Pode o Pensar nos imPedir de fazer o mal?
uma questão de consciência
RESUMO: A presente incapacidade de o ser humano estar em casa no mundo encontrou expressão numa crise “ecológica” que possui elementos éticos, políticos e ontológicos. Partindo de uma breve elaboração do sentido dessa crise “ecológica” e da sua relação com a própria constituição do ser do humano, este artigo procura traçar um percurso, no quadro do pensamento arendtiano, da relação entre o sentido do ser do humano, a questão da banalidade do mal, a atividade de pensar e o surgimento da consciência moral. Para tanto, o texto faz uso de ferramentas de análise e de descrição fenomenológico-existenciais, para chegar a um tipo de normatividade que não brota de uma necessidade formal dada, mas da própria contingência da fatualidade existencial, isto é, da liberdade, a qual se estabelece como condição de toda a ação, descobrindo-lhe assim a sua própria medida.
PALAVRAS-CHAVE: Crise “ecológica”. Ser do humano. Banalidade do mal. Pensar. Consciência.
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A presente reflexão parte de um lugar-comum, no duplo sentido da mais quotidiana das trivialidades e da mais básica experiência do acontecimento que constitui o encontro de diferentes. Esse lugar-comum é aquilo a que poderíamos chamar “crise ecológica”, a nossa aparente incapacidade de estarmos em casa no mundo, numa acepção que tentaremos clarificar, ao longo deste artigo, particularmente neste primeiro momento. Esta é uma crise que carrega uma marca com duas faces: o desabrigo (homelessness) e o desenraizamento (rootlessness) (ARENDT, 1976, p. vii). Esta digressão pelo pensamento arendtiano será constituída por quatro movimentos, quatro linhas de pensamento que, tal como numa sinfonia, deverão soar em conjunto, iluminando o assunto tratado e produzindo um todo de sentido.
No contexto do pensamento de Arendt, “crise” corresponde ao momento em que os padrões, isto é, as leis e as medidas, bem como as noções herdadas do passado, para nos orientar nas dificuldades presentes, deixam de ser fiáveis, perdendo a sua capacidade para distinguir aquilo que se nos apresenta quotidianamente, de modo indiferenciado. Portanto, esta é uma crise na nossa relação com o passado, com um passado que, como diz Arendt, citando Faulkner, “[...] nunca está morto, nem sequer é passado” (ARENDT, 2006a, p. 10), referindo-se assim ao fato de, em cada momento, o presente vivo enquanto tal nos escapar – ele sempre já passou. Na verdade, o modo próprio de aparecimento quotidiano desse presente vivo e, portanto, transiente, é uma ausência ou falta de ser que só se torna presente como um passado. Esse passado é uma origem que se dá ao pensar e à compreensão, isto é, de uma forma reflexiva ou retrospetiva. Numa conhecida entrevista a Günter Gaus, Arendt (1994, p. 3) afirma:
Aquilo que é importante para mim é compreender. Para mim, escrever é uma questão de procurar esta compreensão, é parte deste processo de compreensão […] Eu quero compreender. E se outros compreendem – o mesmo que eu compreendi –, isso dá-me um sentido de satisfação, como um sentir-me em casa.
Compreender é buscar o sentido dos acontecimentos. Para Arendt, a compreensão “[...] é uma atividade interminável, pela qual, em constante mudança e variação, chegamos a um acordo e nos reconciliamos com a realidade, isto é, tentamos estar em casa no mundo”, constituindo mesmo “[...] o modo especificamente humano de estar vivo.” (ARENDT, 1994, p. 307-308).
Se a crise atual tem na sua base um problema na relação com um passado, então há que regressar a essa origem, pondo-a em questão. Nesse questionar da origem, Arendt retoma e reformula o sentido que origem ou arkhê tinha, na Grécia Antiga: ser origem não é apenas ser um começo que pode ser imediatamente suprimido na ocorrência que se lhe segue numa ordem cronológica, mas um começo que é uma recorrência e que, como tal, não cessa de começar e dirigir aquilo do qual é começo.
Ora, dado que essa origem se descobre sempre como um ser-sido, ela é descoberta factualmente. A origem é o fato de ser. E dado que ela retorna a si mesma de cada vez que se descobre como começo, ela é autorreferencial. Essa autorreferencialidade fática não é mais do que o ser do humano, que é um se quaerere – um existir como questionamento de si ou “[...] demanda por si mesmo, a sua possível descoberta de si mesmo.” (ARENDT, 1929, p. 44). O ser do humano é o abismo inquisitivo que se abre e transcorre entre um passado que remete para o futuro e um futuro que reenvia para o passado, numa demanda por um ser próprio. Para o humano, existir é assumir uma diferença fática, uma diferença ôntico-ontológica; o humano é aquele ente em cujo ser é o próprio ser que está em questão – como Heidegger havia já afirmado, a seu modo próprio e com consequências distintas, no §2 de Sein und Zeit (HEIDEGGER, 1977). E esse ser é para cada um de nós um enigma:
Se me perguntassem qual é a solução do enigma, eu responderia: […] simplesmente a unidade que é o homem: é humano agir e querer agir; é humano pensar e querer pensar. Onde quer que não os tenham combinados no homem vivo, embora sejam, num certo sentido, opostos, têm ou a ação impensada ou o pensamento impotente. É sempre a vida que oferece as soluções. (ARENDT, 1929, p. 44).
O ser do humano descobre-se originalmente como um questionamento ôntico-ontológico. Ao descobrir-se sempre como já sendo, o humano tem já uma pré-compreensão do ser, o ser já é dotado de um sentido ou referencialidade – ele já tem uma origem. Ao ser faticamente, o humano assenta a sua inquirição existencial numa pré-ontologia, a qual, por seu lado, antecipa o sentido do seu ser próprio e, como tal, assume sempre uma dimensão pró-ôntica – ou seja, serve de medida para as entidades.
Questionar as origens é questionar uma pré-compreensão do ser que deixou de fazer sentido, é redescobrir – no sentido de procurar trazer uma vez mais à visibilidade – a origem como distinção ôntico-ontológica e, consequentemente, como ser do humano. Falar de origens é descobrir um acontecimento no passado como um começo, o qual aparece a um olhar retrospetivo como o culminar de todas as ocorrências que o antecederam, como um fim. Por essa razão, esse acontecimento original marca um fim, mas assinala também a possibilidade de um novo começo, de um momento de mudança cujas possibilidades transcendem a significância das suas origens. Abre-se, assim, espaço para a novidade e, com ela, para uma presença renovada e singular do humano no mundo.
Para Arendt, a vida humana coincide com esse processo sem fim de compreensão – ela o denomina, noutro contexto, “imortalidade” (ARENDT, 1959, cap. 1, §3), chamando a atenção para a descoberta de uma permanência, de uma habitação, no coração da finitude humana. A vida humana é essa estrutura de reenvio entre o passado e o futuro que descobre uma permanência – um êthos ou lugar de habitação – no hiato aberto pela finitude naquilo que, de outro modo, seria apenas a mesmidade indiferenciada do trânsito temporal. Em consequência, estar em casa indica a diferenciação ontológica que tem lugar na imanência da finitude do ser do humano. O habitar para o qual esse “estar em casa” nos remete corresponde a um sentido radical e primitivo do termo êthos, a saber, “abrigo”, referindo-se à constituição para si mesmo de uma morada, de uma permanência – em suma, de um caráter. Quando falamos de caráter, não nos referimos a uma espécie de catálogo de costumes ou hábitos, mas a um modo de ocupação da realidade, um modo de instalação no espaço e no tempo da vida que confere ao seu protagonista um certo grau de permanência. O ético refere-se, assim, a uma forma de integração dinâmica dos acontecimentos que tem como referencial esse modo peculiar de conceber o habitar.
O fato de estarmos sendo sem razão põe-nos em questão, exigindo uma resposta; e é próprio do humano, enquanto ente no qual se dá a diferença ôntico-ontológica, responder a esse quesito, assumindo responsabilidade por tudo aquilo que é, ao assumir responsabilidade pelo seu próprio ser.
Conforme Arendt, a casa em si e por si mesma nunca é vista, no sentido de nunca ser um objeto intencional propriamente dito. É uma casa invisível – é um invisível que ocorre na imanência da visibilidade e é sua condição de possibilidade –, permitindo-nos distinguir as casas particulares, isto é, diferentes modos de habitar. Consequentemente, ela implica uma permanência que pode ser habitada e alojar ou abrigar alguém, é a “medida não-vista – aphanes metron –” que “[...] contém os limites de todas as coisas” (ARENDT, 1978, p. 165) que dizem respeito ao habitar.
Casa é a medida de tudo aquilo que é, não no sentido em que o ser do humano é a medida de tudo o que existe, mas no sentido em que o ser do humano, sendo o lugar da diferença ôntico-ontológica, é tal que permite o acesso à medida de tudo o que existe. E esse acesso, muito embora ocorra com e na própria vida, é experienciado e atualizado de modo próprio nas atividades mentais, reflexivas, em particular no pensar, que Arendt concebe como ponderação, à imagem dos exercícios de Inácio de Loyola: exames de consciência que não têm outro resultado que não esse permanecer, o qual não é mais do que o “[...] sentir e o gostar as coisas internamente.” (INÁCIO DE LOYOLA, 2000, cap. 2, Segunda Anotação). Esse pensar é vida, diz Arendt, e estar vivo corresponde a uma sucessão temporal acompanhada por uma recorrência que busca dar sentido do seu próprio ser, uma atividade compreendida como “[...] a ‘atividade perfeita e desimpedida que [por esta mesma razão] acolhe na imanência de si mesma o mais doce de todos os deleites’.” (ARENDT, 1978, p. 123).
A crise “ecológica” é, literalmente, uma crise na habitação e, em sentido arendtiano, é uma crise ontológica. E, se isso é assim, então a crise ontológica tornou-se – para nós, humanos – uma crise ética e, por extensão, política.
Em nossa perspectiva, Arendt faz parte dos pensadores do pós-fundacionalismo, reconhecendo a impossibilidade de afirmação de fundações necessárias e deixando em aberto uma universalidade que é permanentemente posta em questão. Em vez de uma universalidade ou fundamento necessário, essa atitude considera a possibilidade da existência de uma pluralidade de fundamentos contingentes que têm como condição de possibilidade a ausência de um fundamento último – isto é, que têm como condição de possibilidade a própria liberdade, veja-se, a este respeito, BUTLER 1992.
Heidegger é um dos pensadores inaugurais da perspectiva pós-fundacionalista. No entanto, e assumindo um ponto de vista arendtiano, embora Heidegger descubra o fundamento último do ser do humano na liberdade compreendida como ausência de fundamento, ele não apresenta uma versão dessa liberdade que se mostre capaz de transcender o nada em direção a uma positividade de ser. Ao invés disso, Arendt considera que a posição heideggeriana abriga uma contradição interna decisiva, já que o Dasein ou existência, enquanto ser-no-mundo, está intrinsecamente dependente de um mundo do qual pretende, na partida, estar absolutamente separado no seu próprio ser enquanto si-mesmo (TAMINIAUX, 1992, p. 23 e seguintes). O Dasein não é, portanto, livre, mas, pelo contrário, está totalmente determinado pelas circunstâncias mundanas, numa derrelicção aparentemente insuperável.
Essa concepção da existência mostra ser particularmente problemática no que diz respeito à questão do mal e está na base da reflexão arendtiana acerca do fenômeno totalitário.
Tradicionalmente, cada ato particular pode ser visto como uma dinâmica de individuação ou distinção que afirma o indivíduo como uma particularidade, separando-se de uma ordem de coexistência já dada, plenamente presente. Cada ato particular põe em questão a integridade dessa ordem.
Para além disso, o ato é malévolo, quando pretende substituir essa mesma ordem de coexistência, almejando constituir-se em exceção e constituir essa exceção no fundamento de uma nova ordem.
Nesse sentido, o mal é radical, ele visa a atingir o ser nos seus fundamentos. Todavia, parece estar condenado ao fracasso, pois essa sua intenção de fundação da exceção como norma anula simultaneamente a sua qualidade de exceção. O mal é, do ponto de vista tradicional, autodestrutivo.
Um bom exemplo dessa perspectiva é o imperativo categórico kantiano.
O imperativo categórico exige de cada um que aja sempre de tal modo que a máxima dos seus atos seja universalizável. Da perspectiva kantiana, eu posso querer esta ou aquela mentira, mas não posso querer a universalização do mentir enquanto tal. E esse não posso querer não expressa apenas um impedimento pontual: eu posso querer esta ou aquela mentira particular, mas não me é possível, em virtude do pressuposto da constituição intencional da vontade kantiana – que não é boa pelos bens que realiza, mas pelo seu querer, tomado em si mesmo como afirmando o ser –, querer que o ato de mentir seja universal e necessário.
No caso da banalidade do mal, uma tal aspiração a fundar uma ordem de ser própria está completamente ausente. O que é posto em questão é a própria imutabilidade da constituição intencional do querer e da afirmação de ser que lhe está subjacente. A banalidade do mal é a resposta factual, pela afirmativa, à questão: será o mal possível na ausência de qualquer intenção?
Os governos totalitários constituem as condições ideais para o surgimento dessa banalidade, pois conservam a universalidade e a necessidade formal das normas, preservando a dimensão de obediência que delas emana, porém, invertem a sua função de imposição de limites à ação. Invertendo as formas tradicionais de governo e de conduta, a forma de organização totalitária abandona o “Não matarás!” que subjaz tradicionalmente a todo o ato como um imperativo que impõe um limite último à ação, adotando o “Matarás!” como imperativo da sua atividade e, como tal, como sentido e medida de tudo aquilo que é (ARENDT, 2006b, p. 150).
A transgressão de todos os limites – a excepcionalidade – torna-se a norma, mas de tal modo que a lei – a articulação do sentido que serve de medida ao ser – deixa de expressar um princípio de reunião de todo o dado, de todo o passado e, portanto, de pretender fundar uma nova ordem de coexistência. A lei perde a imutabilidade que a constituía tradicionalmente, tornando-se uma lei de movimento que visa à aniquilação de toda e qualquer positividade e, por essa via, de todos os limites e condições à ação.
Consequentemente, em um contexto totalitário, o mal não surge mais do crime, mas do dever de obediência às leis do movimento; o mal surge da identificação plena com um movimento totalizante que visa aniquilar todo o dado, perdendo a sua qualidade de tentação, a sua particularidade – se a lei é o processo de produção da exceção, não há exceções à lei (o que de alguma forma explica o lugar atribuído a criminosos nos regimes totalitários e a natureza criminosa desses mesmos regimes).
Eichmann é o exemplo vivo desse abandono dos indivíduos aos processos de produção de exceção que caracterizam os movimentos totalitários. Foi a superficialidade, a falta de ser próprio de Eichmann, decorrente dessa derrelicção, que surpreendeu Arendt no momento do seu julgamento, levando-a a cunhar a expressão “banalidade do mal” (ARENDT, 2006b, p. 252).
Em Israel, no tribunal, confrontado com a possibilidade da sua própria aniquilação, com a sua própria finitude, Eichmann responde com indiferença, não se dando conta de que é a sua própria existência que está ali a ser posta em questão e, com ela, a sua própria pessoa. Posto em questão por uma realidade na qual todos os referenciais que lhe serviam de fundamento e que atribuíam sentido à sua existência deixaram de ser operativos, Eichmann respondia com frases-feitas, as quais repetia até à exaustão. Segundo o próprio, “o oficialês (Amtssprache) é a minha única língua” (ARENDT, 2006b, p. 48), uma língua cujo referencial era um mundo que não existia mais e no qual Eichmann se escudava, de forma a escapar ao contato com a realidade.
Arendt (2006b, p. 49) faz a seguinte observação:
Quanto mais o escutava, mais óbvio se tornava que a sua incapacidade de falar estava intimamente ligada à sua incapacidade de pensar, de pensar do ponto de vista de outrem. Nenhuma comunicação era possível com ele, não porque ele mentisse, mas por que ele estava cercado pela mais fiel das salvaguardas contra as palavras e a presença dos outros, e consequentemente contra a realidade como tal.
Na sua interpretação da atitude de Eichmann, Arendt recupera o conceito heideggeriano de Gerede ou falatório, já presente em Husserl, na noção de ato signitivo, um ato expressivo cujo sentido não descobre qualquer referencial como correlato, isto é, um ato cuja significância é literalmente vazia, um nada, um não-ser. Tais atos não carregam em si mesmos qualquer conotação pejorativa. Como diz Arendt (1978, p. 4):
Clichés, frases-feitas, adesão a códigos de expressão e de conduta convencionais, padronizados, têm a função socialmente reconhecida de nos proteger contra a realidade, isto é, contra a reivindicação da atenção do nosso pensar feita por todos os fatos e eventos em virtude da sua existência. Se respondêssemos a esta reivindicação a todo o tempo, em breve estaríamos exaustos […].
Longe de mentir ou tentar escapar intencionalmente à realidade, Eichmann comportava-se de acordo com uma realidade que havia sido o seu quotidiano e que pura e simplesmente já não estava lá.
Consequentemente, na ausência de procedimentos rotineiros e de pressupostos ou padrões sociais de distinção sobre os quais recair e que conferissem realidade à sua existência a partir de fora, Eichmann revelou-se incapaz de lidar com uma realidade que pôs a nu o seu próprio ser como questão viva, reivindicando dele uma resposta à experiência da ausência de fundamento constitutiva do ser do humano. Convocado para dar sentido à sua própria existência, Eichmann não se furtou apenas à responsabilidade; aparentemente, ele nem sequer se deu conta de tal reivindicação proveniente dos fatos. Ao fazer depender em absoluto a sua realidade da função que desempenhava, num mundo agora inexistente, Eichmann perdeu a sua voz própria, a sua pessoa.
O comportamento de Eichmann, caracterizado por esse abandono absoluto às imposições do quotidiano, não havia sido a exceção, mas a norma no interior do regime nazi. Por essa razão, Arendt afirma que “[...] o mal, no Terceiro Reich, havia perdido a qualidade pela qual a maioria das pessoas o reconhece: a qualidade da tentação.” (ARENDT, 2006b, p. 150). Ou seja, o mal perdeu a particularidade, tornando-se o modo de articulação do sistema totalitário. E acrescenta: “[...] eles haviam aprendido como resistir à tentação” (ARENDT, 2006b, p. 150), referindo-se à tentação do bem, essa sim radical, porque, embora brote da particularidade, vai em busca dos seus fundamentos, das suas origens.
E essa era, para Arendt, a grande questão e o imenso desafio existencial e moral que o julgamento de Eichmann tornou visível, já que, sob condições do Terceiro Reich e ao contrário do que era tradicionalmente aceito, apenas das verdadeiras exceções à “norma” seria expectável que agissem “normalmente”. De forma um tanto paradoxal, só da cisão com respeito ao movimento do todo – numa espécie de negação dupla que põe em questão a excepcionalidade a qual foi constituída em lei de movimento, impondo um limite aos seus processos – poderá surgir não o bem, mas a possibilidade de distinguir o bem do mal. Com essa possibilidade, abre-se também uma outra possibilidade – mas somente a mera possibilidade –, a de fundação de uma nova ordem de coexistência, isto é, de uma nova articulação do sentido do ser do humano e, concomitantemente, de constituição de uma nova casa, de um lugar mais ou menos permanente que permita ao humano habitar o mundo.
Referimos acima que Arendt é o que podemos chamar de pós-fundacionalista, reconhecendo a impossibilidade da afirmação de fundações necessárias e considerando a possibilidade de uma pluralidade de fundamentos contingentes cuja condição de possibilidade é a ausência de fundamento último. Em outras palavras, a possibilidade da liberdade. Contudo, referimo-nos também à experiência dessa ausência na vida quotidiana como a facticidade do ser do humano. Como concebe Arendt essa experiência e de que forma esta assume uma dimensão ético-política?
A resposta a essa questão surge por intermédio de uma análise daquilo
a que chamamos vivência retórica, a doxa, a qual se constitui na experiência básica e mais imediata da fenomenologia arendtiana.
Para Arendt, a doxa corresponde ao modo de doação ou de “mostrar aquilo que é” concebido sob o modelo da persuasão, o qual faz depender a sua demonstração de um contexto. Efetivamente, a doxa tem a constituição de um indexical, ou seja, de algo cujo objeto associado não é dado de um só golpe, mudando de acordo com o contexto do seu uso (GABBAY; GUENTHNER, 1989, p. 463). O significado daquilo que é dado na doxa muda consoante o contexto experiencial, o qual “[…] qua contexto nunca aparece inteiramente; ele é esquivo, quase como o Ser, que qua Ser nunca aparece num mundo cheio de entes […]” (ARENDT, 1978, p. 51). Como tal, a doxa, enquanto unidade básica de significação, assume um sentido contingente.
A compreensão desse elemento da teoria arendtiana necessita de uma contextualização.
Husserl, quando iniciou as suas análises fenomenológicas, colocou a questão da fundamentação do conhecer. Traduzida para os seus termos, essa questão dizia respeito ao problema da constituição da objetividade, isto é, da necessidade e universalidade do conhecimento, com base em uma singularidade fática infundada – a partir de um acontecimento, de um fenômeno (ARENDT, 1994, p. 164, ss.). Para Husserl, não há nenhum ato subjetivo – este ou aquele ato particular – sem um objeto, quer dizer, sem algo comum a todos os atos [veja-se, por exemplo, a definição husserliana de intencionalidade em Husserl, (1982, p. 188)]. De maneira muito genérica, a relação intencional que articula o ato subjetivo e aquilo que o ato indica como seu objeto constitui o fenômeno, o qual não é o objeto intencional, mas a vivência intencional (HUSSERL, 2007, p. 350, 381, na edição portuguesa) .
Todavia, como é possível constituir a objetividade – aquilo que é comum a todos os atos – a partir do subjetivo – aquilo que é próprio desse ato –, com base no fato ou vivência singular que é o fenômeno, sem anular a sua singularidade?
Assumindo uma perspectiva de inspiração arendtiana, a relevância fenomenológico-política da persuasão – e isso significa: a sua capacidade de engendrar um referencial de articulação de sentido politicamente constituído – reside no fato de, apesar de ser um ato a que um moderno chamaria “subjetivo”, um tal ato comportar como seu correlato um tipo de “objetividade” que, tal como o ato de tipo epistêmico husserliano, satisfaz o critério de uma certa universalidade ou, em termos mais próximos das intenções arendtianas, uma certa comunidade. No entanto, difere da vivência husserliana de tipo epistêmico, porque uma tal comunidade – a “universalidade” – não está associada à necessidade nem à identidade estrita que a vivência husserliana pressupõe como sua finalidade (no sentido em que algo necessário é algo que é e não pode não ser – “A é A”).
A doxa articula simultaneamente um modo particular de visar o mundo e o próprio mundo como aquilo que é comum a cada modo particular, embora este último se faça notar pela sua ausência. Nos termos arendtianos, a doxa é “[...] uma formulação no discurso daquilo que dokei moi, isto é, “’daquilo que me aparece’.” (ARENDT, 2005, p. 14). Segundo Arendt (2005, p. 14), a doxa
[…] não era, consequentemente, fantasia e arbitrariedade, mas também não era algo absoluto e válido para todos. A assunção era que o mundo se abre diferentemente a cada homem de acordo com a sua posição no mesmo; e que a “mesmidade” do mundo, a sua comunidade (koinon, como diriam os gregos, “comum a todos”) ou “objetividade” (como nós diríamos, a partir do ponto de vista subjetivo da filosofia moderna) reside no fato de o mesmo mundo se abrir a todos e que, apesar das diferenças entre homens e as suas posições no mundo – e, consequentemente, as suas doxai (opiniões) –, “tu e eu somos humanos”.
Não obstante a sua relação próxima, a diferença entre o discurso de tipo retórico e o discurso de tipo epistêmico reside no fato de este último poder ser comunicado e repetido, sem implicar um retorno à experiência que esteve na sua origem, à sua arkhê. Isso significa que o discurso considerado de um ponto de vista epistêmico, uma vez que respeita às coisas que não podem ser de outro modo, é passível de ser possuído sem referência ao contexto de elocução e, portanto, sem referência ao uso.
O discurso retórico, por seu lado, tem como tema comum a ocorrência do fato, isto é, o dinamismo de transição de um estado para outro que está na origem do fato. Assim, o princípio, origem ou arkhê que rege tal transição só pode ser captado como um em-comum a todo o devir particular, ou seja, a toda a experiência própria do diferenciar – do tornar-se outro.
A discursividade retórica está fundada numa distinção, dirigindo-se a um outro de si ao mesmo tempo que procura manifestar metodicamente essa diferença mesma, essa passagem, como aquilo que o protagonista do ato discursivo e esses outros a que se dirige têm em comum. E é essa distinção que articula o sentido daquilo que é.
Em suma, na medida em que é metódica, a discursividade retórica é também acompanhada por uma intenção de inspiração epistêmica, por assim dizer; mas essa intenção, dado que visa e depende de uma diferença, está votada ao fracasso, nunca atingindo a plena identidade de si consigo senão como uma relação entre diferentes e, como tal, como sendo ela própria uma distinção. Por essa razão, a discursividade retórica recai sobre e retoma, uma e outra vez, a contingência e a particularidade dos fatos, dependendo da experiência da factualidade na sua busca de uma origem ou princípio de passagem ao ato ou ao ser.
Cada ato discursivo individual tem de ser, em nível fundamental, operador do vínculo que se manifesta como diferenciação ou distinção, mesmo quando não o manifesta diretamente. Salienta Arendt (2005, p. 14):
A palavra doxa significa não só opinião, mas esplendor e fama. Enquanto tal, está relacionada com o reino político, que é a esfera pública na qual cada um pode aparecer e mostrar quem ele mesmo é. Afirmar a própria opinião pertencia ao ser capaz de se mostrar a si mesmo, a ser visto e ouvido por outros.
Assente na distinção, a vida da polis “[...] consistia num concurso intenso e ininterrupto de todos contra todos, de aei aristeuein, incessantemente mostrando-se a si mesmo como sendo o melhor de todos.” (ARENDT, 2005, p. 16). Essa distinção expressa-se na concepção da lei como nomos, aquilo que foi disposto e distribuído e que cada um possui e sustenta a seu modo próprio – o seu ser próprio –, assim se apropriando da comunidade, nela habitando ou permanecendo – isto é, sendo.
Portanto, se considerarmos cada ato discursivo genericamente, enquanto abstraído de sua performance própria – quer dizer, individualizada –, verificamos que todo o ato discursivo é um ato nomotético, no sentido em que:
1. Na sua performance, é um ato tético, isto é, constitui um modo particular de dizer o ser, sublinhando-se a sua dimensão sensível ou material – visível;
2. E contém o modelo convencionado, a lei, a norma, a medida, o vínculo ou a síntese articuladora que constitui o que é comum a todos os atos de significação enquanto seu referencial. Esse vínculo reúne os atos num conjunto que, como aquilo que está entre atos e lhes é comum, simultaneamente os distingue – o invisível.
O em-comum que faculta distinguir entre o particular e o geral – entre o privado e o público, para utilizar categorias arendtianas – é meramente esquemático e projetivo, antecipando a distinção que só pode ser concretizada pela performance do ato particular propriamente dito. O resultado não é uma igualdade genérica perante a lei que reduz os indivíduos a meras instanciações desta última, mas um igual direito a aparecer de modo próprio no espaço público – a isonomia (ARENDT, 1993, p. 40). E isso significa que não há público sem privado, nem privado sem público; anular a distinção implica aniquilar a possibilidade de uma vida humana.
A singularidade ou acontecimento em que cada ser humano consiste excede a generalidade da lei, pondo em evidência a omissão, por parte da própria lei, do seu caráter composto e não simples. A generalidade da lei, experimentada quotidianamente, pretere – em sentido literal, ou seja, deixa para trás, recobre e torna coisa do passado, ausente e inessencial – a sua constituição como síntese diferenciadora, ocultando a sua origem na facticidade do ser do humano, compreendido como aquele ente para o qual o ser está em questão.
Portanto, cada ato discursivo é um ato de vinda à existência de uma singularidade, de um diferente capaz de, paradoxalmente, integrar uma comunidade sem perder a sua qualidade distintiva (no fundo, não é isso ser-cidadão?). Essa pluralidade – uma reunião de singulares – é não só condição de possibilidade, mas condição da existência efetiva de uma vida politicamente constituída, uma vida que nasce da contingência e se concretiza em liberdade.
No momento anterior desta reflexão, apresentamos uma breve descrição fenomenológico-discursiva da experiência fática que desempenha o papel de Erlebnis básica: a doxa como a experiência mais imediata e mais fundamental de um ser-em-comum fundado na distinção entre privado e público. A doxa pressupõe a distinção entre privado e público, tratando essa articulação como algo cujo sentido é dado.
No entanto, vivemos num tempo que não pode apagar a experiência sem precedentes de uma forma de comunidade ou de vida conjunta que buscou e, até certo ponto, atingiu a eliminação de todo o dado, incluindo o próprio caráter de dado da doxa, bem como a sua distinção entre público e privado, aniquilando a singularidade viva e livre que jaz na sua fundação.
Arendt coloca essa questão nos seguintes termos: “Como pode o homem, que supostamente vive numa polis, viver fora da política?” (ARENDT, 2005, p. 6) Ou seja, como é possível a um ente cuja duração ou permanência no ser está vinculada a e se articula num referencial político – a um mundo ou ordem de coexistência – ter algum tipo de realidade sem referência a uma polis – a uma constituição – pressuposta, isto é, dada?
Essas perplexidades nos conduzem diretamente à questão que é tema deste artigo e que vimos abordando, de forma mais ou menos implícita, a saber: pode a atividade de pensar converter-se na condição de possibilidade de resistência ao mal?
Como vimos acima, o ser nunca é experienciado quotidianamente como uma coisa, mas como um processo em devir que brota de uma síntese articuladora de diferentes, uma síntese que se manifesta como uma ausência.
Do ponto de vista da análise fenomenológico-discursiva, todo o devir reúne dois relata: o visível ou “sentido”, abstraído do processo da sua vinda à existência; e o invisível ou “sentir” – o ato de sentir o processo de vinda à existência propriamente dito (PLATÃO, 2005, 157a) (essa dualidade serve apenas a propósitos de análise, pois nem esses relata são concebíveis como absolutamente separados, nem se defende aqui nenhum tipo de metafísica dualista).
Dada a sua interdependência, o vínculo entre as dimensões do sentir e do sentido – da invisibilidade e da visibilidade, do ser e dos entes – toma a forma de um reenvio constante de um ao outro, uma espécie de uma dupla revolução, através da qual cada um dos termos indica e dá testemunho da realidade do outro. O produto colateral desse reenvio dialético entre sentir e sentido é um novo sentido, um produto vivo cuja discursividade própria assume uma feição eidética, no sentido de forma exemplar. Esse eidos é aquilo a que Sólon chamou “medida não-aparecente” (ARENDT, 1978, p. 170). Uma vez que esse eidos possui uma qualidade pró-ôntica, antecipando o sentido do ser, ele constitui-se em referencial de mediação de tudo aquilo que é, erigindo-se em medida da distinção dos entes. Essa medida antecipa o sentido do ser numa pré-compreensão, isto é, todo o sentido começa sempre como um dado, como algo abstraído do processo da sua vinda à existência, da sua origem, a qual é consequentemente experienciada como ausência.
Arendt concebe essa experiência eidética como a experiência de uma medida de permanência, de um intervalo de duração no trânsito indiferenciado do tempo, uma duração capaz de abrigar alguém; em suma, uma casa que se apresenta quotidianamente como um esboço privado de temporalidade própria e que o pensar tem de atualizar, submetendo-o a exame. A palavra “casa” abrevia tudo aquilo que concerne ao habitar, a esse permanecer numa temporalidade própria que pressupõe uma vida humana sopesando-se ou ponderando-se a si mesma, “sentindo-se” a si mesma. Como tal, é uma atividade que não tem outro resultado que não a descoberta do sentido original dessa duração – o sentir e deleitar-se com a sua própria vida enquanto acompanhamento, até à origem, de um processo de vinda à existência – e que pode, por essa via, distinguir um modo de habitar de outro.
Assim, a necessidade de examinar – a atividade de pensar ou “necessidade da razão” (KANT, 1969, p. 135) – brota dessa experiência de falta de ser, dado que, quando supomos que estamos a ser de modo próprio, experienciamos uma falta de ser que, paradoxalmente, exige que sejamos. O pensar é sempre uma experiência interna – no sentido avançado por Inácio de Loyola, isto é, uma experiência que fazemos do nosso próprio estar a ser – do processo de nos tornarmos aquilo que já estamos a ser.
O reenvio constante entre a invisibilidade do sentir e a visibilidade do sentido constitui e articula uma ordem de coexistência – um mundo. E é a própria ordem que, submetendo-se a si mesma a exame na reflexividade do pensar, se individua no ser do humano. Tomada em si mesma e a partir de si mesma, ou seja, tomada na experiência da sua individuação, a própria ordem está fora de ordem. Estar-fora-de-ordem é o que caracteriza o thaumazon, a experiência do espanto ou admiração, do ser-perplexo que está na origem da filosofia.
A perplexidade experienciada no thaumazein é inerente ao deleite que caracteriza o parar-e-pensar, à interrupção ou intervalo que introduz um elemento de permanência, de duração, em todas as atividades. Isso significa que o próprio reenvio se experimenta como transcendendo os termos que supostamente articula e põe em relação, experimentando-se como singularidade, um ser-só ou solitude que retarda o processo dialético, pondo em questão o processo vital na sua imanência. Essa paralisia tem a natureza de um problema, compreendido como um retardamento no processo de realização de algo cujo efeito secundário é uma incerteza relativamente a um dado sentido, o qual, previamente ao processo do pensar, se sustinha para além de qualquer dúvida.
Quem questiona o ser que se dá em tudo aquilo que é sentido não está em condições de garantir que apresentará um desfecho próprio para esse retardamento, para o abismo que o pensar introduziu no tempo. Há um risco de niilismo em toda a iniciativa do pensar, o qual brota de uma aspiração a descobrir produtos do pensar que tornem o pensar ele mesmo desnecessário. É justamente devido ao risco de niilismo presente em toda a atividade pensante, a qual permite compreender e antecipar, de certa forma, aquilo em que o ser humano pode tornar-se e, por arrastamento, aquilo em que pode se tornar o mundo, que Arendt (1994, p. 445) afirma: “O horror mudo ante aquilo que o homem pode fazer e ante aquilo em que o mundo pode tornar-se está relacionado, de muitas maneiras, com a admiração muda a partir da qual brotam as questões da filosofia”.
E esse horror é a condição preliminar de toda a filosofia política. Assim, pensar significa que, a cada vez que nos deparamos com um problema e o experienciamos como um retardamento do processo vital – como uma perplexidade –, somos notificados de um abismo na temporalidade que não é mais do que a falta de um ser próprio. Somos assim desafiados a reconstituir novamente o nosso próprio ser – a começar de novo, diria Arendt –, acompanhando o seu processo de vinda à existência, a partir da sua origem. E isso põe em risco a ordem de coexistência, pois põe em risco as medidas ou valores que esta pressupõe nas suas operações quotidianas.
No entanto, a negação do exame da origem do processo de vinda à existência em que consiste o pensar redunda na adesão cega dos indivíduos a quaisquer regras de conduta prescritas num dado tempo e numa dada sociedade. Mais do que dependentes do conteúdo das regras, as pessoas ficam dependentes da posse de regras dadas, sejam elas quais forem, querendo preencher a falta de um ser próprio substituindo indiferentemente um código de conduta por outro, sem atenderem ao processo que está na sua origem. E este é o verdadeiro núcleo problemático da banalidade do mal, a saber, a aparente arbitrariedade, indiferença e relativização de todas as medidas de conduta, as quais podem ser trocadas por quaisquer outras, “[...] sem mais problemas do que os trazidos pela mudança, por todo um povo, das suas maneiras à mesa.” (ARENDT, 2003, p. 43).
O pensar enquanto atividade tem, por isso, uma dimensão revolucionária, subversiva. No pensar, é o mundo ele mesmo que se descobre como fora-de-ordem e que, como tal, se oferece a exame no ser do humano. Todavia, o pensar não tem o intuito de corromper, nem o intuito de tornar melhor; o pensar não tem a intenção de constituir e fundar uma nova ordem de coexistência que possa substituir a que foi posta em questão pela sua iniciativa: “[…] este tipo de reflexão ponderante não produz definições e é, nesse sentido, sem resultados, embora alguém que tenha ponderado o significado de “casa” possa fazer com que a sua pareça melhor.” (ARENDT, 1978, p. 171). Resumindo, o pensar não tem uma finalidade exterior ao exame do processo vital, descobrindo o seu sentido no processo mesmo da sua atualização. Mas pode contribuir para fazer do mundo uma casa mais apta a ser habitada por seres humanos. De fato, esse é o momento em que, para Arendt, o pensar se torna politicamente relevante, pois é o elemento purificador do pensar que revela as implicações das opiniões as quais não foram submetidas a exame, destruindo-as (ARENDT, 2003, p. 188). Dado que o pensar destrói os preconceitos – os pré-juízos – que organizavam e davam sentido às opiniões cuja origem havia permanecido inexaminada, ele acaba por ter um efeito libertador na faculdade de julgar:
[…] a mais política das capacidades mentais do homem. É a faculdade de julgar particulares sem os subsumir sob aquelas regras gerais que podem ser ensinadas e aprendidas até que se tornem hábitos que podem ser substituídos por outros hábitos e regras. (ARENDT, 2003, p. 188).
Segundo Arendt (1978, p. 178), “[...] pensar e estar plenamente vivo são o mesmo, e isto implica que o pensar tenha de começar sempre de novo”, ocupando-se de buscar o sentido de tudo aquilo que é existencialmente experienciado como medida não-aparecente do nosso próprio ser, como uma ordem de coexistência que não é outra coisa senão o nosso ser-em-comum.
Arendt chama amor – no sentido grego de Eros – à relação experimentada no pensar. O amor como eros consiste em tornar a experiência de uma falta de ser que, no pensar, se torna num impulso para dizer aquilo que é – o invisível nas aparências –, no conteúdo da doxa, daquilo que aparece. O amor desejoso é, por conseguinte, orientado no sentido de uma coincidência possível entre a esfera do próprio – experimentada quotidianamente como a privação ou falta de ser que confere a cada um a sua diferença – e a ordem de coexistência, assumindo essa coincidência possível como o modo de ser próprio de uma vida despendida entre seres humanos – trata-se, pois, do famoso amor mundi arendtiano (ARENDT, 1993, p. 184).
A forma de relação específica do pensar responde ao apelo do ser, experienciado como falta de ser próprio ou ausência, discorrendo acerca daquilo que lhe falta e, dessa forma, sendo. Isso significa ainda que o pensar, enquanto discursividade cujo tema é aquilo que preenche a sua necessidade de ser, não consome os objetos do seu desejo, saciando, assim, a sua falta de ser. Pelo contrário, o pensar põe os entes em movimento, atualizando a ausência ou falta de ser que lhes pertence, isto é, revitaliza-os e cuida deles, ao mesmo tempo que intensifica o seu próprio ser num desejo que não se esgota, mas que se escava, que se aprofunda cada vez mais, descobrindo a sua ausência de fundamento. Já assinalava Lévinas (1973, p. 49):
A relação com Outrem põe-me em questão, esvazia-me de mim mesmo e não cessa de me esvaziar, descobrindo-me recursos sempre novos. Eu não me sabia tão rico, mas não tenho mais o direito de nada conservar. O Desejo de Outrem é um apetite ou uma generosidade? O Desejável não satisfaz o meu Desejo, mas aprofunda-o, nutrindo-o, de alguma maneira, com novas fomes. O desejo revela-se bondade. O desejo de Outrem que nós vivemos na experiência social mais banal é o movimento fundamental, o transporte puro, a orientação absoluta, o sentido.
Nesse contexto, se o pensar tem alguma aptidão para a prevenção do mal, então, essa aptidão tem de se manifestar existencialmente na relação com outros. Ou seja, tem de se manifestar numa possível ordem de coexistência capaz de pôr em conjunto e conservar na sua singularidade as partes em aparente oposição na dialética do processo vital.
Para clarificar a sua posição, Arendt recorre a duas proposições socráticas que têm um tema comum: a perplexidade como experiência existencial. Trata-se, por isso, de algo que descobre, de maneira aporética, a sua origem na experiência da falta de ser que, paradoxalmente, intensifica e revitaliza o nosso próprio ser.
“[…] é preferível sofrer a injustiça (adikeistai) a cometer a injustiça (adikein).” (ARENDT, 1978, p. 181)
A palavra grega dikê é usualmente traduzida por “justiça”. A abordagem etimológica faz remontar a palavra à raiz *deik-, que significa “mostrar ou assinalar”. Com base nesta raiz, dikê pode significar, dependendo do contexto de elocução: “indicação”, “direção”, “via”, “costume”; e pode ainda assumir os sentidos derivados de indicação de “direito”, “parcela ou quinhão apropriado”, “reivindicação de um quinhão apropriado”, “signo, marca, característica”, com conotações de “comportamento apropriado”; “fronteira, linha divisória”, aludindo a um “acordo ou resolução” e ao estabelecimento de uma linha de fronteira entre dois opositores. De acordo com essa proposta, dikê é a marca ou comportamento característico de um certo tipo de pessoa (LIDDELL et al., 1996).
Não se trata aqui de uma caracterização individual, mas de um “tipo”, o qual, para Arendt, resulta da transformação de uma figura histórica num modelo ou eidos. Para que essa transformação possa ter lugar, conferindo significância a esse “tipo ideal”, é necessário preservar a parte genética da sua constituição, a parte que se refere à ordem de coexistência que atesta e suporta a existência individual. Isso se consegue ab-rogando-se a dimensão de particularidade que é parte constituinte da singularidade e que se manifesta como ausência ou privação de ser próprio no interior da ordem de coexistência (ARENDT, 1978, p. 169).
Assim, se o pensar torna presente o que está ausente, o pensar atualiza a finitude experienciada por cada ser humano como falta de ser próprio, gerando, logo, sentido e intensificando a existência. Esse tipo ideal constitui o espaço de fronteira, o limite entre duas reivindicações de propriedade; é o limite que assume o lugar de um terceiro desinteressado – afinal, a sua particularidade foi ab-rogada – que arbitra a disputa, propondo um acordo entre as partes. Nesse sentido, dikê pode também significar “aquilo que é devido a alguém em virtude de um acordo”.
Podemos, então, arriscar uma reformulação da proposição socrática destacada por Arendt: “É preferível sofrer a privação daquilo que me é devido a privar-me do que é devido”.
Recordemos a definição de propriedade privada apresentada por Arendt, em A Condição Humana, uma definição que estabelece o caráter próprio dessa privação como uma consciência – em sentido epistêmico (consciousness) e não moral (conscience) – de estar privado de algo que é essencial e propriamente nosso, numa vida despendida exclusivamente na esfera do domicílio (ARENDT, 1959, p. 60). Isso nos permite uma nova reformulação da proposição, que agora dirá: “É preferível sofrer a privação de um ser próprio a privar-me de um ser próprio”.
Do ponto de vista da ordem de coexistência – do mundo –, é irrelevante se é preferível sofrer a injustiça ou cometer a injustiça. Da perspectiva do mundo que serve de contexto aos atos e lhes confere medida e sentido, essas são posições subjetivas e aquilo que é relevante é que, quer num caso, quer no outro, ocorreu um crime, uma exceção à norma vigente, cada um sendo disso notificado no seu ser. Num caso e no outro, o resultado é uma privação de ser próprio, e a presença ou não de intenção é insignificante.
Entretanto, essa irrelevância não se estende ao ponto de vista da subjetividade dos atos. Como vimos, a ordem de coexistência fornece uma pré-compreensão do sentido do ser que serve genericamente de medida ao ser de cada um, o qual tem de ser realizado no ato particular. Ora, do ponto de vista da subjetividade dos atos – e, portanto, da singularidade que neles se manifesta – não é indiferente cometer a injustiça ou sofrer a injustiça. A comissão da injustiça implica o abandono da medida da distinção do seu próprio ser às determinações de uma ordem de coexistência, cujo sentido é dado genericamente sem ser submetido a exame. Cometer a injustiça – no sentido de privar-se voluntariamente de um ser próprio – transforma os indivíduos em figuras esclerosadas, despojadas de autonomia e absolutamente definidas pela sua condição de alienação, de total abandono aos processos totalizantes de um mundo que lhes é estranho.
O pensar, essa reflexão sobre a falta de ser ou inessencialidade que o ato revela na sua singularidade quotidianamente vivida, é movido pelo amor desiderativo que traduz a experiência mundana meramente negativa da ausência de ser próprio – e do risco de abandono a um sentido estranho de ser nas trocas com o mundo – na positividade da demanda por um sentido próprio para essa estranheza.
É na ponderação – no padecimento ou sofrimento – do movimento de diferenciação experienciado na subjetividade mesma dos atos como ausência ou privação de ser que a finitude se atualiza como possibilidade de um sentido próprio de ser. E este não é mais do que a atualização da origem processual e contingente da existência, conferindo um referencial próprio aos atos de determinação existencial que é independente dos pré-conceitos/pré-juízos da ordem de coexistência em que esses mesmos atos se inscrevem, apropriando-se da passagem do não-ser ao ser – do tornar-se outro – que é marca de tudo aquilo que é como o sentido próprio do ser do humano.
É por essa razão que Arendt chama a atenção para o pensar como uma espécie de pôr-se no lugar do outro, acompanhando o processo de diferenciação constitutivo do ser de tudo aquilo que é.
Arendt formula a segunda proposição socrática, nos seguintes termos: É melhor para mim que a minha lira ou um coro que eu dirija esteja fora de tom e ruidoso de desacordo, e que multidões de homens devam estar em desacordo comigo do que eu, sendo um (onta eme emauto), estar em desarmonia comigo mesmo e contradizer-me. (ARENDT, 1978, p. 181).
O núcleo dessa proposição é o onta eme emauto, o sendo um e a relação entre identidade e diferença que lhe subjaz.
Se pensarmos a identidade de modo estrito, como um “A é A”, não há lugar para a harmonia ou para a desarmonia – o estritamente idêntico a si mesmo não tem espaço para a diferença. É preciso pensar essa identidade a partir de um modelo não só capaz de conservar as diferenças, mas fundado nas diferenças ou, melhor dizendo, num processo de diferenciação.
A relação de si consigo mesmo, que é o traço distintivo da vida da mente, é atualizada no pensar. No entanto, manifesta-se existencialmente – publicamente – na dualidade factual da consciência epistêmica – consciousness –, isto é, na relação entre ser-sujeito e ser-objeto ou, para ser mais preciso, na relação entre ser-para-si e ser-para-outros. Essa consciência acompanha todas as atividades, mesmo aquelas em que cada um está esquecido de si mesmo. A consciência é um “syneidenai – saber comigo mesmo” (ARENDT, 1978, p. 74), um estado existencial no qual cada um faz companhia a si mesmo – o ser-só (solitude) – e que serve de garante da continuidade de si mesmo em todas as vivências, uma continuidade atualizada no pensar.
Todo o ato da consciência epistêmica visa ao ser como identidade, a qual é vivida subjetivamente como um excesso de significação que acompanha o ato. Uma vez que tal ato não descobre qualquer referencial como seu correlato – o ser não é identitário –, trata-se de um ato signitivo, subjetivamente vivido como falta de ser próprio. No entanto, a privação de ser notifica-me de que sou, mesmo que o ato de determinar a minha existência apenas alcance uma conscientização da mesmidade do Eu-sou.
Contudo, essa notificação dá conta de duas possibilidades complementares:
1. A possibilidade de ser-para-outros enquanto objeto absolutamente idêntico a mim mesmo – um em-si ou coisa;
2. A possibilidade de, em cada ato intencional, ser-para-mim-mesmo como privação e, portanto, a possibilidade de constituição de uma identidade na minha diferenciação com respeito a esse ser-para-outros ou em-si.
E isso remete-nos para a noção de que todo o ato epistêmico pressupõe, em última análise, um ato retórico, o qual visa uma comunalidade de diferentes que constitui o contexto de aparecimento ou ordem de coexistência de uma possível pluralidade de atos de determinação existencial. Assim, a identidade visada signitivamente nos atos epistêmicos de determinação existencial não é uma identidade estrita, mas uma ordem de coexistência constituída por uma pluralidade de possíveis atos de diferenciação. Ao ser remetido para o seu próprio ser e, por conseguinte, para o pensar como atualização dessa diferença, o sujeito dos atos epistêmicos faz experiência de si como um dois-em-um como uma diferença numa identidade. E esse dois-em-um – essa ordem de coexistência – no qual o pensar se constitui como experiência de reenvio atualizador da diferença entre um ser-para-outros (em-si ou coisa) e um para-si no “[...] diálogo surdo eme emauto – entre mim e mim mesmo” (ARENDT, 1978, p. 185)9 constitui a essência, o ser-sido ou passado do pensar ele mesmo. Segundo Arendt (1978, p. 185),
[…] não é a atividade pensante que constitui a unidade, que unifica o dois-em-um; pelo contrário, o dois-em-um torna-se Um de novo quando o mundo exterior se imiscui no pensador e encurta o processo pensante. Então, quando ele é chamado pelo seu nome de volta para o mundo dos aparecimentos, no qual ele é sempre Um, é como se os dois nos quais o processo pensante o havia dividido batessem palmas novamente em conjunto.
O reenvio constitutivo do pensar, uma vez que atualiza a privação de ser subjetivamente vivida nas diferentes determinações existenciais, refere-se ele mesmo à unidade da ordem harmônica de coexistência que, embora tenha lugar na sua imanência, está fora de ordem, transcendendo o reenvio infindo da atividade pensante. O mundo imiscui-se no diálogo do dois-em-um, como uma resistência promotora de perplexidade, que assim se transforma na medida da duração, da constância, permanência e unicidade do ego pensante, na conservação da sua própria diferença de ser.
Os atos epistêmicos de determinação existencial pressupõem e, consequentemente, antecipam a possibilidade de realização futura da identidade ou ser próprio num ser que é ele mesmo constituído por uma diferença essencial. Essa experiência remete o sujeito dos atos para si mesmo e para a sua própria essência ou ser-sido, isto é, para a sua origem ou passado.
O pensar é o reenvio dialético do futuro para a constituição de um passado ou ser-sido próprio e, por seu lado, desse passado para um futuro ou ser possível, um ser cuja possibilidade brota da inserção do humano num contínuo temporal que seria, de outro modo, indiferenciado, uma mesmidade monótona.
E é a própria essência do humano como possibilidade de ser, paradoxalmente compreendida como uma falta de ser ou inessencialidade vivida no trânsito contínuo entre o passado e o futuro, que o pensar tem de atualizar.
Há aqui, portanto, uma medida para o ser que se atualiza no pensar, uma medida que brota da dualidade experienciada como unicidade ou harmonia no tonos ou dilatação tensional que se insere entre o passado e o futuro. Essa medida é o ser próprio daquele que pensa, compreendido como aquilo no qual o pensar se demora, a saber, a ordem do trânsito incessante e diferenciador do ser de tudo aquilo que é, o mundo.
Isso não significa que o ser do humano é a medida de todas as coisas, mas que a sua experiência do seu próprio ser como diferença ôntico-ontológica se torna instância privilegiada de acesso a essa mesma medida e, simultaneamente, um limite ou condição autoimposta a toda a sua determinação existencial. Consequentemente, tudo aquilo que é, isto ou aquilo, é como uma diferença viva pela qual o humano é responsável, não circunstancialmente, porém, nos recessos do seu próprio ser. A dualidade do dois-em-um descobre-se existencialmente como essencialmente condicionada, embora num sentido depurado de quaisquer conotações metafísicas, substancialistas ou essencialistas. E a medida do ser do humano não fica, assim, absolutamente dependente de uma normatividade dada, evitando a derrelicção.
O pensar é, pois, essencialmente sinzetético (suzêtêtikos), uma inquirição ou demanda que reúne diferentes: a sua atualização no diálogo do dois-em-um propicia a reunião das partes intervenientes na polêmica, conservando o processo individual da sua vinda à existência, conservando a diferença de ser que lhes é própria. A possibilidade dessa reunião ou coexistência constitui o ser daquele que pensa, ao invés de aniquilar o processo vital das partes dialogantes em nome de uma mesmidade exclusivista e totalizante, povoada por entidades esclerosadas.
Arendt chama consciência moral (conscience) a esse movimento sinzetético que brota do pensar e que acompanha, sustenta e orienta toda a determinação existencial da consciência epistêmica (consciousness).
Embora não se possa dizer que haja, para Arendt, uma dimensão legisladora nessa consciência moral – não há aqui obrigação de obediência –, há o estabelecimento de um limite à ação, de uma condição ou normatividade que, todavia, não diz o que cada um deve fazer.
Em nosso entender, este é o sentido da expressão arendtiana “Um direito a ter direitos” (ARENDT, 1976, p. 296-297): o simples fato de existir comporta a possibilidade de um ser próprio e, como tal, reivindica para si o direito a esse mesmo ser, seja ele qual for. O direito do humano à existência não lhe é reconhecido por uma qualquer natureza ou normatividade formal dada e, consequentemente, necessária, mas pela contingência do próprio fato de existir, o qual é, em si mesmo e para si mesmo, a afirmação de uma dignidade própria, ao mostrar-se capaz – mesmo que apenas no reino da possibilidade – de estabelecer autonomamente as condições e os limites de toda a ação, descobrindo-lhe uma medida.
A consciência moral só aparece – falamos aqui do seu modo próprio ou autêntico de aparecimento, tendo já estabelecido que a invisibilidade ou a ausência é também um modo de aparecer – como uma condição – um sofrer ou padecer, uma “[...] ‘aquiescência em si mesmo’ (acquiescentia in seipso)” (ARENDT, 1978, p. 191) – do humano, a qual é simultaneamente uma demanda pelo que lhe é devido, isto é, ao seu próprio ser. Essa demanda é instigada pela experiência de privação de ser desencadeada, quer pelo cometimento de um crime, quer pelo abandono a determinações existenciais que não foram sujeitas a exame pelo pensar.
Como tal, essa consciência estabelece apenas o horizonte condicional de possibilidade de todo o ser do humano, nada prescrevendo de positivo. Ela é tão-só a antecipação da presença de uma testemunha – do ser-para-outro ou diferença que é ser e condiciona – aguardando o humano, quando este reflete acerca do seu próprio ser, ou seja, quando regressa a casa.
Uma tal antecipação não é nem necessária, nem evidente. Aqueles que, como Eichmann, não se dão conta de serem postos em questão pelas reivindicações do fato de existirmos revelam uma irreflexividade que desconhece o diálogo insondável do dois-em-um e, assim, recusam-se a assumir a responsabilidade pelo que dizem ou fazem. Seres humanos como Eichmann não têm problemas de consciência (conscience), não porque não a tenham, mas pura e simplesmente porque não pensam no sentido que temos vindo a explorar, isto é, como atualização da diferença constitutiva da sua identidade, a qual é dada e experienciada como falta de ser na consciência epistêmica.
O pensar em si mesmo não descobre, de uma vez por todas, o que é o “bem”. Nas palavras de Arendt, “[...] a manifestação do vento do pensamento não é um conhecimento; é a capacidade de distinguir o bem do mal, o belo do feio. E isto pode efetivamente prevenir catástrofes, pelo menos para mim própria […]” (ARENDT, 2003, p. 189) justamente nesses momentos mais críticos. Em suma, o pensar não diz a cada um o que fazer, mas pode certamente evitar a colaboração dos indivíduos na comissão do mal, fenômeno que está no centro das preocupações arendtianas, em virtude não só da inversão de valores levada a cabo pela experiência totalitária, mas também da sua completa reversão no período do pós-guerra. Nessa medida, a capacidade do pensar de dissolução das regras aceites acriticamente sem qualquer referência ao contexto delimitante e sempre mutável do seu aparecimento torna-se cada vez mais relevante. Efetivamente, essa relevância do pensar pode revelar-se decisiva, num tempo em que cada um é arrastado impensadamente pelas ações e crenças de todos os outros – veja-se o poder dos fenômenos midiáticos ou das redes sociais, na disseminação de uma doxa homogeneizante, vazia de conteúdo próprio, sempre em movimento, flutuante –, abandonando-se aos elementos totalitários de uma sociedade de consumação total, da qual é sintoma a crise “ecológica”, nas suas vertentes ambiental e sociopolítica.
Numa tal sociedade, que é a nossa, o ser de cada um é esvaziado de sentido próprio e transformado numa função de produção/consumo tão apta a ser mercantilizada como qualquer outro produto. A alienação torna-se um lugar-comum e o humano parece incapaz de descobrir uma casa no mundo.
É nessas condições críticas que o pensar revela as implicações políticas da sua atividade. Para Arendt, pensar e julgar remetem um para o outro: o primeiro atualiza a diferença que é dada na identidade da nossa consciência epistêmica, tendo a consciência moral como produto derivado; o segundo, enquanto produto derivado do efeito libertador do pensar, torna o pensar real, manifestando-o no mundo (ARENDT, 2003, p. 189).
Pondo em questão uma ordem de coexistência que lhe é estranha, recusando juntar-se a ela por intermédio de uma submissão ou sujeição às regras processuais que ela lhe impõe a partir de fora, o sujeito pensante liberta-se da sua dominação e abre as portas à possibilidade de uma nova ordem de coexistência, de um novo mundo. Com essa possibilidade, abrem-se também as portas à radical tentação do bem.
Agradecimentos: Gostaríamos de agradecer ao Professor Doutor José Pinheiro Pertille, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, por ter lançado o desafio inicial que conduziu à escrita deste artigo, pelo interesse e apoio que manifestou na sua realização e ainda pelo auxílio na adaptação do texto às especificidades do Português do Brasil.
ABSTRACT: The human being’s current inability to be at home in the world has found expression in an “ecological” crisis which has ethical, political and ontological elements. Beginning with a brief elaboration on the meaning of that “ecological” crisis and its relation with the human’s own constitution of being, this paper aims at drawing a path, within Arendtian thought, between the meaning of the being of humans, the issue of the banality of evil, thinking and the emergence of conscience. To that effect, this paper uses phenomenological-existential tools of analysis and description to arrive at a type of normativity that emerges not from any kind of formal necessity, but from the existential factuality’s contingency itself, that is, from freedom, which is established as a condition for all action, thus finding it its own measure.
KEYWORDS: “Ecological” crisis. Being of humans. Banality of evil. Thinking. Conscience.
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Recebido em 05/02/2016
Aceito em 29/01/2017
[1] Doutor em Filosofia Política pela Universidade de Lisboa (2015), com uma tese intitulada Estar em Casa no Mundo – Hannah Arendt, Crise do Sentido e Ser do Humano. Especializou-se em Ética e Política (2004) na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo concluído a licenciatura em Filosofia (2003) na mesma instituição. Atualmente é pesquisador de Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, nas áreas da Ética e da Ontologia Política, com um projeto de pesquisa intitulado “Hannah Arendt e a Ontologia Política: Juízo e Constituição Política da Subjectividade”. Autor, entre outros, dos seguintes trabalhos: Reflexões sobre Política e Ambiente com Arendt e Marx – Desenvolvimento: O Ponto Cego da Sustentabilidade. In: Pensar para o Outro. Desafios éticos contemporâneos - Homenagem a Cristina Beckert. 1. ed. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2017. p. 269-279; Política e liberdade: a defesa arendtiana de uma “improbabilidade infinita”. In: Poética da Razão. Homenagem a Leonel Ribeiro dos Santos.1. ed. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2013. p. 883-894; Ética e Filosofias da Existência: Pensar no que estamos a fazer. In: Ética - Teoria e Prática.1. ed. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2012. p. 227-250; Ser humano desalojado: para uma compreensão da “crise ecológica”. Philosophica. Lisboa, v. 39, p. 57-68, 2012; Estado-nação e Imperialismo: Prolegómeno a uma Crítica Arendtiana dos Direitos do Homem. In: JORNADAS DE Jovens Investigadores de Filosofia: Segundas Jornadas Internacionais, Actas... Évora, 2010. v. 2. p. 281294; Hannah Arendt y la Conquista del Espacio: Repensar la condición humana. Bajo Palabra: revista de filosofia, v. 4, p. 237-245, 2009. E-mail: nuno.castanheira@ufrgs.br