Compreensões de reConstrução: sobre a noção de CrítiCa reConstrutiva em habermas e Celikates

Luiz Repa[1]

resumo: O artigo pretende desenvolver a categoria de reconstrução, em dois momentos distintos da obra de Habermas: primeiro, em Conhecimento e interesse, e, depois, em Teoria da ação comunicativa. Para isso, recorre-se à tipologia das compreensões de reconstrução proposta por Robin Celikates. Pretende-se mostrar que a essa tipologia faltam elementos importantes que permitem primeiramente identificar pontos comuns entres aqueles projetos reconstrutivos, e, depois, sustentar que a segunda compreensão de reconstrução não implica, como quer Celikates, uma separação entre teoria e crítica. palavras-ChaveReconstrução. Teoria Crítica. Teoria social. Psicanálise. Patologia.

Nesses últimos dez anos, foi possível constatar, na produção intelectual vinculada à Teoria Crítica, uma tendência de unificar as diversas vertentes a partir da noção de reconstrução. A respeito disso, Olivier Voirol (2012, p. 95, 98) fala de uma “virada reconstrutiva” iniciada por Jürgen Habermas e de um “paradigma da reconstrução”, na teoria crítica contemporânea. Por sua vez, Piet Strydom (2011, p. 135) considera que o conceito de reconstrução “[...] se tornou central para a autocompreensão metodológica da Teoria Crítica.”

Essa tendência é reforçada por Axel Honneth (2007), na medida em que ele generaliza a noção de crítica reconstrutiva como base metodológica de toda a Teoria Crítica, ou seja, de Horkheimer até Habermas, incluindo ele próprio. Soma-se a isso a tentativa de Mattias Iser (2008) de desenvolver um modelo próprio de Teoria Crítica, sintetizando os conceitos honnethiano e habermasiano de reconstrução, e, de maneira negativa, também o esforço de Rahel Jaeggi(2008, 2014) de retomar, contra o método reconstrutivo, a ideia de crítica imanente, o que dá testemunho da abrangência cada vez maior daquela categoria metodológica. Por fim, cabe mencionar o trabalho de Robin Celikates (2009, 2012), visando a desenvolver um modelo reconstrutivo de teoria social que dê conta dos princípios da Teoria Crítica, em especial da ideia de crítica como práxis social.

No entanto, essa tendência corre o risco de desenvolver-se sem que se dê a devida atenção à complexidade da noção de método reconstrutivo já na sua origem, em Jürgen Habermas. Nesse aspecto, cabe ressaltar que Celikates é o único, entre os membros da geração recente da Teoria Crítica, que percebe compreensões diferentes de reconstrução nessa tradição de pensamento e, em particular, no próprio Habermas. Enquanto Honneth e Iser agrupam as compreensões de reconstrução sob o amplo denominador de “crítica reconstrutiva”, e Jaeggi também o faz, em perspectiva negativa, Celikates realiza diferenciações importantes que sugerem uma complexidade maior do conceito de crítica reconstrutiva. A tipologia das compreensões de reconstrução, concretizada por ele, em Kritik als soziale Praxis (2009), candidata-se, assim, a ser uma das melhores plataformas a partir da qual se pode compreender de maneira satisfatória a complexidade do método habermasiano e, talvez, da Teoria Crítica em geral. Porém, mesmo no caso de Celikates, é possível observar algumas lacunas e considerações críticas que fazem sua exposição aparecer como muito seletiva.

Neste artigo, pretendo contribuir principalmente para sanar essas lacunas, buscando desdobrar duas compreensões distintas de reconstrução, em Habermas, a saber, a compreensão presente na obra Conhecimento e interesse (publicada em 1968) e aquela própria da constelação de pesquisa que envolve a Teoria da ação comunicativa (1981). Com essa finalidade, procuro enfrentar a principal objeção de Celikates dirigida à segunda compreensão: o fato de que Habermas teria criado um abismo entre reconstrução e crítica, destruindo assim o amálgama estabelecido em 1968. Defendo, nesse contexto, a hipótese de que a unidade entre reconstrução e crítica não é abandonada, mas passa a ser sustentada por uma rede de mediações, a qual cria uma interdependência, em vez da relação íntima, imediata, estabelecida inicialmente.

I

O ponto de partida de Celikates consiste na seguinte concepção geral de crítica reconstrutiva:

A crítica reconstrutiva não aduz de fora para os destinatários os critérios normativos da crítica; pelo contrário, ela procura desenvolvê-los a partir de estruturas normativas das práticas constitutivas de um determinado contexto social (não incondicionalmente articuladas de maneira integral e explicitamente sabidas pelos destinatários) – mais exatamente, a partir de normas, valores, autocompreensões, expectativas e intuições ligadas a essas práticas. A reconstrução representa, de acordo com isso, a tentativa de tornar explícito um conteúdo normativo implícito. Ela é uma construção de segunda ordem, na medida em que ela se reporta às práticas e autocompreensões dos atores “ordinários” e a suas construções reflexivas de primeira ordem. (CELIKATES, 2009, p. 187).

A crítica reconstrutiva consistiria, portanto, em uma concepção de teoria crítica que se apoia na reconstrução de construções normativas internas às práticas sociais, de modo a derivar delas seus próprios critérios normativos. A reconstrução se definiria, assim, como uma explicitação de conteúdos normativos implícitos, os quais não são conscientemente sabidos por aqueles que os compartilham, os atores sociais.

Com esse modelo reconstrutivo de teoria crítica, Celikates pretende escapar das dificuldades de uma crítica sociológica externa às práticas de poder, como a desenvolvida por Bourdieu, e de uma sociologia da crítica interna, elaborada de modo exemplar por Boltanski. No primeiro caso, o da crítica externa, Celikates observa de modo geral um modelo de ruptura entre o teórico e o ator social. O teórico possuiria uma espécie de privilégio epistemológico e metodológico, uma capacidade crítica e reflexiva superior, de alguma maneira, à dos atores sociais. Ele poderia identificar o que há de ideológico no processo social, com base em uma instância livre de elementos ideológicos (CELIKATES, 2006). No caso da crítica interna de Boltanski, parte-se, ao contrário, de uma simetria entre o teórico e o ator, de forma que o primeiro pode apelar para a capacidade crítica do segundo ou até mesmo renunciar para si mesmo uma atividade crítica, já que o segundo seria suficiente, nesse aspecto.

Os tipos de crítica, interna e externa, são operacionalizados, por conseguinte, em função da relação entre teórico e destinatário. A crítica interna incorpora a atitude metodológica típica de um participante, ao passo que a externa se caracteriza pela atitude de um observador, o qual se distancia metodologicamente do objeto social criticado. Com isso, trata-se de saber até que ponto a crítica pode se situar como uma práxis de transformação, junto aos atores sociais, como se o crítico fosse um dos atores, mas, ao mesmo tempo, sem cair na pretensão de Boltanski de que não haveria uma constituição específica do crítico:

A “virada pragmática” proposta por Boltanski e outros não deveria levarnos a abandonar o projeto da Teoria Crítica, como se toda a crítica necessária já estivesse articulada nas práticas cotidianas de crítica. As capacidades reflexivas dos atores “ordinários” e suas práticas de justificação e crítica, que são convincentemente reconstruídas pela sociologia da crítica, constituem a base social e metodológica da Teoria Crítica. Isso não deveria, contudo, levar-nos a atribuir uma autoridade epistêmica à perspectiva dos participantes que seja imune a ser colocada em questão de um ponto de vista informado em termos teóricos. (CELIKATES, 2012, p. 31).

Pela ideia quase minimalista de reconstrução, o autor desdobra então uma tipologia que visa a alcançar esse ponto mediano entre a crítica totalmente externa, à la Bourdieu, e a crítica totalmente interna, à la Boltanski. Nessa tipologia, trata-se de duas “compreensões” de reconstrução presentes no pensamento de Jürgen Habermas e um terceiro tipo, presente na obra de Axel Honneth. O primeiro seria aquele proposto por Habermas, em Conhecimento e interesse, tendo como ponto de partida a psicanálise freudiana. Segundo Habermas, nessa obra, o procedimento metodológico psicanalítico seria reconstrutivo, porque, na situação de análise, o psicanalista reconstruiria o que foi esquecido pelo paciente, com base em textos fragmentados, em sonhos e repetições, ao passo que o paciente vai rememorando fragmentos de sua história de vida, a partir das hipóteses reconstrutivas. É preciso haver uma combinação de reconstrução e rememoração (Erinnerung), a qual, se bem sucedida, deve desencadear uma autorreflexão no paciente, de modo que ele reorganize sua autocompreensão. A ideia fundamental de Habermas seria, nesse contexto, adotar para a teoria social crítica esse procedimento essencialmente dialógico capaz de liberar um processo autorreflexivo sobre formas arraigadas de dominação e ilusão.

A segunda compreensão de reconstrução seria representada pela pragmática formal de Habermas, que começaria a ser desenvolvida logo depois de Conhecimento e Interesse, e que tem como grande desdobramento, em termos de teoria social, a Teoria da ação comunicativa. Nesse caso, a reconstrução pragmática objetiva transformar o saber intuitivo de regras dos atores no uso comunicativo da linguagem em um saber teórico, e de tal maneira que se possa comprovar a universalidade dessas regras como condições “quasetranscendentais” da fala.

O terceiro modelo, por fim, é o de Axel Honneth, chamado de “hegeliano de esquerda”. Trata-se aqui de “reconstruções normativas” que buscam, na realidade de uma sociedade concreta, os ideais normativos que incorporam algo como uma razão social, como um conteúdo normativo racional que está na base de relações de reconhecimento institucionalizadas. A reconstrução é crítica, na medida em que pode mostrar que esse conteúdo normativo não é inteiramente realizado nas instituições existentes, de sorte que esse excesso de validade pode formar uma pressão normativa que tenha efeitos práticos progressistas na forma de uma evolução moral da sociedade.

Segundo Celikates, as três compreensões de reconstrução se diferenciam primeiramente pelo que é reconstruído e como isso é reconstruído. No caso da compreensão “reconstrutiva-psicanalítica”, trata-se de reconstruir patologias concretas e sua gênese, portanto, o objeto é inteiramente marcado por uma concretude histórica, e isso é desdobrado no modo de uma interação dialógica com os destinatários da crítica; no caso do modelo reconstrutivo-pragmático, o que é reconstruído se constitui em um sistema de regras formando as condições de possibilidade da interação comunicativa, o objeto é abstrato e supra-histórico, e isso é desdobrado ao modo de tipos ideais representando as condições da comunicação como universais. No caso da compreensão reconstrutivo-hegeliana, o objeto de reconstrução é o conteúdo normativo de uma práxis ou forma de vida, ele não é tão historicamente concreto, como no primeiro caso, nem tão generalizado de maneira supra-histórica, como no segundo, e isso é desdobrado como um processo de realização progressiva da razão.

De acordo com Celikates, a segunda e a terceira compreensões são mais exigentes do que a primeira, na medida em que buscam algo de constitutivo, de incontornável (unhintergehbar) e quase-transcendental; além disso, ambas, a segunda e a terceira, são monológicas, a identificação do que é constitutivo dispensa em princípio o diálogo com o ator social cuja prática é reconstruída. O grande problema da segunda compreensão, “pragmático-formal”, seria, no entanto, a separação entre reconstrução e crítica, que ela supõe e que pode até mesmo desfazer a base de um modelo reconstrutivo de Teoria Crítica. Na visão de Celikates, a reconstrução, nesse caso, oferece os critérios da crítica, mas ela não se exerce como crítica – ou seja, ela se desliga por princípio da relação dialógica com os destinatários. Algo semelhante também acontece com a terceira, na medida em que se confia demais no potencial de racionalidade das relações de reconhecimento para além ou aquém das autocompreensões dos atores dessas relações de reconhecimento, ou seja, uma confiança típica do pensamento fundado na filosofia da história. Tudo isso apontaria para a superioridade crítica e metodológica da primeira compreensão, psicanalíticohabermasiana, de reconstrução.

De fato, é essa compreensão articulada por Habermas, em Conhecimento e interesse, que Celikates considera como a via mais adequada para o desenvolvimento da Teoria Crítica da sociedade. Uma vez que se trata de reconstruir a gênese de uma patologia social, a partir de uma instância próxima dos atores sociais, em diálogo com eles, mas não em total simetria com eles – como na diferença entre analisando e analista –, esse tipo de reconstrução se conforma à ideia fundamental de pensar a crítica como práxis social, não como um exercício que se situa por princípio aquém ou além das práticas dos atores sociais comuns.

 

II

O mérito de Celikates consiste, a meu ver, em propor uma tipologia que serve em grande parte para organizar o debate a respeito da reconstrução como método privilegiado da Teoria Crítica mais recente. Porém, de um ponto de vista histórico-filosófico, ela é ainda precária, pois realiza fortes abstrações, sobretudo em relação às duas compreensões propostas por Habermas, e não leva em conta a possibilidade de novas diferenciações. Além disso, ela não considera possibilidades de integração não realizadas entre as diversas compreensões de reconstrução, o que poderia fortalecer a ideia de um campo reconstrutivo com mais capacidade crítica e explicativa. É nesse sentido que minha análise gostaria de ser compreendida. Contudo, por questão de espaço, deixarei de lado uma quarta possibilidade, a qual é aquela representada pela obra habermasiana dedicada ao direito e à democracia (SILVA; MELO, 2012); o mesmo se aplica à compreensão de reconstrução em Honneth, que encontrou desdobramentos recentes (HONNETH, 2011; NOBRE, 2013).

Em relação à segunda compreensão, “pragmático-formal”, a grande abstração que Celikates comete consiste em se ater apenas a um dos dois vetores de reconstrução que Habermas elabora, no contexto teórico referido. Ou seja, a compreensão pragmático-formal de reconstrução só pode ser apresentada como abstrata e supra-histórica, porque ela é separada da dimensão propriamente histórica, ou ligada à história, que Habermas de fato desenvolve simultaneamente, ao longo dos anos 1970.

Falta à formulação de Celikates a diferenciação essencial entre reconstrução vertical e horizontal. Pelo menos desde o começo dos anos 1970, é possível falar que há, para Habermas, na sua ideia de reconstrução, dois vetores reconstrutivos articulados, um horizontal e outro vertical. Uma longa citação de uma discussão de Habermas com Luhmann mostra como a ideia de reconstrução se articula, nesses dois aspectos:

As reconstruções efetuadas na horizontal, por assim dizer, de alguns poucos sistemas de regras antropologicamente fundamentais [...] são para as teorias genéticas apenas uma preparação. Estas teorias têm a tarefa mais geral de tornar transparente a lógica do desenvolvimento: na dimensão ontogenética, da aquisição da linguagem, da consciência moral, do pensamento operativo; na dimensão da história da espécie, o desdobramento das forças produtivas, e as grandes transformações históricas do quadro institucional que estão associadas à mudança estrutural das imagens de mundo e do desenvolvimento do sistema moral. Essas tentativas de reconstrução efetuadas na vertical, por assim dizer, [...] são teorias que, falando hegelianamente, tem de pressupor a lógica do conceito, isto é, a reconstrução de sistemas de regras abstratas, para poder elucidar, por sua vez, sob condições empíricas, a lógica do desenvolvimento, portanto as sequências necessárias da aquisição e estabelecimento daqueles sistemas de regras. (HABERMAS, 1971, p. 175).

No nível “horizontal”, sincrônico (BENHABIB, 1986; REPA, 2008a; PEDERSEN, 2008), busca-se reconstruir as regras já operantes no contexto das sociedades contemporâneas, enquanto, em um segundo nível, “vertical”, diacrônico, almeja-se reconstruir a lógica de desenvolvimento dessas regras, à luz da história das sociedades, verificando até que ponto a dinâmica histórica concreta obstruiu ou promoveu o desenvolvimento do sistema de regras. Nesse aspecto, a reconstrução vertical engloba uma distinção interna entre a lógica de desenvolvimento, que procura determinar as margens de variação de estruturas em um determinado processo de aprendizagem, e dinâmica evolutiva, a qual explicita como as modificações suscitadas no interior daquelas estruturas se dão como resposta, conforme princípios próprios, a “desafios evolutivos”, representados geralmente por problemas na reprodução material da sociedade. Como acentua Pedersen (2008, p. 463):

[...] o que é reconstruído é uma competência que os sujeitos agentes possuem. A reconstrução descobre algumas competências fundamentais (reconstrução horizontal), mas também o modo como essas competências se desenvolveram no tempo (reconstrução vertical).

Para Pedersen, Habermas articula dois elementos nessa elaboração da reconstrução, um propriamente kantiano, na medida em que a pragmática formal busca determinar as condições de possibilidade do entendimento linguístico, porém, na base de argumentos transcendentais fracos, ou “quasetranscendentais”, que podem ser ligados indiretamente a testes empíricos; e um elemento hegeliano, geralmente desprezado na literatura especializada, representado pela reconstrução vertical, na qual “[...] as estruturas e a diversas manifestações de consciência são historicamente constituídas.” (PEDERSEN, 2008, p. 467). Cabe acrescentar a essa leitura o fato de que Habermas procura desenvolver ambos os vetores, na forma de ciências reconstrutivas articuladas entre si, nomeadamente uma pragmática formal e uma teoria do desenvolvimento social, e, na ausência de implementação dessas ciências, na forma de uma reconstrução da história da teoria (NOBRE; REPA, 2012; REPA, 2012).

Seja como for, nesse ponto se torna evidente que Celikates desarticula no Habermas posterior a Conhecimento e interesse duas formas de reconstrução que permitiriam, juntas, realizar a ancoragem histórica do objeto reconstruído. De certo modo, pode-se dizer que a terceira compreensão, a hegeliana de esquerda, encontrada em Honneth, estaria presente também no Habermas dessa fase. Em suma, Celikates se atém unicamente aos textos habermasianos dedicados à pragmática formal ou universal, deixando de lado os textos direcionados à teoria do desenvolvimento social, ou seja, à “reconstrução do materialismo histórico”.

Além disso, dizer que a compreensão de reconstrução da pragmática formal é monológica é algo que merece considerações. Celikates tem razão, por um lado, mas comete um equívoco, por outro. Para Habermas, as tentativas teóricas de reconstrução têm uma dimensão hermenêutica que só pode ser aberta por meio de um diálogo entre o cientista e os atores sociais, como se destaca no ensaio “Ciências sociais reconstrutivas versus ciências sociais compreensivas”. O acesso ao âmbito de objetos das ciências reconstrutivas é de natureza hermenêutica. Daí Habermas (1989, p. 45) falar, nesse contexto, de um “reconstrutivismo hermenêutico”. Isso significa fundamentalmente que o processo de interpretação dos produtos simbólicos tem de assumir a forma de um diálogo. Ou seja, o cientista social precisa adotar a atitude de um participante, embora virtual, nas interações sociais que lhe interessam como objeto de pesquisa. Ele não poderia ter acesso ao significado atribuído pelos atores sociais aos seus produtos e práticas simbólicos, se ele mesmo não pudesse se introduzir como um possível agente.

Por outro lado, a racionalidade comunicativa discernida no processo de diálogo deve ser exposta na forma de uma teoria. Nesse caso, a perspectiva do participante em uma interação se transforma na perspectiva de um teórico que, em terceira pessoa, afirma algo sobre a interação comunicativa dos atores. Assim, a reconstrução se torna ela mesma um conjunto de hipóteses a respeito de estruturas profundas da interação comunicativa. Com isso, porém, não se pode perder de vista que, como esse conjunto de hipóteses, a reconstrução passa para um outro âmbito de diálogo, que é a discussão ou discurso teórico. Assim, pode-se dizer que a reconstrução se principia na forma do diálogo e é discutida na forma de diálogo, mas não pode prescindir de um momento objetivante, no qual se afirma algo sobre o mundo. Celikates parece isolar esse momento de todo o restante, para afirmar, então, que a reconstrução pragmático-formal é, na essência, monológica. Na verdade, teríamos de dizer que o diálogo assume papéis distintos, nas diversas concepções de reconstrução.

III

Há abstrações também no que se refere à primeira compreensão de reconstrução, chamada de “psicanalítica”. E, para ter consciência disso, basta lembrar que a expressão “quase-transcendental” já fazia parte do repertório conceitual, por assim dizer, de Conhecimento e interesse. Ou seja, Celikates reduz o conceito de reconstrução que opera nessa obra somente à reconstrução própria da situação analítica entre médico e paciente, e deixa de lado que boa parte do livro se dedica a um projeto reconstrutivo que alia também estratégias “kantianas” e “hegelianas”.

Essa redução não afeta o mérito de modificar consideravelmente a orientação, amplamente aceita na literatura de comentário, segundo a qual Conhecimento e interesse seria tão-somente a origem apenas embrionária do método reconstrutivo. Ou seja, o conceito de reconstrução emergiria principalmente na autocrítica de 1973, exposta no posfácio, a qual conteria a distinção entre reconstrução e crítica. O que seria preciso mostrar é que, nesse contexto, Habermas também se vale de uma noção de reconstrução com diversas variantes.

Para começar, todo o empreendimento é visto como a “[...] tentativa, historicamente direcionada, de reconstruir a pré-história do positivismo contemporâneo com o propósito sistemático de analisar o nexo de conhecimento e interesse.” (HABERMAS, 2014a, p. 21). Essa reconstrução terá a forma de uma “historiografia reconstrutiva” (HABERMAS, 2014a, p. 441), em um sentido muito semelhante à noção de “reconstrução da história da teoria”, na Teoria da ação comunicativa (1995, I, p. 201). Trata-se de uma reconstrução da história da teoria, com propósito sistemático de solucionar problemas e, nesse caso, a reconstrução discerne os conceitos fundamentais de uma teoria, contrastando-os com os rumos efetivos da teoria (no mais das vezes, sob pressão histórica e ideológica) e as potencialidades não realizadas (no mais das vezes, só perceptível retrospectivamente). As teorias que aqui importam, no horizonte de uma radicalização da crítica do conhecimento, são aquelas de Peirce, Dilthey e Freud.

A reconstrução da reflexão metodológica desses autores, em sua especificidade, levaria à autorreflexão sobre o que o positivismo nega e encobre: o nexo entre teoria e práxis, entre conhecimento e interesse. O propósito crítico imediato é, portanto, dado pela crítica ao positivismo, no âmbito das reflexões sobre teoria do conhecimento e metodologia. Nesse sentido, o projeto subjacente a Conhecimento e interesse, expresso na conferência homônima de 1965, se origina de um contexto teórico marcado pela assim chamada “querela do positivismo”, na qual Adorno e Habermas se bateram contra Popper e Albert, no início dos anos 1960.

Em 1968, Habermas dá continuidade ao debate, quando parte da premissa de que o positivismo significa, antes de tudo, a denegação da experiência de reflexão, no âmbito da teoria do conhecimento (HABERMAS, 2014a, p. 23). Isso implicaria a transformação dessa linha de pensamento filosófico na disciplina da teoria da ciência. Trata-se, então, de reconstruir a história do pensamento que levou à vitória do positivismo, à imposição da teoria positivista da ciência sobre a teoria do conhecimento, inaugurada pela filosofia moderna e amadurecida com Kant. A questão sobre as condições de possibilidade do conhecimento, tratadas por Kant como condições transcendentais configuradas pelo sujeito do conhecimento, é substituída pela justificação de metodologias científicas já aplicadas e filosoficamente emagrecidas. O positivismo se sustentaria na denegação da reflexão do e sobre o sujeito do conhecimento, sendo, ao mesmo tempo, uma operação reflexiva. Por outro lado, nas reflexões metodológicas de Peirce, Dilthey e Freud – respectivamente, no âmbito das ciências da natureza, do espírito e do saber reflexivo como tal – seria possível encontrar o nexo entre interesse e conhecimento, que o positivismo renega como princípio, mas que ao mesmo tempo está também em sua base de constituição.

Dessa maneira, a reconstrução da história da teoria conduz a uma reconstrução das condições de possibilidade do conhecimento, determinadas por interesses constitutivos da espécie. O conhecimento das ciências é definido de maneira “quase transcendental” por interesses da espécie humana, em sua reprodução contínua. Trata-se aí de “interesses condutores do conhecimento”, os quais não se escoram em um sujeito transcendental, mas nas condições fundamentais de reprodução da espécie humana. Por conseguinte, seriam antropologicamente enraizados e, embora contingentes do ponto de vista da teoria da evolução – dado que a origem da própria espécie seria contingente –, se encontrariam na base de cada etapa histórica de sua formação. Essas condições são o trabalho e a interação, a ação instrumental e a ação comunicativa.

Os interesses condutores do conhecimento estruturam os respectivos “[...] quadros transcendentais dentro dos quais se constitui o sentido dos enunciados” (HABERMAS, 2014b, p. 186). Dessa perspectiva, os interesses fundamentais não devem ser concebidos como meros impulsos, subjetivos e determinados particularmente pela situação; eles definem, como os conceitos da razão pura em Kant, as condições da objetividade possível:

Para as três categorias de processos de pesquisa é possível demonstrar um nexo específico de regras lógico-metodológicas e interesses condutores o conhecimento. [...] Na abordagem das ciências empíricas e analíticas entra um interesse técnico, na das ciências históricas e hermenêuticas, um interesse prático, e na abordagem das ciências de orientação crítica, o interesse emancipatório do conhecimento. (HABERMAS, 2014b, p. 186).

No caso das ciências críticas, o interesse pela emancipação se revela no conceito de autorreflexão. É na reflexão que o sujeito faz sobre si mesmo, a respeito de representações injustificáveis, que se descobre o momento do interesse pela emancipação, ou pela “maioridade”, como diz Habermas, seguindo Kant. As reflexões metodológicas de Freud sobre a psicanálise são o objeto privilegiado dessa reconstrução que desvela o nexo entre conhecimento e interesse, porque ela seria o “[...] único exemplo tangível de uma ciência que se vale da autorreflexão como método. Com o surgimento da psicanálise se abre a possibilidade de um acesso metodológico, franqueado pela própria lógica da pesquisa, a uma dimensão soterrada pelo positivismo.” (HABERMAS, 2014a, p. 323).

A psicanálise freudiana se apresenta, pois, como um modelo metodológico de Teoria Crítica, porque ela faz um uso sistemático da autorreflexão, da situação dialógica entre analista e analisando. Afinal, o que move o diálogo seriam a força e a necessidade de autorreflexão, o interesse por emancipar-se de uma série de ilusões sistemáticas que prendem o paciente em uma rede de deformações da linguagem, impedindo-o de conhecer a si mesmo e ao outro.

Nesse contexto, Habermas elucida as patologias da comunicação, lançando mão da ideia de que lhes é subjacente um processo de privatização da linguagem pública. Ela resultaria de uma limitação da comunicação pública, imposta por relações de dominação. Na medida em que essas relações de dominação não pretendem tornar patente a ilusão de uma comunicação livre de toda coerção, elas impõem limites à comunicação, no interior do próprio sujeito. Dessa maneira, o neurótico zela por uma falsa comunicação pública, afetando a comunicação consigo mesmo. Ele não consegue compreender seus próprios textos e, com isso, suas próprias necessidades. Porém, uma falsa comunicação pública já indica processos de privatização da esfera pública em grande escala. A privatização psíquica corresponde a uma privatização social que se choca com as próprias estruturas linguísticas. Daí que o analista precisa também desprivatizar não só a linguagem do analisando, mas também deslimitar o discurso público em que aquela pode ser compreendida.

Na interpretação de Habermas, os conceitos basilares da psicanálise, como recalque, inconsciente, pulsão, devem ser remetidos, pois, a operações de distorção e privatização da linguagem, cujo processo o analista reconstrói para o paciente, de modo que este possa se recordar do que foi tirado da comunicação pública:

O trabalho do analista parece coincidir de início com o do historiador; mais exatamente, com o do arqueólogo, pois a tarefa consiste, com efeito, na reconstrução da pré-história do paciente. No final da análise deve ser possível expor em narrativas aqueles eventos dos anos de vida esquecidos, relevantes para a história da doença, os quais, no começo da análise, nem o médico nem o paciente conhecem. O trabalho intelectual é partilhado entre médico e paciente de tal maneira que um reconstrói o esquecido partindo dos textos defectivos do outro, partindo de seus sonhos, associações e repetições, ao passo que o outro se recorda, incitado pelas construções do médico, que são hipoteticamente propostas. (HABERMAS, 2014a, p. 345).

A reconstrução ilumina, por contraste com as possibilidades reais de um desenvolvimento biográfico mais ou menos autônomo, aquilo que prende o sujeito a uma coerção persistente. Nesse sentido, o vínculo íntimo do trabalho reconstrutivo com a emancipação e com a crítica é patente: reconstrói-se em função da emancipação relativa a um quadro de coerções repressivas, cujos sinais se apresentam na segregação de símbolos. Com isso, a própria patologia passa ter uma função ao mesmo tempo teórica e prática. Habermas fala então da “paixão da crítica”, do impulso emancipador do sofrimento causado pela distorção da linguagem, como um papel determinante do processo de análise:

A crítica termina em uma transformação do fundamento afetivomotivacional, assim como ela começa também com a necessidade de uma transformação prática. A crítica não teria o poder de romper a falsa consciência, se não é impelida por uma paixão da crítica. No começo se encontra a experiência do sofrimento e da aflição, e o interesse pela superação do estado oprimente. (HABERMAS, 2014a, p. 350).

No fundo dessa articulação, encontra-se o ponto de vista segundo o qual a reflexão sobre o vínculo de todo saber com interesses é, enquanto tal, um processo de autorreflexão emancipatória e, portanto, há uma espécie de primado do interesse pela emancipação sobre os interesses técnico e prático do conhecimento. Desse modo, também uma reconstrução da história da espécie sobre seu processo de formação determinado pelas dimensões do trabalho e da interação está intrinsecamente ligada ao interesse pela emancipação. A dominação, como conceito complementar da emancipação, não é, como o trabalho e a interação, uma condição antropológica fundamental, mas é uma constante histórica que depende do recalque imposto ao vínculo entre interesse e conhecimento. Assim, a reconstrução da história da teoria tem de produzir uma reconstrução dos nexos diversos de conhecimento e interesse, a qual se compreende como autorreflexão emancipatória, porque “[...] tal reconstrução é efetuada com o propósito de oferecer a força analítica da recordação contra aquele processo de recalque em que se enraíza o cientificismo.” (HABERMAS, 2014a, p. 444).

IV

Com tudo isso, torna-se evidente que Celikates só se atém a um momento de Conhecimento e interesse, embora fundamental. Ele se restringe unicamente à reconstrução no âmbito da situação analítica. Nem a reconstrução do quadro metodológico a priori das ciências da natureza e das do espírito, nem a reconstrução da história da teoria, nem a reconstrução da história de formação da espécie são levadas em conta.

No entanto, a despeito dessas abstrações, Celikates poderia responder que há uma forte diferença na organização metodológica das duas compreensões de reconstrução que ele detecta em Habermas, já que, na segunda, na versão pragmático-formal, haveria uma distinção rígida entre crítica e reconstrução, enquanto, na primeira, de Conhecimento e interesse, haveria uma fusão entre os dois momentos.

De fato, Celikates pode aqui se referir à autocrítica de Habermas, apresentada como posfácio de 1973 para Conhecimento e interesse. Segundo essa autocrítica, o projeto todo de uma reconstrução dos interesses condutores do conhecimento padece de uma confusão entre a noção de crítica, no sentido kantiano, que agora deveria ser chamada propriamente de reconstrução – a determinação do quadro transcendental que confere sentido aos enunciados científicos –  e a crítica, no sentido do enfrentamento de falsas consciências, a qual Habermas desenvolve a partir de Hegel, Marx e Freud – a determinação do aspecto oculto da dominação, em uma crítica ideológica que tem como referência o diálogo sob condições patológicas –,  a única que se vincula estritamente ao interesse pela emancipação.

Nesse caso, Habermas distingue as duas formas de reflexão sob três pontos de vista: primeiro, enquanto a crítica, no sentido da crítica da ideologia e da psicanálise, se volta para processos particulares da experiência, em especial as distorções sistemáticas da comunicação, a reconstrução trata de sistemas de regras universais que estão na base de ações, manifestações linguísticas e operações cognitivas e que são seguidas por qualquer sujeito competente; segundo, a crítica procura tornar consciente a coerção produzida inconscientemente, que subjaz àquelas distorções ideológicas, ao passo que a reconstrução pretende transformar o saber implícito e intuitivo (saber préteórico) incorporado no uso daquelas regras em um saber explícito (saber teórico); terceiro, o processo de conscientização desencadeado pela crítica deve poder produzir consequências práticas, enquanto a passagem do know how ao know that, para usar os termos adotados por Ryle, não modifica em nada a práxis em que o primeiro está inserido.

Com isso, sem dúvida, não só ocorre uma distinção entre reconstrução e crítica, como também a primeira parece ter um papel independente, anterior e de certo modo superior, em comparação com a segunda, pois lhe caberia identificar os critérios normativos que são operacionalizados depois pela crítica. De certa maneira, a Teoria Crítica se decompõe, então, em Teoria reconstrutiva geral e Crítica particular.

Contudo, não se pode aferrar a apenas esse momento do desenvolvimento habermasiano, desde Conhecimento e interesse. Quando se realiza o todo do percurso que leva à Teoria da ação comunicativa, percebe-se que a separação entre reconstrução e crítica passa a entrar em uma rede de mediações que reinstaura sua unidade, na forma da interdependência. Isso só se torna compreensível, no entanto, se nos damos conta das linhas gerais do diagnóstico de época desse contexto, marcado pela ideia de colonização sistêmica do mundo da vida.

Habermas se refere aí aos fenômenos de monetarização e burocratização das relações comunicativas dos mundos da vida sob o capitalismo tardio.

Os sistemas dinheiro e poder invadem, em função de seus imperativos, os núcleos da reprodução simbólica do mundo, causando uma série de patologias sociais, visto que o padrão sistêmico de racionalidade é aquele da razão instrumental. Ou seja, as patologias sociais representam formas novas de reificação, a reificação da linguagem (KNEER, 1990; REPA, 2008b).

Se pudermos realizar uma breve comparação entre esse diagnóstico e aquele de Conhecimento e interesse, será fácil perceber que há um ponto comum marcado pela ideia de comunicação sistematicamente distorcida como forma fenomênica primeira da patologia. A privatização da linguagem de antes se traduz agora em reificação da linguagem. Os efeitos parecem ser os mesmos, de um ponto de vista estrutural: a complexidade da linguagem é encurtada e, desse modo, os sujeitos se veem privados de possibilidades de simbolizar suas necessidades para além das coerções sistemáticas. Quer dizer, o que está em jogo é a restrição da comunicação, o efeito patológico dessa restrição, e a tendência para emancipação em relação a essa restrição.

Todavia, há duas diferenças importantes nos dois projetos reconstrutivos, quanto aos diagnósticos de época: em primeiro lugar, tanto os efeitos patológicos como as reações a eles não são remetidos ao papel de um terapeuta que reconstrói e com isso desfaz aos poucos as resistências do paciente. Agora são os próprios processos comunicativos que devem trazer consigo o que desencadeia um processo reflexivo a respeito das restrições da comunicação. Em segundo lugar, a privatização da linguagem era explicada em função da manutenção de uma comunicação pública aparente. Este era o elemento próprio da crítica imanente da ideologia de estilo mais antigo, já que pelo público se media o que não é público e, ao mesmo tempo, esse princípio de público produzia o não-público. No contexto da Teoria da ação comunicativa, Habermas trabalha com uma imagem totalmente diversa. Os sistemas dinheiro e poder se comportam como senhores coloniais que invadem de fora uma sociedade tribal, usurpam seus recursos naturais e forçam os nativos a assimilar as regras do senhor. Se podemos falar de uma privatização da linguagem, não por isso se reconhece uma dissimulação que seja, de alguma maneira, normativamente produtiva e destrutiva ao mesmo tempo. Evidentemente, a base normativa da crítica é dada com o que é reprimido, com o que é reificado no processo de colonização. Não se trata aqui de partir de um princípio normativo dominante que gera crise, mas do que é reprimido por um princípio dominante que gera crise.

Com isso, a distância entre reconstrução e crítica parece se diluir, pois, uma vez encaminhado o diagnóstico de época, se torna evidente que as tentativas de reconstrução de princípios estruturantes das produções simbólicas se irmanam com a base da crítica, justamente esses princípios como afetados e ao mesmo tempo guardando consigo possibilidades de reação – ou seja, em semelhança com que Habermas chamava de “paixão da crítica”.

Porém, essa linha de argumentos só ganha plausibilidade se é possível mostrar então que as estruturas a ser reconstruídas apenas se tornam acessíveis por conta dos efeitos patológicos, de modo geral, por meio de uma crise no mundo da vida. Isto é, os padrões de medida que a reconstrução procura fundamentar não seriam dados de antemão, como sugeria Habermas, no posfácio de 1973. A crítica não apareceria, por conseguinte, como um momento subordinado ou posteriormente ordenado, e em todo caso desvinculado da descoberta e da fundamentação normativa reconstrutiva. Pelo contrário, haveria uma relação interna entre reconstrução e crítica, dada a caracterização objetiva que ganha a crise diagnosticada por Habermas, a partir da tese da colonização sistêmica do mundo da vida. Ora, é justamente esse o último passo dado pela Teoria da ação comunicativa:

Uma teoria que quer se certificar das estruturas universais do mundo da vida, não pode proceder [ansetzen] de maneira transcendental; ela só pode esperar estar à altura da ratio essendi de seus objetos se há razão para supor que o contexto de vida objetivo, no qual o próprio teórico se encontra, providencia para que se lhe abra a ratio cognoscendi. (HABERMAS, 1995, v. II, p. 590).

Em um texto fragmentário de 1977, chamado “Objetivismo nas ciências sociais”, o qual pode ser visto como um primeiro esboço do projeto da teoria da ação comunicativa, Habermas  já escrevia:

Se as abordagens da teoria da evolução tiverem êxito, então se pode tentar colocar sob controle a ligação contextual da teoria da ação comunicativa. Nesse caso se trata de examinar se no curso dos processos de aprendizagem, próprios da evolução social, surgiu uma situação objetiva em que os universais da ação orientada ao entendimento se tornam acessíveis reconhecidamente como universais e se, além disso, o contexto fático de surgimento de nossa teoria da comunicação preenche exatamente essas condições objetivas do conhecimento. (HABERMAS, 1985, p. 592).

Assim, a teoria da ação comunicativa, que, como tal, procede de maneira reconstrutiva, deveria seu contexto de surgimento a “[...] um desafio que coloca em questão as estruturas simbólicas do mundo da vida em seu todo”, o que pode “[...] tornar plausível por que estas (estruturas) se tornaram acessíveis para nós.” (HABERMAS, 1995, v. II, p. 593). Ou seja, com o seu diagnóstico de época, baseado na tese da colonização do mundo da vida pelo sistema, Habermas pode explicar como as estruturas constitutivas da ação orientada ao entendimento se tornam acessíveis ao teórico reconstrutivo, em função de um contexto de crise. Certamente, com esse passo metodológico, parece que somos enviados para o interior de um círculo. A teoria do desenvolvimento social, que, como vimos de início, representa o vetor reconstrutivo vertical, se orienta por uma reconstrução horizontal, cujo ponto de partida é a situação hermenêutica, a situação dialógica entre o cientista e os atores sociais. Mas, por fim, uma vez completada a história do desenvolvimento dos padrões de racionalidade, é preciso concluir que só houve aquele acesso, porque as estruturas ameaçadas se destacam de algum modo nas práticas comunicativas cotidianas, isto é, por meio de patologias.

É difícil discernir uma saída para esse círculo. Para o contexto de nosso problema, no entanto, ele serve para sustentar a interpretação segundo a qual, ao longo dos anos 1970, aquela distinção entre reconstrução e crítica foi se diluindo, até que finalmente ela se transforma em uma interdependência, pois, vale insistir, também nesse momento a descoberta de critérios normativos depende da situação de crise social. É somente no momento de crise que o teórico social tem acesso àquilo é de algum modo afetado por patologias sociais. Se Conhecimento e interesse confere um valor prático para o sofrimento, a Teoria da ação comunicativa lhe confere um valor teórico. Em ambos os casos, porém, as patologias são índice de que os processos comunicativos estão sofrendo alguma espécie de coerção.

Se estou correto nessa leitura, pode-se dizer, tendo em vista a proposta tipológica de Celikates, que a diferença entre as duas primeiras compreensões de reconstrução tampouco residiria na distinção ou na indistinção entre crítica e reconstrução, o que significa também que haveria mais continuidade do que ruptura, entre Conhecimento e interesse e a obra subsequente. Trata-se antes de formas diferentes de organizar a relação entre crítica e reconstrução.

É verdade, porém, que essas formas diferentes implicam sentidos distintos de crítica e reconstrução. Pode-se dizer também que são concepções distintas de crítica reconstrutiva que rearticulam e reestruturam elementos relativamente próximos, cuja referência crítica é sempre a mesma: os potenciais emancipatórios da ação comunicativa.

abstraCt: This article aims to discuss the category of reconstruction at two different periods in Habermas’ work, first in “Knowledge and Interest” and second in The Theory of Communicative Action. To do this, we make use of the typology of the understandings of reconstruction proposed by Robin Celikates. We intend to show that this typology lacks important elements that allow the identification of commonalities in both of Habermas’ reconstructive projects, and then argue that the second understanding of reconstruction does not imply, as Celikates claims, a separation between theory and critique. keywords: Reconstruction. Critical theory. Social theory. Psychoanalysis. Pathology.

referênCias

BENHABIB, B. Critique, norm and utopia. Nova York: Columbia University Press, 1986.

CELIKATES, R. From critical social theory to a social theory of critique: on the critique of ideology after the pragmatic turn. Constellations, v. 13, n. 1, p. 21-40, 2006.

______. Kritik als soziale praxis: gesellschaftliches selbstverständigung und kritische theorie. Frankfurt am Main: Campus, 2009.

______. O não-reconhecimento sistemático e a prática da crítica: Bourdieu, Boltanski e o papel da teoria crítica. Novos Estudos Cebrap, n. 93, p. 29-42, 2012.

HABERMAS, J. Theorie der gesellschaft oder sozialtechnologie? In: ______.; LUHMANN, N. Theorie der gesellschaft oder sozialtechnologie: was leistet die systemforschung? Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1971. p. 142-290.

______. Ein Fragment: objektivismus in den sozialwissenschaften. In: ______. Zur logik der sozialwissenschaften. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985. p. 541-607.

______. Ciências sociais reconstrutivas versus ciências sociais compreensivas. In: ______. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. p. 37-58.

______. Faktizität und geltung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998.

______. Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1995. V.

I, II.

______. Conhecimento e interesse. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Editora UNESP, 2014a. p. 129-147.

______. Conhecimento e interesse. In: ______. Técnica e ciência como ideologia. São Paulo: Editora UNESP, 2014b.

HONNETH, A. Rekonstruktive gesellschaftskritik unter genealogischen vorbehalt.

In: ______.  Pathologien der vernunft: geschichte und gegenwart der kritischen theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2007. p. 57-69.

______. Das recht der freiheit. Berlin: Suhrkamp, 2011.

ISER, M. Empörung und fortschritt: grundlagen einer kritischen theorie der gesellschaft. Frankfurt am Main: Campus, 2008.

JAEGGI, R. Repensando a ideologia. Civitas, v. 8, n. 1, p. 137-165, 2008.

______. Kritik von lebensformen. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2014.

KNEER, G. Die Pathologien der modern: Zur zeitdiagnose in der theorie des kommunikativen handelns von Jürgen Habermas. Opladen: Westdeutscher, 1990.

NOBRE, M. Reconstrução em dois níveis: um aspecto do modelo crítico de Axel Honneth. In: MELO, R. (Org.).  A teoria crítica de Axel Honneth: reconhecimento, liberdade e justiça. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 11-54.

______; REPA, L. Introdução: reconstruindo Habermas: etapas e sentido de um percurso. In: ______ (Org.). Habermas e a reconstrução: sobre a categoria central da Teoria Crítica habermasiana. Campinas: Papirus, 2012. p. 13-42.

PEDERSEN, J. Habermas’ method: rational reconstruction. Philosophy of social sciences, v. 38, n. 4,  p. 457-485, dez 2008.

REPA, L. A transformação da filosofia em Jürgen Habermas: os papéis de reconstrução, interpretação e crítica. São Paulo: Esfera Pública, 2008a.

______. Jürgen Habermas e o modelo reconstrutivo de teoria crítica. In: NOBRE, M.

(Org.). Curso livre de teoria crítica. Campinas: Papirus, 2008b. p. 161-182.

______. A reconstrução da história da teoria: observações sobre um procedimento da Teoria da ação comunicativa. In: NOBRE, M.; REPA, L. (Org.). Habermas e a reconstrução: sobre a categoria central da Teoria Crítica habermasiana. Campinas: Papirus, 2012. p. 43-64.

SILVA, F. G.; MELO, R. Crítica e reconstrução em direito e democracia. In: NOBRE, M.; REPA, L. (Org.). Habermas e a reconstrução: sobre a categoria central da teoria crítica habermasiana. Campinas: Papirus, 2012. p. 135-168.

STRYDOM, P. Contemporary critical theory and methodology. London; New York: Routledge, 2011.

VOIROL, O. Teoria crítica e pesquisa social: da dialética à reconstrução. Novos Estudos Cebrap, n. 93, p. 81-99, jul. 2012.

Recebido em 26/01/2016

Aceito em 14/03/2017



[1] Professor do Departamento de Filosofia da FFLCH, USP. E-mail: luizrepa@uol.com.br