o impulso criador a algumas das mais revolucionárias hipóteses moldadas pela inteligência. Daí porque, para Bergson, as grandes descobertas na origem da mecânica moderna, como o movimento acelerado, a geometria analítica ou o cálculo infinitesimal, surgiram desse contato intuitivo com a “duração pura”. Um dos objetivos do “método intuitivo” preconizado por Bergson seria, ao examinar essa convergência do intelecto com a duração pura, disciplinar os atos pelos quais obtemos essas ideias, a princípio estranhas e mesmo incompreensíveis, mas que poderiam vir a nos guiar positivamente a novas descobertas. A intuição seria para a inteligência o que a inspiração da musa é para o artista.

O objetivo de Gunter, portanto, é mostrar que as acusações de irracionalismo à filosofia de Bergson pelos neopositivistas se amparam na adoção por estes de postulados não verificáveis pela experiência, isto é, “sem sentido”, e que a “epistemologia biologista” permite justificar que o próprio Bergson cultivara um positivismo heterodoxo mais útil para estimular novas descobertas científicas. Por conseguinte, a melhor alternativa a um positivista não dogmático é se tornar um bergsoniano. Contudo, a inusitada interpretação de Gunter suscita algumas dificuldades hermenêuticas e certos desconfortos conceptuais.

Em primeiro lugar, a epistemologia de Bergson não é, e não poderia ser, “biologista”. Todo o esforço do primeiro capítulo de A evolução criadora é evidenciar que as “teorias transformistas”, das quais a teoria da seleção natural é a mais destacada, se guiam por uma concepção “mecanicista” ou “finalista” da vida. Tanto o mecanicismo quanto o finalismo são modelos da inteligência, isto é, formas de raciocínio que se ajustam antes à matéria bruta do que à evolução da vida (EC, p. x-xi). Assim, quando Bergson assevera que “uma teoria do conhecimento e uma teoria da vida são inseparáveis uma da outra” (EC, p. xiv), não propõe simplesmente que a epistemologia deve se pautar pela biologia, mas, antes, que as teorias biológicas devem estar entrelaçadas a uma crítica filosófica do conhecimento (EC, p. x), porque, sem uma crítica dos “conceitos do entendimento”, as teorias positivas da vida recaem num “simbolismo cômodo” e em “quadros [intelectuais] pré-existentes” que não lhes dão “uma visão direta do seu objeto” (EC, p. xiv). Tal visão direta do objeto é justamente uma intuição que cabe ao filósofo obter consciente e metodicamente. Por isso, no principal documento do “discurso do método” do bergsonismo citado por Gunter, a Introdução à metafísica, não há qualquer menção à biologia. Por sua vez, essa teoria intuitiva do conhecimento se articula com os fatos “supostamente observados” das teorias da vida, não para ser verificada por eles, porém, para poder mostrar na própria experiência como se constituíram os quadros intelectuais da ciência positiva (EC, p. xiv).

Daí que, ao tentar provar que “nossas intuições são tanto verificáveis quanto refutáveis” pelas sentenças empíricas, parece que Gunter inverte a direção mesma do bergsonismo. Para Bergson, há duas formas de conhecimento: uma que se refere a uma consciência que se dirige para a nossa ação sobre os objetos exteriores e que se conduz pela inteligência; outra que se volta para o que nos é interior, a nossa vida psicológica, e que consiste na intuição (PM, p. 143). Essas duas formas de conhecimento são expressões irredutíveis de dois sentidos da vida. Como uma intuição aponta para um conhecimento “sob a forma de uma penetração recíproca que é pura duração, refratária à leis e à medida” que constituem o conhecimento do que nos é exterior pelas operações da inteligência (PM, p. 143), esta jamais poderia ser verificada ou refutada por uma sentença sobre fatos supostamente observados.

Da irredutibilidade de um nível a outro não se segue um “quiasma entre o interior e o exterior”. O dualismo é insuperável, quando consideramos que tais instâncias estão separadas ontologicamente em sua origem. No entanto, diferentemente de seus “confrades” positivistas, a ontologia bergsoniana não assume que a realidade está cindida primordialmente em partes. O problema do dualismo, posto em termos bergsonianos, não consiste em desvendar como duas esferas primordialmente distintas podem vir a se entrelaçar uma com a outra, mas como de uma mesma energia vital, de um mesmo elã, surgiram, pelo processo evolutivo, direções divergentes da existência. Portanto, o objetivo do bergonismo não é demonstrar como a intuição pode servir à inteligência – por definição, apenas nos colocamos no âmbito intuitivo, quando nos desvencilhamos do “útil” –, porém, como irmos além das categorias pragmáticas da nossa inteligência moldadas pelas condições de nosso ambiente rumo a uma apreensão intuitiva do mundo. Assim, o título de uma das seções do texto de Gunter, “os usos da intuição”, é descabido, pois a “utilidade” é justamente o âmbito da inteligência, enquanto a intuição remete ao “sentido mesmo da vida”, o qual é por natureza não utilitário. As nossas ideias intuitivas recobrem “os fatos supostamente observados e as leis pelas quais a ciência os reúne uns aos outros”, não porque aquelas sejam verificáveis ou refutáveis por estes, mas porque tais fatos observados e leis científicas são uma subdivisão e especificação pragmática de uma evolução criadora que também engendra as nossas intuições. Por conseguinte, a teoria da seleção natural não poderia ser, para Bergson, um âmbito de verificação de nossas intuições.

Por outro lado, ao empregar expressões como “conceitos intuitivos”, Gunter parece não pensar radicalmente o estatuto do simbolismo em Bergson. Desde o Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, diz-se que a linguagem é inapta para apreender os nossos estados interiores (DI, p. 9). Na Introdução à metafísica, aponta-se que “a Metafísica é a ciência que pretende passar-se de símbolos” (PM, p. 188), porque nenhum conceito ou imagem corresponde ou representa a duração de nossa vida interior. Ora, se é assim, como Bergson poderia, ao estilo dos positivistas, novos ou antigos, restringir “sentenças factuais a sentenças empíricas e sentenças empiricamente significativas àquelas que pudessem ser ou não verificadas empiricamente”? Conforme assinala Bergson, “a verdade é que, acima da palavra e acima da frase, há algo bem mais simples que uma frase e mesmo que uma palavra: o sentido, que é menos uma coisa pensada do que um movimento de pensamento, menos um movimento do que uma direção” (PM, p. 138). Logo, seja segundo a letra, seja segundo o espírito da doutrina bergsoniana, uma intuição não adquire o seu sentido ou sua verdade de sentenças empíricas. Óbvio que tal “antifilosofia da linguagem” suscita problemas diversos, alguns deles apontados por Gunter. Já os discuti alhures (SAMPAIO, 2017a) e não cabe fazê-lo novamente aqui.

Não é o caso, dado o interesse específico deste comentário, de examinar a correção da doutrina bergsoniana, nem mesmo de insistir mais detalhadamente que Bergson não é um positivista, mesmo que heterodoxo. Minha leitura divergente apenas procura enfatizar as tensões da linha interpretativa que guiou o artigo de Gunter e que, com variações aqui e ali, está presente numa série de comentadores anglo-americanos inspirados em Bergson. Quem sabe, para além dos detalhes hermenêuticos, essas vias interpretativas sejam apenas desdobramentos, mesmo que divergentes, da mesma simpatia e energia criadora suscitada pelo bergsonismo.

 

ReferÊncias

BENDA, J. Sur le succés du Bergsonisme - précédé d'une réponse aux défenseurs de la doctrine. Paris: Mercure de France, 1914.

BERGSON, H. Matter and memory [MM] (Transl. by Nancy Margareth Paul and W Scott Palmer). London / New York: Swan Sonnenschein & Co., The Macmillan Co., 1911

BERGSON, H. A evolução criadora [EC] (Trad. de Bento Prado Neto). São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BERGSON, H. O pensamento e o movente [PM] (Trad. de Bento Prado Neto). São Paulo: Martins Fontes, 2006.

RUSSELL, B. The philosophy of Bergson. The Monist, July, Vol. XXII, p. 321-347, 1912.

RUSSELL, B; CARR, E. The philosophy of Bergson. Cambridge: Bowes & Bowes, 1914.

KRONER, R. Henri Bergson. Logos, t. I, p. 125150, 1910.

SAMPAIO, E. A virada linguística e os dados imediatos da consciência. Trans/Form/Ação, Marília, v. 40, n. 2, p. 47-70, 2017a.

SAMPAIO, E. Intuição & exercícios espirituais. Dois Pontos. Curitiba, São Carlos, v. 14, n. 2, p. 211-229, 2017b.

QUINE, W. Os dois dogmas do empirismo. In: QUINE, W. De um Ponto de Vista Lógico. Araraquara: Unesp, cap. II., 2011

RATES, B. As leituras alemãs da filosofia bergsoniana: transcendentalismo e Lebensphilosophie. Dois Pontos. Curitiba, São Carlos, v. 14, n. 2, p. 185-197, 2017.

 

 



[1] Agradeço ao Professor Gunter, pela autorização para a tradução deste artigo.

[2] Professor Associado I da Universidade de Brasília (UnB), Professor do Programa de Pós-Graduação em Metafísica e do Departamento de Filosofia/UnB. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-6641-8843. E-mail: evaldosampaio@unb.br.

[3] Convém lembrar que Bergson, além de ter participado diretamente da revisão da tradução, escreveu um novo prefácio para a edição inglesa de Matter and memory (cf. a nota dos tradutores em MM, p. v), o qual veio, quando da sétima edição francesa, substituir o prefácio original. Logo, um material adicionado à versão inglesa posteriormente modificou a edição “original” francesa.

[4] Benda refere-se à versão original da Introduction à la metaphysique, publicada em 1903, na Revue de métaphysique et morale. Na versão publicada duas décadas depois, em O pensamento e o movente, Bergson, provavelmente para sanar essas dúvidas de interpretação, substituiu aquela expressão original por “simpatia espiritual”. Comentei mais detalhadamente esse tópico em Sampaio (2017b, p. 222).