FREUD E SPINOZA

A RAZÃO, A NECESSIDADE E A LIBERDADE

 

 

Rogério Miranda de Almeida[1] [2] [3]

Allan Martins Mohr[4]

 

 

RESUMO: Tencionamos, nestas reflexões, analisar os conceitos spinozianos de Deus, do homem e da razão, para, a partir do caráter necessário que os permeia, interrogarmos se existiria também a possibilidade de uma liberdade humana no pensamento do autor da Ética. Se tal liberdade existe, ela estaria situada no próprio plano racional, o que, por sua vez, levantaria ingentes problemas. A mesma questão – a da possibilidade de uma liberdade, em Freud – estaria colocada na margem de ação que, até certo ponto, ele assinala ao eu, por intermédio de sua nova divisão do aparelho psíquico, em Além do princípio de prazer (1920) e O eu e o isso (1923). Avancemos desde já que, se a ênfase de Spinoza, no que diz respeito à liberdade, recai sobre a razão, em Freud o acento é colocado sobretudo na simbolização e na significação que a tensão do desejo pode acarretar. Portanto, o nosso objetivo não é o de mostrar, ou provar, qualquer vínculo de dependência de Freud vis-à-vis de Spinoza. A nossa intenção é, antes, fazer ressaltar as diferenças que os separam, no que concerne à questão da necessidade e da liberdade.

PALAVRAS-CHAVE: Freud. Spinoza. Razão. Necessidade. Liberdade.

 

 

 

Necessidade e liberdade. Dois conceitos que preocupavam os gregos desde os tempos trágicos e que retornarão como um leitmotiv nas filosofias de Platão, de Aristóteles, assim como no pensamento dos estoicos e ao longo de toda a Idade Média. Nos tempos modernos, sobressaem as figuras de Descartes, Leibniz, Spinoza e Kant como os pensadores que mais acuradamente e intuitivamente se debruçaram sobre essa espinhosa, difícil e abstrusa questão. Na verdade, o problema reside não tanto na definição semântica ou formal de cada um desses dois conceitos, mas, principalmente, na relação que existira entre um e outro.

Com efeito, se pensarmos nas duas definições básicas que a tradição filosófica tem assinalado à liberdade, ela se apresenta, por um lado, como autodeterminação ou autocausalidade, segundo as quais ela se dá através de uma ausência de limites, de restrições ou condições. Por outro lado, a liberdade também se manifesta como possibilidade de escolha, por exemplo, a capacidade de se locomover ou de optar por uma determinada profissão ou um determinado modo de vida. Todavia, esse tipo de liberdade é finito, porquanto ela só é realizável dentro dos compossíveis que a acompanham e a constituem fundamentalmente. Ora, é precisamente nesse ponto que as coisas começam, literalmente, a se complicar, na medida em que tanto a autodeterminação quanto, principalmente, a escolha devem levar em consideração a totalidade dos meios através dos quais a liberdade poderá encontrar o seu caminho, para se efetivar e se desdobrar como uma ação livre. Essa totalidade – Deus, mundo, substância, Estado, natureza – se revela necessária, já que as ações que no seu interior se desenrolam não poderão jamais revertê-la completamente, justamente por ser ela uma totalidade. Em outros termos, seus elementos poderão excluir-se mutuamente, superar-se reciprocamente, recriar-se e transformar-se iterativamente, entretanto, a partir e através de uma dinâmica inerente à própria totalidade das relações e de seus respectivos desdobramentos.

Em Spinoza, essa necessidade remete a uma causa única, Deus, cujos atributos ou modalidades se estendem e se manifestam na natureza, no homem e, enfim, em todas as coisas. Quanto a Freud, a necessidade se dá em função do mundo das pulsões, das forças e da libido, que se exprime como tensão, ou desejo. Um desejo que deve ser apaziguado, satisfeito, aplacado. Note-se, porém, que a nossa intenção, ao analisarmos as concepções de Spinoza e Freud, com relação à necessidade e liberdade, não é a de fazer um cotejo entre esses dois pensadores, no sentido de uma provável influência do primeiro sobre o segundo. Não! Freud se refere a Spinoza somente de maneira indireta e esporádica. De resto, são conhecidas as resistências do inventor da psicanálise vis-à-vis da filosofia, excetuando-se alguns filósofos com os quais ele mais livremente dialoga: Empédocles, Platão, Kant, Schopenhauer e, de modo mais ambíguo, Nietzsche. O objetivo precípuo deste estudo – conforme já avançamos, no resumo – consiste, antes, em apontar para as principais diferenças que intercorrem entre esses dois pensadores, no que diz respeito à forma de entender a questão da liberdade e da necessidade: Spinoza, acentuando os conceitos de natureza e razão, Freud, dando ênfase às noções de desejo, libido, pulsões e, consequentemente, à necessidade de simbolizá-las e significá-las. Comecemos então pelo autor da Ethica more geometrico demonstrata, publicada postumamente em 1677.

 

1 A concepção spinoziana de Deus, da necessidade e da vontade

A primeira questão que o leitor de Spinoza tem de enfrentar é a de entender a natureza ou a essência de Deus, a qual ocupa toda a Parte I de sua Ética. Não se trata, evidentemente, do Deus dos cristãos, cujo paradoxo por excelência consiste em ter-se feito carne, num momento oportuno (καιρος) da história da humanidade e numa província periférica do Império Romano. Não se trata tampouco do Deus criador do Antigo Testamento, que a tudo governa com a sua providência e que se faz irromper, no curso da história, com milagres e prodígios. Em suma, não se trata do Deus da graça que se fez revelar no Antigo Testamento e que, segundo os evangelistas Mateus e Lucas, se deu a conhecer na plenitude dos tempos, encarnando-se no seio de uma virgem. Mas, finalmente, quem é o Deus de Spinoza? É, conforme ele próprio assevera, na Ética, uma substância e, mais precisamente: “Deus ou a substância consistindo em infinitos atributos, cada um dos quais expressando uma eterna e infinita essência.” (SPINOZA, 1954, Éthique I, proposição 11). Mais adiante, o filósofo se mostrará ainda mais explícito e peremptório, ao afirmar: “Exceto Deus, nenhuma substância pode existir ou ser concebida.” (SPINOZA, 1954, Éthique I, prop. 14). Isso quer dizer que Deus é único, ou seja, que no universo só existe uma substância, eterna e absolutamente infinita, de sorte que as demais coisas – sejam elas pensantes ou extensas – não são senão atributos de Deus ou modificações dos atributos de Deus (SPINOZA, 1954, Éthique I, proposição 14, corolários I e II). Aquilo, pois, que se denomina coisa extensa é tão somente um dos infinitos atributos de Deus, porque, considerado nele mesmo, Deus é – como O entendia também Descartes – causa sui, no sentido em que a sua essência contém nela mesma a razão de sua própria existência. Consequentemente, não há outra causa senão a própria perfeição da natureza de Deus, que, intrínseca ou extrinsecamente, o incita a agir. Deus age, segundo Spinoza, a partir de uma pura necessidade, e tudo quanto existe, existe não devido a uma criação, contudo, desde toda a eternidade, porquanto, a partir da onipotência de Deus, ou de sua natureza infinita, jorram necessariamente infinitas coisas de infinitos modos. É a mesma necessidade que se pode constatar na natureza do triângulo, o qual eternamente se manifesta como uma figura geométrica, cujos três ângulos são iguais a dois ângulos retos. (SPINOZA, 1954, Éthique I, proposição 17, corolário II)

Émile Bréhier corrobora essa perspectiva de Spinoza e ajunta: tudo aquilo que a dogmática cristã nos ensinou a respeito de um Deus criador, que, em virtude de sua livre vontade, teria resolvido produzir as coisas que o seu entendimento concebera e, assim agindo, teria submetido a sua vontade à causa final do bem, tudo isso – acentua o historiador da filosofia – se revela como uma fábula, cujo antropomorfismo em nada difere do antropomorfismo dos deuses pagãos (BRÉHIER, 1985, p. 152). Certo, Deus é a causa de tudo aquilo que existe, mas a causa é a razão – causa sive ratio – pela qual compreendemos o efeito. Isso equivale a dizer que ele é a causa eficiente, causa tanto das essências quanto das existências, causa de si (causa sui) ou absolutamente primeira. Ele é, em suma, a causa que age de acordo com as leis da natureza, enquanto modos ou atributos de sua própria essência: Deus sive natura. Efetivamente, dos infinitos atributos de Deus, nós podemos conhecer somente dois, os quais são igualmente simples, infinitos e eternos: a extensão e o pensamento.

Sabemos, por outro lado, que as características fundamentais do homem – a alma e o corpo – são sujeitas à pluralidade, à duração, à mutação e, portanto, ao nascimento, ao desenvolvimento, à corrupção e à morte. Isso nos reenvia a um problema crucial que, em última análise, remonta a Platão: como pôde ter-se originado a mudança, a partir do imutável, do eterno, do simples, do uno? Spinoza é enfático, ao asseverar que no universo nada existe que seja contingente, já que todas as coisas são determinadas pela necessidade da natureza divina para existirem e agirem desta ou daquela maneira.

A pergunta, pois, que se impõe é a de saber se, afinal de contas, não há livre-arbítrio em Deus. Não! Dado que Deus existe por necessidade e não por contingência – e sendo também a vontade divina uma causa necessária e, portanto, não livre – segue-se que Deus não age em razão de um livre-arbítrio, mas da necessidade inerente à sua própria natureza. Efetivamente, para Spinoza, a vontade, como o intelecto, é somente um certo modo de pensar, de sorte que toda volição particular não pode existir ou ser determinada para a ação, a menos que ela seja determinada por uma outra causa, e esta, por outra, e assim ao infinito. Ora, sendo a vontade considerada infinita, ela deverá a fortiori ser determinada por Deus para a existência e para a ação, mas isso não pelo fato de ser ele uma substância absolutamente infinita, todavia, na medida em que ele tem um atributo que manifesta a infinita e eterna essência do pensamento. Assim, de qualquer modo que se conceba a vontade, ela requer ou pressupõe uma causa pela qual ela é determinada para a existência e para a ação. A conclusão, por conseguinte, não poderia ser outra senão esta: “A vontade não pode ser uma causa livre, mas somente uma causa necessária.” (SPINOZA, 1954, Éthique I, proposição 32). Donde também o corolário: “Deus não produz seus efeitos pela liberdade de sua vontade”, mas – poderíamos ajuntar – por uma necessidade intrínseca à sua própria natureza. (SPINOZA, 1954, Éthique I, proposição 32, corolario I). Se, pois, Deus é uma substância infinita, eterna e cuja vontade se desdobra no universo, de maneira necessária e não contingente, como então se coloca a questão da liberdade, com relação ao homem? É ele um ser livre nas suas ações, nos seus juízos e nas suas deliberações, ou estaria ele também essencialmente atrelado ao braço férreo da necessidade?

 

2 Deus, o homem e a questão da liberdade

Para Spinoza, o homem é determinado absolutamente, porque Deus é o mestre ou o significante primeiro de toda a cadeia da natureza. Melhor, Deus é a própria natureza e o homem é, como consequência, uma parte, uma modificação dos atributos ou um modo de ser dessa mesma natureza (Deus sive natura). Nesse sentido, a vontade também, o desejo também, são determinados por Deus enquanto causa única, infinita, eterna e necessária. Com efeito, Spinoza é categórico, ao afirmar: “Não há no espírito nenhuma vontade absoluta ou livre, mas o espírito é determinado a querer isto ou aquilo por uma causa que, ela também, é determinada por outra e esta, por sua vez, por outra, e assim ao infinito.”( SPINOZA, 1954, Éthique I, proposição 48, grifo nosso). Na demonstração que vem logo a seguir e que, portanto, se vincula a essa mesma proposição, o filósofo se revela ainda mais explícito:

O espírito é um modo definido e determinado de pensar e, por conseguinte, ele não pode ser a causa livre de suas ações. Em outros termos, ele não pode ter a faculdade absoluta de querer e de não querer, mas deve ser determinado a querer isto ou aquilo por uma causa que é também determinada por outra, e esta, por sua vez, por outra, etc. (SPINOZA, 1954, Éthique I, proposição 48, grifo nosso).

 

Como se pode constatar, as coisas que compõem o mundo – inclusive o espírito humano, a mente humana – são determinadas por um Deus cuja essência é única, necessária, infinita, e cuja potência é igualmente infinita e absoluta. Essa questão, porém, não deixa de suscitar uma outra problemática, cujo núcleo consiste em perguntar-se pela possibilidade da existência de uma finalidade em Deus. Caso a resposta se revelasse positiva, haveria, a princípio, uma abertura para pensarmos em uma liberdade do homem, no sentido em que ele poderia livremente aderir ao telos divino ou, pelo menos, colaborar com a sua realização. No entanto, o Deus de Spinoza parece não querer chegar a lugar nenhum. Nem Deus nem a natureza, porquanto todas as causas finais são meras ficções, fabricações ou urdiduras do ser humano. Melhor ainda, toda doutrina teleológica – supondo-se que alguma delas se sustentasse – estaria fadada a destruir a perfeição de Deus: “Porque se Deus agisse em vista de um fim, ele estaria necessariamente desejando (appetit) algo de que estaria privado.” (SPINOZA, 1954, Éthique I, apêndice). E isso seria incompatível com o conceito spinoziano da onipotência divina.

Na Ética, portanto, dificilmente se encontraria uma finalidade assinalada às coisas em geral e aos seres humanos, em particular. Melhor ainda, nela se verifica uma leitura natural do homem, de sua mente, de seus atos e, em suma, de seu ser. O homem é apenas uma parte da natureza, que é essencialmente causada por Deus. Nessa perspectiva, todos os indivíduos e, de resto, todas as coisas são partes de uma mesma natureza, e, por conseguinte, partes de Deus. É o que afirma o filósofo, ao tratar da forma pela qual os corpos se conectam entre si, sem que os indivíduos percam a sua essência: “Se procedermos ao infinito, poderemos facilmente conceber que a natureza inteira é um só indivíduo, cujas partes, isto é, todos os corpos, variam de infinitas maneiras sem que haja qualquer mudança do indivíduo como um todo.” (SPINOZA, 1954, Éthique I, axioma 3, lema 7). Nada, pois, existe para além da natureza e, consequentemente, para além de Deus. Tudo é causado e determinado a partir de sua essência, inclusive a mente, os atos, os pensamentos e o movimento dos corpos. De acordo com Spinoza, não existe volição ou desejo livre, porquanto tudo o que nela ocorre tem uma causa, e essa causa é una e única. Nesse sentido, nem mesmo o falar e o pensar nos pertencem, pois, segundo o filósofo, a mente é um modo fixo e determinado de pensar, de sorte que ela não pode ser a causa livre de suas ações; ou seja, ela não pode possuir a faculdade absoluta de querer ou não querer. E por quê? Porque querer isto ou aquilo deve ser determinado por uma causa que, por sua vez, é determinada por outra, e assim ao infinito SPINOZA, 1954, Éthique I, proposição 48). Consequentemente, não existe na mente uma faculdade absoluta de compreender, desejar e amar, na medida em que essas faculdades são tão somente ficções ou, o que equivale ao mesmo, entidades metafísicas ou universais, as quais, pelo hábito, o homem constrói ou abstrai a partir das coisas particulares. (SPINOZA, 1954, Éthique I, proposição 48, escolio) Mas o que é finalmente a vontade? Este é o conceito de vontade, para Spinoza (1954, EI, proposição 48, escolio): “Eu entendo a faculdade de afirmar e de negar, e não o desejo; entendo, quero dizer, a faculdade pela qual a mente afirma ou nega o que é verdadeiro e o que é falso, e não o desejo pelo qual a mente deseja (appetit) as coisas ou tem aversão por elas.

 

Levando-se, pois, em conta essa definição da vontade, a questão que não pode ser evitada é a de saber se, mesmo em meio a essa determinação comandada pela mão férrea da causa única, ou seja, Deus, não haveria para o homem nenhuma possibilidade de se evadir ou de, pelo menos, exercer certa autonomia, no seu pensar e no seu agir. Para formulá-lo de outro modo: seria o homem de Spinoza totalmente desprovido de liberdade e, assim, determinado pela causa de que ele é unicamente uma das expressões, ou um dos modos? Ora, no início do prefácio da Quarta Parte da Ética, que tem sintomaticamente por título Da servidão humana ou das forças dos afetos, Spinoza faz a seguinte ponderação:

Chamo de servidão a impotência do homem para governar e refrear seus afetos. Efetivamente, o homem submetido aos afetos não tem poder sobre si mesmo, mas está nas mãos da fortuna, cujo poder sobre ele é tão grande a ponto de ver-se o homem, muitas vezes, forçado a fazer o pior, mesmo vendo o melhor.

           

Ao apresentar a possibilidade do acaso, ou da fortuna, Spinoza deixa ainda mais clara a não imprescindibilidade de uma finalidade em Deus, na natureza e nas coisas em geral. A esse respeito, ele é peremptório, já no Apêndice da Primeira Parte da Ética, ao afirmar que a natureza não fixa objetivos e que toda causa final é o produto da capacidade humana de fantasiar e urdir ficções. Os homens – elucida o filósofo – usualmente supõem que todas as coisas naturais agem como eles próprios, isto é, em vista de um fim que eles mesmos se propõem alcançar ou do qual se acham dotados. Melhor ainda: “Eles consideram como certo que o próprio Deus tudo dispõe em vista de um certo fim, pois afirmam que Deus fez todas as coisas em vista do homem, enquanto que o homem, ele o fez para dele receber um culto.” (SPINOZA, 1954, Éthique I, apêndice). Essa crítica spinoziana ao conceito de finalidade lembra-nos, em mais de um aspecto, aqueles ataques que, na Gaia ciência, Nietzsche irá mover contra as noções de ordem, de harmonia e teleologia no universo. Efetivamente, no parágrafo 109 dessa obra – que o filósofo intitulou sob a forma de admoestação (Guardemo-nos!) –, ele nos adverte para não atribuirmos leis à natureza. Não há leis na natureza, enfatiza Nietzsche (1999, § 109). “Há somente necessidades: nela não existe ninguém que ordene, ninguém que obedeça, ninguém que transgrida.” Consequentemente, o caráter geral do mundo não é o da harmonia, mas o do caos. Todavia, completa o filósofo: “Não no sentido da falta de necessidade, mas da falta de ordem, de articulação, de forma, de beleza, de sabedoria.” (NIETZSCHE, 1999, § 109).[5] Curiosamente, imediatamente após afirmar que não existem leis na natureza, mas tão somente necessidades, o pensador do eterno retorno acrescenta: “Uma vez que sabeis que não há finalidades (Zwecke), sabeis também que não há acaso (Zufall), pois somente num mundo de finalidades a palavra ‘acaso’ tem sentido.” (NIETZSCHE, 1999, § 109). Não esqueçamos, porém, que Nietzsche termina o parágrafo 277 da mesma obra – intitulado Providência pessoal – com estas palavras: “Na verdade, aqui e ali alguém joga conosco – o querido acaso: ele conduz oportunamente a nossa mão, e a mais sábia providência não saberia inventar uma música mais bela do que aquela que consegue executar a nossa mão insensata.”( NIETZSCHE, 1999, §277, grifo do autor).

Entretanto, para tornarmos à questão do acaso em Spinoza, não podemos senão chegar a esta conclusão: uma vez que não há finalidade nem em Deus nem na natureza, forçoso é admitir que as coisas existem simplesmente porque existem ou, para dizê-lo brevemente, elas existem por necessidade. E se elas existem por necessidade, nós também, enquanto partes da natureza, somos manifestações ou modos necessários dessa causa única, que é Deus. Assim, mesmo no tocante às leis que nos regem – as quais foram estabelecidas e escritas por nós mesmos –, não haveria espaço para a liberdade, porquanto elas foram elaboradas dentro de um “sistema” estritamente necessário e determinado por Deus. Isso levaria à paradoxal conclusão de que mesmo o acaso sobreviria somente a partir de uma determinação divina. Não haveria, por conseguinte, nenhum espaço ou nenhuma possibilidade pela qual se pudesse afirmar que, afinal de contas, o homem ainda é livre?

 

3 O homem e a razão

Ora, para Spinoza, pelo fato mesmo de ser o homem dotado de razão, ele é também apto a considerar-se como um elo que faz parte de uma cadeia humana onde todos podem ser úteis a todos: “Na natureza, não há nada de singular que seja mais útil ao homem do que um homem que vive sob a conduta da razão.”(SPINOZA, 1954, Éthique IV, proposição 35, colorário I). E isso porque – acrescenta o filósofo – o que é mais útil ao homem é aquilo que melhor se coaduna com a sua natureza de homem. Nesse sentido, ele age de acordo com as leis de sua natureza – e da natureza de outro homem –, quando vive sob os ditames da razão. “Logo – conclui Spinoza (1954, Éthique IV, proposição 35) – dentre as coisas singulares, nada é tão útil ao ser humano do que outro ser humano.” Certo, os humanos só podem tirar proveito dessa utilidade, quando se deixarem guiar pela razão. Todavia, Spinoza deixa pressupor que eles são livres para fazê-lo ou não. Inevitavelmente, porém, retorna a questão – aquela mesma questão que já desafiara as concepções de liberdade em Platão, Aristóteles, nos estoicos, em Agostinho de Hipona e Descartes: pode-se dizer que o homem é realmente livre, se ele só tem diante de si duas opções, a de seguir os ditames da razão ou não se conformar a ela? Mas, a rigor, e absolutamente falando, haveria uma terceira possibilidade?

Na Quarta Parte da Ética (Proposição 35, Demonstração), Spinoza declara que, por sermos dominados por afetos, que são paixões, somos diferentes por natureza e opostos uns aos outros, ou seja, somos seres únicos, singulares e irredutíveis. Em contrapartida – conforme já vimos – temos também a escolha de nos deixarmos guiar, ou não, pela voz da razão. Ora, movidos pelo desejo e instruídos pelos ditames da razão, procuramos alcançar aquilo que nos acarretaria prazer e alegria e, inversamente, esforçamo-nos por evitar o que nos traria dissabor e tristeza. Nessa linha, poder-se-ia dizer que Spinoza está plenamente na tradição hedonística, cujo lema consiste justamente em buscar o prazer e evitar a dor. E, de fato, assim o seria se o filósofo não colocasse toda a ênfase – conforme também já vimos – sobre o papel da razão. Com efeito, afirma ele: “Os homens, na única medida em que vivem sob a conduta da razão, fazem necessariamente o que é necessariamente bom para a natureza humana e, por conseguinte, para cada homem.”( SPINOZA, 1954, Éthique IV, proposição 35, demonstração). Note-se, ademais, que, na concepção de Spinoza, é bom aquilo que o homem julga ser bom e mau aquilo que ele considera como tal. Bondade e maldade não estão, portanto, nos objetos como tais, mas nos juízos de valor que os homens imprimem a esses objetos. Se, pois, cada um deseja o que é bom, agradável e útil à sua própria conservação, e se cada um se pauta de acordo com as leis de sua razão e, logo, de sua própria natureza, haveria aqui elementos suficientes para se falar de uma autonomia e de uma liberdade humanas. Nessa perspectiva, parece não haver contradição – nem em Spinoza nem tampouco, como se verá no século XVIII, em I. Kant – em subsumir o conceito de liberdade no conceito mais amplo de razão, dado que não se pode conceber o ser humano sem o composto essencial de razão e sensibilidade. O que realmente ressalta, tanto no autor da Ética quanto no autor das Críticas, é o conflito que eternamente se desenrola entre o mundo da sensibilidade – com suas afecções e, portanto, suas paixões, seus sentimentos e desejos – e a razão enquanto faculdade de julgar, de refletir e calcular. Ludwig Feuerbach vai mais longe ainda, quando define a essência do homem a partir de uma tríade fundamental, radical e inextrincável: “Mas o que é então a essência do homem, da qual ele é consciente, ou o que constitui o gênero, a própria humanidade, no homem?” A resposta do filósofo não poderia ser outra senão esta: “A razão, a vontade, o coração. A um homem completo pertencem a força do pensamento, a força da vontade, a força do coração.”( FEUERBACH, 1980, p. 39, grifo do autor).

A interrogação que se poderia levantar, pois, é a de saber se o homem é livre justamente por reconhecer o conflito inevitável e, no caso de Spinoza, necessário e eternamente determinado, o qual inere à sua própria essência, à sua própria natureza. Com efeito, na perspectiva do autor da Ética, é livre o homem que sabe dominar suas emoções e conviver com elas. Contudo, além de saber dominá-las e com elas conviver, ele poderá também ser apto a integrá-las, subjetivá-las e simbolizá-las. Nesse sentido, compreender adequadamente as afecções equivale a compreender a sua necessidade e, portanto, a sua naturalidade e inevitabilidade. Isso nos conduz a esta outra problemática: não seria também a partir da compreensão e subjetivação do desejo – com toda a tensão e toda a carga fantasmática que ele comporta – que se poderia, também na psicanálise e, mais especificamente, em Freud, falar de liberdade?

 

4 Freud: as pulsões, o desejo e a liberdade

a) O papel do eu na nova divisão do aparelho psíquico

No estudo de 1923, intitulado em português O Ego e o Id, Freud explica a nova composição do aparelho psíquico, que ele agora divide em três instâncias ou registros: o Es (id, ou isso), o Ich (ego, ou eu) e o Über-Ich (superego, ou supereu). O Es, do ponto de vista econômico, se apresenta como o reservatório primário da energia psíquica, enquanto, dinamicamente considerado, ele se desdobra através de um incessante conflito com o eu – tido habitualmente como a instância responsável pela unidade e coesão da personalidade –, e o supereu, cujo papel é assimilável ao de um censor ou juiz do eu. Freud mostra, com essa nova divisão, que o eu ocupa, na verdade, uma posição precária, na medida em que ele tenta conciliar os ditames do supereu com as exigências e a insaciabilidade do isso (Es). Este último, Freud o tomou de empréstimo a Georg Groddeck, o qual, por sua vez, fora precedido por Nietzsche quanto ao emprego dessa noção. Ao evocar os desenvolvimentos de Groddeck na sua obra, Das Buch vom Es (1923), Freud ajunta a seguinte explicação: “Refiro-me a G. Groddeck, que está sempre a acentuar o fato de que aquilo que denominamos nosso eu se comporta na vida de maneira essencialmente passiva e que, segundo sua expressão, nós somos vividos por forças desconhecidas e impossíveis de controlar.” (FREUD, Gesammelte Werke, 1999, p. 251, grifo do autor).[6]

Esse eu, apesar de diferenciar-se do isso, ou justamente por causa dessa diferenciação, e a despeito de ser vinculado fundamentalmente à consciência, é em parte inconsciente. Ele não deve, porém, ser confundido com o recalcado. De resto, a tradição epistemológica ocidental reivindica que é somente através da consciência que algo pode ser conhecido por nós, ou seja, é somente quando uma representação do objeto atravessa a consciência, ou é por ela atravessado, que pode tornar-se representação de palavra, porquanto ela fora investida pela atenção. Nesse sentido, o eu desempenha outro papel importante na vida subjetiva, uma vez que ele é o responsável por conhecer conscientemente alguma coisa, independentemente do fato de ser ela externa ou interna. Para Freud, contudo, mesmo que o eu seja responsável pelo conhecimento de algo, ele é – metaforicamente falando – como uma tela de impressão, cuja tinta e força mecânica que efetua o trabalho vêm de outro lugar, o mais das vezes desconhecido pelo próprio eu. Esta é a razão pela qual o comentário de Freud a respeito dos desenvolvimentos de Groddeck ganha aqui toda a sua pertinência: “Aquilo que denominamos nosso eu se comporta na vida de maneira essencialmente passiva e que, segundo sua expressão, nós somos vividos por forças desconhecidas e impossíveis de controlar.” Em outros termos, o eu não vive, ele é vivido ou, como já antecipara Nietzsche, em Assim falou Zaratustra: “‘Eu’, dizes tu e te orgulhas desta palavra. Mas o que é maior, em que não queres crer – o teu corpo e sua grande razão: ele não diz ‘eu’, mas o faz.” (NIETZSCHE, 1999, p. 4).

Esse conflito entre o eu e o isso já fora intuído, embora com nomes diferentes, desde os primeiros escritos de Freud. Assim, em Além do princípio de prazer (1920), ao descrever a evolução de suas descobertas, o inventor da psicanálise evoca um passo importante que deram a experiência e a teoria analíticas, com relação ao papel do eu psicológico. Num primeiro momento, relembra Freud, o eu era conhecido apenas sob a forma de uma instância responsável pelo recalque, pela censura e, enfim, pelas estruturas protetoras e as formações reativas. Mas uma notável mudança deveria ocorrer, no quadro das elaborações do narcisismo, em torno de 1914, quando Freud chegara a esta conclusão: “O eu é o verdadeiro e originário reservatório da libido, e é somente a partir dele que ela se estende para o objeto.”(GW VIII, 1999, p. 55-56). Ainda em Além do princípio de prazer, ele corrobora a validade da fórmula segundo a qual a psiconeurose se funda sobre um conflito entre as pulsões do eu e as pulsões sexuais. É o que ele afirma, de forma clara e enfática, no capítulo 6 da mesma obra: “Em particular, permanece válida a tese segundo a qual as neuroses de transferência, que constituem o verdadeiro objeto de estudo da psicanálise, são o resultado de um conflito entre o eu e o investimento libidinal dos objetos.” (GW, VIII, 1999, p. 56). Entretanto, já no capítulo 3, ao tratar da compulsão à repetição, Freud acentuava a reinterpretação que operara com relação à divisão do aparelho psíquico, ao reivindicar, não mais uma oposição entre o consciente e o inconsciente, mas entre o eu – com a sua pretensa coesão e unidade – e o que se acha recalcado (GW, VIII, 1999, p. 18).   

Em Das Ich und das Es (1923) – que a tradução da Imago, repleta de erros, verteu para o título esdrúxulo de O ego e o id –, o inventor da psicanálise retoma, desenvolve e aprofunda as análises da nova repartição do aparelho psíquico e das pulsões de vida e de morte que ele havia introduzido em Além do princípio de prazer. Assim, já no primeiro capítulo – intitulado Consciente e inconsciente – Freud mais uma vez chama a atenção para o fato de que, também no eu, se encontra algo de inconsciente que se comporta exatamente como o recalcado. Por conseguinte, nessa nova divisão, não mais convinha insistir sobre o par consciente versus inconsciente, porquanto a reinterpretação das relações estruturais da vida psíquica mostrava que a real oposição que se devia relevar era, de um lado, a de um eu pretensamente coerente e unitário e, de outro, a da dinâmica do recalcamento que, justamente por estar em oposição ao eu, com ele está intrinsecamente relacionada, e vice-versa (GW, XIII, 1999, p. 244). É que o recalcado está separado do eu, na medida mesma em que se efetuam as resistências do processo de recalcamento, de sorte que é através do isso que o recalcado pode, por assim dizer, comunicar-se com o eu. Melhor ainda: o eu é a parte do isso, o qual, sob a influência direta do mundo exterior, fora modificado por intermédio do sistema pré-consciente–consciente (PcCs). Logo, ele é de certo modo uma continuação da diferenciação que ocorrera através desse longo, lento e contínuo processo. O resultado dessa dinâmica e desse conflito – pondera Freud – é que o eu se esforça por fazer predominar a influência do mundo exterior sobre o isso e seus objetivos. Destarte, ele procura colocar o princípio de realidade em lugar do princípio de prazer, que, no entanto, reina ilimitadamente no isso. Com base, por consequência, nessa nova divisão do aparelho psíquico, o inventor da psicanálise afirmará: “O eu representa aquilo que podemos denominar razão e bom senso, em oposição ao isso, cujo conteúdo são as paixões.” (GW, XIII, 1999, p. 253).

A questão, portanto, que retorna é a de saber até que ponto o conhecimento e, por conseguinte, o reconhecimento que teria o eu desse depósito de libido, de pulsões e paixões redundaria em liberdade para o indivíduo, pois, enquanto, para Spinoza, o papel da razão é a condição mesma para que o indivíduo, reconhecendo o braço férreo da necessidade, possa a ela conformar-se e assim revelar-se como um ser livre, para a psicanálise, a condição para a liberdade do sujeito consiste no reconhecimento ou, mais exatamente, na subjetivação dos fantasmas, das representações, da tensão e da angústia que todo desejo acarreta. Formulada e resumida de outro modo, essa questão poderia induzir à seguinte conclusão: ampliar o conhecimento do eu com relação ao isso redundaria, ipso facto, na liberdade do indivíduo. Todavia, com isso, cairíamos na mesma aporia, ou no mesmo dilema, que já apontamos com relação a Spinoza, qual seja: ter que considerar a razão como uma faculdade heterogênea ao próprio indivíduo ou, pelo contrário, atribuir-lhe um status ontológico equivalente – nem superior, nem inferior – ao que se assinala à sensibilidade e ao desejo. Convém, no entanto, ter presente que a ênfase da psicanálise recai não sobre um conhecimento racional do desejo, do instinto e das pulsões, mas, antes, sobre a significação e a simbolização que o sujeito possa fazer de suas causas e de seus desdobramentos. Em outros termos, a pergunta que se coloca a psicanálise não consiste tanto em saber qual é o objeto do desejo, porém, principalmente, quais são as forças e, consequentemente, os fantasmas, as representações e as construções inconscientes que movem esse desejo, ou que a ele subjazem. Daí se poder melhor entender a especial atenção que, nessa nova divisão do aparelho psíquico, Freud dedica não somente ao Es (isso), mas também ao Über-Ich (supereu), que ele chama também de ideal do eu (Ich-Ideal). Trata-se, na verdade, de uma diferenciação que se opera a partir do interior do próprio eu e, justamente por isso, essas duas instâncias não podem ser pensadas separadamente, mas, antes, interligadas e imbricadas nas suas vinculações essenciais. É nisso, portanto, que reside o seu paradoxo e a sua ambivalência fundamental: um se separando do outro, se excluindo do outro, mas através de forças ou pulsões que se relacionam com um e com o outro.   

 

b) O supereu como tribunal do próprio sujeito

Com efeito, o papel que o inventor da psicanálise atribui a essa instância, o supereu, é marcadamente ambíguo, porquanto ele se apresenta como um juiz ou um censor do próprio eu, a quem ele sobrecarrega de preceitos, ideias e interditos. Segundo Freud, a sua formação é concomitante ao declínio do complexo de Édipo, na medida em que, ao renunciar à satisfação de seus desejos edipianos – os quais são ameaçados pelo interdito – a criança transforma seu investimento libidinal sobre os pais em uma identificação aos pais. Para dizê-lo de outro modo, o menino, ou a menina, internaliza o interdito, interioriza a culpa e faz sua a punição ou as punições que dessa culpa poderão advir. Conforme observa Freud, no Mal-estar da civilização (1930): “O supereu atormenta o eu pecador com as mesmas sensações de angústia e espreita as ocasiões para fazê-lo deixar-se punir pelo mundo externo.” (GW, IV, 1999, p. 485).

Mas já num texto de 1917, Luto e melancolia, Freud chamava a atenção para a ambivalência fundamental que caracteriza aquilo que habitualmente se denomina “consciência moral”. Trata-se de uma instância crítica, separada do eu por uma clivagem, mas que, ao mesmo tempo, é instituída pelo eu e contra o próprio eu. Assim, pondera Freud: “Vemos, no melancólico, como uma parte do eu se opõe à outra parte, faz sobre ela uma apreciação crítica e como que a toma por objeto.” (GW, X, 1999, p. 433). Em Esboço de psicanálise – última obra, redigida a partir de 22 de julho de 1938, no exílio londrino, e publicada postumamente –, Freud retoma, já desde o primeiro capítulo, a nova divisão do aparelho psíquico, o qual ele descreve sob a forma de resumo. No que concerne especificamente ao supereu, ele o apresenta, ou reapresenta, como uma espécie de precipitado do longo período da infância que a criança atravessa e durante o qual ela depende dos pais. É, portanto, no interior dessa evolução – por volta dos cinco anos de idade – que a criança sente operar-se uma mutação, quando começa a formar-se, no seu eu, uma instância particular pela qual se prolonga a influência parental, isto é, o supereu. Mas é aqui também que, mais uma vez, Freud acentuará a imbricação paradoxal que permeia essas duas instâncias: “Na medida em que o supereu se separa do eu e se opõe a ele, ele constitui uma terceira potência, que o eu deve levar em consideração. (GW, XVII, 1999, p. 69, grifo nosso).

Ora, se o supereu exerce o papel de um juiz e, em certas circunstâncias, de um ferrabrás patibular com relação ao eu, não se pode deixar de deduzir que ele também aponta para aquilo que poderíamos justamente denominar a posição determinista de Freud. De resto, essa dedução seria corroborada por estas declarações do próprio inventor da psicanálise:

A separação do ideal do eu a partir do eu nada tem de fortuito, porquanto ela representa os mais significativos traços do desenvolvimento do indivíduo e da espécie. De fato, ao dar uma expressão duradoura à influência dos genitores, ela perpetua a existência daqueles mesmos fatores aos quais ela deve a sua própria origem. (GW, XIII, 1999, p. 263).

 

Se, pois, a diferenciação e a separação do supereu estão filogeneticamente inscritas, quer no indivíduo, quer na própria espécie, e se ele é a herança que nos toca a partir do declínio do complexo de Édipo, resta concluirmos que o indivíduo freudiano é não somente determinado, mas é também a expressão ou o joguete de um conflito interno entre três instâncias que se digladiam, a partir e através de um desenvolvimento necessário da natureza. E, se a isso ajuntarmos que, a partir da reviravolta de 1920 – com Além do princípio de prazer –, o inventor da psicanálise centrará toda a sua atenção sobre a luta primordial que se desenrola entre as pulsões de vida e de morte, a nossa suposição só sairá enriquecida e reforçada.

c) O conflito interminável das pulsões e a questão da liberdade

Efetivamente, em O eu e o isso, Freud retoma sua teoria das pulsões e nos lembra que tanto a pulsão de vida quanto a pulsão de morte possuem, estritamente falando, um caráter conservador, porquanto ambas tentam restabelecer um estado que fora perturbado pelo aparecimento da vida. Donde a conclusão paradoxal do inventor da psicanálise: “O surgimento da vida seria então a causa da continuação da vida e simultaneamente também da tendência para a morte, e a própria vida seria uma luta e um compromisso entre estas duas tendências.”( GW, XIII, 1999, p. 269). Em outros termos, a vida seria constrangida a viver, ou a continuar a viver, impulsionada pelo ato originário de seu próprio surgimento, ato este irrompido no seio mesmo do inanimado, ou do inorgânico, que as pulsões de morte tentam agora recuperar. É como se tudo tivesse tido início a partir de um acidente, ou de um ato fortuito do próprio cosmos, transformado agora num ato teleológico. Teleológico e necessário. Nesse sentido, seria o homem apenas um desenvolvimento, ou um dos aspectos do desenvolvimento, do universo e de sua energia? Essa energia presente no aparelho psíquico parece ter surgido com a vida e com sua necessidade de movimento e continuação, donde também a sua necessidade de reprodução. Porém, essa reprodução nos reenvia constantemente à ideia de uma “pequena morte”, que é o orgasmo, ou seja, uma tensão e uma descarga que, pela pulsão sexual, estão intrinsecamente ligadas à pulsão de morte. É como se o ciclo se fechasse, ou melhor, estivesse sempre a se fechar, pois ele não cessa de se consumar e de recomeçar, de morrer e de reviver. É que toda vida parece estar paradoxalmente determinada a perecer, por sua própria vinculação às pulsões sexuais, ou às pulsões de Eros. Mas é nisso – repitamos uma vez mais – que consiste o paradoxo das pulsões de morte, ou da tendência para a morte: chegar ao inanimado, ou ao inorgânico, através da própria vida. Nessa perspectiva, e numa tradição que inclui Schopenhauer, Nietzsche, o próprio Freud e Lacan, só existe um caminho, só existe uma ponte, só existe um meio pelo qual as pulsões de morte poderiam atingir a sua meta, é – sublinhemos de novo – o percurso sinuoso e infinitamente repetido da própria vida.

Considerando, por conseguinte, a teoria das pulsões de vida e de morte, as injunções do supereu e as consequências que delas decorrem, somos obrigados a concluir que o nosso corpo e a nossa mente são governados por forças que nos escapam e com as quais o eu tenta constantemente e, o mais das vezes, baldadamente fazer as pazes. Não esqueçamos, contudo, que essas forças não estão acima de nós, mas em nós, no nosso interior, agindo, portanto, como elementos essenciais da nossa constituição física e psíquica. Não obstante isso, voltamos a indagar: se não somos senhores de nossas próprias ações – na medida em que elas são comandadas por impulsões inconscientes que em nós habitam – seria finalmente o eu responsável por nossos atos? Efetivamente, num célebre artigo redigido em 1916 e intitulado Uma dificuldade da psicanálise, Freud descreve os três golpes com os quais a ciência ferira de morte o orgulho ou o egoísmo ingênuo da humanidade. Essas análises serão retomadas, de maneira breve, nas Conferências de introdução à psicanálise, Terceira Parte, proferidas na Universidade de Viena, entre 1916 e 1917. É, pois, no final da XVIII Conferência, sintomaticamente intitulada A fixação ao trauma – O inconsciente, que o inventor da psicanálise mais uma vez relembra que o primeiro golpe, de ordem cosmológica, consistira em mostrar que a terra, ao invés de ser o centro do universo, não forma senão uma parcela insignificante do sistema, cuja grandeza estamos longe de imaginar. Trata-se, como se sabe, da teoria heliocêntrica. O segundo golpe, de caráter biológico, fora infligido pelas teorias de Charles Darwin e A. R. Wallace, os quais, ao descentrarem o homem de seu lugar privilegiado na criação, lhe assinalaram uma descendência igual à dos outros animais. Finalmente, o terceiro golpe, de ordem psicológica, fora acarretado pela própria psicanálise, que veio mostrar ao homem que ele não é “senhor na própria casa”, porquanto o eu, ao embater-se constantemente contra os limites do mundo interno e do mundo circundante, sente que não é senão um joguete das forças e das impulsões que, incessantemente, ele tenta superar e apaziguar.( GW, XI, 1999, p. 294-295).

Não haveria, pois, nenhuma saída plausível? Sim! A saída reside, paradoxalmente, lá onde justamente não existe saída. Donde a gênese da civilização, ou da cultura, que Freud analisa, mais longa e pormenorizadamente, no Mal-estar da civilização. Os homens – repete Freud, na esteira de uma tradição que remonta a Rousseau e a Hobbes – para não se destruírem mutuamente enquanto indivíduos que tentariam impor-se uns aos outros – preferiram formar comunidades e sociedades mais amplas, mesmo tendo de sacrificar suas possibilidades de prazer e, assim, operar uma renúncia pulsional. É como se se tratasse de uma segunda natureza, não menos necessária e não menos imperiosa que aquela que precedeu o desenvolvimento da civilização. De resto, esta última procede daquela. Todavia, essa abdicação não se faz sem conflitos, porquanto o homem será sempre inclinado a defender sua liberdade individual contra a vontade da massa. Segundo o inventor da psicanálise, um grande número de lutas no seio da humanidade gira em torno dessa tarefa evidentemente inalcançável: encontrar um equilíbrio que fosse capaz de assegurar a felicidade a todos, ou seja, satisfazer as reivindicações do indivíduo e as exigências culturais da coletividade. (GW, XIII, 1999, p. 456). Esta é a razão pela qual a sublimação das pulsões se revelou como um dos traços mais salientes do desenvolvimento cultural, na medida em que ela permite aos homens, até certo ponto, negociarem com a angústia que todo desejo suscita. Se, portanto, para o inventor da psicanálise, o homem é determinado pelo seu próprio desejo e, mais precisamente, pela dinâmica das pulsões, das tensões e representações que delas redundam, em Spinoza, são também as forças que animam a natureza, mas a partir de Deus enquanto causa única e infinita.

 

Conclusão

Efetivamente, tanto em Spinoza – conforme mostramos, nas três primeiras seções destas reflexões – quanto em Freud, o homem está imerso numa rede de necessidades que determinam o seu desejo, a sua vontade, as suas paixões e as suas relações com seus semelhantes. Spinoza, no entanto, estende essa determinação do homem até o seio do próprio Deus, o qual se apresenta como causa eficiente, isto é, causa das essências e das existências, causa de si (causa sui) ou absolutamente primeira. Ele é também a causa que age de acordo com as leis da natureza, enquanto modos ou atributos de sua própria essência, donde a fórmula: Deus sive natura. Freud, obviamente, não extrapola o desejo humano, os condicionamentos humanos, para o seio da divindade; o desejo do homem é imanente ao próprio homem. Resta, porém, que ambos os pensadores desenvolvem suas perspectivas com base em uma necessidade férrea da qual os homens dificilmente poderiam escapar. Nessas condições, seria ainda possível falar de liberdade?

No Seminário XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, ao analisar a questão do sacrifício aos deuses, Lacan observa que o sacrifício significa que, no objeto dos nossos desejos, o que realmente tentamos encontrar é o testemunho da presença do desejo do Outro (com inicial maiúscula), enquanto Deus obscuro. A esse sentido eterno do sacrifício – ajunta o analista – ninguém poderá resistir, a menos que esteja animado por aquela fé tão difícil de sustentar e que talvez somente Spinoza fora capaz de formulá-la, de maneira satisfatória, com a sua expressão: Amor intellectualis Dei. Aquilo, pois – continua Lacan –, que erroneamente se qualificou de panteísmo spinoziano não se revela senão como uma redução do campo de Deus à universalidade do significante, pelo qual se produziu um distanciamento sereno vis-à-vis do desejo humano (LACAN, 1973, p. 247). Como se pode deduzir, o que está aqui em jogo é a dinâmica da transferência pela qual se tenta, incessante e iterativamente, deslocar a angústia ou negociar com a angústia que todo desejo acarreta. Assim, ao dizer que “o desejo é a essência do homem” e ao instituir esse desejo na dependência radical da universalidade dos atributos divinos, que só é concebível mediante a função do significante, Spinoza estaria – na perspectiva de Lacan – obtendo uma posição única. Mas de que posição se trata? Daquela pela qual “o filósofo – e não é indiferente que seja um judeu desligado de sua tradição que o tenha encarnado – pode confundir-se com um amor transcendente.” (LACAN, 1973, p. 247).  

Ora, não é este o caso de Freud, conquanto seja ele também um judeu, desligado também de sua tradição, mas refratário a extrapolar o amor humano, o desejo humano, atribuindo-o a uma instância fora do homem, ou transcendente ao próprio homem. As ideias religiosas – para o inventor da psicanálise – têm sua gênese na própria psique humana, visto que elas são ilusões ou, mais exatamente, realizações dos desejos mais remotos, mais potentes e mais prementes da humanidade. “O segredo de sua força – assevera Freud no Futuro de uma ilusão (1927) – está na força desses desejos.” (GW, XIV, p. 352). Donde a frase lapidar que ele inscreve, no capítulo VIII dessa mesma obra: “A religião seria a neurose obsessiva universal da humanidade; como a da criança, ela deriva do complexo de Édipo, das relações da criança com o pai.” (GW, XIV, p. 367). Contudo, se as coisas se apresentam assim, retorna infalivelmente a questão: até que ponto o homem é responsável pelo seu próprio desejo? Teria ele a liberdade de gerir suas próprias pulsões, estando ele mesmo, não acima dessas forças, mas com elas e através delas imbricado? Em outros termos, quem seria esse ele que dominaria seus impulsos, a partir dele mesmo?

No entanto, no primeiro capítulo do Compêndio de psicanálise, Freud observa que, em consequência das relações preestabelecidas entre a percepção sensorial e a ação muscular, o eu dispõe do controle dos movimentos voluntários, garantindo, portanto, a autoafirmação. No que tange ao mundo externo, ele preenche essa tarefa, aprendendo a conhecer os estímulos, guardando na memória as experiências deles adquiridas, evitando, pela fuga, os estímulos demasiado fortes, acomodando-se, pela adaptação, àqueles moderados – e assim ele consegue paulatinamente modificar e converter, em sua vantagem, os fenômenos que se desenrolam no mundo externo. Já no que concerne ao mundo interno, ele age contra o isso, tentando adquirir o domínio das exigências pulsionais. Mas de que modo ele o faz? Decidindo se essas exigências podem ser satisfeitas, se convém postergar sua satisfação até um momento mais oportuno ou, simplesmente, se elas deverão ser reprimidas. Isso significa que a atividade do eu leva em consideração tanto as tensões provocadas pelos estímulos do mundo externo quanto aquelas que ocorrem no interior do aparelho psíquico (GW, XVII, p. 68). Isso nos leva também a deduzir a responsabilidade e, até certo ponto, a liberdade de ação que Freud assinala ao eu, na sua tentativa de aplacar a tensão proveniente dos estímulos externos e internos.

Todavia, no último capítulo dessa mesma obra – significativamente intitulado O mundo interior –, o inventor da psicanálise não somente relembra, sob a forma de resumo, a função e as tarefas do eu, mas também introduz, ou reintroduz, uma patente ambiguidade na sua suposta liberdade de ação. Com efeito, ao colocar em destaque o papel do supereu, Freud elucida: “O supereu é o herdeiro do complexo de Édipo e não se instaura senão após a liquidação deste último. O seu excessivo rigor não se dá à imagem de um modelo real, mas corresponde à intensidade da luta defensiva travada contra as tentações do complexo de Édipo.” (GW, XVII, p. 83) É, logo, assim que o supereu, ao tornar-se uma fração do mundo interior, continua a assumir para o eu as injunções, as exigências e as ameaças do mundo externo, porquanto ele representa as influências da infância do indivíduo, os cuidados e a educação que este recebera, a dependência que tivera vis-à-vis dos pais e os efeitos determinantes que sobre ele exerceram o meio social, os caracteres e as tradições de sua raça (GW, XVII, p. 138). Mais uma vez, é como se estivéssemos em face de uma segunda natureza, a qual, a exemplo da primeira, determina o desenvolvimento e o comportamento do indivíduo. Mas, não obstante a influência inelutável dessa herança filogenética, Freud ainda pressupõe que o indivíduo é livre para reforçá-la, caso ele queira aceitá-la. Esta é a razão pela qual ele faz eco às palavras de Goethe, que, através de Fausto, exclama: “O que herdaste dos teus pais, adquire-o, se queres possuí-lo.” (GOETHE, 1963, p. 682-683). Não é, pois, por acaso, que o inventor da psicanálise – exilado na brumosa Londres e lutando contra um câncer inexorável, que, em breve, o levaria à morte – deixa em suspenso a última frase desse último capítulo do Compêndio: “Na instauração do supereu, vivencia-se como que um exemplo da maneira pela qual o presente se muda em passado.” (GW, XVII, p. 138).

Na sua obra emblemática, Verdade e método, H.-G. Gadamer (1972, p. 194) afirma que não é contraditório o fato de a liberdade ser limitada e restringida, visto que pertence à natureza mesma da força saber impor-se e fazer-se prevalecer enquanto aspiração, tendência e vontade . Daí podermos perguntar, com relação ao caráter necessário ou ao assim chamado “determinismo” que atravessa os escritos e o pensamento de Spinoza e de Freud: é possível conceber a liberdade sem interdito e sem resistências? Melhor ainda: como se saberia livre um sujeito que não tivesse nada contra o que lutar, nada a vencer, nada a superar, a adquirir, a transformar?...

 

 

 

Referências

 

ALMEIDA, R. M. A memória, o esquecimento e o desejo. São Paulo: Ideias & Letras, 2016.

 

BRÉHIER, É. Histoire de la philosophie. Paris: P.U.F, 1985. 3 v.

 

FEUERBACH, L. Das Wesen des Christentums. Stuttgart: Reclam, 1980.

 

FREUD, S. Gesammelte Werke (GW). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch, 1999. 18 v.

 

GADAMER, H.-G. Wahrheit und Methode. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1972.

 

GOETHE, J. W. Faust. Hamburg: C. Wegner, 1963.

 

LACAN, J. Le Séminaire, Livre XI: les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse. Paris: Seuil, 1973.

                                                                                                                         

NIETZSCHE, F. Sämtliche Briefe. In: Kritische Studienausgabe. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin ; New York: Walter de Gruyter, 1986. 8 v.

 

______. Kritische Studienausgabe. Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1999. 15 v.

 

SPINOZA, B. Éthique. In: Œuvres complètes. Paris: Gallimard, 1954. (Bibliothèque de la Pléiade).



[1] Professor de Filosofia na Faculdade São Basílio Magno (FASBAM), Curitiba, PR – Brasil. E-mail: r.mirandaalmeida@gmail.com

[2] Professor de Teologia Sistemática no Studium Theologicum de Curitiba, Curitiba, PR – Brasil.

[3] Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Curitiba, PR – Brasil.

Doutor em Filosofia pela Universidade de Metz (França) e Doutor em Teologia pela Universidade de Estrasburgo (França).

[4] Professor do Curso de Psicologia da FAE Centro Universitário, Curitiba, PR – Brasil. E-mail: allan.mohr@gmail.com

Psicólogo pela Universidade Federal do Paraná e doutor em Filosofia pela PUCPR.

 

[5] Convém lembrar que A gaia ciência foi publicada em 1882 e que, no dia 30 de julho de 1881, Nietzsche escrevera uma carta ao seu amigo, Overbeck, colocando-o a par do seu grande entusiasmo com a descoberta de Spinoza: “Estou altamente surpreso, altamente encantado! Eu tenho um precursor, e que precursor! Eu quase não conhecia Spinoza: e que justamente agora eu me tenha voltado para ele foi uma ‘ação instintiva’. Este muito excêntrico e solitário pensador se acha o mais próximo de mim precisamente nestas matérias: ele nega o livre arbítrio, a finalidade, a ordem moral universal, o altruísmo e o mal.” (NIETZSCHE, 1986, p. 111, grifo do autor). Para a questão do livre-arbítrio em Nietzsche, veja: Almeida (2016, capítulo II, seção 3, b).

[6] Freud (Gesammelte Werke, 1999), doravante abrevidado assim: GW.