HorkHeimer entre marx e scHopenHauer: do materialismo pessimista ao pessimismo materialista

Eder Corbanezi[1]

RESUMO: Partindo de avaliações retrospectivas de Horkheimer sobre seu percurso intelectual, procuramos mostrar que tanto Schopenhauer quanto Marx constituem uma influência permanente na obra do fundador da teoria crítica: com efeito, a maior evidência de um dos dois autores em certo momento da trajetória de Horkheimer não implica o desaparecimento do outro, mas antes o pressupõe como fundamento, ainda que latente. É que, embora estabeleça uma interlocução com cada um deles considerado isoladamente, o determinante, a nosso ver, é a leitura conjugada que Horkheimer realiza de ambos: por incompatíveis que pareçam, as esperanças de racionalização e emancipação sociais inspiradas em Marx e o pessimismo de Schopenhauer relacionam-se intrinsecamente, donde resultam um materialismo necessariamente pessimista e um pessimismo necessariamente materialista. Pretendemos evidenciar, porém, que, em virtude do modo pelo qual Horkheimer dialoga com a tradição filosófica, bem como em razão de mudanças de configuração histórica e, por conseguinte, teórica, a relação entre o pessimismo de Schopenhauer e o anseio emancipatório animado por Marx assume aspectos diversos e nuançados no decurso de sua obra.

PALAVRAS-CHAVE: Horkheimer. Marx. Materialismo. Schopenhauer. Pessimismo.

i

Assim como ocorre com frequência entre os grandes pensadores, Max Horkheimer não se furta a tecer avaliações retrospectivas sobre sua trajetória intelectual. Tal como se dá em geral, no autor em tela as considerações desse gênero também recebem as mais diversas formulações, procurando ressaltar ora um ora outro aspecto do próprio percurso, segundo os propósitos específicos de um determinado contexto – por exemplo, no intuito de fazer notar elementos de continuidade onde o leitor poderia crer encontrar uma ruptura na obra. Mas, justamente porque tais apreciações são ulteriores e provêm do próprio autor, não sendo de forma alguma desinteressadas, impõe-se ao leitor, em vez de uma pura e simples admissão que poderia dissimular dificuldades, a tarefa de perquirir a exatidão das mencionadas autoavaliações.

O objetivo do presente estudo é, com efeito, investigar as observações de Horkheimer acerca da influência de Schopenhauer e Marx sobre a sua obra. “Os dois filósofos que influenciaram de modo decisivo os inícios da teoria crítica foram Schopenhauer e Marx”, assevera em Teoria crítica ontem e hoje, reflexão de maturidade (1985, [1969/1972], p. 336).[2] Se, por seu tom geral, não se pode tomar tal asserção senão como ponto de partida, o próprio Horkheimer (1990, p. 4, tradução modificada) já havia dado a conhecer, no prefácio elaborado em 1968 para a reedição de Teoria crítica I, especificações sobre a relação entre aqueles dois autores:

O pessimismo metafísico, momento implícito em todo pensamento genuinamente materialista, me foi familiar desde sempre. À obra de Schopenhauer devo meu primeiro contato com a filosofia; a relação com a doutrina de Hegel e de Marx, o desejo de compreender e de mudar a realidade social não obliteraram, apesar do contraste político, minha experiência com a sua filosofia.

Retrocedendo ainda mais, já na década de 1930 leem-se considerações das quais se depreende a dupla influência de Marx e Schopenhauer. É o que atesta a seguinte passagem de Materialismo e metafísica, de 1933, em que a noção de materialismo alude ao primeiro e a de pessimismo, ao segundo autor:

Apesar de todo o otimismo que ele [o materialismo] possa sentir com relação à mudança das condições, apesar de toda a valorização da felicidade que brota do esforço por mudança, ele carrega consigo um traço pessimista. A injustiça passada é irremediável. Todavia, enquanto o pessimismo nas correntes idealistas costuma referir-se, hoje, ao presente e ao futuro na Terra, isto é, à impossibilidade da futura felicidade universal, e costuma manifestar-se na forma de fatalismo ou corrente de declínio, a tristeza inerente ao materialismo se relaciona com fatos do passado. (HORKHEIMER, 1990, p. 43).

Antes, porém, de examinar mais de perto a influência de Schopenhauer e Marx, é preciso fazer notar de maneira geral que, a despeito do destaque a eles conferido em passagens como as mencionadas, o percurso intelectual de Horkheimer se constrói a partir de um diálogo com não poucos filósofos e, em sentido mais amplo, com diversas vertentes filosóficas. Salta aos olhos, ademais, a natureza complexa tanto da relação que o fundador da teoria crítica estabelece diretamente com cada um de seus interlocutores como do contato que faz seus interlocutores, eles mesmos, constituírem entre si. Ao ler um mesmo autor, Horkheimer pode operar por apropriações e aproximações em relação a determinados aspectos e, ao mesmo tempo, por críticas e distanciamentos no tocante a outros elementos, não havendo, pois, nem adesão nem crítica estritas. Além disso, a presença de certos autores e noções não permanece idêntica durante todo o pensamento de Horkheimer: em dado momento, um autor e uma noção recebem um determinado tratamento e desempenham uma certa função, ao passo que, em outro contexto, o mesmo autor e a mesma noção são abordados de outra perspectiva e exercem novo papel, de maior ou menor valor. Igualmente multifacetada, claro está, é a relação que Horkheimer faz autores diversos estabelecerem entre si.

Tais considerações gerais – pretendemos mostrar a seguir – aplicamse ao caso específico de Schopenhauer e Marx, os quais Horkheimer faz relacionarem-se entre si de maneira extremamente nuançada. Para perseguir nosso objetivo, diante da multiplicidade de aspectos que o tema comportaria, restringiremos nosso escopo, com base nas duas últimas passagens mencionadas, ao exame da relação entre o pessimismo inspirado em Schopenhauer e o anseio por emancipação social enraizado no materialismo de Marx. Conferindo especial ênfase à análise do pessimismo, o qual nos servirá de fio condutor, procuraremos evidenciar que, se aparece de modo mais limitado e menos visível nos escritos do período inicial da teoria crítica, notadamente na década de 1930, tal concepção passa por um processo de extensão e se torna mais patente, como testemunham em particular os estudos de Horkheimer do meio da década de 1950 até o início dos anos 1970 expressamente destinados ao tema ou a Schopenhauer.[3] Inicialmente, quando o materialismo sustentava o desejo e mesmo as esperanças de transformação, o pessimismo se endereçava às injustiças do passado e do presente; em seguida, porém, com as mudanças históricas e a inviabilização das possibilidades de emancipação, começa a dirigir-se igualmente ao futuro. Ao movimento que estende e evidencia o pessimismo, comprovando a clarividência e atualidade de Schopenhauer, contrapõe-se a orientação decrescente das expectativas de emancipação social apoiadas no materialismo de Marx, que vai se afigurando, em certo sentido, mau profeta, utópico e idealista.

Por outro lado, tentaremos mostrar que a relação entre pessimismo e materialismo não se caracteriza por distinção estrita nem por simples oposição; antes, ambos se interpenetram: enquanto o materialismo encerra em si uma dimensão pessimista, esta só se justifica graças àquele, donde se seguem um materialismo pessimista e um pessimismo materialista. Em certo sentido, a leitura de um autor determina a leitura do outro. Tendo frequentado primeiramente Schopenhauer, Horkheimer instala o pessimismo no cerne do materialismo, proveniente do contato ulterior com Marx. Todavia, uma vez incorporado o materialismo deste, o pessimismo do fundador da teoria crítica não pode ser exatamente o mesmo que o do autor d’O mundo como vontade e como representação, isto é, metafísico, mas sim materialista-histórico. De fato, o que conduz Horkheimer, em seus últimos escritos, a conferir relativa proeminência ao pessimismo não é uma repentina adesão a pressupostos metafísicos, mas a análise do presente e das tendências históricas, adotando assim um procedimento fundamentalmente materialista; de outro lado, mesmo uma transformação radical em direção a uma sociedade justa não justificaria o sofrimento do passado, permanecendo sempre um pessimismo em forma de culpa ou dívida (Schuld) para com suas vítimas.

Examinaremos, por fim, outra face central da nuançada relação de Horkheimer com os dois autores, procurando evidenciar que em nenhum caso há adesão nem crítica absolutas: é que Marx, apesar de suas profecias equivocadas, continua imprescindível para se compreender a sociedade, enquanto o pessimismo de Schopenhauer, embora metafísico e clarividente, carece de radicalidade e, mais até, padece de um certo otimismo, considerandose as condições históricas presentes.

ii

Como já apontamos, Horkheimer indica a presença de Schopenhauer e Marx em sua obra de diversas maneiras, quer diretamente pelos nomes dos filósofos, quer pelas noções de pessimismo, referindo-se ao primeiro, e materialismo, aludindo ao segundo. Além da diversidade dos modos de referência ou alusão, diferentes são também os momentos em que e as maneiras pelas quais os dois pensadores se fazem notar em sua trajetória intelectual. Ao autor dos Aphorismen zur Lebensweisheit deve Horkheimer (1990, p. 4), segundo ele mesmo, seu primeiro contato com a filosofia. Mais do que pela antecedência cronológica, o interesse de semelhante iniciação filosófica se explica pelo caráter não apenas imediato, mas permanente da influência de Schopenhauer. Marcado pela leitura deste, o jovem Horkheimer formula os contornos iniciais de questões que, dos primeiros aos últimos escritos, jamais perderão a centralidade. Entre os temas principais que o ocupam desde sempre, encontram-se notadamente a crítica social, que manifesta sensibilidade diante das injustiças e aspira a melhorias, e o pessimismo metafísico, que revela, contudo, a irredutibilidade do sofrimento.[4]

Se crítica social e pessimismo metafísico nem sempre se acomodam de modo harmônico no jovem Horkheimer, essa tensão exigirá atenção ainda maior com a subsequente leitura de Marx, outra influência decisiva no início da teoria crítica.[5] Baseados em diagnóstico do presente e encontrando no autor d’O capital um suporte fundamental, os escritos de Horkheimer da década de 1930 visam, vislumbrando como possível, à emancipação por meio da racionalização das relações sociais, em especial as econômicas.[6]

Com efeito, visto que o caráter cego e irracional do mecanismo econômico constitui um fator determinante do estado de miséria, injustiça e sujeição, a transformação da sociedade exigiria, por conseguinte, a racionalização da economia.[7] Essa sua posição Horkheimer (1980a [1937], p. 154) sustenta empreendendo uma interpretação materialista do idealismo alemão ou, mais especificamente, considerando “o conteúdo materialista do conceito idealista de razão”. Tal procedimento não equivale, pois, a simplesmente “renegar a filosofia idealista e, juntamente com o materialismo histórico, visar o término da pré-história da humanidade”, conforme avaliará retrospectivamente Horkheimer (1990, p. 4) no já mencionado prefácio de 1968; trata-se antes de apropriar-se do idealismo, lendo-o em uma chave materialista, démarche essa que configura mais um exemplo de seu nuançado diálogo com a tradição.

Assim como Marx faz operar de modo materialista a dialética concebida por Hegel em viés idealista, Horkheimer compreende a racionalização da sociedade sob a ótica do materialismo, e não do idealismo alemão. Levando em conta o domínio da razão prática, de cujo legado se ocupou amplamente o idealismo, Kant já havia apontado para a necessidade de racionalizar as relações sociais, o que significaria, no limite, agir moralmente: o sujeito, dotado de vontade autônoma e livre, deve orientar suas ações em conformidade com e por respeito à representação da lei moral, expressa no imperativo categórico e deduzida a priori pela razão prática pura. Tal como admite a necessidade de racionalizar a sociedade, pondo-se, nesse particular, em harmonia com o autor da Crítica da razão prática, Horkheimer também concorda com a posição idealista segundo a qual a realidade é produto de uma atividade.[8] Mas também aí a convergência é apenas parcial. Conforme sua concepção materialista, a realidade não é fruto de uma atividade espiritual, como pensam os idealistas em geral; ao contrário, “esta atividade fundamental consiste no trabalho social, cujo caráter de classe imprime sua forma em todos os modos do reagir humano, inclusive na teoria” (HORKHEIMER, 1980b [1937], p. 156).

Por isso, ao ter em vista a racionalização da sociedade acima de tudo no domínio moral e a constituição da realidade como atividade espiritual, negligenciando a economia, tanto a doutrina moral de Kant quanto a filosofia idealista que dela se ocupou não podem apresentar soluções concretas para as injustiças e misérias do presente, cuja origem reside sobretudo na (des) ordenação econômica. Daí Horkheimer (1980a [1937], p. 130) entender “comportamento ‘crítico’ [...] não tanto no sentido da crítica idealista da razão pura como no sentido da crítica dialética da economia política”. Tal concepção de comportamento crítico evidencia não só a leitura materialista do idealismo alemão, mas, de modo mais amplo, a centralidade da influência de Marx nas reflexões dos anos 1930.

Propondo nos escritos do período a racionalização da sociedade e em especial da economia, Horkheimer decerto aposta no poder emancipatório da razão. Mesmo que não seja uma confiança ingênua e irrestrita, visto que a própria racionalidade se submete ao exame crítico – como explicitará já o título de sua Crítica da razão instrumental –, o pessimismo metafísico de Schopenhauer não pode figurar como a referência predominante em uma teoria que vise à emancipação. Ao sustentar que a essência do mundo não é racional, mas antes uma Vontade insaciável (SCHOPENHAUER, 2015)[9]; ao defender que o âmago da vida é dor e sofrimento (SCHOPENHAUER, 2015, § 57); ao afirmar, por fim, que a história não caminha rumo à felicidade terrestre, sendo apenas a repetição do mesmo, ainda que sob nomes e roupagens diferentes[10], o autor de O mundo como vontade e como representação, considerado ao pé da letra, anularia qualquer pretensão emancipatória mais ampla.[11] Constituindo influência decisiva no início da teoria crítica, Schopenhauer e Marx revelamse, todavia, incompatíveis em muitos aspectos essenciais.

A predominância da influência deste sobre a daquele, bem como a dissonância em pontos cruciais entre um e outro, eis o que obriga Horkheimer a empreender uma peculiar leitura de Schopenhauer. Nos anos 1930, não lhe interessa sublinhar, menos ainda incorporar, o pessimismo metafisicamente fundamentado, essencial e a-histórico, que de antemão sufocaria qualquer anseio por uma sociedade emancipada e justa. Mesmo assim, um certo pessimismo inspirado em Schopenhauer não deixa de desempenhar um papel central, ainda que implicite, como reconhece Horkheimer tanto em escritos do período (Materialismo e metafísica, de 1933, p. 43) como posteriores (Prefácio para a Reedição de Teoria Crítica I, de 1968, p. 4).

Inscrito no materialismo, o pessimismo exerce desde o princípio uma função crítica contra todo otimismo histórico, mesmo materialista, que postule uma necessária evolução da sociedade rumo a uma configuração mais justa. Embora a teoria crítica aspire à emancipação, não despreza a magnitude dos obstáculos para se chegar a ela, como o fato de que na sociedade da época a situação do proletariado não lhe garante um conhecimento social correto (HORKHEIMER, 1980a [1937], p. 134-135), refugiando-se a verdade em pequenos grupos (1980a [1937], p. 151). De resto, nem o desejo de uma sociedade mais justa, nem o conhecimento social correto que a ela poderia conduzir implicam necessariamente a realização de um novo mundo (1980a [1937], p. 153). Nas reflexões do período em questão, tanto o anseio materialista por emancipação quanto a consciência pessimista dos empecilhos repousam no diagnóstico do presente histórico; sendo o materialismo incorporado à luz do pessimismo, que insufla a suspeita metodológica no cerne daquele, o próprio pessimismo, por sua vez, se fundamenta em análises histórico-materialistas, e não metafisicamente. Materialismo e pessimismo estabelecem uma relação intrínseca e determinam-se mutuamente, do que resultam um materialismo pessimista e um pessimismo materialista.

Além de desempenhar a mencionada função crítica com relação ao desdobramento histórico, operando como suspeita metodológica contra todo otimismo idealista que postule uma necessária evolução rumo a uma determinada meta, o pessimismo se volta igualmente ao passado e ao presente, obstando toda tentativa de justificação do sofrimento. Com efeito, o pessimismo materialista de Horkheimer impede qualquer justificativa racional para as injustiças pregressas, mesmo no caso, o melhor dos casos, de uma sociedade completamente emancipada e justa vir a ser de fato alcançada.[12] Presente já na década de 1930, permanecerá até a maturidade a posição de que “a injustiça passada é irremediável” (1990 [1933], p. 43). “A sociedade melhor, a sociedade justa – defenderá ulteriormente Horkheimer (1990, [1968], p. 4) –, é uma meta que se mistura com a ideia de culpa (Schuld)” ou dívida, que jamais poderá ser quitada.

Nos anos 1930, o pessimismo de Horkheimer, relacione-se ele ao passado ou ao desenrolar histórico, encontra amparo em Schopenhauer, que – como dirá posteriormente – “não racionalizou filosoficamente a experiência do horror, da injustiça, mesmo nos países que são governados de modo mais humano” e que “teve medo da história” (HORKHEIMER, 1985, [1961], p. 125). O filósofo de Dantzig, entretanto, enfatizou desde sempre a natureza utópica do anseio por uma sociedade amplamente livre de injustiças e sofrimentos, nesse ponto diferindo, por sua radicalidade, não só de Marx como também dos auspícios da teoria crítica. Por que a sucessão dos fatos deu-lhe razão é o que examinaremos a seguir.

iii

Segundo um dos pressupostos básicos do comportamento crítico, a teoria não deve petrificar-se: uma vez diagnosticadas mudanças estruturais na sociedade, também as concepções teóricas têm de alterar-se. De semelhante processo oferece testemunho a obra do próprio Horkheimer.

Este, no decorrer dos anos, identifica consideráveis modificações das condições históricas: menciona, com todas as suas consequências, o advento do fascismo e do nazismo, do século de Stalin e Hitler; não lhe escapa a evolução da economia, no que tange tanto à situação dos capitalistas como à do proletariado; é sensível ao avanço da técnica e burocracia, bem como às suas implicações sociais; vê frustradas as expectativas de revolução ou melhorias significativas, em toda parte reinando a injustiça e a miséria de sempre. Sempre presentes, injustiça e miséria se fazem sentir, porém, de diferentes formas no decurso histórico. Com efeito, “desde o fim da guerra”, precisa Horkheimer (1990 [1968], p. 4), “[...] a sociedade se encontra em nova fase”. E, reiterando tal constatação noutra reflexão do mesmo período, afirma: “O caminho da sociedade que finalmente começamos a ver [outrora] é muito diferente do modo como o julgamos hoje. Chegamos à convicção de que a sociedade se desenvolverá rumo a um mundo totalmente administrado” (1985 [1969/1972], p. 340). Se os avanços técnicos e a automatização decerto poderiam melhorar as condições gerais de vida, com o predomínio do uso instrumental da razão e do conhecimento, entretanto, suas consequências efetivas têm sido a perda de autonomia e significado do indivíduo, a ruína do espírito e da fantasia, o domínio de uns sobre outros e o império da injustiça, enfim.

Modificadas as configurações sociais, a real direção do mundo contrariando determinadas expectativas anteriores, a teoria deve, também ela, alterar-se.[13] Tal alteração, no que diz respeito ao tema de nosso artigo, faz-se visível em particular num certo deslocamento de ênfase nos escritos de maturidade: baseando-se no transcurso dos fatos, Horkheimer passa a sublinhar os erros de Marx, que vai se mostrando um profeta ruim, em certo sentido idealista e utópico, ao passo que Schopenhauer se revela mais e mais atual e clarividente, dando-lhe razão o presente. Transformam-se assim o diálogo de Horkheimer com cada um dos dois autores, bem como a relação que aquele faz estes estabelecerem entre si.

Conforme atesta um estudo de 1968 destinado ao tema Marx hoje, Horkheimer (1985 [1968], p. 306) jamais deixará de reconhecer a imprescindibilidade do referido filósofo, visto que, a despeito das significativas mudanças, “a compreensão da sociedade, sobretudo a ocidental, permanece superficial sem a sua teoria”. Daí até mesmo a necessidade de “elevar a doutrina marxista a um dos temas centrais da formação no ocidente [...], não com reconhecimento acrítico” (1985 [1968], p. 314-315).

No entanto, o que Horkheimer acentua nessa sua reflexão, também publicada com o título Foi Marx um mau profeta?, é outro aspecto de seu interlocutor.[14] Já em suas palavras iniciais, como que respondendo positivamente à pergunta, assevera (1985 [1968], p. 306): “A história caminhou diferentemente do que pensara Marx”. A primeira prova é que “no capitalismo [...] a depauperação do proletariado não progrediu verdadeiramente, nem eclodiu a revolução por ele esperada” (1985 [1968], p. 306). No fundo, sustenta Horkheimer (1985 [1968], p. 311), “Marx foi, apesar de tudo, positivo” , um “idealista materialista” (1985 [1968], p. 314). Para o autor d’O capital, segundo a interpretação de Horkheimer, a investigação científica da economia indicava que a produção não planificada da sociedade capitalista daria lugar à ordenação planificada do socialismo; isto significaria – escreve Horkheimer (1985 [1968], p. 312), resumindo o pensamento de Marx – que “do capitalismo deve-se (müsse) seguir a justa coexistência dos homens”. É que – ainda segundo sua descrição do caminho à futura sociedade justa vislumbrada por Marx –, se as forças, os instrumentos e os saberes humanos finalmente chegassem a se desenvolver, em virtude dos avanços técnicos, a ponto de poderem promover outro modo de vida, com riqueza para todos, sem injustiças e hierarquia, em consequência se tornariam irracionais e antiquados os sistemas de domínio e as relações de classes (HORKHEIMER,1985 [1968], p. 313). Uma ordenação racional da produção e da sociedade implicaria, pois, uma sociedade justa e sem classes, “um reino da liberdade, em que cada um pode desenvolver suas forças positivamente” (1985 [1968], p. 313); em semelhante cenário, à “injustiça condicionada pela carência” se substituiria “a autodeterminação humana” (1985 [1968], p. 313).

Horkheimer (1985 [1968], p. 313-314) se pergunta, entretanto, em que medida tal desenvolvimento seria possível e mesmo sensato, tendo em vista a automatização, a qual não se restringe à indústria, mas progressivamente abarca toda a vida, e o declínio da autonomia e do significado dos indivíduos diante da burocracia e dos grupos que rivalizam entre si. “Se o materialismo histórico-econômico estiver correto – ajuíza (1985 [1968], p. 314) –, então a efetivação do ideal não deve ser idêntica, de modo algum, à supressão das classes”. E prossegue: “A estrutura dos indivíduos, a constituição espiritual, poderia se mostrar, pelo desenvolvimento do processo material da vida, como bem diferente da representação correspondente ao reino da liberdade, como Marx, o idealista materialista, proclamou”. 

Longe de ser secundária, a compreensão de que Marx se equivocara em diversos pontos é apontada por Horkheimer (1985 [1969/1972], p. 339-340) como a primeira razão que levou a teoria crítica de ontem a transformar-se na teoria crítica de hoje.[15] Revelando-se, portanto, centrais, esses enganos são evocados novamente em outros contextos; dentre eles, destaca-se uma reflexão do mesmo período, em que o erro fundamental de Marx é contraposto ao pessimismo, com a vantagem deste sobre aquele, obviamente. Embora extensa, evoquemos a passagem em questão, que reúne de maneira condensada os pontos a serem desenvolvidos a seguir.

O antigo pessimismo [...] intensificou-se não apenas pela sangrenta Idade Média e pelo terror do presente, mas também pela visão do desenvolvimento social. Ainda que as revoluções assim como o progresso técnico produzam novas ordenações com maior igualdade material, a cultura não tem estendido de modo correspondente aos outrora oprimidos a capacidade para a felicidade tal como ela pertencia então aos senhores. A representação de Marx de que por fim serão necessariamente realizados a sociedade justa e com isso o desenvolvimento de todas as forças boas nos homens, apesar de sua perspicácia, é uma utopia, ainda mais audaz do que as clássicas. (HORKHEIMER, 1985 [1971], p. 231).

Tal bem poderia ser considerado o balanço de duas reflexões de Horkheimer temporalmente próximas e significativamente intituladas Marx hoje e Pessimismo hoje. Se, a despeito da perspicácia e até da imprescindibilidade de suas investigações, o autor d’O capital mostrou-se, por fim, mau profeta, idealista e utópico, o transcorrer dos fatos termina por revelar a clarividência e “a atualidade de Schopenhauer”.[16]

Nos escritos da década de 1930, só o pessimismo idealista se referia do mesmo modo ao presente e ao futuro, enquanto a tristeza materialista se voltava sobretudo às injustiças irremediáveis e injustificáveis do passado (HORKHEIMER, 1990 [1933], p. 43) e, apenas como precaução metodológica, à atualidade e ao porvir. Com efeito, o pessimismo idealista, ao fundamentar-se metafisicamente, não pode, por princípio, esperar mudanças essenciais; já ao materialismo, mesmo tendo o pessimismo metodológico inscrito em si, era permitido, com base nas condições históricas da época, aspirar à emancipação, isto é, a uma sociedade justa. Entretanto, nos estudos – mas não só neles – consagrados a Schopenhauer e ao pessimismo, sobretudo nas décadas de 1960 e 1970, também o pessimismo materialista passa a dirigirse, não mais como mera prudência de método, ao presente e ao futuro[17]: “Pessimista é minha representação, de fato, sobre a culpa (Schuld) do gênero humano”, reitera Horkheimer (1985 [1969/1972], p. 353), acrescentando em seguida, contudo, que também é “pessimista em relação à representação sobre para onde caminha a história, isto é, para um mundo administrado, de modo que o que se denomina espírito e fantasia retrocederá consideravelmente”.

Que não é, como indica a passagem citada, a adesão a teses metafísicas o que o conduz ao pessimismo futuro, mas sim uma análise históricomaterialista da sociedade presente e de sua tendência, é o que também dá a ver com clareza uma nota intitulada justamente Ad Pessimismus, reunida entre os apontamentos póstumos de 1966 a 1969.[18]

A lógica imanente do desenvolvimento social aponta para o estado final de uma vida totalmente tecnicizada. O domínio do homem sobre a natureza atingiu uma tal medida, que desaparece a carência e com isso a necessidade do domínio de homens sobre homens. O final, porém, é simultaneamente completo desengano, a extinção do espírito, quando este se diferencia do entendimento como instrumento. (HORKHEIMER, 1991 [1966-1969], p. 420).

Como se depreende já de seu léxico, a anotação aborda temas igualmente tratados em Marx hoje. O breve apontamento sugere que os avanços técnicos já poderiam ter preenchido a condição estabelecida por Marx para uma sociedade justa e sem dominação de uns sobre outros, o reino da liberdade em que a todos seria possível desenvolver suas forças. Se o desenvolvimento dos instrumentos e dos saberes ocorreu de fato, mostrou-se, todavia, não ser uma condição suficiente; e a consequência esperada, portanto, não veio: embora potencialmente liberadoras, a técnica e a automatização, obtidas com auxílio da ciência, acabam por fomentar a ausência de autonomia e a perda da fantasia, “o estabelecimento dos modos de comportamento na substância psicológica, como instintos e habilidades transmitidos hereditariamente”, e a continuidade da dominação.[19] “Tudo isso – conclui Horkheimer (1991 [1966-1969], p. 420) – pertence à dialética do esclarecimento [...].”

Semelhante dialética, Schopenhauer a compreendera muito bem. É precisamente “sua ideia de compensação do progresso por novo sofrimento”, diz Horkheimer (1985 [1955], p. 53)[20], que lhe confere atualidade e o distingue de Marx. É bem verdade que, mesmo nos textos de maturidade, Horkheimer procura fazer notar pontos de convergência entre aqueles dois pensadores, mas invariavelmente termina por sublinhar que o primeiro, à diferença do segundo, não recaiu em utopia.[21] Mais uma vez, não são motivos metafísicos que o confirmam, mas a própria economia política: “Na crescente fama de Schopenhauer, a história da economia não é indiferente. O triunfo da técnica e o desenvolvimento da indústria, que se encontram em ‘ação recíproca’ [...], não proporcionaram aos homens a esperada existência mais feliz” (1985 [1955], p. 46). Com efeito, destaca Horkheimer (1985 [1961], p. 133), “o fim último, que o gênero humano deveria realizar, ou até a eudaimonia no conceito de ‘sumo bem’ valem para Schopenhauer, em vista da crueldade desta terra, como ilusão racionalista”.

O presente dá razão a Schopenhauer, “pessimista clarividente” (HORKHEIMER, 1985 [1961], p. 127), exatamente na medida em que este não racionalizou o sofrimento e as injustiças do passado e hodiernas em nome de um suposto sentido histórico superior por realizar-se; pelo contrário, embora sensível à variação das injustiças sociais no decorrer dos tempos, considerou a história imutável, sendo ela essencialmente dor e sofrimento.[22]

iV

Assim como Horkheimer se confronta de maneira crítica com o pensamento de Marx, apesar da acuidade deste, e o reconsidera à luz do desenrolar histórico, julgando-o em certos aspectos mau profeta, positivo, utópico e idealista, adota o mesmo procedimento em sua nuançada leitura do filósofo de Dantzig. Se dele Horkheimer se apropria para formular sua própria concepção de pessimismo e se o transcurso dos fatos em ampla medida sanciona o ideário de Schopenhauer, nem por isso aquele acolhe sem restrições o pessimismo deste. A começar pelo fato de que, muito embora o autor d’O mundo como vontade e como representação se propusera a fundamentar metafisicamente sua doutrina, daí não se segue que tenha sido radical o suficiente, como exigiria o contexto presente: “Em Schopenhauer, tanto quanto vejo, o pessimismo não é tão incondicionado como corresponderia à situação atual” (HORKHEIMER, 1985 [1971], p. 231). Com efeito, anos antes Horkheimer (1991 [1961-1962], p. 387) já havia asseverado: “Schopenhauer foi, no decisivo, ainda um otimista”.[23]

Esse seu juízo apoia-se principalmente na análise do Livro Quarto d’O mundo como vontade e como representação, cujo assunto se explicita no título: Do mundo como vontade. Segunda consideração. Alcançando o conhecimento de si, afirmação ou negação da Vontade de vida. Afirma a Vontade de vida o indivíduo que vê o mundo pelo principium individuationis e concebe como distintos de si mesmo os demais seres, tomados cada qual isoladamente; sob o princípio de razão, o conhecimento das aparências individuais atua como motivo do querer. Variando em graus de veemência, a afirmação da própria Vontade de vida por parte de um indivíduo que assim vê o mundo pode chegar até a negação da Vontade de vida dos demais, sem que se saiba que, em todos os indivíduos, se trata da mesma e única Vontade, o “em si” do mundo, a qual apenas aparece como múltipla. Quanto mais veemente a afirmação da Vontade de vida, maior o egoísmo e a indiferença pelos demais; por outro lado, mais intenso é também o sofrimento de quem afirma a Vontade de vida, visto que todo querer equivale a carência, que a maioria das aspirações não encontra satisfação e, por fim, que uma satisfação plena e definitiva jamais terá lugar. O conhecimento submetido ao princípio de razão, que faz efeito como motivo do querer, é o mais comum entre os homens.[24]

Há, entretanto, casos raríssimos em que uma pessoa, vendo para além do principium individuationis, esse véu de maia, conhece a essência do todo, a Vontade una, e considera como intrinsecamente idênticos a si mesma os demais seres e coisas. Tal conhecimento pode atuar não como motivo, mas como quietivo do querer; quem percebe que em essência se trata da mesma Vontade, em discórdia consigo, a produzir dor e sofrimento em si mesma por toda parte – esse alguém reconhece a própria essência em todos os outros seres e toma o sofrimento deles como o seu: em tais situações, com efeito, pode suceder, em vez da afirmação, a negação da Vontade de vida.[25] Examinando com vagar o modo de ser de ascetas de diversos credos, Schopenhauer procura mostrar como a negação da Vontade se dá nesse tipo de conduta, que constitui basicamente a “quebra proposital da vontade, pela recusa do agradável e pela procura do desagradável, o modo de vida penitente voluntariamente escolhido e a autocastidade, tendo em vista a mortificação contínua da vontade” (SCHOPENHAUER, 2015, p. 454). Por mais que, do exterior, observadores só consigam enxergar pobreza e privação no indivíduo que nega a Vontade de vida, neste último, o que reina de fato é um estado de plena alegria e paz, pois “salvação verdadeira, redenção da vida e do sofrimento, é impensável sem a completa negação da vontade” (SCHOPENHAUER, 2015, p. 461).

É sobretudo com base em semelhantes ideias, a cuja exposição se consagra o Quarto Livro d’O mundo..., que Horkheimer (1985 [1971], p. 228) sentencia a respeito de Schopenhauer: “Seu pessimismo não é radical; ideias religiosas, cristãs, budistas são imanentes à sua obra”. Ao cristianismo, vincular-se-ia o filósofo ao acolher as ideias de pecado original (1985 [1971], p. 228), do mundo como vale de lágrimas e de redenção (1985 [1971], p. 231); ao budismo, ao incorporar a concepção de que os seres vivos retornam à unidade de que provêm, apontando as individualidades, efêmeras, para um outro, absoluto e eterno (1985 [1971], p. 228). Para Schopenhauer, segundo a leitura de Horkheimer, avidez e tédio encontrar-se-iam apenas na vontade singular, mas não na Vontade mesma (1991 [1961-1962], p. 387); má seria apenas a vontade como indivíduo que se efetiva contra outros, mas não como indivíduo que, em vez de afirmar-se, percebe sua identidade com os demais seres e o sofrimento deles como o seu próprio (1985 [1971], p. 228).[26] Então, no sentido de Buda, a vontade de vida egoísta do indivíduo desapareceria e regressaria à totalidade, que, para Schopenhauer, é a Vontade, o “em si” (1985 [1971], p. 229); no sentido do cristianismo, livrar-se do amor-próprio e retornar à vontade universal constituiriam uma redenção e um consolo (1985 [1971], p. 231).

Horkheimer contesta, entretanto, esse aspecto do pensamento de Schopenhauer, ou melhor, de sua própria reconstrução dele: “Na medida em que admite como válida a negação da Vontade de vida, portanto o fim do sofrimento, em casos singulares como realidade metafísica, [...] Schopenhauer recai no dogmatismo otimista”, afirma (1991 [1961-1962], p. 387), complementando adiante: “Que a experiência da quintessência do mundo se torne um quietivo, trata-se de um processo psicológico, não metafísico. O sofrimento é eterno” (1991 [1961-1962], p. 388). Daí asseverar Horkheimer: “O Quarto Livro de sua obra principal se revela um disparate, um lapsus, que os outros três são capazes de refutar”.

Ao identificar e rejeitar elementos otimistas em Schopenhauer, Horkheimer tem em vista um pessimismo mais radical, a que fariam jus as configurações sociais da época. É preciso, todavia, recusar leituras ideológicas de tal pessimismo extremo, e mesmo daquele de Schopenhauer. Semelhantes interpretações constituiriam uma racionalização da atual configuração social, atribuindo a ausência do alívio que se esperava resultar do progresso técnico à essência do mundo, e não a uma determinada ordem da sociedade (HORKHEIMER,1985 [1955], p. 46-47). É, por certo, o próprio Schopenhauer que enseja aquele tipo de leitura. Visto que, para ele, os indivíduos se mantêm em relação social por meio de mecanismos psicológicos, nomeadamente o medo e a agressão, e dado que a educação faz efeito apenas sobre o intelecto e não sobre o caráter, então a sociedade não pode se alterar em essência, sendo ela naturalmente repressiva (1985 [1955], p. 45). Se os esclarecidos confiam na razão e acreditam na perfectibilidade dos homens, Schopenhauer considera absurdos os esforços históricos por transformações e professa seu “reconhecimento ao existente” (1985 [1955], p. 47).

Na visão de Horkheimer (1985 [1955], p. 45), contudo, engana-se Schopenhauer, como tantos outros, na medida em que investiga a psique humana sem relação com a totalidade social, hipostasiando-a – procedimento esse que vai de encontro aos princípios da teoria crítica. Ainda que o desenrolar histórico pareça oferecer a confirmação de todo o ceticismo do filósofo de Dantzig e que as tentativas de mudança tenham se mostrado cruéis, a repressão, aos olhos do teórico crítico, não é algo natural: “A apologia da repressão pertence ao mundo que torna a repressão necessária” (1985 [1955], p. 45). Daí Horkheimer indicar que o interesse em conservar as circunstâncias não tem maior peso filosófico do que o propósito de transformação por parte dos trabalhadores: “Em rigor lógico – conclui –, pessimismo filosófico não se harmoniza melhor com a argumentação racional em defesa do status quo do que com a propaganda em defesa da subversão” (1985 [1955], p. 47).

Pessimismo não implica, pois, resignação; pelo contrário, equivale a protesto.[27] É por isso que, malgrado o pessimismo teórico, Horkheimer (1985 [1969/1972], p. 336) se apresentará mesmo em seus últimos escritos como um “otimista prático” – embora a dimensão dos obstáculos históricos se faça notar já na própria timidez, sugerida pela dupla negação, com que formula essa sua concepção de uma “prática não não otimista (eine nicht unoptimistische Praxis)”, a qual não pode procurar mais do que, “apesar de tudo, melhorar o possível” (1985 [1971], p. 232). Otimismo, segundo a definição formulada em Teoria crítica ontem e hoje, consiste em “tentar, apesar de tudo, fazer e impor o que se considera o verdadeiro e o bem” (1985 [1969/1972], p. 353). Entretanto, precisa em Pessimismo hoje, a postura negativa da teoria crítica, “consciente da relatividade de seu próprio juízo” (1985 [1971], p. 232), impede-a de tomar sua concepção de bem e mal como verdade absoluta.

Tal comportamento negativo vincula, por fim, pessimismo e pensamento teológico[28] ou teoria crítica e religião (1985 [1969/1972], p. 343). Esse vínculo, dada a crítica à dimensão religiosa da filosofia schopenhaueriana, só tem sentido ao basear-se em manifesto antidogmatismo, valendo-se de certas ideias religiosas que podem desempenhar uma função social relevante, sem, contudo, serem admitidas como dogmas.[29] Dentre tais ideias religiosas, destacam-se duas. Com a noção de pecado original, toma-se consciência de que toda felicidade se paga com o sofrimento de muitos outros, bem como de que a cultura presente resulta de um passado repleto de horrores, de tal sorte que a toda alegria se deve associar uma tristeza e uma culpa (Schuld) (1985 [1969/1972], p. 343). Já a proposição do Antigo Testamento segundo a qual “tu não deves te fazer nenhuma imagem de Deus” deve ser interpretada da seguinte maneira: “tu não podes dizer o que é o bem absoluto; tu não podes representá-lo” (HORKHEIMER,1985 [1969/1972], p. 343). Se com a noção de pecado original se relaciona a ideia de culpa, tão cara a Horkheimer, com essa proposição do Antigo Testamento harmoniza-se aquela atitude negativa e antidogmática da teoria crítica, que interdita qualquer pretensão a verdades absolutas.

É a partir de semelhante vínculo entre filosofia e teologia que o pessimismo se torna produtivo, mesmo sob condições as mais desesperadoras (1985 [1971], p. 232). Todos aqueles conscientes da miséria e das injustiças do passado e do presente, assim como da tendência a um futuro de carência espiritual, podem unir-se mediante o anseio (Sehnsucht) de que tal situação não seja a derradeira, existindo algo outro (HORKHEIMER, 1985 [1969/1972], p. 343, e 1985 [1970], p. 385-404). Esse anseio poderia fundamentar uma solidariedade não dogmática que, mesmo sem a pretensão de dizer verdades sobre algo absoluto ou inteligível, sobre Deus ou redenção, poderia indicar o que, em face do incontornável e custoso progresso, se deve conservar ou transformar com o objetivo de minimizar o sofrimento. É nesse ponto que o pessimismo teórico se coaduna não com a resignação, mas com um otimismo prático, ainda que seja apenas uma “prática não não otimista” que, dadas as circunstâncias, só pode – mas deve – procurar “melhorar o possível”.

V

Partindo de avaliações retrospectivas de Horkheimer a respeito de seu próprio percurso intelectual, procuramos evidenciar como Schopenhauer e Marx constituem duas influências que perpassam a obra do fundador da teoria crítica, estabelecendo elementos de continuidade mesmo onde o leitor poderia supor rupturas repentinas, como no caso dos estudos expressamente dedicados a Schopenhauer e ao pessimismo – a partir de 1955, com Schopenhauer e a sociedade, mas sobretudo nas décadas de 1960 e 1970 –, os quais poderiam sugerir uma guinada ou um retorno abrupto a esse autor e a esse tema, marcantes em suas primeiras reflexões. É bem verdade que a proeminência do autor d’O mundo... se faz mais evidente nos escritos de juventude e, posteriormente, de maturidade de Horkheimer, podendo levar a crer na existência de um hiato entre os dois momentos. Semelhante interrupção, entretanto, parece inexistir, pois, mesmo em latência, o pessimismo se encontra inscrito no materialismo, jamais se apagando.

Nesse ponto, toca-se em outra característica fundamental da influência de Marx e Schopenhauer. Há, por certo, um diálogo direto de Horkheimer com cada um deles, considerados, por assim dizer, isoladamente. Todavia, o que nos parece determinante é a natureza conjugada da leitura que empreende daqueles dois pensadores, fazendo-os estabelecer entre si uma interlocução, mais até, uma determinação mútua, um sendo interpretado à luz do outro. Com efeito, por mais incompatíveis que possam parecer, o pessimismo inspirado em Schopenhauer e as esperanças de racionalização e emancipação sociais animadas por Marx mantêm-se em relação intrínseca desde o momento em que Horkheimer trava contato com os dois autores. A proeminência de um não corresponde, pois, ao desaparecimento do outro, mas antes o pressupõe como fundamento: daí o materialismo necessariamente pessimista e o pessimismo necessariamente materialista de Horkheimer.

ABSTRACT: Starting from Horkheimer’s retrospective evaluations on his intellectual trajectory, we try to show that both Schopenhauer and Marx are a permanent influence in his work: indeed, the major evidence of one of the two authors at one point in Horkheimer’s trajectory does not imply the disappearance of the other one, but rather presupposes him as a basis, even though latent. For although Horkheimer dialogues with each of them separately, what is determining, in our view, is the combined reading that he performs of both: the social rationalization and the emancipation hopes inspired by Marx and the Schopenhauer’s pessimism, even though they may seem incompatible, are intrinsically connected, so that there are a necessarily pessimistic materialism and a necessarily materialist pessimism. We intend to evidence, however, that because of the way Horkheimer dialogues with the philosophical tradition and because of the historical and therefore theoretical changes, the relationship between Schopenhauer’s pessimism and the aspiration to emancipation inspired by Marx takes on different aspects and nuances in the course of his work. KEYWORS: Horkheimer. Marx. Materialism. Schopenhauer. Pessimism.

referências

CHIARELLO, M. G. Das lágrimas das coisas: estudo sobre o conceito de natureza em Max Horkheimer. Campinas: Editora da UNICAMP; São Paulo: FAPESP, 2001.

HORKHEIMER, M. Wille zur Erkenntnis. Zehn Novellen. September 1915 - Juli

1916. In: ______. Gesammelte Schriften. Band 1: ‘Aus der Pubertät. Novellen und Tagebuchblätter’. 1914-1918. Editado por Alfred Schmidt. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch, 1988.

______. Materialismo e metafísica . In: ______. Teoria crítica: uma documentação. Tradução de Hilde Cohn. São Paulo: Perspectiva; Editora da Universidade de São Paulo, 1990 [1933]. p. 31-58.

______. Autoridade e família. In:______. Teoria crítica: uma documentação. Tradução de Hilde Cohn. São Paulo: Perspectiva; Editora da Universidade de São Paulo, 1990 [1936]. p. 175-236.

______. Teoria tradicional e teoria crítica. Tradução de Edgard Afonso Malagodi e

Ronaldo Pereira Cunha de Tradizionelle und kritische Theorie. In: ______. Kritische Theorie, eine Dokumentation. Frankfurt am Main: S. Fischer, 1968, p. 137-191; publicado pela primeira vez em Zeitschrift fuer Sozialforschung, ano VII, 1937, p. 245-

294). In: BENJAMIN, W.; HORKHEIMER, M. ADORNO, T. W.; HABERMAS, J.

Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980a. p. 117-154. (Os Pensadores).

______. Filosofia e teoria crítica (Tradução de Edgard Afonso Malagodi e Ronaldo Pereira Cunha do texto publicado em Zeitschrift fuer Sozialforschung, ano VII, 1937, p. 245-294. In: BENJAMIN, W.; HORKHEIMER, M. ADORNO, T. W.; HABERMAS, J. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1980b.  p. 155-161. (Os Pensadores).

______. Schopenhauer und die Gesellschaft. In: ______. Gesammelte Schriften. Band 7: Vorträge und Aufzeichnungen 1949-1973. Editado por Gunzelin Schmid Noerr. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch, 1985 [1955].

______. Die Aktualität Schopenhauers. In: ______. Gesammelte Schriften. Band 7:

Vorträge und Aufzeichnungen 1949-1973. Editado por Gunzelin Schmid Noerr. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch, 1985 [1961].

______. Schopenhauer als Optimist. In: ______. Gesammelte Schriften. Band 6: ‘Zur Kritik der instrumentellen Vernunft’ und ‘Notizen 1949-1969’. Editado por Alfred Schmidt. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch, 1991[notas de 1961-1962].

______. Ad Pessimismus. In: ______. Gesammelte Schriften. Band 6: ‘Zur Kritik der instrumentellen Vernunft’ und ‘Notizen 1949-1969’. Editado por Alfred Schmidt. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch, 1991[notas de 1966-1969].

______. Prefácio para a reedição. In: _____. Teoria crítica: uma documentação. Tradução de Hilde Cohn. São Paulo: Perspectiva/Editora da Universidade de São Paulo, 1990 [1968], p. 1-5.

______. Marx heute. In: ______. Gesammelte Schriften. Band 8: Vorträge und Aufzeichnungen 1949-1973. Editado por Gunzelin Schmid Noerr. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch, 1985 [1968].

______. Zur Kritik der gegenwärtigen Gesellschaft. In: _____. Gesammelte Schriften.

Band 8: Vorträge und Aufzeichnungen 1949-1973. Editado por Gunzelin Schmid Noerr. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch, 1985 [1968b].

______. Kritische Theorie gestern und heute. In: ______. Gesammelte Schriften. Band 8: Vorträge und Aufzeichnungen 1949-1973. Editado por Gunzelin Schmid Noerr.

Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch, 1985[1969/1972].

______. Die Sehnsucht nach dem ganz Anderen [Gespräch mit Helmut Gumnior]. In:

______. Gesammelte Schriften. Band 7: Vorträge und Aufzeichnungen 1949-1973. Editado por Gunzelin Schmid Noerr. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch, 1985 [1970].

______. Pessimismus heute. In: ______. Gesammelte Schriften. Band 7: Vorträge und Aufzeichnungen 1949-1973. Editado por Gunzelin Schmid Noerr. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch, 1985 [1971] .

______. O pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião. Tradução de Flamarion Caldeira Ramos. Cadernos de Filosofia Alemã, n. 12, p. 115-128,  jul./dez. 2008 [1971b].

HÜBSCHER, A. Zum Tode Max Horkheimers. Schopenhauer-Jahrbuch, Frankfurt am Main, v. 55, p. 86-89, 1974.

MARX, K. O capital: crítica da economia política. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. V. 1.

MUSSE, R. Herdeiros do idealismo alemão. Trans/Form/Ação, São Paulo, v. 17, p. 31-37, 1994.

RAMOS, F. C. Horkheimer leitor de Schopenhauer: uma tradução e um breve comentário. Cadernos de Filosofia Alemã, n. 12, p. 99-113, jul./dez. 2008.

RAULET, G. Kritk der Vernunft und kritischer Gebrauch des Pessimismus. In:

SCHMIDT, A.; ALTWICKER, N. (Org.). Max Horkheimer heute: Werk und Wirkung. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch, 1986. p. 31-51.

SCHMIDT, A. Nachwort des Herausgebers. Frühe Dokumente der kritischen Theorie.

In: HORKHEIMER, M. Gesammelte Schriften. Band 1: ‘Aus der Pubertät: Novellen und Tagebuchblätter’. 1914-1918. Editado por Alfred Schmidt. Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch, 1988[1971]. p. 365-375.

______. Max Horkheimer’s Intellectual Physiognomy. In: BENHABIB, S.; BONß, W.; MCCOLE, J. (Ed.). On Max Horkheimer: New Perspectives. Cambridge; Massachusetts; London: MIT Press, 1995. p. 25-47.

SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. Tomo I. Tradução, apresentação, notas e índices de Jair Barboza. 2. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2015.

______. Die Welt als Wille und Vorstellung II. In: ______. Sämtliche Werke. Band II. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986.

VEAUTHIER, F. W. Zur Transformation der Pessimismus-Motive im Denken Max Horkheimers. Schopenhauer-Jahrbuch, Frankfurt am Main, v. 69, p. 593-607, 1988.  

Recebido em 21/01/2016

Aceito em 26/092016



[1] Doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e pela Université Paris 1 - PanthéonSorbonne e bolsista do processo 2014/23282-4, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). E-mail: edercorbanezi@hotmail.com.

[2] São de nossa responsabilidade as traduções dos textos com título em língua estrangeira na bibliografia. As citações em que, para evitar repetição, não se menciona o nome do autor, mas apenas o ano e a paginação, referem-se a escritos de Horkheimer. Na bibliografia, as referências aos textos desse autor se dão segundo a cronologia de sua elaboração, e não de sua publicação.

[3] A relação de Horkheimer com a obra de Schopenhauer evidentemente não se restringe ao pessimismo. Para investigações que consideram outros aspectos, cf. CHIARELLO, 2001, p. 193-230 e p. 261-276; RAMOS, 2008.

[4] Exemplar quanto à relação entre crítica social e pessimismo metafísico é a seguinte passagem de uma novela de Horkheimer (1988 [1915], p. 172-3) escrita em 1915: “Aí Peter West sentiu pela primeira vez que o sofrimento não depende de condições de vida exteriores, que a alma do homem é a fonte de suas dores, que essa fonte jorra enquanto ele respira, não importando se vive em palácios ou casebres, se suspira sob títulos e respeitos ou sob pobreza e trabalho. Ele bem viu a injustiça da distribuição dos bens, compreendeu que muito do que é exterior pode ser amenizado e melhorado, mas com profunda consciência pressentiu que todas as novas ordenações, todas as melhorias, todas as revoluções, a realização das mais audaciosas utopias não tocariam a grande dor, pois o âmago da vida mesma é dor e perecimento”. Em semelhantes passagens, comentadores observam, a nosso ver, com razão, a antecipação de posições do último Horkheimer (SCHMIDT, 1995, p. 26 e p. 38). Sobre a tese de que dor e sofrimento, sendo essenciais à vida, não encontram sua origem no exterior, mas sim no interior do homem, cf. SCHOPENHAUER, 2015, parágrafo 57.

[5] A respeito da não conciliação entre crítica social e pessimismo metafísico no jovem Horkheimer, cf. SCHMIDT, 1988 [1971], p. 370-375, bem como SCHMIDT, 1995, p. 25-26. Sobre os estágios da biografia intelectual de Horkheimer, cf. SCHMIDT, 1995; acerca, em particular, da “transição para o: marxismo”, cf. SCHMIDT, 1995, p. 27 e seguintes; no tocante à relação entre Schopenhauer e Marx em Horkheimer, cf. SCHMIDT, 1995, p. 30 e seguintes.

[6] Esses pontos são abordados de modo condensado em Filosofia e teoria crítica (HORKHEIMER, 1980b). Sobre: teoria crítica e crítica da economia política, p. 155; economia como causa primeira da miséria, p. 158; racionalização da sociedade, p. 156, 157 e 160; emancipação, p. 156. Segundo o próprio Horkheimer (1985 [1969/1972], p. 338), desde os seus primórdios, nos anos 1920, a teoria crítica visa a uma sociedade melhor. Em virtude de nosso tema, porém, priorizaremos os escritos da década de 1930 e os estudos sobre Schopenhauer e o pessimismo de 1955 a 1971.

[7] Em Horkheimer, as ideias de “irracionalidade do processo econômico” e “sujeição a um evento cego em vez de seu ordenamento racional” encontram-se em diversos contextos, sendo abordadas de perspectivas várias; cf., por exemplo, HORKHEIMER, 1990 [1936], p. 202. Inspira-se, entre outros, em Marx a concepção de que o caminho para uma sociedade mais justa passa pela racionalização da economia. Depois de qualificar o capital como “impulso cego, desmedido”, que viola todos os limites na imposição das jornadas de trabalho (MARX, 2014, p. 306), o autor d’O capital refere-se à sua regulamentação como um “freio racional” (MARX, 2014, p. 544). Ademais, sublinha o caráter anárquico da organização geral do trabalho social e a aversão à sua regulamentação por parte da burguesia: “Na sociedade em que rege o modo capitalista de produção, condicionam-se reciprocamente a anarquia da divisão social do trabalho e o despotismo da divisão manufatureira do trabalho” (MARX, 2014, p. 411). Sobre a anarquia da produção, cf. MARX, 2014, p. 542.

[8] Sobre a “meta de uma organização racional” e o “conceito de uma racionalidade voltada para a emancipação” como “remodelação da razão prática de Kant”, cf. MUSSE, 1994, p. 35.

[9] Especialmente o Livro segundo.

[10] Cf. Über Geschichte, que figura entre os suplementos ao primeiro volume de O mundo como vontade e como representação (SCHOPENHAUER, 1986, p. 567-570).

[11] Pois, de resto, a negação da vontade, que produz bem-aventurança e redenção do sofrimento, é rara, e jamais um movimento social de grandes dimensões (cf. SCHOPENHAUER, 2015, em particular o Livro Quarto).

[12] “A fábula idealista da astúcia da razão, pela qual a crueldade do passado se atenua graças ao final feliz, revela a verdade de que ao triunfo da sociedade se encontram gravados sangue e miséria. O resto é ideologia.” (HORKHEIMER, 1985 [1961], p. 125). E ainda: “Vida agradável pressupõe a atrocidade passada e presente” (1985 [1971], p. 228).

[13] “Aplicar irrefletida e dogmaticamente a teoria à prática da realidade histórica mudada – escreve Horkheimer (1990 [1968], p. 4) justamente como ressalva à reedição dos ensaios de Teoria crítica I – só poderia acelerar o processo que ela deveria denunciar. Nisto concordam aqueles que se sentem seriamente comprometidos com a teoria crítica [...].”

[14] O texto que, no oitavo volume da edição da obra completa de Horkheimer, vem a lume com o título Marx heute fora publicado antes com o título War Marx ein schlechter Prophet? Zu seinem 150. Geburtstag. Cf. p. 475.

[15] Os enganos de Marx são enumerados na p. 340; cf. ainda p. 348: “O que Marx se representou como socialismo é de fato o mundo administrado”. Ver também HORKHEIMER, 1985 [1970], p. 385-386.

[16] Este é o título de uma conferência proferida por Horkheimer em 1960, por ocasião do centenário da morte de Schopenhauer. Cf. o sétimo volume da obra completa de Horkheimer, p. 490.

[17] A realização desses estudos dá a ver, por si só, a crescente relevância de Schopenhauer e do pessimismo na obra de Horkheimer. Tais reflexões de maturidade, porém, não são episódicas, mas indicam a relação profunda de Horkheimer com Schopenhauer e com seus próprios primeiros escritos (HÜBSCHER, 1974, p. 88). Defendendo uma certa continuidade entre os anos 1930 até os 1970, Raulet (1986, p. 34) afirma que “a teoria crítica de Horkheimer não passa do otimismo para o pessimismo”, sendo este desde o princípio o que faz da teoria crítica “crítica”. Por outro lado, o pessimismo, embora sempre vinculado a Schopenhauer, assume roupagens e papéis diversos em Horkheimer; a esse respeito, cf.

RAULET, 1986, e VEALTHIER, 1988.

[18] Há, pois, razões históricas para o Pessimismo hoje: “Desde Schopenhauer, o pessimismo encontrou, por conta do desenvolvimento social, ainda outras razões” (HORKHEIMER, 1985 [1971], p. 230).

[19] Essas posições se encontram também em Para a crítica da sociedade presente, em que Horkheimer (1985 [1968b], p. 327-328) defende que “Marx só em um sentido muito limitado era materialista”, sendo “no fundo de sua alma um idealista”.

[20] Horkheimer (1985, [1969/1972], p. 345 e 347) insiste na importância, para a teoria crítica, de fazer ver o “preço do progresso”.

[21] Cf. Marx hoje (HORKHEIMER, 1985 [1968], p. 308-309), bem como O pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião (1971, p. 120-121).

[22] Em Über Geschichte, Schopenhauer (1986, p. 568-570) distingue a filosofia da história dos “tolos”, “realistas simplórios”, “otimistas e eudaimonistas”, de um lado, da “efetiva filosofia da história”, de outro. A primeira concebe a história pressupondo um plano universal cujo fim seria a felicidade terrestre; esta, porém, se mostra apenas uma ilusão vazia e triste, que nada realizará: “nem constituições e legislações, nem máquinas a vapor e telégrafos”. Já a “efetiva filosofia da história”, em vez de construir a história como um progresso em direção a finalidades humanas, procura identificar a essência imutável em todas as transformações e, “a despeito de toda a diversidade das circunstâncias especiais, de roupagem e costume, a mesma humanidade em toda parte”.

[23] Malgrado a acidez de Schopenhauer (2015, parágrafo 59) em relação ao otimismo.

[24] Sobre a afirmação da Vontade de vida abordada em seus múltiplos aspectos, cf. SCHOPENHAUER, 2015, § 54, 56, 60-62, 65-67, 69-70.

[25] O mencionado conhecimento não é o único caminho para se chegar à negação da Vontade de vida; aliás, pode não ser sequer suficiente. Sobre o assunto, cf. SCHOPENHAUER, 2015, § 68. A respeito da negação da Vontade de vida considerada de diversas perspectivas, cf. SCHOPENHAUER, 2015, § 54, 56, 68 (em particular) e 71.

[26] Já se encontram em “Schopenhauer como otimista”, publicada postumamente entre as anotações elaboradas em 1961 e 1962, muitas dessas ideias (e outras que não examinamos aqui), as quais anos depois reaparecem, com outro vocabulário, em Pessimismo hoje.

[27] Mesmo em Schopenhauer, que, como vimos, pode suscitar leituras ideológicas, encontra-se, no entender de Horkheimer (1985 [1955], p. 49), a ideia de pessimismo como protesto contra a ordem das coisas: “Por mais que ele sustente como tese principal a imutabilidade do sofrimento e da vileza, bem como sublinhe a inutilidade do protesto, seu estilo constitui um protesto único contra o fato de que tudo seja assim. A crueldade não é idolatrada, e sua interpretação positiva lhe vale como infame”.

[28] “Pessimismo reúne as experiências histórico-filosóficas com a herança da grande teologia.” (HORKHEIMER, 1985 [1971], p. 232).

[29] Sobre a “função social” da religião, cf. O anseio pelo inteiramente outro (HORKHEIMER, 1985 [1970], p. 391).