HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. São Paulo:

Vozes, 2015, 136 p.

 

Ricardo Pagliuso Regatieri[1]

 

 

 

 

Desde a segunda metade do século 20, teóricos sociais, enfatizando traços que julgavam decisivos, deram diversos nomes à sociedade que tinham diante de si. Assim, Guy Debord cunhou a noção de sociedade do espetáculo (1967), Jean Baudrillard a de sociedade de consumo (1970), Ulrich Beck a de sociedade de risco (1986) e, mais recentemente, Christoph Türcke a de sociedade excitada (2002). A essas caracterizações se soma a de sociedade do cansaço, título do livro de Byung-Chul Han publicado em alemão em 2010 e lançado no Brasil em 2015.

Nascido em Seul (Coreia do Sul), em 1959, Han mudou-se para a Alemanha na década de 1980 e fez lá toda sua carreira acadêmica: estudou Filosofia e Germanística nas universidades de Munique e Freiburg, realizou seu doutorado na última e, atualmente, é professor de Estudos Culturais e Filosofia na Universität der Künste de Berlim. Os diálogos estabelecidos para a construção de seu argumento incluem autores tão diversos quanto Friedrich Nietzsche, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Martin Heidegger, Hannah Arendt, Walter Benjamin, Maurice Merleau-Ponty, Jean Baudrillard, Michel Foucault e Giorgio Agamben, entre outros.

            O argumento central do livro de Han é a existência de um excesso de positividade na sociedade contemporânea. As capacidades de contemplação e de resistência, que estabelecem uma interrupção e são o locus do negativo, são hoje bloqueadas por fenômenos como a hiperatividade, o assim chamado transtorno do déficit de atenção (TDA), a exigência contínua de desempenho e a multitarefa. A pronta resposta que é hoje universalmente exigida, na verdade, não vai além da reação a estímulos. O tipo de atenção próprio a esse contexto é uma atenção que é ampla, mas ao mesmo tempo rasa, dispersa e rapidamente cambiante. E esses processos, ao contrário de representarem qualquer progresso civilizatório, significam um retrocesso: “As mais recentes evoluções sociais e a mudança de estrutura da atenção aproximam cada vez mais a sociedade humana da vida selvagem.” (HAN, 2015, p. 32). Segundo Han, são os animais que, alimentando-se, copulando ou vigiando sua prole, têm de “dividir sua atenção em diversas atividades” e, por isso, não são capazes de “aprofundamento contemplativo” (HAN, 2015, p. 32).

            Os dois primeiros capítulos do livro se dedicam a apresentar o que Han entende ser uma dupla transição epocal. A primeira delas é a passagem de uma época imunológica para uma época neuronal; a segunda transição é a de uma sociedade disciplinar para uma sociedade de desempenho. No que diz respeito à primeira modificação, Han escreve que o século passado foi marcado pelo combate às bactérias e aos vírus, pela medicina e, no registro geopolítico, pela Guerra Fria. Comum a ambos os fenômenos era a “divisão nítida entre dentro e fora, amigo e inimigo ou entre próprio e estranho”, e a ação imunológica típica “é definida como ataque e defesa”. (HAN, 2015, p. 8). Mas, enquanto no paradigma imunológico o estranho deve ser eliminado em razão de sua alteridade, o período atual se caracteriza pelo desaparecimento da estranheza e da alteridade, e pela entrada em cena da diferença pós-moderna, a qual não exige mais a obliteração do outro, neutralizando-o e assimilando-o pelas fórmulas do consumo e da hibridização. Marca da sociedade imunológica é a dialética da negação, em que a afirmação do próprio se dá por meio da negação do outro.

Já no momento presente, de acordo com Han, tem lugar uma reação ao excesso de positividade que se traduz como violência neuronal, a qual é sistêmica e ao mesmo tempo autoimposta: “A violência da positividade não é privativa, mas saturante; não excludente, mas exaustiva.” (HAN, 2015, p. 20). A depressão, o transtorno do déficit de atenção, ao qual se soma sua versão com hiperatividade (TDAH), e a síndrome de burnout são reações à saturação pela positividade onipresente. No caso da última, Han escreve que se trata de uma “queima do eu por superaquecimento, devido a um excesso de igual” (HAN, 2015, p. 21), pois, como lembra ele (2015, p. 57), “segundo Hegel, é precisamente a negatividade que mantém viva a existência”.

            O tratamento da segunda transição, isto é, aquela de uma sociedade disciplinar para uma sociedade de desempenho, remete diretamente para um debate com Foucault. Nos termos de Han, a sociedade disciplinar era uma sociedade da negatividade, na qual essa última se apresentava como proibição. No lugar da proibição, a sociedade de desempenho coloca “projeto, iniciativa e motivação” (HAN, 2015, p. 24). Seus membros “não se chamam mais ‘sujeitos da obediência’, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos.” (HAN, 2015, p. 20). Entretanto, ao invés de uma ruptura, Han vê uma continuidade entre esses dois paradigmas, no sentido de que o sujeito do desempenho conta com o estágio disciplinar atrás de si, tendo sido devidamente preparado por ele.

A essa altura da discussão, a questão da liberdade se coloca como um ponto central. Han (2015, p. 30) vê a liberdade em seu sentido verdadeiro como associada à negatividade, ou seja, como uma “liberdade da coação que provém do outro imunológico”. Se a negatividade cede espaço à preponderância da positividade, tal figura da liberdade se converte em uma liberdade autorreferencial. O “sujeito do desempenho se entrega à liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o desempenho” (HAN, 2015, p. 29-30). Explorador e explorado, agressor e vítima não podem mais ser distinguidos, e essa autoexploração, diz Han (2015, p. 30), é mais eficiente, pois “caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade”. Para Han (2015, p. 30), os “adoecimentos psíquicos da sociedade de desempenho são precisamente as manifestações patológicas dessa liberdade paradoxal”. O depressivo crê que nada é possível, justamente porque a sociedade com excesso de positividade em que vive lhe acena o tempo inteiro com a promessa de que tudo é possível. A impossibilidade de fazer frente a essa avalanche de positividade “leva a uma autoacusação destrutiva e a uma autoagressão” (HAN, 2015, p. 29).

            O desdobramento da oposição entre atividade e contemplação é outro importante leitmotiv de Sociedade do cansaço. Para isso, Han recorre à discussão de Arendt sobre vita activa e vita contemplativa, submetendo-a a uma crítica de inspiração nietzschiana. Han afirma que Arendt busca reabilitar a vita activa em oposição à vita contemplativa, que, segundo ela, teria triunfado. Na sociedade moderna do trabalho, o homem teria sido degradado a animal laborans, sua ação esvaziada e seu pensamento degenerado em cálculo. O homem moderno estaria assim “passivamente exposto ao processo anônimo da vida” (HAN, 2015, p. 41). Mas, conforme Han (2915, p. 42), a “explicação de Arendt para o triunfo do animal laborans não resiste a um teste comprobatório nas recentes evoluções sociais”. Ele argumenta que o “animal laborans pós-moderno é provido do ego ao ponto de quase dilacerar-se” e “pode ser tudo, menos ser passivo” (HAN, 2015, p. 43). Para Han, a sociedade de desempenho é justamente uma sociedade ativa e “precisamente a perda da capacidade contemplativa, que não por último depende da absolutização da vita activa, é corresponsável pela histeria e nervosismo da sociedade ativa moderna” (HAN, 2015, p. 50). Em si, a atividade nada mais faz do que reiterar o existente, de forma que é “uma ilusão acreditar que quanto mais ativos nos tornamos tanto mais livres seríamos” (HAN, 2015, p. 52). Contrariamente a isso, Han aposta com Nietzsche na revitalização da vita contemplativa. “‘Os ativos rolam como rola a pedra, segundo a estupidez da mecânica’” (HAN, 2015, p. 53), frisa Han, citando Humano, demasiado humano. O mundo de hoje carece de pausa, de interrupções, em suma, de negatividade.

            O corolário da discussão de Han é o espraiamento por toda a sociedade de um cansaço resultante do esgotamento, que é a forma de cansaço da sociedade de desempenho e que “nos incapacita de fazer qualquer coisa” (HAN, 2015, p. 76). Desse cansaço difere o cansaço do apenas nada fazer, sem finalidade, que “habilita o homem para uma serenidade e abandono especial” (HAN, 2015, p. 73). Esse último, escreve Han, “é um cansaço da potência negativa, a saber, do não-para” (HAN, 2015, p. 76). Essa negatividade tem sua expressão, por exemplo, na interrupção de atividades do sabá.

Apesar do título de seu livro, é apenas na última parte dele que Han se concentra na questão do cansaço. E o faz de forma tateante, mais ainda do que no tratamento de outros temas abordados pela obra, potencialmente frustrando o leitor que busca entender por que vivemos numa sociedade que deveria ser chamada de sociedade do cansaço. Não obstante, Sociedade do cansaço é um livro que traz reflexões instigantes sobre o estágio atual do capitalismo global. Não deixa de ser muito interessante o fato de seu autor originalmente provir da Coreia do Sul, já que, na segunda metade do século passado, esse país pôs em marcha uma modernização retardatária, de cariz autoritário, que em poucas décadas resultou numa vertiginosa aceleração do ritmo de vida, numa indistinção entre vida laboral e vida privada, em virtude da qual o empregado se encontra full time à disposição do chefe, e no fato de o país possuir hoje uma das mais altas taxas mundiais de suicídio e depressão.

 



[1] Professor Adjunto no Departamento de Sociologia e no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA – Brasil.  https://orcid.org/0000-0003-0625-8275.  E-mail: ricardo.pagliuso@ufba.br