GUATTARI: MÁQUINAS E SUJEITOS POLÍTICOS

 

Larissa Drigo Agostinho[1]

 

 

RESUMO: A partir de uma apresentação do contexto político e social no interior do qual a obra de Guattari se insere, buscamos definir o debate político francês da década de 60, no campo do marxismo, sobretudo do materialismo histórico em torno da questão do sujeito da história. O objetivo deste artigo é explicitar as razões que levam Guattari a romper com o estruturalismo, representado na psicanálise por Lacan e no marxismo por Althusser. A relevância deste texto está na apresentação do conceito de máquina, que se define em oposição ao conceito de estrutura e que, unindo história e inconsciente, visa a traçar o espaço de emergência de um sujeito da história, de um sujeito político.

 

PALAVRAS-CHAVE: Materialismo histórico. Estruturalismo. Psicanálise e política. História.

 

 

INTRODUÇÃO

Acontece, raramente, de um psicanalista e um militante se encontrarem na mesma pessoa, e ao invés de permanecerem fechados, de encontrar justificativas para permanecerem fechados em si mesmos, eles não cessam de se misturar, de interferir, de comunicar, de tomar-se um pelo outro. É um acontecimento muito raro desde Reich. Pierre-Félix Guattari não se deixa ocupar com o problema da unidade do Eu. O eu faz parte dessas coisas que é preferível dissolver, sob o assalto conjugado de forças políticas e analíticas. A palavra de Guattari “nós somos todos grupelhos”, marca bem a busca por uma nova subjetividade, subjetividade de grupo que não se deixa enclausurar em um todo pronto para reconstruir um eu, ou pior ainda um super-eu, mas se estende por diversos grupos ao mesmo tempo, divisíveis, multiplicáveis, comunicantes e sempre revogáveis. O critério de um bom grupo é que ele não sonha ser único, imortal e significante, como um sindicato de defesa ou segurança, como um ministério de antigos combatentes, mas se liga a um fora que o confronta com possibilidades de non-sens, de morte e de explosão, “dada a sua abertura para outros grupos”. O indivíduo, por sua vez, é um tal grupo. (DELEUZE. In: GUATTARI, 1974, p. I).

 

É com essas palavras que Deleuze descreve o psicanalista e militante com quem escreveu durante décadas. Guattari encarnaria, segundo Deleuze, da maneira mais natural possível, os dois aspectos de um anti-eu: pedra catatônica, corpo cego e enrijecido penetrado de morte assim que ele tira os óculos; mas também aquele que brilha de mil fogos, formigando de vidas múltiplas assim que ele olha, age, ri, pensa, ataca. “Ele se chama Pierre e Félix: potências esquizofrênicas.”

A militância de Guattari começou com a Liberação, em 1945. Com 15 anos, ele começa a militar no Partido Comunista, em 48, conhece os militantes trotskistas e passa a fazer parte do Partido comunista internacional; parte para a Iugoslávia de Tito, em 49, em 51, começa a cursar filosofia na Sorbonne, onde também participa ativamente na organização política. Em 53, com alguns professores da Universidade, viaja para a China. Em 55, Guattari se instala definitivamente na clínica de La Borde, integra o GTPSI (Grupo de Trabalho em Psicoterapia e Socioterapia Institucional), organizado por Jean Oury, e, em 1965, cria a FGERI (Federação de Grupos de Estudo e Pesquisa Institucionais), o qual integra, sob o princípio da transversalidade, psiquiatras, psicanalistas, enfermeiros, psicólogos e antropólogos. Surge também, nesse período, a Oposição de Esquerda, braço político da FGERI.

Ao abordar as questões de orientação que se colocavam para ele, a partir da militância, que visavam em um primeiro momento a clarificar uma situação de afrontamento de grupos distintos e, em seguida, a pensar orientações e estratégias, Guattari explica que, desde que começou trabalhar em La Borde, buscava conciliar a sua militância na extrema esquerda e o fato de ser o primeiro não médico a frequentar o seminário de Lacan. Oscilando entre esses três polos, a prática clínica em La Borde, os seminários de Lacan e o militantismo na extrema esquerda, ele afirmaria, anos depois, em 1980, que estava tentando reconciliar o inconciliável. Ele procura ir além da psicoterapia institucional e propor uma análise institucional. Almejava “recusar uma definição demasiado restrita da psicoterapia institucional”; tratava-se, podemos acrescentar, de expandir o espaço da clínica, de utilizar a psicanálise para compreender relações institucionais, analisá-las e transformá-las. O que Guattari desejava era estudar e colocar em prática relações com práticas similares à da psicoterapia institucional, em outros domínios, como a pedagogia, o urbanismo, o militantismo. Principalmente, dentro do movimento estudantil com o qual ele estava ligado, a l’UNEF e a Mutual Nacional dos Estudantes da França.

Além disso, eu pensava que nós não podíamos avançar nessa nova “disciplina” a não ser na medida em que ela se instituiria em conexão com questões políticas mais largas como: aquelas, por exemplo, da oposição comunista, da renovação das formas de luta revolucionária, etc. Essa tentativa durará até maio de 68. Uma “grande ilusão” que não renego. Em certa medida, foi um sucesso incontestável. (GUATTARI, 1974, p. 110).

 

Guattari descreve os encontros organizados pela F.G.E.R.I., onde se cruzavam pessoas tão diferentes quanto Françoise Dolto, Fernand Deligny, Tosquelles, Jean e Fernand Oury, Roland Dubillard, Maud Mannoni, Laing, Cooper, Tourriba, Gentis e, mesmo, às vezes, Jacques Lacan, além de inúmeros estudantes militantes que foram muito ativos em 68, como locais de uma “fermentação bastante impressionante”.

É nesse contexto que foram desenvolvidos os conceitos de transversalidade, transferência institucional, analisador etc., que estão reunidos em Psicanálise e transversalidade, publicado em 1972, mas com textos que foram escritos ainda nos anos 60, o que pode nos ajudar a traçar um panorama do contexto no qual se deu maio de 68 e definir o lugar de Guattari no interior dos debates políticos de seu tempo. Muitos dos seus conceitos fundamentais foram criados a partir de sua experiência clínica e militante, e, no plano teórico, com base em divergências sobretudo em relação ao lacano-althussserianismo. E é justamente esse debate que buscaremos reconstituir aqui.

São dois os textos fundamentais para compreendermos a natureza do debate entre Guattari, de um lado, e o estruturalismo lacano-althusseriano, de outro, “Causalidade, subjetividade e história” e “Máquina e estrutura”. As críticas de Guattari a Lacan e Althusser se desenvolvem em função de dois temas centrais – a relação entre a história e a determinação significante e o problema da alienação ou da integração da classe operária ao capitalismo. Nos dois casos, a questão é a mesma: pensar o sujeito da história. Entre esses dois temas, Guattari elabora um conceito que ele chamou de cisão leninista. Esse conceito visa a pensar qual a ação fundamental de Lênin que tornou possível o advento da Revolução Russa. Assim, Guattari introduz um elemento novo para demonstrar a impossibilidade de uma concepção estruturalista do materialismo histórico, a noção de ruptura, ou seja, de revolução.

Em seguida, ele se volta para as lutas políticas, buscando traçar um diagnóstico que pretende expor a natureza da alienação da classe operária ou dos obstáculos com os quais a prática revolucionária deve se confrontar. Não basta um novo conceito de política, um novo olhar em relação ao materialismo histórico, uma conceitualização à altura da história, a saber, que seja capaz de compreender as rupturas que a transformam; é preciso também formular conceitos capazes de produzir uma nova análise dos processos de alienação e submissão. Daí a importância da psicanálise. Em Guattari, a crítica da alienação não se centra no indivíduo, mas em grupos, por isso, ela se constitui como crítica e análise das organizações e instituições. É com essa análise crítica que se torna possível pensar em que circunstâncias um sujeito histórico pode fazer irrupção e de colocar a imaginação a serviço da política, para construir novas formas de organização.

 

1 A RUPTURA LENINISTA, A HISTÓRIA SOB O SIGNO DA REVOLUÇÃO

O materialismo histórico continua sendo, segundo Guattari, o único método válido para a análise histórica, no entanto, é preciso saber escapar do stalinismo que reina na França, na década de 60, o qual o autor atribui ao Partido Comunista Francês. Para isso, é preciso salientar que há um dimensão da política que escapa ao determinismo dialético e que funciona como contraponto dessa determinação.

O PCF era totalmente tributário da política estrangeira da URSS (condenando, por exemplo, a Iugoslávia de Tito, incapaz de criticar a guerra do Vietnã etc.), prisioneiro do gaullismo (guinada ética que associa socialismo e humanismo, acenando assim aos católicos), com uma política determinada pelo jogo das relações econômicas e sociais do capitalismo monopolista de Estado e fixado na conquista eleitoral do poder como único horizonte de luta social. No entanto, o PCF e seus problemas não deveriam “ser capazes de mascarar o fato de que continua a existir na França uma via revolucionária que depende, em parte, da evolução da crise interna que o partido atravessa.” (GUATTARI, 1974, p. 183).

A questão aqui é justamente a análise histórica e seus esquecimentos ou o conceito mesmo de história e a causalidade que a move. Guattari ressalta, desde o início desse capítulo, a necessidade e a importância do conceito de corte ou ruptura na compreensão da história.

Ele toma o exemplo do castrismo para enfatizar que, na atual condição, existem, sem dúvida, possibilidades de ruptura na causalidade histórica. O foco, em seguida, será analisar a intervenção dos bolcheviques em fevereiro e outubro de 1917, a qual rompe com o curso “normal” da história, a saber, uma união de centro-esquerda para esperar que os partidos tradicionais retomassem o poder. Com o fim do czarismo, os bolcheviques compreenderam a debandada militar, social, econômica e política como uma vitória das massas. Para Lênin, a imbecilidade da burguesia russa tornava possível que a revolução social se tornasse um objetivo imediato.

Lênin se viu diante de uma situação totalmente imprevisível. Ele mesmo tinha combatido duramente todos aqueles que previam que um tal processo seria inevitável. Restava convencer seu partido. É o que ele procurou fazer com as “teses de abril”, onde propunha a “mobilização imediata do partido e das massas para tomar o poder.” Nessa decisão, Guattari (1974, p. 184) vê uma marca histórica que ainda continua viva em nossos dias, ou seja, o desejo pelo poder e sua conquista, que leva à subsequente institucionalização do partido, tragédia maior da revolução.

As teses de abril foram impostas ao seu próprio partido, não sem força. O corte não ocorreu sem trazer sérias consequências. Muito se opuseram a Lênin, militantes de primeira linha, como Zinoviev e Kamenev, como quem antevia o que o stalinismo traria. Mas Lênin, assim como Trotsky, pela primeira vez em décadas, concordaram que era preciso aproveitar essa brecha, apesar da fraqueza do proletariado russo e sem temer os efeitos bumerangue. “A hora da primeira revolução socialista deveria soar.” Muitos argumentaram que nunca a causalidade histórica perdera seus direitos, nesse caso, e que esse corte, o que Guattari chama de ruptura leninista, não passa de um engodo.

Fato é que essa experiência, essa ruptura, esse corte, essa intervenção ou decisão marca para Guattari nosso destino histórico, não apenas pelo que nos deixou do ponto de vista teórico, mas evidentemente pela atualização que ela operou na luta de classes, e também pelos limites, contingências, taras e cicatrizes que ainda em seu tempo continuavam a ser sofridas, dada a incapacidade de superação dos seus efeitos de repetição.

 A questão é saber de que modo deveríamos retornar a tais momentos da história, até que ponto é necessário analisar as contingências que a marcaram e qual o peso que esse acontecimento deve ter, na militância. Para isso, seria preciso aprofundar a análise das circunstâncias e do contexto no qual foi produzida a ruptura leninista, a fim de determinar quais obstáculos tornaram possível que ela assistisse, impotente, à escalada do stalinismo.[2]

Guattari destaca que os bolcheviques se mostraram, desde o início, incapazes de assumir a conduta das massas. O aparelho do partido, ainda modesto e clandestino, foi obrigado a montar um Estado, um exército, e ainda se via na obrigação de coordenar as lutas revolucionárias pelo mundo. “O aparelho estava em todos os lugares e se sentia responsável por tudo.” (GUATTARI, 1974, p. 186).

O partido leninista não estava pronto, sobretudo no plano teórico, para permitir uma verdadeira criatividade institucional. Nada saiu do estilo tradicional, seja sindicato, seja organização feminista, seja ainda de jovens. Nenhuma inovação institucional ocorreu. Pelo contrário, para manter a coesão interna e por razões propagandistas, o partido deixou que proliferasse uma fantasmagoria coletiva de onipotência com proporções megalomaníacas. O partido tinha sido investido de uma vocação messiânica, designado pela história para julgar o que era bom e o que não era, distinguir o verdadeiro e o falso. O resultado foi a perseguição e a eliminação de todas as oposições.

O que ocorreu neste momento se repetiu em outros lugares ad infinitum. Enunciados cristalizados e separados definitivamente de suas situações de enunciação. Postos em posição de enunciados dominantes, sua função foi em seguida controlar toda enunciação em situação de ruptura. Atitudes, de um estilo “bolcho” profissional, um gosto perverso pela ruptura inicial, associada a uma grande maleabilidade tática flertando às vezes com a duplicidade, foram lançadas no mercado da subjetividade militante. Muitos especialistas em fonética, semântica e fonologia poderiam analisar este acontecimento e demonstrar a origem de toda uma cristalização de traços linguísticos, de maneiras, sempre as mesmas, de martelar fórmulas estereotipadas, qualquer que seja a linguagem de empréstimo e que continua sendo a realidade única de muitos militantes hoje em dia. (GUATTARI, 1974, p. 189).

 

Eis a máquina leninista: a questão em torno da qual gira sua época é, segundo Guattari, a de saber por que outra máquina ela poderia ser substituída, uma que fosse mais eficaz e menos perniciosa em relação ao desejo das massas.

Assim, é sob o signo da ruptura que Guattari busca pensar o que é da natureza da política, e não é por acaso que seu pensamento se construirá a partir de uma ruptura que se dá ao mesmo tempo em dois campos: o do marxismo e o da psicanálise. Trata-se de uma ruptura com o estruturalismo de Lacan e de Althusser. A função do conceito de máquina visa, portanto, à produção de uma análise histórica que não a entende como desenvolvimento, porém, como um corte, Logo, nesse contexto, a questão central para Guattari será pensar a história com base em um conceito renovado de sujeito histórico e político – eis a razão pela qual ele precisa atacar, ao mesmo tempo, Lacan e Althusser.

 

2 A MÁQUINA CONTRA A ESTRUTURA

Guattari (1974) sublinha que o objetivo da distinção entre máquina e estrutura objetiva clarificar as posições particulares da subjetividade em relação à história e ao acontecimento. Vemos que uma nova questão aparece no horizonte da relação entre psicanálise e política.

A estrutura é definida aqui, a partir de Deleuze, como generalização caracterizada pela posição de troca ou de substituição de particulares, enquanto a máquina diz respeito a uma singularidade intercambiável e incomunicável (GUATTARI, 1974) Essa distinção prenuncia a crítica que será apresentada em Anti-Édipo, a respeito do caráter representativo da estrutura. Quando observamos a teoria lacaniana dos quatro discursos, fica evidente que um sujeito só pode emergir, se for capaz de romper o ciclo instaurado pela mediação do saber entre dominador e dominado. O mesmo vale para a relação demanda/desejo. O desejo surge, quando um sujeito rompe com a demanda do Outro ou se recusa a limitar seu desejo à demanda socialmente reconhecível e aceita.

O sujeito da estrutura, segundo Guattari (1974, p. 241), deve ser reportado a uma “metade”, o eu, oposto ao sujeito do inconsciente. O sujeito do inconsciente, para ele, está do lado da máquina, literalmente ao lado. Ele é um ponto de ruptura da máquina. A máquina descreve, portanto, uma transformação histórica e social, um acontecimento cujo ponto de ruptura seria o surgimento de um sujeito inconsciente, de um desejo, de um novo desejo. Ou seja, a estrutura lacaniana descreve o funcionamento do “eu”, sofrimento imaginário, patologias particulares e sociais, mas não singularidades.

É, por conseguinte, apenas fora da estrutura que um sujeito pode verdadeiramente emergir. Daí a necessidade de demonstrar que a revolução pode ser um ciclo que retorna ao ponto de partida, isto é, um processo no interior do qual o “revolucionário” é aquele que histericamente apenas afirma sua posição de saber, sua consciência sobre a necessidade de sua existência para a manutenção de um sistema de exploração e dominação. A histeria é apenas tomada de consciência, é preciso romper com a cadeia (ordem social) que sustenta a demanda. Se Lacan descreve a natureza dessa estrutura de dominação, Guattari está preocupado não com as estruturas que saem às ruas para afirmar seu saber e exigir reconhecimento ou reparação, todavia, com o sujeito dos acontecimentos, aqueles capazes de romper com as máquinas e com as estruturas de produção capitalista, um sujeito político, da história.

A estrutura posiciona seus elementos a partir da relação que estabelecem uns com os outros, de tal maneira que a estrutura pode ser associada, como elemento, a outra estrutura. Isso coloca um problema para o materialismo histórico e dialético. Como compreender a história e sua natureza, quando um modo de produção é tomado como uma estrutura? Ela se reproduz devido à sua relação com outras estruturas? É assim que podemos pensar o materialismo dialético, como história de suas estruturas, de suas relações e de seus modos de produção e reprodução? Para Guattari, uma compreensão dessa natureza, meramente formal, será sempre abstrata. Essa parece ser a posição do estruturalismo de Lacan ou Althusser.

Uma posição formalista que parte das formas transcendentes, universais, cortadas da história e que se incarnam em substâncias semiológicas, [por isso, era preciso] partir das formações sociais e dos agenciamentos materiais para extrair (abstrair) os componentes semióticos e as máquinas abstratas tais quais a história humana e cósmica as propõem. (GUATTARI, 1979, p. 12).

 

No interior do estruturalismo, o sujeito também é compreendido como sistema de definição recíproca, uma estrutura em relação com outras estruturas políticas, sociais, culturais, econômicas. A estrutura é, portanto, um processo de “totalização destotalizada”, porque cada elemento se define em relação aos outros, de sorte que todos os elementos fazem parte da estrutura, mas parcialmente, ou seja, não cessam de enviar-se e reenviar-se uns aos outros, produzindo novas relações e novos sentidos. Assim, o sujeito que escapa de uma estrutura é recolocado ou já estava em relação com outra estrutura.

Já a máquina não é compreendida como um discurso ou um processo de representação ou mesmo resultado de uma determinação transcendente; ela não descreve a maneira através da qual um modo de produção determina relações sociais, no interior de estruturas diversas. Ela também não descreve um processo de alienação, na verdade, enquanto corte ou ponto de ruptura, a máquina está mais próxima do que Guattari entende por sujeito do inconsciente. Um sujeito que não se define em relação ao saber ou ao gozo, contudo, em relação à história e aos acontecimentos.

A máquina é descentrada, excêntrica ao sujeito, esse está sempre em outro lugar. A máquina é um acontecimento, ela “marca uma data, um corte não homogêneo à uma representação estrutural.” Ela descreve o momento em que a estrutura expõe suas fissuras, os lugares não são mais os mesmos, a ordem social se transforma. “Cada máquina é negação, morte por incorporação (ou dejetos) da máquina que ela substitui. Potencialmente, ela entretém os mesmos tipos de relação com a máquina que a sucederá.” Guattari alude aqui a um processo de transformação histórica, movido por um inconsciente, um sujeito que não pode ser representado. Isso não significa, à maneira de Reich, uma distinção entre irracionalidade e racionalidade. Num primeiro momento, trata-se de afirmar que a relação entre modos de produção no interior da história e entre diversas esferas da vida social (economia, cultura etc.) não pode ser compreendida como relação de determinação estrutural. O que isso significa?

Partindo da afirmação de Marx, segundo a qual o modo de produção tem por objetivo a reprodução do trabalhador nas e com as condições objetivas de sua existência - ou seja, um modo de produção não produz apenas coisas, ele é um modo de produção social, modo de produção de relações sociais - Balibar, em Ler o Capital, conclui que a produção de relações sociais é produção de coisas e indivíduos, através das relações sociais, uma produção no interior da qual os indivíduos são determinados a produzir coisas e a ser produzidos por uma forma específica de relação social. Quer dizer que a produção de relações sociais “[...] é uma determinação de funções do processo social de produção, processo sem sujeito.” (BALIBAR, 1965, p. 517).

Se o modo de produção é compreendido como uma estrutura transcendente que determina a totalidade das relações sociais, isto é, que produz coisas e indivíduos, como compreender o surgimento de um modo de produção no interior da história? Como compreender a transformação de modos de produção e, por consequência, como compreender a transformação das relações sociais no interior da história? Sobretudo, como é possível compreender essas transformações, se estamos diante de estruturas que funcionam sem sujeito? E a questão guattariana não é apenas de produzir um diagnóstico de seu tempo, uma análise de conjuntura capaz de demonstrar que o modo de produção do capitalismo atual é responsável pela totalidade das relações sociais: é, com efeito, de saber como transformar a vida social e seu modo de organização: “Se olharmos para o Oeste, o Este, ou o Sul, a questão é a mesma: como organizar de outra maneira a sociedade.” (GUATTARI, 1979, p. 217). Para isso, era preciso pensar o funcionamento da história e a natureza dos acontecimentos, era preciso romper com o marxismo-estruturalista, era preciso pensar não apenas estruturas e sua manutenção, mas cortes, rupturas – elas é que produzem a história como acontecimento.

A questão, portanto, de acordo com Guattari, não será de compreender a história como processo de produção de relações sociais, ou como organizada pela sucessão de estruturas ou modos de produção, nem como resultado do desejo de sujeitos conscientes, autônomos e livres. Para ele, “são as máquinas, todas as máquinas que funcionam como a história real, pelo menos, enquanto elas continuam constantemente abertas aos traços singulares e às iniciativas criativas.” (GUATTARI, 1979, p. 217). Ou seja, trata-se de apontar aqui a ausência de um lugar no interior da determinação estrutural para aquilo que torna possível um acontecimento. Na medida em que o modo de produção é tomado como determinação das relações sociais e subjetivas, determinação transcendente, o marxismo estruturalista se fecha para a análise da história real, concreta, aberta às intervenções subjetivas e produzida pela ação humana.

Assim, o conceito de máquina visa, ao mesmo tempo, a descrever o inconsciente e os processos sociais e materiais no interior da história. “O sujeito e a máquina são indissociáveis. Há uma parte de subjetividade em todo agenciamento material. E reciprocamente, há uma parte de sujeição maquínica em todo agenciamento subjetivo.” (GUATTARI, 1979, p. 179). A função do conceito de máquina é justamente abrir espaço para um pensamento da ruptura. A história não seria um processo de produção de relações sociais sem sujeito, mas um processo maquínico, produtor de relações materiais e sociais, de indivíduos sujeitados e de sujeitos, os quais sustentam ou transformam os modos de produção ou a história, porque se conectam a eles de maneira absolutamente inconsciente, como máquinas, constantemente permeáveis a iniciativas singulares. A questão seria, por conseguinte, a de pensar em que condições uma ruptura é possível, uma ruptura que fosse capaz de dissociar ou de distinguir sujeito e máquina, de distinguir a singularidade subjetividade e a sujeição maquínica. 

Para construir esse novo sujeito, seria preciso, evidentemente, partir da noção de trabalho. Afinal, é a contínua reprodução e eternização do trabalhador que constitui a condição sine qua non do modo de produção capitalista. O trabalho contemporâneo não estaria alienado por um deslocamento na posição do saber. Não se trata aqui de pensar a relação mestre-escravo, professor-estudante, analista-analisando como uma relação de dependência via confisco e monopólio do saber. O que significa que o trabalho intelectual e revolucionário não se dá sob a via da conscientização de classe que pode cair na posição histérica e na disputa abstrata por reconhecimento via recognição, isto é, em um ciclo onde o explorado afirma e reconhece sua posição e espera do mestre o reconhecimento de sua importância, no interior do processo produtivo via compensação financeira, sobretudo, estilo negociação sindical ou criação de políticas públicas. Se há alienação, ela deve ser pensada como um processo que se dá entre o trabalhador e a máquina.

Com a revolução industrial, a evolução contínua e espasmódica do maquinismo, com transformações sucessivas (do trem ao computador), corta e recorta as antigas ordens de métiers. Cada profissão, cada trabalho passa a ser determinado pelas máquinas. O trabalhador perde a legitimidade que o pertencimento a um “corpo de trabalhadores” lhe conferia (GUATTARI, 1974, p. 242).

As instituições surgem e se desenvolvem para preencher o vazio deixado por tal transformação. Seu caráter ideológico não reside apenas em seus aspectos fascistas e paternalistas, com suas divisas sobre o trabalho, a família e a pátria, mas também na própria esquerda socialista (incluindo o modelo cubano) com sua apologia opressora do trabalhador e o culto da máquina, elevada à categoria de herói moderno.

A máquina passou ao coração do desejo. Guattari menciona, à maneira de Marx, em seus manuscritos, um “apagamento do indivíduo em relação à sua própria produção.” (GUATTARI, 1974, p. 243). O trabalho humano não passa de um “sub-conjunto residual do trabalho da máquina.” (GUATTARI, 1974, p. 242). Nesse ponto, o sujeito inconsciente, maquínico, ou dejeto da máquina, aparece como extrapolação da teoria lacaniana do significante: “significante destacado da cadeia estrutural inconsciente que funciona como representante da representação da máquina.” (GUATTARI, 1974, p. 243). A questão é saber como esse processo de desprendimento da própria estrutura pode levar à produção de um sujeito revolucionário e como fazer para que ele escape de outras estruturas que pretendem representá-lo. A resposta para essa questão não é nada simples, afinal, é a um sujeito inconsciente que se alude aqui.

Por essa razão, essa subjetividade não é representável. Ela é essencialmente heterogênea em relação à ordem estruturalmente estabelecida. Nem por isso ela deixa de ser a “raiz fundadora das diferentes ordens estruturais.” (GUATTARI, 1974, p. 243).  A novidade é que não há, no interior desse processo, uma causalidade como a que anima as estruturas lacanianas, onde a perda requer o impossível e a falta tem no mito o seu outro. Não se trata de pensar a máquina do ponto de vista simbólico-imaginário, por isso, ela não poderia mais ser um produto derivado da ordem representativa, quer dizer, da linguagem. Para pensar o sujeito além ou aquém da representação, Guattari (1974, p. 243).introduz a noção deleuziana de diferença:

A essência da máquina é precisamente essa operação de desprendimento de um significante como representante, como «diferenciador», como corte causal, heterogêneo à ordem das coisas estruturalmente estabelecida. Essa operação liga à máquina ao duplo registro do sujeito desejante e de seu estatuto de raiz fundadora das diferentes ordens estruturais que a ele correspondem. A máquina, como repetição do singular, constitui um modo, e mesmo o único modo possível, de representação unívoca das diferentes formas de subjetividade na ordem do geral sob o plano individual ou coletivo.

 

Se um modo de produção, produtor de relações sociais, pode ser considerado sem sujeito, o que o conceito ou problema que a reprodução dos meios de produção coloca é não apenas, segundo Balibar, o da consistência da estrutura, mas também o da determinação necessária do movimento de produção pela permanência dessa estrutura. O conceito de reprodução social “é o conceito da permanência dos elementos iniciais no funcionamento mesmo do sistema, portanto, o conceito das condições necessárias da produção, e que justamente não são criadas por ela.” (BALIBAR, 1965, p. 519) Há, portanto, um ponto cego no interior do determinismo dos meios de produção que aparece, quando a questão não é somente pensar um modo de produção como determinação transcendental da ordem social, mas o modo de reprodução das relações sociais. O que faz com que a ordem social se mantenha, se reproduza? O conceito de máquina visa a preencher essa lacuna. Ela é que determina as condições da produção, ela é que determina a natureza do trabalho e o lugar do trabalhador, nas relações sociais. 

Há, portanto, uma máquina entre o modo de produção e sua reprodução. Afinal, a máquina é um corte histórico, heterogêneo, e que, por ser diferenciante, é capaz de representar um desejo e estruturar diferentes ordens sociais. Além disso, se a máquina rompe uma determinada ordem causal, no interior da história, se ela provoca um corte histórico, ela é também o lugar de onde pode emergir um sujeito. Isso só pode ser possível, porque a máquina possui um elemento diferenciante. Ela é o nome de um meio de produção que, ao mesmo tempo, transforma a história e produz sujeitos, os quais, como a máquina, possuem um elemento que torna possível a ruptura em relação à própria ordem por ela estabelecida.

Guattari não acreditava que a visão geral, exclusiva da estrutura, fosse capaz de explicar o processo de produção de sujeitos, no interior do capitalismo. Essa visão estruturante cria a ilusão de um ponto de apoio possível em um estado estrutural pré-existente. Não é possível pensar uma cadeia significante pura, metalinguagem, referente absoluto, pois essa visão mascara o caráter contingente e singular dos acontecimentos, a natureza do corte operado pelas máquinas na história e em seu funcionamento, inclusive, na maneira através da qual novos sujeitos serão produzidos. O sujeito ficaria reduzido ao plano da representação, informação e comunicação dos códigos sociais e de outros modos de estruturação. Ele é reduzido à condição de objeto, produto, mas não agente. Segundo Guattari (1974, p. 243), era preciso pensar o lugar do sujeito da história entre estrutura e máquina, a partir de um corpo atravessado e dilacerado por cadeias significantes.

Guattari (1974, p. 175) define Althusser e seus pares como os “[...] padres da pura teoria, os últimos guardiões da cientificidade dos conceitos.” Guattari critica o caráter transcendental da estrutura e suas consequências na relação entre determinação significante e história.

Para Lacan, diz (Guatari, 1974, p. 174),

[...] o significante não tem história, ele não é no tempo, ele pertence à ordem da estrutura [...] é um material a-histórico de non-sens constitutivo das significações históricas: puro efeito de corte ou ressonância, acidente contingente que só se proclama posteriormente como tendo sido o primeiro termo de uma série.

 

A estrutura cristalina se situa fora da história, mas lhe fornece seu fundamento, operação Althusser, segundo Guattari. A subjetividade é totalmente dependente de uma determinação causal estrita, a estrutura. Ela e o significante são reversíveis, o que significa que a práxis não tem nada a ver com essa subjetividade pura, formal. Ou seja, não há lugar para a práxis subjetiva, no interior dessa determinação causal transcendente que paira fora da história e do real.

Não há na natureza nem significante nem significado fora de uma relação ao sujeito; o sujeito é um corte significante produtor de enunciados, começando por aqueles que denunciam a presença do sujeito na enunciação. O círculo corre o risco de se fechar. É a tentação estruturalista. Considerando que o sujeito se remete ao outro – miragem da intersubjetividade –, enquanto que o significante se remete ao significante – miragem de uma linguística ainda em suas línguas – cindida de toda realidade, funda-se assim um sujeito sem consistência – simples operador simbólico – e um tempo significante que não é mais, de fato, nada além de um tempo lógico. O sujeito só está lá para pontuar a batida de uma partitura significante que nunca pode ser executada na realidade. O real e a história se tornam tributários de uma ordem simbólica eterna dos quais eles estão definitivamente cindidos e que os anula essencialmente. (GUATTARI, 1974, p. 175).

 

Mesmo a insistência de Lacan, em salientar que a relação entre sujeito e significante é profundamente dissimétrica, não consegue escapar da idealidade e da pureza da estrutura. O sujeito barrado é tributário de sua relação à residualidade, do objeto a que assegura seu estatuto, por isso, ele é marcado por esse traço que o desclassifica como puro significante e o aliena da condição desejante através dos objetos parciais. Assim, completa Guattari (1974), ele recai na paixão mortífera de abolição em uma pura e ideal estrutura.

Existem duas maneiras de fazer uso do significante. A primeira é transformá-lo em uma categoria universal, como a extensão ou a duração: essa é a astúcia de um novo idealismo que desconsidera que o signo esteja diretamente relacionado ao sentido e à realidade social. A segunda maneira é a lacaniana: o significante é um filtro a partir do qual os efeitos do inconsciente podem ser repertoriados, o que não pode ser simetrizado; o que não é recuperável pode ser indexado sob a forma do sonho, do ato falho, do acting out, da transferência etc.

Guattari propõe uma outra forma de compreender o significante, o sujeito e a história. Ele entende a história como sujeito. Há um realismo residual na história, uma realidade inexpugnável da qual não é possível fazer economia. A desrealização da história encontra seu limite no fato contingente de que são os homens e ninguém mais que a fazem e a falam. Logo, o significante emerge enquanto tal apenas a partir do momento em que um sujeito irrompe e “[...] coloca tudo em questão e refunda a enunciação, um trabalho do significante como expressão do sentido, de um corte possível na ordem dada, como ruptura, revolução, apelo para uma reorientação radical.” (GUATTARI, 1974, p. 176).

A ideia de corte significante agora se transforma na ruptura, na cisão operada na máquina: “[...] mascarada por trás da estrutura, esperando, o corte maquínico é o sujeito em conserva, o tempo em bateria. Enquanto a estrutura não se move, o sujeito não se produz.” (GUATTARI, 1974, p. 181). Guattari é muito claro, ao afirmar que só é possível “[...] sair do impasse estruturalista considerando que um efeito do sentido só pode produzir consequências no plano do significado quando potencialidades subjetivas são liberadas, quando há uma ruptura no significante.” (GUATTARI, 1974, p. 180). O conceito de máquina visa, por conseguinte, em função do estado atual do trabalho, a pensar o lugar de emergência de um sujeito, entre a estrutura que mantém em funcionamento um modo de produção e exploração e a máquina que altera a história, produzindo espaços, no interior do quais sujeitos podem ao mesmo tempo romper com a estrutura e com as máquinas.

 

3 AS MÁQUINAS E O ESTADO ATUAL DA LUTA DE CLASSES

Guattari não se limita às críticas teóricas, porém, procura colocar em evidência as questões práticas e políticas postas por essa noção de estrutura. E, nesse caso, ele parte do fenômeno de grupo. Ou seja, trata-se de pensar modos de organização social que não são individuais, o que implica pensar toda forma de organização institucional ou com pretensão institucional, todo tipo de organização que não seja a da subjetividade-individual do divã psicanalítico. Como um grupo de pessoas pode se organizar, escapando de uma forma de organização centralizadora e hierarquizada? É possível criar instituições não disciplinares? É possível subverter a lógica das instituições, alterar seu modo de funcionamento?

Guattari concebe a estruturação de uma organização política como seu enrijecimento em torno de uma doutrina que a torna incapaz de produzir ideias e novas formas de vida. A estruturação reduz a experiência e a invenção a um saber com pretensões de onipotência. A crítica ao lacanismo e ao marxismo althusseriano é também crítica ao Partido Comunista. Se a própria organização política não é capaz de escapar das formas autoritárias do Estado e de suas instituições, como seria capaz de destruir ou sequer transformar essas instituições?

O problema dos grupos sociais é que eles não possuem uma superfície de projeção (como os indivíduos e seus corpos); na verdade, grupos sociais “dispõem apenas de modos de decifrar e de se situar sucessivos e contraditórios, aproximativos e metafóricos, a partir de diferentes ordens estruturais, por exemplo, de trocas, de mitos, etc.” (GUATTARI, 1974, p. 243). É por essa razão que o desejo pode ser “reprimido”, ou melhor diríamos, regulado e gerenciado pela ordem social. A questão é, portanto, saber compreender, em primeiro lugar, que movimento é esse, responsável por conter a potencialidade das máquinas, produzindo sua estruturação. Essa é a função do conceito de antiprodução: explicar de que forma as singularidades produzidas por transformações históricas são contidas, desviadas ou minadas, de sorte que toda sua potencialidade criativa é limitada ou destruída.

O primeiro movimento da antiprodução consiste em impedir todo tipo de passagem de um sistema de produção para outro. Se a máquina se define como o corte subjetivo que caracteriza toda forma de produção, a antiprodução procura igualar e tornar equivalentes todas essas ordens, impedindo a passagem de um modo para outro, impedindo as rupturas. Quer dizer, a noção de estrutura teria um papel ideológico, porque, ao igualar todas as esferas da vida social em função de uma forma única, impede a manifestação da singularidade e da heterogeneidade. Ela não é capaz de tornar visível o que, por natureza, é singular. Coloca-se sob o mesmo plano o que ocorre na fábrica, na escola, no atelier, na produção literária, poética, onírica etc. A antiprodução é tudo aquilo que é posto sob a forma das “relações de produção” (GUATTARI, 1974, p. 244). O reequilíbrio imaginário que ela opera é o da fantasia transicional. Não se trata de um aparato conservador ou antirrevolucionário que objetiva conter o tempo e reverter a história; a antiprodução organiza mudanças e transformações no seio de uma área social determinada, promove a generalização de um novo modo de produção, acumulação, circulação e distribuição. Ou seja, a antiprodução substitui a ruptura, que é capaz de produzir novas potencialidades, por uma fantasia de transição, por um processo de desenvolvimento, o qual nada mais é do que a propagação ou a extensão de um único modo de produção para todas as esferas da vida social.

A própria teoria lacaniana parece assombrada por esse tipo de fantasia transicional. É isso o que sua teoria do significante parece indicar. Tomemos o objeto a, causa do desejo: o tipo de relação estrutural que ele instaura perturba o equilíbrio estrutural do indivíduo, afinal, o desejo é um corte metonímico, uma relação parcial que se estabelece a partir de relações de alteridade posicionadas de maneira específica, com base em cada etapa do processo. A crítica de Guattari consiste em afirmar que a representação de si mesmo e do processo histórico pelas grelhas da linguagem conduz apenas a um impasse, porque ela nos conduz a um ponto de ruptura onde não se ouve nada além do apelo de uma alteridade repetida (espécie de dialética negativa). Um eterno conflito entre o “eu” e o Outro, como instância imaginária que simboliza a totalidade da ordem social. A fantasia individual representa a impossibilidade de passagem entre diferentes planos, mantendo segura a individualidade sem portas nem janelas imersa em uma exterioridade totalizada. “O objeto do desejo descentra o indivíduo a beira dele mesmo, no limite do outro; ele encarna a impossibilidade de um refúgio absoluto de si mesmo em si mesmo e igualmente a impossibilidade de uma passagem radical ao outro.” (GUATTARI, 1974, p. 244).

O problema que Guattari almeja enfrentar, tanto em sua prática analítica quanto em sua atuação militante, é a produção de enunciados coletivos, sociais. Enunciados que sejam a expressão de um desejo de transformação da vida social, de seus modos de organização. Assim, o problema que a psicanálise parece expor é um sintoma do problema que corrói a imaginação nas lutas políticas.

Se continuarmos com noções como Eu ideal e Ideal do Eu, consideraremos um sujeito que busca se integrar, não a um campo social dado, mas unicamente, pela sua função de fala, ao campo do Outro. Partimos de uma situação inicial marcada por uma contingência absoluta, de um narcisismo absoluto (das Ding), para chegarmos a uma abertura hipotética sobre a sociedade, a uma “cura” que desemboca na indeterminação, e assim, tem como consequência toda espécie de problemas de integração a grupos sujeitados (escola, grupo esportivo, caserna, sindicato, partido, etc.). Na verdade, partimos de uma constelação social inconsciente singular para chegarmos em uma atualização do Inconsciente abstrato. (GUATTARI, 1974, p. 44).

 

Se a psicanálise tem um fundamento filosófico, ele implica que a psicanálise seja também a elucidação de impasses culturais e sociais no interior do qual ela mesma se insere. Logo, Guattari rejeita o ponto de vista do Eu, do indivíduo, e prefere a análise de instituições e de grupos, para evitar essa falsa oposição, no fundo absolutamente abstrata, entre o Eu e o Outro ou o indivíduo e a “ordem social”. Trata-se de escapar dessa generalização e de buscar análises em situação concreta. A oposição eu/Outro se exime de pensar o que está entre o Estado e o indivíduo, entre a lei e o cidadão, ou seja, as instituições, responsáveis pelo estabelecimento das normas de comportamento que sustentam o modo de vida social, instituições que promovem e produzem na prática formas de sujeição. 

É analisando as fantasias de grupo que Guattari pensa a questão das lutas políticas. Ele busca, assim, num primeiro momento, detectar a natureza da antiprodução no interior dos grupos ou instituições, com o objetivo de compreender que mecanismos entravam a produção de uma singularidade subjetiva. Assim, surgirá a distinção entre grupo sujeito e grupo sujeitado, a qual depende do tipo de fantasia que assombra os grupos sujeitados e que se deve justamente à oposição entre o particular e o geral.

A diferença entre a fantasia individual e a fantasia de grupo é que o grupo não possui uma superfície, como o corpo, que possa servir de ponto de referência para o funcionamento do desejo, pontos de ancoragem, de apelo à ordem das verdades singulares, como são as zonas erógenas (GUATTARI, 1974). Isto é, se a fantasia individual distingue o outro a partir do corpo próprio do indivíduo, o outro é o não-eu, a fantasia de grupo é muito mais heterogênea. Como o grupo não dispõe de um corpo que sirva de amparo à fantasia, ele tende a sobrepor, a substituir e trocar os planos distintos da vida social, de forma que permanece condenado a girar em torno se si mesmo. Os efeitos circulares da estrutura conduzem a zonas de impasse, de interdição, a vácuos intransponíveis e a toda uma zona sem sentido.

Guattari descreve, em seguida, problemas próprios da contestação que só poderiam ser postos à luz por alguém que possui não apenas experiência psicanalítica e clínica, mas na militância política. Trata-se de procurar razões que expliquem maio de 68, que sejam capazes de diagnosticar os problemas da organização e da crítica que bloquearam o prolongamento do acontecimento, no campo do grupo, no interior de grupos e organizações, sejam elas políticas, literárias ou médicas (correspondem, na verdade, a todo tipo de organização coletiva institucional ou com pretensão institucional):

A fantasia envia a fantasia como uma moeda de troca, moeda sem padrão ou corporeidade, sem um ponto de consistência que lhe permita ser enviada nem que seja de maneira parcial a outra coisa que não seja uma topologia decalcada exclusivamente da ordem geral. (GUATTARI, 1974, p. 245).

 

O grupo fantasia o acontecimento, através de um vai e vem ininterrupto entre o particular e o geral, o indivíduo e o Estado. Todo o problema se constitui justamente na incapacidade de estabelecer distinções entre produções distintas, espaços distintos da vida social. O menor é enviado ao Estado e à ordem, sem que as condições concretas e positivas de produção da sujeição sejam determinadas. Não por outra razão, os equivalentes da subjetividade de grupo, suas fantasias, giram em torno de tal líder, daquele bode expiatório, daquela cisão ou ruptura, ou da ameaça imaginária vinda do outro grupo.

A identificação do igual e do diferente, no interior dos grupos, se opera segundo uma lógica imaginária de segundo grau. É a representação imaginária do outro grupo que funciona e determina a posição do primeiro.

A fantasia que aprisiona a imaginação institucional e as formas de organização entre o particular e o universal tem suas razões históricas e sociais, entre as quais está a integração da classe operária. Antes mesmo de maio de 68, Guattari já insistia que esse era o maior problema político da França, que o PCF inclusive não cessava de nutrir. E, nesse sentido, suas teses estão muito próximos das teses benjaminianas sobre a história, que tomam a integração da classe operária como uma das razões para o sucesso do fascismo. 

Esse processo vem ocorrendo desde o início do século XX. O movimento operário foi se integrando à ordem legal, diante de protestos cada vez mais tímidos, ao mesmo tempo em que o “[...] espírito da luta de classe se arrefecia principalmente entre os militantes comunistas no contexto ideológico da existência pacífica entre os regimes, e implicitamente, entre as classes.” (GUATTARI, 1974, p. 195) Se atentarmos para os fatos, podemos perceber, segundo o autor, que os movimentos reivindicativos permaneceram afastados de todo e qualquer movimento político que poderia colocar seriamente em questão o capitalismo.

O PCF começava a adquirir uma “cara” mais liberal, apregoando alianças, aceitando a ideia de um pluralismo partidário como sendo capaz de instaurar o socialismo. Estaríamos diante de um processo de degenerescência da vida política da classe operária e de degenerescência da vida política em geral. Quando se debate política, trata-se apenas de organizar uma pseudoparticipação, uma consulta dos usuários, para levá-los a se interessar a respeito de questões sobre seu nível de vida, questões que tocam a normalização de processos econômicos, ajustes no plano regional e nacional, investimentos e fluxo de mão de obra, de consumo etc., tudo manipulado por lobistas e tecnocratas (GUATTARI, 1974). A burguesia favorece essa despolitização, já que os centros de decisão econômica não são localizáveis nos quadros nacionais existentes e se deslocaram para outras entidades imperialistas e oligopolistas, as quais nem sequer coincidem com os grandes mercados, como a comunidade econômica europeia.

A luta operária tende a se neutralizar, no interior dessas novas organizações. Quando se fala em governo de esquerda, ninguém hesitaria em convocar o PCF, afinal, seus membros são mais eficazes que a polícia, para conter todo e qualquer movimento de massa. Nesse quadro, o PCF parece absolutamente incapaz de combater os mitos da sociedade de consumo, e todos aqueles que, como Guattari, fizeram a travessia, a passagem do PCF para os pequenos grupos, grupelhos, são perfeitamente conscientes de que ao menos uma lição pode ser tirada dessa situação: “[...] nenhum lugar de militância escapa de uma carência teórica e prática totais, caraterizada pelo fato de que a problemática que os agita está vencida há pelo menos quarenta anos!” (Guattari, 1974, p.197.)

A realidade da classe operária, da juventude, dos estudantes é permanentemente definida pela produção, pelas mercadorias, pelos resultados, índices e diplomas. Seu único recurso são essas associações esclerosadas que pretendem representá-los, mas que na verdade, os substituem. Assim, tudo se conserva e se mantém graças à inércia desses objetos institucionais vazios de toda e qualquer substância, pura repetição de uma rotina burocrática e de uma rede de palavras vazias (GUATTARI, 1974).

O aparelho patronal, os sindicatos, o aparelho de Estado e suas instituições são instrumentos de alienação da classe operária, ao mesmo tempo em que não poderiam ser abolidos em um passe de mágica. Eles são parte integrante da antiprodução. Toda tentativa para escapar dessa rede institucional só funciona como argumento para fortalecê-la: “vejam, nada é possível fora da Igreja, por pior que seja...” Organizações socialdemocratas são vividas como um mal necessário, por isso, é preciso ter em mente que, conforme Guattari (1974, p. 199), “[...] a transformação dos grupelhos de esquerda depende do desdobramento de referências conceituais novas, da produção de novas formas de organização”, porque o que está disponível no mercado do atual marxismo-leninismo não seria capaz de nos dar nem sequer uma ideia.

A questão é saber de que maneira destruir esses “[...] miasmas participativos que intoxicam a vida operária”, impedir que ela se limite ao trade unionismo, isto é, impedir o primado da demanda sobre o desejo (GUATTARI, 1974, p. 200). O que gostaria de salientar aqui é justamente esse aspecto da análise de Guattari, a maneira como ele associa sindicalismo e demanda neurótica, socialdemocracia e um desejo que nem sequer pode se tornar visível, audível ou presente, pois é mascarado, refreado, anulado pelos cálculos, negociações, reformismos e representações. Por conseguinte, a questão da análise institucional consiste nessa afirmação segundo a qual a política começa com uma ruptura, uma ruptura em relação a essa demanda que não passa de expressão da alienação, desejo de reconhecimento do oprimido diante de seu próprio opressor. “O conceito de política não é o prolongamento simples da demanda.” (GUATTARI, 1974, p. 203). A questão política não passa, para Guattari, por definir a natureza da resistência individual, subjetiva contra o poder que nos oprime, todavia, por criar espaço no interior da vida social para a emergência de um desejo, novo. Trata-se de pensar e criar as condições para que uma nova forma de organizar a vida social se torne o objeto de desejo e objetivo da luta política, a fim de que um enunciado coletivo emerja, o qual expressaria o desejo de uma outra vida, de uma outra forma de organizar a vida social.

Essa operação começa com a análise da demanda, que é como um ácido que desencapa o acontecimento para aguçar sua capacidade de ruptura, de tal maneira que ele possa abrir a subjetividade social ao desejo, ou seja, evidenciar o caráter limitado e imaginário da demanda deve servir como combustível para que um desejo possa emergir, quer dizer, não se trata de limitar a política ao realismo das possibilidades dadas de antemão, mas de criticar o caráter limitado e restrito do realismo incapaz de criar novos possíveis, de criar desejos. Assim, é apenas como ruptura que um sujeito pode emergir, é apenas como ruptura que um ato político pode ser dito como tal – ruptura que é sempre o produto de um desejo.

Conforme Guattari, só uma análise que se constitui sob o pano de fundo da práxis revolucionária poderia pretender uma verdadeira exploração do inconsciente, porque “[...] o inconsciente não é nada mais que o real por vir.” (GUATTARI, 1974, p. 204). Se Guattari dirige sua crítica à demanda política que surge no interior das sociais-democracias europeias. com a integração das organizações da classe operária no interior do sistema capitalista, ou seja, a partir do momento em que os sindicatos se oficializam e se tornam órgão principal de negociação entre representantes de funcionários e patrões, é porque esse talvez seja o momento em que as instituições, de toda a natureza se cristalizaram definitivamente no interior das democracias europeias. Estamos aqui diante de uma crítica das instituições cujo objetivo é liberar a classe trabalhadora da alienação promovida por sistemas de representação baseados em demandas limitadas. O problema da demanda é que ela não promove uma ruptura necessária para a existência mesma do político, ela mantém as instituições em vigor, ela as sustenta. Um desejo rompe com a demanda e questiona o poder, ele coloca em questão a legitimidade do poder.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se um modo de produção é produtor de relações sociais, o conceito de reprodução nos coloca diante da questão que o materialismo histórico deveria ser capaz de responder: como são criadas as condições necessárias da produção? O althusserianismo entende que um modo de produção é um processo que cria relações sociais sem sujeito; nesse sentido, as condições necessárias da produção também seriam um processo que ocorre sem precisar de um sujeito? Se a resposta for positiva, o materialismo tem de enfrentar um grande problema: como conceber que haja história, que possa existir transformação no interior da vida social? Transformação que o próprio Marx concebe como ação revolucionária, produzida por um novo sujeito, o proletariado.

Para Guattari, o formalismo althusseriano que toma o modo de produção como estrutura que determina, por sua vez, modos de relação entre sujeito e objetos e entre sujeitos faz economia da história real, contingente, concreta e material.

A grande diferença entre a noção de estrutura e a noção de máquina é que esta possui um elemento diferenciador. É porque concerne a singularidades que ela diz respeito à história. Se a estrutura como generalização que permite trocas e substituição de posições pode descrever a natureza de um modo de produção fixo, ela não é capaz de explicar a natureza das transformações históricas. Por isso, Guattari insiste que a máquina se refere a uma singularidade intercambiável e incomunicável. No entanto, por mais que a máquina seja um processo diferenciante, ainda é preciso uma ruptura para que um sujeito possa emergir. Afinal, a máquina é também uma técnica de produção, a qual, no interior do capitalismo, priva o trabalhador de um pertencimento a uma ordem, a uma classe de trabalhadores. Daí a importância do conceito de antiprodução.

Assim, o conceito de máquina visa ao mesmo tempo a compreender de que maneira um modo de produção é capaz de produzir sujeitos da história e modos de sujeição e alienação. Ele objetiva romper com o determinismo estrutural, seja lacaniano, seja althusseriano. A máquina é um processo de “focalização do desejo” que define acontecimentos históricos; ela pode ser, como vimos, tanto uma técnica de produção quanto uma descoberta, uma arma ou uma axiomática religiosa. Mas, em se tratando de máquinas, só podemos considerar as identidades e as trajetórias como relativas. O tempo maquínico não é o tempo da história-desenvolvimento, objetiva e linear: as causalidades não funcionam em um sentido único e, por essa razão, nunca podemos sustentar que tudo está decidido e determinado de antemão.

Afirmar que o inconsciente funciona através de um maquinismo significa afirmar o caráter concreto dessa produção que não pode ser compreendida a partir de essências não históricas (como a estrutura) e de análises orientadas por grandes conjuntos molares (a lei, o Estado, a cultura). A subjetividade humana já não possui um estatuto existencial excepcional. Sujeito e máquinas são indissociáveis; todo agenciamento material, todo fato social é subjetivo, mas também possui uma parcela de sujeição maquínica. O objetivo da esquizoanálise não é outro a não ser produzir conceitos capazes de nos guiar na análise dos diferentes tipos de agenciamento e de suas produções, separar a criação da repetição mortífera, o singular do mesmo, desembaraçar o fio e as ambiguidades que fazem com que o inconsciente oscile entre descargas reacionárias e potencialidades revolucionárias.

Guattari (1979, p. 216-217) se coloca a seguinte pergunta: “A esquizoanálise seria um novo culto da máquina?” A resposta seria talvez. Em todo caso, não se trata de um culto da máquina no interior do quadro posto pelas relações sociais capitalistas. Não se trata exatamente do velho sonho marxista o qual aposta que o progresso técnico que ameaça destruir a terra pode também ser a via de liberação humana. Afinal, não se trata de compreender que a história é guiada pelas máquinas produtivas e econômicas, mas de compreender que a máquina está sempre, como a história real, aberta aos traços singulares e às iniciativas criativas. Essa seria a única maneira de transformar o materialismo histórico em teoria do acontecimento e de compreender que o maquinismo inconsciente pode ser criativo.

 

Guattari: machines and political subjects

 

ABSTRACT: From a presentation of the political and social context within which Guattari's work fits in, we seek to define the French political debate of the 1960s in the field of Marxism – especially historical materialism – on the question of the subject of history. The purpose of this article is to explain the reasons that lead Guattari to break with structuralism, represented in psychoanalysis by Lacan and Marxism by Althusser. The relevance of this article lies in the presentation of the concept of machine, which is defined in opposition to the concept of structure and that, joining history and unconscious, aims to trace the emergence space of a subject of history, of a political subject.

 

KEYWORDS: Historical materialism. Structuralism. Psychoanalysis and politics. History.

 

REFERÊNCIAS

BALIBAR, E. Lire le Capital. Paris: Éditions François Maspero, 1965.

 

GUATTARI, F. Psychanalyse et transversalité. Paris: Maspero, 1974.

 

GUATTARI, F. L’inconscient machinique. Paris: Éditions Recherche, 1979.

 

SIBERTIN-BLANC, G. D’une conjoncture l’autre. Deleuze et Guattari après-coup. Actuel Marx: Deleuze et Guattari, França, n. 53, pp. 28-47, 2012.


 

O Estádio Estético, interesses e política: Um Debate entre kierkegaard e rancière

 

Lauro Ericksen[3]

 

 

RESUMO: O artigo aborda a conjunção temática entre estética e política. Discute o pensamento de dois autores da filosofia contemporânea que fazem essa conexão: Kierkegaard e Rancière. Ele debate como o critério do interesse no estádio estético kierkegaardiano pode ser comparativamente analisado, no contexto estético-político de Rancière. O texto apresenta os regimes políticos de Rancière em alusão aos estádios da vida humana em Kierkegaard, especificamente se relacionando ao estádio estético. Objetiva oferecer um estudo atualizado da multiplicidade política contemporânea, através dos diversos interesses estéticos que influenciam a formação social. O trabalho resulta em uma abordagem estético-política despida de inclinações ideológicas por si mesmas, mas que possibilita a indicação de vanguardas e retaguardas no pensamento político hodierno.

 

PALAVRAS-CHAVE: Estética. Política. Metafísica. Kierkegaard. Rancière.

 

 

Introdução

O artigo trata detidamente sobre um possível entendimento político do estádio estético kierkegaardiano. Busca-se analisar as premissas “pós-modernas” do pensador francês Jacques Rancière, que trata da estética sob o viés político. Essa análise comparativa entre Rancière e Kierkegaard é importante, para que se possa fazer uma atualização do estádio estético kierkegaardiano em contraponto com a noção política de Rancière, a qual também se fundamenta, igualmente, numa determinação estética da realidade. Conjugando as ideias desses dois pensadores, é possível ter uma noção mais contemporânea de como a estética pode ser apropriada segundo termos políticos de sua descrição.

Pode parecer um pouco desconexo, a princípio, simplesmente correlacionar Kierkgaard e Rancière, pois não há, aparentemente, algo que os ligue de modo perene ou contundente. Isso se dá, prioritariamente, porque Rancière não cita Kierkegaard diretamente em seus escritos, e os termos por ele utilizados não remetem à tradição existencialista fundada por Kierkegaard. Dessa maneira, não parece haver uma relação direta entre o pensamento desses dois autores. Todavia, ao perscrutar melhor as obras de ambos, é possível se traçar um paralelo bem interessante.

De modo deveras similar, uma primeira impressão que a seção em andamento passa é que ela apenas se configura como uma crítica ferrenha ao entendimento estético de Rancière. No entanto, a mensagem que está subscrita liminarmente é um pouco diversa. São tecidas críticas à abordagem estética de Rancière, partindo-se de uma premissa kierkegaardiana, todavia, todos os comentários feitos, em última instância, confirmam o ponto de vista de Rancière e, apesar de isso ser algo um pouco escondido nas entrelinhas, é um dos pontos fulcrais da presente análise. Ou seja, desde pronto, há de se compreender que o intuito do trabalho não é simplesmente uma abordagem “comparativa” entre os dois pensadores, mas uma aplicação do pensamento de Kierkegaard para analisar algumas ponderações de Rancière: esse é o ponto de partida fundamental da metodologia aplicada.

Didaticamente, além da presente introdução, o artigo é dividido em mais três seções. A próxima seção tem como escopo primordial apresentar uma síntese do pensamento de Rancière, em seus três regimes, fazendo na sequência um breve comparativo com o entendimento político de Kierkegaard, que pode ser extraído de seu estádio estético. A seção de continuação tem o intento de abordar como a política pode ser um campo de interesses (estético) multifacetado, o qual encontra caminhos diversos para se manifestar e formas bastante singulares de apresentação plural (algo não monolítico, do ponto de vista ideológico). A última seção assume o formato de exposição das considerações finais sobre os principais temas já debatidos no desenvolvimento do trabalho.

 

1 Estádios e Regimes: Delineando o Estético e o Político

Há similitudes estruturais entre Kierkegaard e Rancière. Por exemplo, Kierkegaard (1955, p. 30) trata de três estádios da vida humana (os estádios ético, estético e religioso); Rancière (2004, p. 20), por sua vez, aborda três regimes das artes: o regime ético, o regime poético (também grafado como regime representativo das artes) e o regime estético das artes (que, derradeiramente, pode ser compreendido como o regime político das artes). Didaticamente, faz-se necessário trazer breves conceituações sobre cada um desses regimes, para que o paralelo com os estádios kierkegaardianos pareça ser mais factível e de mais fácil compreensão, embora o aprofundamento no pensamento kierkegaardiano se dê de modo mais detido em seu estádio estético, servindo os demais apenas como pano de fundo para a mencionada correlação alusiva trinária entre o seu entendimento e o de Rancière (no qual os três regimes se direcionam para o fundamento estético da realidade).

O regime ético das artes é aquele que se estrutura de acordo com as imagens e a respectiva formação das artes a partir dela, em sua relação delineadora do ethos (RANCIÈRE, 2004, p. 21). Esse regime está identificado, prioritariamente, com a metafísica platônica, na qual o modo de ser e os elementos definidores da vida em comunidade são dados por meio de imagens arquetípicas e coletivizadas. Nesse regime, as imagens são tratadas de acordo com a verdade contida em si mesmas e de acordo com os usos e os efeitos que podem ser obtidos a partir da sua manipulação (SHAW, 2015, p. 134). Em função dessas duas características básicas atribuídas ao mencionado regime, há apenas um retorno coletivo das imagens para a comunidade (elas retornam em bloco, como se fossem uma verdade unificada, sem que a sociedade possa processá-las e decodificá-las separadamente), sem que haja uma individualização de cada aspecto imagético envolvido no processo de formação da arte na própria sociedade.

O enquadramento da repercussão das imagens no ethos é mais importante que qualquer outra derivação social individualmente possível das imagens, por isso, a colocação coletiva dos efeitos das imagens é mais importante que qualquer desvio individual de sua apropriação pelos membros da sociedade. Uma estruturação societária como a da República platônica dispensa totalmente esse aspecto individualizável das artes, uma vez que o mimetismo envolvido em sua reprodução deve ter um fim adequado à própria comunidade, e não ao indivíduo. Esse é um aspecto atribuível até mesmo às artes verdadeiras, não apenas aos simulacros desorganizadores da pólis, sendo algo prevalente em sua estruturação social segundo o regime ético das artes.

Ainda que esse regime se relacione de maneira deveras próxima com a arte, não é tido estritamente como um “regime das artes” por excelência (DAVIS, 2013, p. 25). Esse apontamento se baseia no apego de tal regime ao efeito que as imagens podem ter no ethos, ao invés de se focarem nas imagens em seus contornos artísticos propriamente ditos. Assim, a imagem da lei ou da divindade repercute de modo a ter uma tradição de usos e costumes muito mais importante, nesse regime, do que se poderia ter, caso o mero efeito de tais imagens não fosse o ponto fundamental de análise. A imagem é construída eticamente e discutida eticamente: o âmbito de sua abordagem sempre está cingido ao ético, não superando os limites de tal discussão.

Por causa da preocupação específica e centrada no efeito das imagens, no ambiente ético da comunidade, não se chega a uma politização da arte. Tampouco a arte é concebida como uma entidade discreta, apartada do próprio manejo conformativo da sociedade (CHAMBERS, 2010). As imagens possuem a tarefa de atrelar os indivíduos à comunidade segundo sistemas e preceitos éticos, sem que seja dada nenhuma outra margem de discussão, seja ela política ou não. Essa restrição na atuação do indivíduo para com a sociedade, de maneira estrita e deterministicamente relacionada, é a característica fundamental desse regime das artes, o qual descreve de forma adequada as obras platônicas.

Sinteticamente, conclui-se que, no regime ético das artes, há uma apropriação da comunidade das formas de arte, tomando as imagens como seu modo de ser coletivizado (RANCIÈRE, 2004, p. 22). Na verdade, ao se buscar apenas os efeitos garantidores da imanência imagética da arte, esse regime não confere nenhuma autonomia à arte enquanto manifestação das formas de ser individuais do homem. Seu espectro valorativo circunscreve-se apenas àquilo que a comunidade toma por artístico, em sua redoma ética.

O segundo regime das artes a ser abordado é o denominado regime poético (ou representativo) das artes. À primeira vista, com uma base etimológica de sua apresentação, já é possível identificar que esse regime se associa diretamente com as obras e o pensamento aristotélico, principalmente com A Poética. Sem embargo, diferentemente do regime ético das artes, em que a arte estava diluída no ambiente ético da comunidade, no regime representativo, há uma especificação do campo de atuação das artes, definindo-a como “belas artes”. O campo próprio designado de belas artes é regido por um princípio capaz de acondicionar a definição apartada da ética (diferenciação básica do regime anterior), dando-lhe autonomia (RANCIÈRE, 2004, p. 35). O princípio representativo das artes é a mimesis (do original grego hμίμησις). Há um caráter pragmático na conformação da mimesis como princípio representativo; ela é que possibilita a identificação e apreciação das artes, sendo capaz de julgar quais artes correspondem a quais imitações.

Simultaneamente a promover a correspondência das imitações a gêneros específicos, o regime representativo, através da mimesis, é capaz de avaliar, segundo critérios de boa ou de má qualidade, a extensão pragmática das artes. Assim, percebe-se que o regime representativo das artes dá privilégio ao conhecimento conceitual, em detrimento da pura forma da apreciação ética, do regime pretérito (WILLIS, 2010, p. 136). Nesse sentido, os correlativos da afecção social das artes são preferíveis à muda presença do fenômeno imagético sobre a comunidade. A avaliação da qualidade da imitação nesse regime respeita sempre as premissas aristotélicas das regras de produção das artes (poiesis, do original grego ποίησις) e as leis da sensibilidade humana (aisthesis, do original grego αἴσθησις).

Importante destacar que, no regime representativo das artes, de modo diverso do que ocorre no regime estético das artes, analisado a seguir ainda nesta seção, aisthesis e poiesis são atreladas uma a outra, por uma contabilidade em comum, de sorte que é dada à arte uma integridade sistemática (MALIK; PHILLIPS, 2011, p. 112). Assim como a imitação é a reprodução prática da arte, a sensibilidade humana é capaz de assimilá-la e dar o retorno ao processo produtivo (poiético). Por isso, o sistema representativo se aglutina em si mesmo, de acordo com seus próprios círculos de cultura julgadores da arte que ele mesmo produz, dando a aparência de a arte ser alta cultura. A mimesis é um critério da produção ao mesmo tempo em que também se destaca como um critério válido na percepção da própria arte veiculada e apreciada.

A relação estabelecida entre os três termos (mimesis, aisthesis e poiesis) encontra-se ancorada em uma concepção delineada da natureza humana, a qual representa o pensamento de quem deve ser representado e de qual maneira o deve ser (RANCIÈRE, 2004, p. 27). Essa maneira de arranjar os atores sociais de acordo com sua representatividade expressa os acordos artísticos de como cada um deve ser concebido, nessa estrutura interligada da poiesis com a aisthesis (TANKE, 2011, p. 80), retirando-se, portanto, a possibilidade de uma compreensão interna de cada sujeito sobre o seu papel a ser desempenhado nessa dinâmica artística, tanto no aspecto individual de sua expressão quanto, até mesmo, na expansão coletiva dessa reprodutibilidade artística.

A definição da natureza humana como atrelada a uma hierarquia social baseada nos arranjos poiéticos finda por engessar toda a estrutura e a dinâmica das possibilidades de emancipação do homem. A partilha daquilo que é sensível, comum a todos, politicamente falando, restringe-se sobremaneira, e as dinâmicas sociais ficam impregnadas com as regras da reprodutibilidade técnica e artística. O sistema mimético se interliga de sorte a garantir a preservação dessa suposta natureza humana, dando esse lugar específico à arte, em sua concepção social.

Nesse contexto, há de se explanar que a sistematicidade mimética é o aspecto normativo do regime representativo das artes. Diferentemente do regime ético, a partir do qual há uma mera projeção normativa das imagens na ética da comunidade, no regime representativo, a normatividade se estabelece de modo hierárquico, em função dos modos de produção da arte e de como cada um desses arranjos encontra uma sensibilidade pré-determinada para atuar. Logo, embora menos direta, a normatividade se encontra rigidamente delineada também nesse regime das artes.

Derradeiramente, é oportuno frisar que há outro regime das artes que se opõe aos dois regimes descritos anteriormente. Esse terceiro regime é denominado regime estético das artes e se caracteriza (e se diferencia dos demais) por dar espaço a uma politização do espectro artístico, do mesmo modo que garante uma individualização subjetiva de tal abordagem artística do homem e da sociedade. O elemento estético desse regime visa a romper com a apropriação comunitária das imagens operada no regime ético e com a lógica sistemática da representatividade mimética da poiesis e da aisthesis, tendo na identificação da arte com o singular a premissa básica para essa ruptura.

A característica primordial do regime estético das artes consiste em questionar inteiramente o sistema de normas, ao abolir a estrutura dicotômica da mimesis (repartida em poiesis e aisthesis), em nome de uma identificação contraditória entre logos e pathos (RANCIÈRE, 2004, p. 4). Essa abolição radical transforma de maneira singular as estruturas artísticas, tanto em termos de reprodutibilidade técnica quanto em termos de apreensão do sensível enquanto matéria partilhada entre os homens. Ou seja, é uma revolução na forma como a arte é estruturada, pensada e repassada na sociedade.

O regime estético das artes, portanto, não se identifica com nenhuma expressão comunitária datada imageticamente, tampouco encontra limites de sua definição em uma predefinição hierárquica de gêneros e de reprodutibilidade da arte (relacionada ao seu efeito normativo). Esse regime se desprende de todas as regras de reprodutibilidade, de gêneros, embora seja capaz de reconhecer um espaço, um locus próprio da experiência da arte (Viestenz, 2014, p. 16). Todavia, essa experiência da arte não é apenas uma abstração moderna metafísica da vida do homem (como os outros regimes aduzem); nesse sistema, a arte passa a se definir por si própria, não sendo mais belas artes e tampouco um anexo conjuntivo do ambiente ético da comunidade. Assim, a arte assume um caráter estético propriamente dito.

Nesse compasso, a autonomia da arte só é conquistada em seu viés estético (de desdobramento explicitamente político); ela não é capaz de adquirir esse status de outras formas, quer pela ética, quer por sua representatividade própria. Não há sistema metafisicamente arquitetado que seja capaz de prover a autonomia às artes. A autonomia da arte traz imbuída em si a noção de emancipação do homem (TANKE, 2011, p. 84). Conforme a arte se projeta estética e politicamente na sociedade, a mesma possibilidade de expressão autêntica é fornecida ao homem, em sua apropriação estética do mundo. A autonomia da arte enquanto singularidade de um domínio próprio da experiência humana é uma ideia muito próxima da noção de emancipação do homem, bem como sua possibilidade autêntica de ter igualdade perante os outros, e de essa igualdade ser reflexamente avaliada pelos outros acerca dele mesmo.

Impende destacar que a autonomia da arte, para Rancière, designa um “modo da experiência” que transcende a esfera da arte, ao invés de identificar uma pureza estética existente apenas em si própria (DEMOS, 2013, p. 232). Por conseguinte, esse aspecto autônomo pode até designar uma autossuficiência de uma vida coletiva que não se desprende em separadas esferas de atividade, sejam elas de ordem ética, representativa, unicamente política, ou qualquer outra. A autonomia da arte no regime estético das artes faz com que ela não seja um instituto burocratizado e encapsulado em si mesmo, como rígidos paradigmas normativos dos demais regimes previamente estudados. Nesse contexto, a arte é livre para se tornar artisticamente relevante.

A estética (pós) moderna surge no cenário delineado por Rancière como uma forma de metaestética (VÉGSŐ, 2013, p. 18). A projeção autonômica da arte para além da arte deságua em um paradoxo evidente: a autonomia da arte (a tautologia de que arte é arte) se transmuta na heterodoxia da arte (a arte é não-arte). O aspecto mais relevante desse paradoxo é que a arte não se encontra apartada da vida (em comunidade), ou da política, ou até mesmo da religião. A arte está interconectada com todos esses aspectos do homem, em sua vida cotidiana, tanto quanto a filosofia, em um aspecto mais amplo, se conecta com as demais ciências (psicologia, sociologia, antropologia, física), sem lhes impor suas condições ou premissas essenciais no mundo (pós) moderno.

Não obstante, há de se indicar que Rancière pontua que o regime estético das artes ainda não faz uma correlação absolutamente acertada sobre a estética e o político, ainda não há um plano de equivalência entre esses dois ambientes. Por causa das lacunas apresentadas nos três regimes por ele abordados, ele propõe uma nova partilha do sensível, que é o elemento central na tomada estética do mundo (RANCIÈRE, 2004, p. 30). Todavia, deve-se deixar notado que, mesmo sem se colocar claramente como um apresentador de um regime pós-estético das artes (ele não nomeia um quarto regime para nele se incluir), o pensamento de Rancière está mais próximo do continuísmo desse regime que da rejeição absoluta.

Assim, pode-se considerar que Rancière deflagra uma remodelagem no regime estético das artes, mas aceita a autonomia paradoxal nele inserida para, a partir daí, tecer sua problematização e fazer uma pormenorização dos tópicos mais relevantes. Seu equívoco é fazer o “pretensamente indispensável” entrelaçamento entre a sua ideologia de esquerda e a abordagem culturalista[4] estético-política.

Em conclusão aos regimes de arte apresentados, é de grande valia assentar que a grande contribuição de Rancière para o presente estudo é a possibilidade de uma interpretação pós-filosófica,[5] em função do regime estético das artes, a partir do qual a arte, como expressão autêntica do homem, não se restringe a um círculo cultural restrito (ético ou representativo). Esse aspecto ampliativo da arte dá margem para que se possa ter em relevo o pensamento de Kierkegaard (1955, p. 20) na atualidade, dando-lhe o mesmo status de relevância que é conferido ao entendimento de Rancière sobre esse tópico de debate.

A aproximação entre o pensamento de Kierkegaard e o de Rancière, tal como indicado, não é algo meramente arbitrário ou aleatório. O fundamento de tal “comparação”[6] reside em dois motivos. O primeiro deles diz respeito ao fato de que ambos não são “filósofos”, no sentido técnico ou estrito da palavra, porque seus escritos e pensamentos se direcionam a vários eixos diferentes, da literatura à política. Em segundo lugar, os dois pensadores deixam em aberto a possibilidade de se atrelar política e estética como um dos planos da vida prática do homem. Nesse sentido, é possível se pensar o posicionamento no espectro ideológico de Kierkegaard sob um viés diferenciado, o qual não esteja necessariamente atrelado ao pensamento da esquerda política (apesar de ele ser considerado um hegeliano de esquerda, reunido no rol dos pensadores, como, por exemplo, Marx e Nietzsche, os quais aceitam a dialética hegeliana, mas rejeitam o conteúdo do pensamento de Hegel), já que Kierkegaard, usualmente, não é tido como um pensador de “esquerda”, como Marx é enquadrado, exemplificativamente. O pensamento de Kierkegaard, por mais que possua várias nuances políticas, é muito mais aberto e pouco dogmático, característica que o faz de difícil enquadramento no espectro político costumeiro (se de esquerda ou não).

Além da simetria entre os estádios e os regimes (em Kierkegaard, há três estádios da vida humana, enquanto, em Rancière, há três regimes das artes), é de se ter em relevo que a noção de vanguarda estético-política, como colocada por Rancière, é transformada em uma retaguarda, quando se analisa o pensamento de Kierkegaard (ROBERTS, 1987, p. 12): afinal, ele é a resistência nesse processo dialético da análise estético-política por ora empreendida. Explicando-se melhor: tendo-se em vista que Kierkegaard (2010, p. 133) não almeja o desenvolvimento do sistema hegeliano, porém, um retorno às premissas essenciais do cristianismo, o seu pensamento não é um avanço (uma vanguarda), quando posto em confronto com a metafísica hegeliana. Assim, o pensamento de Kierkegaard é uma retaguarda ao sistema hegeliano e às suas derivações (estéticas, políticas e sociais, de uma maneira mais ampla possível).

Vanguarda, na dinâmica de Rancière, é uma proposição valorativa da estética presente, ou, melhor dizendo, uma renovação da proposta estético-política (SANDERS, 2009, p. 15) na forma de emancipação do homem. A emancipação é um conceito central na discussão estética e política de Rancière, a qual, na visão ora apresentada, encontra seus meios de ocorrência, através das inovações e implementações trazidas pelas vanguardas. Sem a vanguarda e a evolução do pensamento, ainda que pós-filosófico, não há emancipação possível ao homem. Emancipação é o estágio político no qual cada um é capaz de avaliar a igualdade existente entre si e ser avaliado, igualmente, pelos demais (Breaugh; LEDERHENDLER, 2013, p. 95). Embora Rancière textualmente não forneça boas explicações do que é efetivamente vanguarda, nem mesmo como se dará a emancipação do homem[7], a conexão entre os dois vocábulos é essencial para o seu pensamento.

Nessa perspectiva, o culturalismo de Rancière não se furta a dar o crédito da valoração da cultura aos artistas, tal como propõe, por exemplo, Heidegger (Malpas, 2006, p. 7). Trazendo os posicionamentos estéticos para o campo político, Rancière se desvencilha dos arcaicos posicionamentos financeiros ou economicistas da política, para dar vazão a outras formas de pensar. É justamente nessa abertura que a retaguarda kierkegaardiana encontra lugar dentro da análise feita de Rancière, no trabalho em andamento.

Rancière não rejeita a perspectiva relativista e culturalista de Kierkegaard (1955, p. 47) e, em grande monta, de Heidegger também (Vadén, 2014, p. 101); ao contrário, ele abraça essa perspectiva pós-filosófica, retirando da própria filosofia a égide julgadora sobre as demais ciências. Sem o apanágio de ser a ciência-mestra, a partir de qual todas as formas de conhecimento derivam ou, em menor grau, devem prestar obediência, o pensamento de Rancière dá lugar a vanguardas (como pode ser compreendido seu próprio pensamento, em seu viés ideológico maoísta).[8] E, de modo similar, o avanço nesse campo do pensamento dá espaço também a se pensar retaguardas, como está sendo caracterizado o pensamento de Kierkegaard. A importância de colocar o pensamento desses dois autores em relevo, portanto, não consiste apenas em uma crítica diletante a Rancière, porém, em dar o crédito devido a ele, que compreendeu em grande monta as diretrizes de Kierkegaard (1955, p. 78). Entretanto, não se pode se furtar a traçar as críticas devidas a algumas noções especificas da estética-política de Rancière, como será feito mais adiante.

Em um plano marxista de análise, sob a perspectiva de Rancière, a vanguarda está mais próxima da “ruptura”[9] da superestrutura socialmente posta, e isso, embora seja algo que ele não afirme categoricamente, está implícito em sua defesa ideologicamente referida. Todavia, é interessante observar que a proposta da retaguarda kierkegaardiana não pode ser identificada com a noção elementar de “continuidade histórica” do hegelianismo, pois ela é tida como uma oposição à metafísica hegeliana, a qual se tornou prevalente durante um tempo considerável na tradição filosófica.

Assim, a vanguarda de Rancière (2004, p. 41) e a retaguarda de Kierkegaard (1955, p. 64) assumem valorações equivalentes, no plano estético-político, a despeito de seus conteúdos serem diferentes em sua “essência” (elas são equidistantes em suas ponderações, o que é relevante para a análise em progresso). Num mundo livre onde seja possível a defesa da vanguarda de Rancière, por simetria, é necessário que a retaguarda kierkegaardiana também esteja colocada dentro do horizonte mais amplo de possibilidade. Dessa maneira, a perspectiva heideggeriana de um horizonte de possibilidades amplo e valorativo se torna eficaz e pujante, em sua argumentação antimetafísica. Se há alguma liberdade possível ao homem, na pós-filosofia e na pós-modernidade, ela certamente será subjetiva e valorativa, embora não arraigada ideologicamente a nenhum viés predeterminado. Liberdade, nesse sentido, pode estar tanto na vanguarda quanto na retaguarda, cabendo a cada um sopesar cada aspecto dessas posições estético-políticas possíveis e por elas escolher.

O vanguardismo de Rancière tem seu mérito até o ponto em que ele não desmerece a valorização estética da arte. Até esse momento, seu pensamento está posto de maneira condizente com os já mencionados predecessores dessa forma de colocar a estética e a ontologia (Kierkegaard e Heidegger). Todavia, Rancière começa a tocar fora da curva, quando fixa seu critério estético numa política unilateral vinculada ideologicamente. O descortinar da contemporaneidade (a qual Rancière se recusa a aceitar como “pós-modernidade”) não pode se afastar da multiplicidade e da variedade valorativa já designada por Kierkegaard (1955, p. 36), em seu perspectivismo ardente.[10] Assim, o criticismo da presente seção se direcionará em tal sentido, buscando corrigir as distorções ideológicas operadas por Rancière, dando uma recondução às valorações mais livres em uma visão kierkegaardiana desprendida de tal apego ideológico.

Importante destacar, nesse compasso, que o critério estético adotado por Kierkegaard (1955, p. 24), portanto, se diferencia fortemente de outros critérios estéticos adotados por alguns outros pensadores contemporâneos, a citar, como exemplo de tal vertente de pensamento, Jacques Rancière. O ponto principal na estética proposta por Rancière, além do seu flagrante espectro político de viés de esquerda, que, a princípio, não é relevante para o argumento a ser levantado, é que a estética é o compartilhamento do sensível.

De maneira um tanto quanto simples, aquilo que é compartilhado de modo sensível entre os homens serve como critério para o julgamento de que algo a ser apropriado, culturalmente, possa vir a ser esteticamente relevante ou não. Logo, há de se perceber que o critério de relevância para a tomada estética de tal estádio específico da vida humana é o interesse simples e puro, como designado por Kierkegaard (1955, p. 25), o que destoa flagrantemente de qualquer compartilhamento imediato. Assim, na visão kierkegaardiana, por mais que ele se empenhe em ter um pensamento voltado para a formação cultural e valorativa de sua própria época, mirando, até mesmo, a formação de uma cultura cristã posterior mais extensa e acolhedora, não se atém a tal compartilhamento, como se ele fosse uma pressuposição do sensível, conforme aponta Rancière. Muito pelo contrário, a posição firmada por Kierkegaard coloca na subjetividade de cada um o critério mais simples, para que um interesse qualquer seja estabelecido, determinado e, por fim, perseguido por cada homem.

Como já referido anteriormente, Rancière sempre conjuga dois temas básicos em seus escritos: política e estética. Com a obra A Partilha do Sensível não é diferente. Rancière tenta aprofundar o argumento de como é possível traçar a identificação das artes através de sua classificação como modos de fazer, ou seja, como colocá-la como uma forma de apresentação daquilo que é comum. Apresenta-se, por conseguinte, o conceito de “partilha do sensível” (Rancière, 2004, p. 31), a base em comum tanto para os elementos estéticos quanto para a política. Ele vai além nesse conceito e pontua que este é algo que representa aquilo que é comum intersubjetivamente, ou seja, é um modo de compartilhamento encontrado na política e na estética.

Todavia, diferentemente de Walter Benjamin, que promove uma estetização da política (BLOCH, 1977, p. 66), Rancière vê a questão política e a questão estética de uma maneira diferenciada, não dando uma consequência à reprodutibilidade técnica como o meio de expressão do ser humano em uma acessibilidade universalizada, tal como concebia o referido pensador. Ele vai pensar mais propriamente a efetividade desses paradigmas estéticos e suas repercussões políticas, ou seja, pensa de forma ainda mais desprendida essa comunhão estético-política.

Retomando a questão da contextualização da obra em comento em referência com as demais produções acadêmicas de Rancière (1995, p. 7), é importante pontuar que o conceito acima descrito não foi pioneiramente utilizado na obra por ora comentada. Na verdade, o referido conceito já havia sido usado na obra Políticas da Escrita, mais especificamente em seu prefácio. No entanto, é de grande valia ressaltar que, na obra A Partilha do Sensível, o conceito homônimo ao título é colocado de uma forma diferente daquela empregada de forma inaugural. Na verdade, na obra em relevo, o conceito de partilha do sensível é semelhante ao adotado por Rancière (1996, p. 17) e traduzido por “divisão do sensível”, conceito o qual aparece na obra O Desentendimento: Política e Filosofia. De sorte a se ter em mente que a partilha do sensível, na sua obra mais recente, está atrelada ao debate ocorrido em torno da “crise da arte” e como se é possível que a estética, em comunhão com a política, possa se espraiar nos domínios em que se desenrolam as mais pujantes promessas e emancipações da humanidade.

Retomando os argumentos de Kierkegaard (2011, p. 47), é importante denotar que o viés do subjetivista pensamento kierkegaardiano não trata de nenhuma espécie de isolacionismo ou de algum elitismo deliberado (como alguns acusam Platão, quando eles estudam ou interpretam A República, por exemplo). Apenas o elemento da subjetividade sendo a verdade se distancia de modo firme de uma posição de compartilhamento de elementos sensíveis, como propõe Rancière. Certamente, há de se rememorar, como já indicado, que o mencionado pensador possui projeções políticas as quais escapam à mera conceituação que ele dá de “compartilhamento do sensível”, pois a estética para ele se transmuta facilmente em política e, em certo sentido, em proselitismo ideológico marxista, algo que não se verifica em Kierkegaard, pois não há nenhum espectro ideológico, nem de esquerda nem de direita, flagrantemente identificável em suas obras, embora alguns comentaristas se arrisquem a dizer que ele era de direita (FEUER, 2010, p. 53).[11] O seu comprometimento mais amplo e mais solidificado é identificado com o cristianismo, de uma maneira mais simples e acessível possível (KIERKEGAARD, 2010, p. 88), sem misturá-lo (indevidamente, saliente-se) com nenhuma perspectiva política propriamente dita. Pode-se dizer que a sua defesa clara e explícita do cristianismo o blinda da tentação do proselitismo ideológico, que é o mote de alguns pensadores, como é o caso do já mencionado Rancière.

Alguns autores argumentam que a perspectiva estética colocada por Rancière é inovadora, porque ela vai além dos limites do que é comumente definido como artístico (MAY, 2010, p. 108), ou seja, usualmente, seria possível asseverar que o mencionado autor indica um parâmetro estético que perpassa os limites da arte ou da discussão artística, por assim dizer. Assim, a estética para ele, seria a “configuração do mundo comum” (ROSS, 2012, p. 91), algo que desenvolveria de um modo muito mais avançado, para além dos sistemas hegelianos de definição filosófica, o que seria a estética e os seus conteúdos mais pormenorizados da realidade.

Essa forma de argumentação em prol de uma defesa inovadora da perspectiva estético-política de Rancière é falha em si mesma, por dois motivos. O primeiro motivo consiste em afirmar que a noção estética de Rancière é inovadora, por ter uma noção primariamente não-artística (ou além da esfera artística). Essa afirmação é notoriamente inválida, não só por autores existencialistas, como Kierkgaard, identificarem o estádio estético como não sendo essencialmente artístico[12], bem como pela noção elementar de Friedrich von Schiller (1995, p. 44). Segundo Schiller, a noção estética combina uma noção temporal presencial e de liberdade do homem. Dessa maneira, sua educação estética (a qual não depende, necessariamente, do elemento artístico)[13], propõe uma abertura para se pensar a estética para além dos limites do que é comumente definido como arte ou atrelado a uma apreciação artística da natureza. Por isso, verifica-se que a separação entre estética e arte se dá em um momento bem anterior à noção estético-política de Rancière.

Em momento posterior, observa-se que o segundo motivo pela incoerência do argumento apresentado por Ross é que, apesar de a noção estética de Rancière não se ater, unicamente, ao aspecto artístico (tentar de certas formas se libertar de tal pecha), ela recai, de modo infame, no aprisionamento político de tal análise. Ou seja, ainda que a perspectiva enunciada por Rancière não possa ser enquadrada apenas no espectro artístico de análise da estética, ela acaba sendo refém dos enunciados políticos do mencionado pensador. Logo, pode-se perguntar: do que adianta se libertar das amarras da estética hegeliana[14], mas recaindo em uma análise política da realidade atrelada necessariamente a um espectro político notadamente identificado (e defendido pelo próprio autor) como de esquerda, em sua totalidade filosófica? Em síntese, indaga-se se Rancière não troca somente uma vinculação estético-filosófica (de raiz hegeliana) por uma “amarra estético-política baseada em propostas marxistas” (ou marxianas, por assim dizer).

Essa é uma pergunta que a maioria dos intérpretes de Rancière se furtam a responder, justamente por já estarem alinhados ideologicamente com a própria estética do mencionado autor. No entanto, com a proposta de análise estética desse estádio da vida humana, sob a batuta existencial de Kierkegaard, é possível se abstrair de tal perspectiva totalizante (sob o enunciado político), a fim de se obter um resultado muito mais relevante e interessante, sob a sua perspectiva culturalista. Não há um culturalismo múltiplo e diversificado em Rancière, apenas um monólito estético-político (LUXON, 2013, p. 284), o qual, na sua ânsia de superar a estética do artístico (ao menos numa primeira abordagem, embora meramente aparente), restringe-se somente a direcionar os desígnios da sociedade ao espectro ideológico da esquerda política. Assim, as premissas estéticas de Rancière acabam por aprisionar seu pensamento a um dogmatismo político e ideológico que veda a si mesmo superar as amarras que o esteticismo artístico de outras épocas filosóficas nem sequer impunha aos pensadores. Ao invés de parecer libertador, em seu viés político, o pensamento estético de Rancière é aprisionador, em seu próprio sentido ontológico.

 

2 Interesses e Política: Da Estética e seu Pluralismo

O pensamento culturalista de Kierkegaard pode ser compreendido pela conjunção de interesses em comum, que define, em um primeiro plano, a perseguição dos interesses próprios de cada homem.[15] Em segundo plano, quando há a coincidência de interesses, ocorre a formação de círculos de culturas específicos que vão se amontoando gradativamente até que se forme todo o espectro cultural que se distende da forma mais variável e diversa possível. Nesse sentido, a multiplicidade dos elementos culturais, formados esteticamente, não se dá no interesse em si mesmo, como se a gênese do interesse antecedesse, por si mesma, a própria cultura na qual o interesse se insere.

Todavia, há de se fazer um breve adendo, para que a compreensão do estádio estético em Kierkegaard seja mais efetiva, tanto por si quanto ela servir de espeque para a análise das ponderações de Rancière. O estádio estético, para Kierkegaard, caso seja tomado unicamente por si mesmo, apartado de qualquer outra reverberação dos demais estádios (ético e religioso), deve ser tido como uma apresentação do homem “essencialmente” negativa. Tal apresentação de um sentido negativo é compreendida a partir da geração tediosa e de fastio para com a existência, causada pelo encapsulamento nesse estádio. Ou seja, a perseguição de modelos e de perspectivas unicamente estéticas faz com que tal estádio fomente a incompletude da vida do homem e seu aprisionamento numa sensibilidade inerte e vazia. O estádio estético se mostra carente e dotado de uma irresponsabilidade patente para com a assunção da projeção existencial do homem, quando tomado isoladamente.[16]

Sem que haja a integração do estádio estético com o religioso (já que, com o estádio ético, ela será eventual e não necessária apenas suficiente de um ponto de vista “lógico”), não se pode falar em uma existência realmente “valorosa” nos padrões kierkegaardianos, de maneira que os demais interesses que são buscados (ou até mesmo podem vir a ser buscados), sob a perspectiva política, inclusive, perdem totalmente seu sentido e a sua noção de prestígio, diante da vida do homem. De modo inicial e perfunctório, o estádio estético é o primeiro passo que vem a dar forma à existência humana, todavia, tomado por ele mesmo, é apenas vazio e incipiente –, se o estádio estético for prevalente e dominante em sua acepção “solipsista”, focada unicamente nesse estádio e sem qualquer conexão com a reflexividade mais profunda e relevante ofertada pelo estádio religioso.

Após essa breve explanação sobre o caráter negativo do estádio estético, para Kierkegaard, caso ele seja tomado com exclusividade e sem nenhuma ponderação mais adequada, há de se dizer que o pensamento de Rancière indica que o elemento estético parte de uma necessidade indispensável do compartilhamento daquilo que é comum a todos, pois todos são capazes (em seu aparato perceptivo) de sentir. Para ele, portanto, o mero sentir humano já se transforma diretamente em um envolvimento político, obrigatoriamente de esquerda, ressalte-se.

Toda injustiça contida no mundo (“pós-moderno”)[17], segundo Rancière, deriva da incorreta partilha do sensível. Ele não explica claramente o que é o sensível[18] a ser partilhado, haja vista que esse termo parece ser bem diverso da noção kantiana de sensibilidade (espaço e tempo) compartilhável entre os homens. Todavia, parece que sensível, na linguagem de Rancière, está próximo do substrato material disponível aos seres humanos a ser trabalhado tecnicamente por eles, em prol de seu desenvolvimento. A incorreta partilha dos recursos que formam o sensível seria a fonte da miséria humana (desigualdade material, num sentido aristotélico)[19] e de todas as desgraças políticas da humanidade. Enquanto houver os que têm parte do sensível, e aqueles que não possuem uma parte dele, sempre haverá desigualdade entre eles, um modo de dominação patente estabelecida de forma relacional (McNay, 2014, p. 160). Uma partilha que se adequasse, tanto estética quanto politicamente, aos anseios de todos, igualmente, seria o objetivo primordial das ponderações de Rancière acerca desse tema.

Diferentemente, em Kierkegaard (2010, p. 90), o interesse possui sua gestação no âmago da subjetividade de cada um, tendo o seu leque de possibilidades mais amplo quanto possível, de sorte que o resultado de tal premissa é que o que deriva de cada interesse individual, quando arregimentado no seio da sociedade, é a múltipla pluralidade de interesses culturalmente expressos, não sendo algo unicamente que reflita aquilo que é compartilhado sensivelmente, como diria Rancière. O interesse primário de Rancière é o consenso, o qual mantém afastada a possibilidade de a sociedade se dissolver coletivamente, em diferentes direções e interesses (Brockman, 2013, p.150). Por causa dessa busca pelo consenso, o pensamento de Rancière não consegue dar conta da multiplicidade estética fornecida por Kierkegaard (1955, p. 69), entretanto, necessita sempre negar esse leque amplo de possibilidades existenciais, para que seus objetivos políticos sejam efetivamente conquistados, algo impossível sem a sua noção de consenso (estético e político).

A consecução de certos interesses pode até mesmo dar azo à formação estética de elementos políticos, seguindo o viés kierkegaardiano de uma interpretação estética da realidade sensível, no entanto, não se pode afirmar, categoricamente, que a simples existência de interesses que venham a ser compartilhados dá azo a tal formação ideológica ou política (HANNAY, 1999, p. 268). Aliás, não há nenhuma necessidade em se compartilhar aquilo que se sente, tampouco se pode desdobrar o entendimento de que o simples compartilhamento já gerará implicações políticas. O mero sentimento não possui um modo de compartilhamento só por ser um sentimento, bem como tudo que é partilhado não é político por estar sendo repartido entre os membros de uma determinada sociedade. Nem tudo que é posto para as demais pessoas, obrigatoriamente, assume um viés político; a própria arte, abstratamente e subjetivamente concebida, pode ser exposta publicamente como uma simples expressão artística subjetiva, sem nenhuma intenção além do seu mero mostrar, um mostrar sem dizer nada além.

Tratar a questão estética sob tal fundamento é reduzir de modo abrupto todas as possibilidades existenciais que cada ser humano possa ter por um interesse diverso, aliás, por interesses que sejam sensíveis, mas que não possuam um cunho político evidente ou flagrante. Não se depreende, portanto, da mera confirmação de um interesse que venha ou, ao menos, que possa vir a ser compartilhado, que haja um elemento político dominante ou que haja qualquer sorte de direcionamento político em tal premissa estética kierkegaardiana.[20]

As possibilidades existenciais conferidas ao estádio estético pela interpretação por último ofertada são bem mais amplas que a explicação fornecida por Rancière. A interpretação estética kierkegaardiana inclui enquadramentos políticos, científicos, filosóficos, esportivos, cômicos, trágicos, dentre uma infinidade de outros vieses possíveis, desde que denotem algum interesse, quer relevantes, quer irrelevantes, em termos políticos. Ela não se limita apenas a uma análise política dos interesses humanos.

Em conclusão, pode-se asseverar que a grande variedade de interesses do estádio estético depreende que nem todos os interesses humanos possuem, necessariamente, um espelho político daquilo que é sensível na vida do homem e que não há tal correspondência, de forma irrefreável, como aponta Rancière. Compreender o estádio estético sob a lente de Rancière equivaleria a dar uma essência (pré) política[21] ao homem, antes mesmo de sua existência, e antes mesmo de seu aprofundamento subjetivo em si mesmo, como propõe Kierkegaard.

O estádio estético para Kierkegaard, tal como já mencionado, forma a maioria das ocupações humanas possíveis, porque o interesse é o fator determinante mais elementar que pode ser encontrado na conduta e nas ações humanas e que ajuda a delinear toda a expressão de tal estádio. Dessa maneira, não há como se buscar a redução desse estádio da vida humana, tão rico por si mesmo, apenas a contornos políticos e ideológicos, para que se possa encontrar uma estética do compartilhamento. Há de se ter em conta que, na interpretação proposta por Kierkegaard (1955, p. 70), o sensível é parte do estádio estético, aliás, pode-se sustentar que é grande parte desse estádio, mas nem por isso tudo que está nele contido é compartilhado de sorte a se estender para os campos da política ou da luta política, por assim dizer, de um modo mais adequado à inclinação e defesa do proselitismo ideológico de Rancière. O problema de Rancière não consiste, principalmente, em identificar os elementos da sensibilidade humana como algo atrelado à estética do homem; o grande problema em sua argumentação estético-política é identificar unicamente esses elementos com a estética, inexorável e irremediavelmente, para posteriormente encapsulá-los em seu discurso ideologicamente comprometido com certo fim específico.

Diante da análise comparativa feita entre a proposta estética de Kierkegaard com a proposta estético-política de Rancière, pode-se extrair o entendimento, mais importante até mesmo que a própria comparação em si mesma, por assim dizer, de que Kierkegaard, por meio dessa abordagem, busca reafirmar, sequencialmente, o adágio de que a subjetividade é a verdade, sem, no entanto, precisar rememorar essa marcação de modo expresso. A assunção de verdade na subjetividade não significa, como destacado de maneira sutil, anteriormente, que ele negue a possibilidade de uma cultura ou de um espaço coletivo de abordagens e de discussão acerca dos interesses e das construções sociais esteticamente dispostas, aliás, pelo contrário.

Kierkegaard (1955, p. 79) não rejeita ou renega o elemento cultural na disposição estética de forma alguma: as conclusões que podem ser desdobradas da comparação por ora estabelecidas se inclinam nessa perspectiva, haja vista que todo o elemento cultural está desenvolvido, de modo basilar, na conjunção dos interesses dos homens. Os indivíduos são capazes de expressar os seus interesses culturais livremente, como um produto de sua subjetividade, e, em última instância, eles também são um produto de todas as vivências existencialmente relevantes de suas vidas.

 

Considerações Finais

Derradeiramente, há de se explicar o motivo pelo qual a “comparação” entre Kierkegaard e Rancière foi feita, neste breve artigo. O intuito de tal análise comparativa consiste em afastar uma possível interpretação da estética kierkegaardiana que venha a limitá-la a um único viés político. Em última análise, Rancière até aceita a noção de interesse kierkegaardiano, como elemento que reparte o sensível; ele apenas rejeita que haja outras derivações do interesse, além de seu aspecto político. Por causa dessa rejeição, a presente seção tratou de apontar os deslizes de Rancière em sua abordagem estético-política, a fim de demonstrar que um retorno ao texto kierkegaardiano já fornece uma interpretação satisfatória do estádio estético.

Assim, esse estádio deve ser compreendido em toda a sua multifacetada existência, a qual possibilita ao homem várias escolhas e muitas oportunidades de vivenciá-las, sem se preocupar, obrigatoriamente, com suas implicações políticas. O esteta, no sentido proposto por Kierkegaard, importa-se mais com seus próprios interesses que com as consequências desses interesses, coletiva ou individualmente falando.

De modo conclusivo, há de se indicar que o principal elemento que motiva a análise do pensamento de Rancière, através de uma retrospectiva kierkegaardiana, é que sob essa égide metodológica se afigura possível purgar grande parte da inclinação ideológica do pensador francês, mantendo-se, de toda forma, o seu cerne interpretativo. Logo, é possível depreender, através das mais variadas formas de apresentação política do interesse, que o elemento estético é sempre prevalente na atualidade política, de maneira que existem vanguardas e retaguardas envolvidas nesse plano e que se conjugam, justamente, por meio dos elementos estéticos dispostos na análise operada. Conclui-se, portanto, que o trabalho apresentado indica uma interpretação estético-política da realidade que não rejeita, de plano, nem retaguardas tampouco vanguardas, desde que se possa ponderar adequadamente acerca dos interesses envolvidos em tais querelas.

 

 

AESTHETIC STAGE, Interests and Politics: Discussing Kierkegaard and Rancière

 

ABSTRACT: The paper concerns the relationship between politics and aesthetics In the philosophies of Kierkegaard and Rancière. The paper debates how the interests are the key element in Kierkegaard’s aesthetic stage in “comparison” to aesthetical-political context for Rancière. The paper presents the political regimes of Rancière in allusive recollection of human life stages as showed by Kierkegaard. The paper offers a study focused on the multiplicity of politics based on a vast of aesthetical interests and possibilities. The paper results in an aesthetical-political perception free from ideological aspiration, which is able to states avant-gardes and rearguards about nowadays political thinking.

 

KEY-WORDS: Aesthetics. Politics. Metaphysics. Rancière. Kierkegaard.

 

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[1] Pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP – Brasil (com estágio na Universidade de Paris I). https://orcid.org/0000-0003-3409-487X E-mail: larissa_drigo@yahoo.com.br. Esta pesquisa é financiada pela FAPESP.

[2] Essa análise está longe de ser datada e irrelevante, para os dias atuais. Em Revolução Molecular, livro que analisa o advento do neoliberalismo europeu, Guattari vai utilizar o modelo de gestão policial soviético como base para a construção de democracias totalitárias na Europa.

[3] Doutor, mestre e bacharel em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Especialista em Direito e Processo do Trabalho (Universidade Cândido Mendes – UCAM/RJ). Bacharel em Direito (UFRN). Oficial de Justiça Avaliador Federal no Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Norte – 21ª Região, Macau, RN (TRT-21). Professor de Ética na Pós-Graduação do Centro Universitário Facex (UniFacex), Natal, RN – Brasil. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-4195-1799 E-mail: lauroericksen@yahoo.com.br.

[4] Por “visão culturalista” ou “culturalismo”, desde os argumentos de Kierkegaard (2010, p. 55) postos em oposição à filosofia hegeliana, deve-se entender a posição superior da cultura (aquilo que é criado pelo homem) em detrimento daquilo que lhe é dado como natural. Dessa maneira, o culturalismo, utilizado na extensão do texto em desenvolvimento como equivalente do “subjetivismo cultural”, encontra-se em franca oposição ao naturalismo (por vezes, denominado também como biologismo), ou seja, o elemento de base biológica que forma o homem e o circunda.

[5] Por pós-filosofia deve ser entendido todo o tipo de pensamento que não se conforme à centralização da filosofia como marco central do pensamento humano, de sorte que aglutine, em seu conteúdo, elementos de outras ciências humanas e, tampouco, se conforme a buscar sistemas, conceitos, essências e totalidades para a natureza humana. A antimetafísica ou a antifilosofia ainda buscam em última instância sistemas, conceitos, totalidades e essências, todavia, de uma maneira totalmente diversa, sem se prender de forma definitiva a esses elementos (Caputo, 1982, p. 113). Logo, ainda que se trabalhe com conceitos definidos pelos próprios autores, em conjunções sistemáticas, as quais encontram algum vislumbre de totalidade, a essência dessas considerações não se torna absoluta por uma definição dada sobre si-mesma.

[6] Deve-se ponderar que não é uma simples comparação despida de nenhum pressuposto interpretativo; pelo contrário, metodologicamente, a proposição do trabalho consiste em analisar o pensamento político e estético de Rancière sob a ótica perspectivista de Kierkegaard.

[7] Rancière (2004, p. 45) salienta que a emancipação do homem passa pela sua politização e por uma melhor partilha do sensível, mais adequada e equilibrada. No entanto, suas proposições são deveras vagas e pouco elucidativas, de sorte que tais palavras se perdem em uma conceituação abstrata pouco prática, na realidade.

[8] A visão de Rancière era declaradamente maoísta, em seu início, principalmente após o seu rompimento com Althusser (que era seu tutor intelectual e stanilista), e ainda não há relatos até o presente momento de que ele tenha reformado tal posicionamento ideológico, apesar das atrocidades cometidas por esse regime político. Seu entendimento maoísta se punha em oposição ao stalinismo dominante na academia francesa e diz respeito à sua noção universalista de que a revolução (e a compreensão da realidade) é não elitista, de modo que todos, principalmente os estudantes, são partes indispensáveis no seu desenvolvimento “cultural” e político. O uso do maoísmo como um elemento caracterizador de seu pensamento serve didaticamente para conformá-lo como sendo uma vanguarda, em oposição dialética ao pensamento cristão de Kierkegaard, definido, precipuamente, como uma retaguarda nessa empreitada conceitual.

[9] O plano filosófico marxista põe em relevo períodos de continuidade e de ruptura, de sorte que a história transcorre segundo esses dois momentos dialeticamente opostos.

[10] Por perspectivismo ardente se compreende o entendimento de que não há posicionamentos que sejam filosoficamente absolutos, em termos metafísicos, de acordo com sistemas e conceitos pré-definidos. O termo possui uma correlação próxima do étimo “relativismo ardente”, o qual foi evitado, sob pena de soar pejorativo ou muito disperso, em sua conceituação.

[11] Lewis Feuer (2010, p. 54) aponta Kierkegaard como um direitista, pelo fato de ele nunca ter sido um ativista em seus ideais políticos e pelo fato de o próprio Kierkegaard não identificar os elementos políticos com a verdade eterna, sendo esse, portanto, um tópico sempre marginal ou secundário em seus escritos e na interpretação que podem ser deles extraídos. Mais do que um direitista (termo que usualmente assume uma conotação econômica), Kierkegaard é colocado por Feuer como sendo um “conservador”, no sentido em que os usos e costumes de sua comunidade cultural não devem ser revolucionados por um líder ou por quem assuma essa posição de dirigente político. A conservação de certos valores, para Kierkegaard, é adequada e é algo digno de incentivo: esse é o seu viés conservador, politicamente falando. Essa indicação de Feuer é bastante interessante, não apenas porque há um predomínio da esquerda política, quando se fala em dialética, bem como também porque Kierkegaard, como um “cristão conservador”, faz valer seu existencialismo em contraposição aos militantes ateus, como Sartre, por exemplo, de uma forma bem mais assertiva e bem posicionada no espectro político.

[12] Isso não significa afirmar que Kierkegaard (1943, p. 91), eventualmente, faça associações e correspondências entre a pecha artística ínsita e a representação estética da expressividade humana, como ele o faz, ao descrever Don Giovanni de Mozart, quando ele coloca a música como elemento sedutor da formação desse ícone do estádio estético na ópera do mencionado compositor. No entanto, em uma perspectiva mais ampla esposada na obra Estética y Ética, o estádio estético pode até corresponder ao artístico, mas sem que essa vinculação seja necessária ou peremptória, apenas possível (e desejável, no caso específico do sedutor – Don Juan, e, quiçá do próprio Kierkegaard, na sua obra mais reflexiva O Diário de um Sedutor, ou até mesmo em suas obras mais “literárias”, como Temor e Tremor).

[13] A perspectiva de Schiller, por ora apresentada, foi pensada em um momento histórico e cultural bem anterior ao de Rancière, pretérito, e bastante, até mesmo ao momento em que Kierkegaard escreve sobre o tema em relevo. Assim, o que é apresentado por Rancière como sendo inovador não é nada mais do que uma breve reciclagem dos argumentos de Schiller, postos em uma linguagem (filosófica) pós-moderna.

[14] O maior intento de Rancière, ao tentar prover um pensamento estético-político que não fosse sistemático e que, mesmo assim, pudesse dar uma resposta ideologicamente aceitável à esquerda pós-moderna. Ele tentava um contraponto com a política da esquerda posterior aos movimentos de 1968, a qual ainda sustentava um viés stalinista, em seu discurso ideológico.

[15] Ainda que o interesse seja próprio de cada um, a figura cultura inserida nessa perspectiva perdura por um tempo significativo, pois se repete em cada ação culturalmente alicerçada (Mooney, 2012, p. 68). Assim, seus escritos (principalmente os pseudonômicos) adquirem uma “presença cultural” de longa persistência no imaginário comum, retratando figuras que se adequam facilmente ao cotidiano dos seus leitores.

[16] Assim sendo, por mais que o artigo tenha como enfoque primordial o estudo do estádio estético, em toda a sua extensão ele deve ser compreendido como o estádio estético já coligado ou fundido com outros elementos de uma expressão existencial mais completa do homem (por meio de sua conexão com o estádio religioso ou ético, no que for cabível). Sem que se recaia na preconcepção crítica que o artigo se foca em um elemento negativista do pensamento kierkegaardiano e o utiliza sem as devidas atualizações ou considerações conceituais que sejam capazes de fornecer um entendimento mais substancial de questões tão fundamentais e relevantes para tal estudo.

[17] Rancière não se vale do termo “pós-moderno” ou “vanguarda”, para definir seu pensamento. Contudo, esses termos indicam efetivamente aquilo que ele tenta descrever e, por causa disso, são utilizados adequadamente no trabalho em desenvolvimento.

[18] Ainda que o próprio Rancière não explique claramente ao que o termo “partilha do sensível” se refere, pode-se fazer uma leitura “marxiana”, na qual o termo equivale à “divisão social do trabalho” (HIRVONEN, 2014, p. 161). Ele diz respeito à distribuição de competência e de ordenações políticas e sociais, às formas e lugares de participação política e econômica, à inclusão e à exclusão dos indivíduos, em síntese, ao mostrar e ao esconder das formas e dos corpos sociais e políticos na sociedade como um todo.

[19] É importante destacar o sentido aristotélico que Rancière dá aos seus escritos políticos, pois ele é um grande crítico do platonismo, aceitando a conjuntura aristotélica para descrever a realidade política conjuntural.

[20] Há quem aponte, no entanto, que negar um caráter natural e essencial à política é negar à política qualquer poder de emancipação (Copjec et al.; 2011, p. 94). Ou seja, dar qualquer contorno apolítico ou pré-político ao entendimento do homem sobre si mesmo é condicioná-lo às situações opressivas que pretensamente estão sendo reproduzidas culturalmente, segundo o pensamento de Rancière e de alguns dos seus seguidores (conforme citado).

[21] Por pré-política se indica um sentido de ser do homem comparável ao status pré-ontológico de compreensão do homem sobre si mesmo (HEIDEGGER, 2008, p. 50), sob um viés heideggeriano. Todavia, essa interpretação é muito além das possibilidades do homem, pois suplanta a própria possibilidade pré-ontológica de compreensão de mundo, um mundo culturalmente aberto, e não identificado com pressuposições objetivistas. Esse, aliás, é o entendimento tanto de Heidegger quanto de Kierkegaard a respeito desse tema.