AfinidAdes entre mArxismo e cristiAnismo dA libertAção: umA Análise diAlético-compreensivA
Flávio Munhoz Sofiati[1]
Allan da Silva Coelho[2]
Rodrigo Augusto Leão Camilo[3]
resumo: As apropriações de conceitos da teoria marxista por parte de teólogos da libertação podem ser consideradas incoerentes, seja pela histórica relação de condenação mútua entre marxistas e clérigos, seja pela distinção entre religião e economia-política, típica da modernidade. Diante disso, o conceito de afinidade eletiva de Weber, na interpretação do sociólogo franco-brasileiro Michael Löwy, possibilita renovar os estudos dos fenômenos sociais nos quais o marxismo e a teologia cristã parecem fundir-se em uma crítica social radical, como teologia da libertação. Esse instrumental analítico permite identificar o sentido no qual algumas categorias marxistas são apropriadas, em forte confluência nos marcos do cristianismo de libertação. Para isso, em uma análise bibliográfica referenciada na obra de Löwy, apresenta-se o desenvolvimento do conceito de afinidade eletiva na tradição webero-marxista, identificando elementos dessa convergência na teologia do cristianismo de libertação. Por fim, buscam-se exemplos desses elementos em textos de diferentes expressões da teologia da libertação. Trata-se de um exercício teórico que almeja colaborar para a consolidação de uma abordagem específica do tema. pAlAvrAs-chAve: Teologia da libertação. Marxismo. Afinidade eletiva. Michael Löwy.
Na modernidade, tradicionalmente se entende a esfera do religioso e a esfera da economia-política como totalmente distintas e, no processo de secularização, cada vez mais dissociadas. Não apenas na teoria, mas também na vida concreta, marxismo e cristianismo repetidas vezes se excluíram, com mútuas condenações (COELHO, 2012, 2014). A América Latina desafiou sistematicamente esses pressupostos, em diversas experiências nas quais os dois polos se fundiram em lutas populares, guerrilhas, movimentos sociais ou outras formas de ativismo. Curiosamente, um setor do pensamento marxista que se interessa por essa inusitada associação busca em Max Weber inspiração para a sua análise, na formulação teórica da perspectiva dialético-compreensiva ou, como se refere Michael Löwy (2014), no marxismo weberiano.
Foi Merleau-Ponty (2006) quem formulou o termo “marxismo weberiano” para nomear um setor da dialética materialista que incorpora formulações weberianas. Para o estudo delimitado neste artigo, destaca-se o conceito de afinidade eletiva cunhado por Weber e que ainda inspira apropriações distintas para a análise das relações entre certas formas da fé religiosa e determinadas formas de ética, na configuração de um sistema social. Essa categoria, central na obra clássica A ética protestante e o espírito do capitalismo (2004), está ausente de muitos estudiosos de seu pensamento. No entanto, Löwy não apenas se dedica ao estudo do conceito, indicando suas nuances, como propõe sua aplicação como ferramenta profundamente instigante para pensar a relação entre tendências do pensamento marxista e o movimento sociorreligioso conhecido como cristianismo da libertação e sua teologia decorrente, a teologia da libertação.
Como premissa, reconhecemos uma tradição de significativos pensadores marxistas brasileiros que se interessaram pela obra weberiana, como Florestan Fernandes e Maurício Tragtenberg, inscrevendo nela Michael Löwy. De fato, a perspectiva de Löwy influencia e torna-se referência para uma nova geração de pesquisadores das ciências sociais, não só na América Latina, mas em diversas partes do mundo.
Neste artigo, procuramos demonstrar como o uso desse conceito, na interpretação de Löwy, torna-se um instrumento analítico fecundo, no estudo de um fenômeno social de grande importância na segunda metade do século XX, que é o deslocamento e a adesão de setor significativo do cristianismo a uma política radicalizada de transformação da sociedade. Nossa hipótese é de que esse instrumental permite entender a dinâmica de congruência de uma tradição religiosa, até então conservadora, a uma visão de mundo revolucionária, gestando uma “dupla pertença” ao cristianismo e ao marxismo.
Desse modo, percorrendo na primeira parte a elaboração do instrumental conceitual pelo olhar de Löwy, propomos apresentar elementos dessa convergência e, por fim, exemplificar sua aplicação nas relações entre a teologia da libertação e o marxismo. Essa abordagem provoca outra forma de aproximação desse vasto movimento social que impactou a América Latina e, ainda, leva a apontar para perspectivas de estudos que ainda estão por se fazer. Vale ressaltar que não se trata de uma temática de caráter histórico, pois esse movimento ainda é presente e atua na geração de militantes e organizações engajadas na sociedade. Constitui um exercício teórico que almeja colaborar para a consolidação de uma abordagem específica do tema.
A ideia de afinidade eletiva implica compreender como dois fatos ou ações sociais, bem como mentalidades particulares e autônomas instauram uma relação intensa entre si, influenciando-se e interagindo, mesmo que muitas vezes essa relação não seja necessariamente direta. Trata-se do processo no qual duas formas culturais – religiosas, literárias, políticas, econômicas etc. – estabelecem, a partir de certas analogias ou correspondências estruturais, uma relação de influência recíproca, escolha mútua, convergência, simbiose e até mesmo, em certos casos, fusão.
Com base nas inspirações já clássicas de Max Weber, surgiram diversas hipóteses sobre a ação do protestantismo, especificamente o ramo calvinista, em simbiose com o capitalismo, o qual não só o tolerava, mas concedia força espiritual (e/ou cultural) à consolidação do estilo capitalista na sociedade moderna. Uma das mais criativas abordagens dessas linhas de Weber está nos estudos de Michael Löwy, identificando uma apropriação que o marxismo heterodoxo fez das ideias weberianas, além de adotar as suas categorias para a análise das relações entre religião e o capitalismo, nos dias de hoje.
Na famosa obra A ética protestante e o espírito do capitalismo (2004), Weber propõe explicitar o papel da conformação da ética calvinista no processo de acumulação primitiva de capital e o domínio dos meios de produção,
por parte da burguesia. Os valores calvinistas de vida austera estariam de acor do com uma das premissas básicas do capitalismo, que é a acumulação de capitais, a partir de um modo de viver de dedicação ao trabalho e que evita o gasto desnecessário de dinheiro. Esses valores podem ser mais bem explicitados pela definição de dois conceitos importantes dentro do ponto de vista weberiano, a predestinação e a vocação.
Sobre a predestinação, Weber demonstra que, nessa concepção teológica, os indivíduos se encontravam em uma condição na qual seus destinos já estariam pré-escolhidos por Deus e apenas os eleitos estariam salvos. A ideia da predestinação faria surgir um tipo de indivíduo disposto a rejeitar a ostentação, a despesa entendida como inútil e tendo como forma de celebrar a graça recebida pela multiplicação daquilo que lhe foi concedido por Deus. Esse respeito pela vontade divina é retratado, quando o autor salienta que “a graça de Deus é tão imperdível por aqueles a quem foi concedida como inacessível àqueles que foi recusada.” (WEBER, 2004, p. 95). A doutrina da predestinação seria um motor importante rumo a um comportamento mais racionalizado e, ao estimular uma forma de comportamento frugal, contribuiria para o advento do capitalismo.
Por outro lado, no movimento da Reforma, empreendida por vários atores e, entre eles, Martinho Lutero, a ideia de vocação ganharia força dentro do imaginário da sociedade, na perspectiva do trabalho como uma forma de ascese intramundana. Contudo, no calvinismo, a vocação como serviço à glória de Deus ganhou um contorno mais extremo, com cada pessoa devendo seguir a vocação que lhe foi dada. O resultado é que, quanto mais riqueza se possa acumular, maior seria o serviço a Deus. O comportamento derivado da ética calvinista convergia em benefício indireto ao ethos do capitalismo.
Não se trata de buscar um determinante causal, seja na questão econômica (material), seja na questão religiosa. Weber procura destacar a confluência e a reciprocidade entre esses fatores, evitando explicações monocausais que não conseguem compreender a complexidade histórica que os comportamentos econômicos e religiosos mantêm entre si. Portanto, o conceito de afinidade eletiva enseja um estudo entre dois fatos particulares em relação de convergência e combinação, sem ignorar suas características próprias, tornando-se uma importante ferramenta de análise. Weber ressalta as relações entre a mudança de mentalidade trazida com a Reforma de Lutero e o impacto para o surgimento do capitalismo. Demonstra como, no ramo calvinista, sua ética ainda mais rigorosa, conformando um modelo de indivíduo que se dedica religiosamente ao trabalho, encontra outro grau de afinidade com as ações ca pitalistas em desenvolvimento, impulsionando a ética capitalista e permitindo sua consolidação. A proposta de Weber (2004, p. 83) seria
examinar de perto se, em quais pontos, podemos reconhecer “afinidades eletivas” entre certas formas da fé religiosa e certas formas da ética profissional. Por esse meio de uma vez só serão elucidados, na medida do possível, o modo e a direção geral, do efeito que, em virtude de tais afinidades eletivas, o movimento religioso exerceu sobre o desenvolvimento da cultura material.
Michael Löwy (1984) dedicou-se à compreensão dessa categoria em vários estudos, no desenvolvimento de sua obra. Ele reafirma a linha de compreensão na qual Weber, ao escrever A ética protestante, não defendia a religião como determinante para o desenvolvimento do capitalismo, porém, a relação mútua de atração entre a ética calvinista e o espírito capitalista. Durante os anos 1980, ele caracterizou a afinidade eletiva como
um tipo muito particular de relação dialética que se estabelece entre duas configurações sociais ou culturais, não redutível à determinação causal direta ou à “influência” no sentido tradicional. Trata-se, a partir de uma certa analogia estrutural, de um movimento de convergência, de atração recíproca, de confluência ativa, de combinação capaz de chegar até a fusão. (LÖWY, 1989, p. 13).
Nessa obra, o sociólogo franco-brasileiro aplica a categoria de Weber a autores do judaísmo oriental que articulam elementos da fé religiosa e uma ética revolucionária socialista. Nos anos seguintes, Löwy continua os estudos da categoria weberiana, em seu contexto original, contudo, aplicando-a aos desafios contemporâneos. Afirma que a afinidade eletiva tem o sentido de legitimar e confirmar o modo de vida do status vigente, como quando ocorre “entre certas formas religiosas e o estilo de vida capitalista, um relacionamento de afinidade eletiva. [...] um relacionamento de atração mútua e de mútuo reforço, que em certos casos, leva a uma espécie de simbiose cultural.” (LÖWY, 2000, p. 35).
Seria a simbiose cultural um grau mais efetivo da relação de afinidade. Nessa obra já clássica, chamada A guerra dos deuses (2000), em referência à expressão de Weber, propõe demonstrar a existência de dois fenômenos os quais podem ser compreendidos e/ou deduzidos a partir da categoria weberiana. O primeiro seria o seu oposto em sentido lógico, a “afinidade negativa”, que, se gundo Löwy, haveria entre certas formas da fé católica tradicional e os valores éticos do capitalismo. O segundo seria a ideia de certa afinidade eletiva entre a expressão teológica do cristianismo de libertação e determinadas formas éticas do marxismo.
Seguindo essa perspectiva, o autor identifica uma situação dentro da literatura weberiana, em suas entrelinhas, que seria a incompatibilidade dos valores católicos com o ethos capitalista. Para Löwy (2000, p. 40), Weber “insinua a existência de uma aversão ou resistência, básica e irreconciliável, ao espírito do capitalismo por parte da Igreja Católica (e provavelmente também por algumas denominações protestantes)”.
Se valores de certo cristianismo protestante potencializam o espírito do capitalismo, alguns valores tradicionais do catolicismo, pode-se concluir, estariam em divergência. Entre estes, o comunitarismo católico, a recusa do lucro, do juros e da usura como pecados, a mediação sacramental da salvação, além da compreensão do trabalho como punição. Esses valores, entre outros, constituiriam uma resistência cultural ao espírito capitalista. Tal compreensão geral não impede de perceber o catolicismo como um fenômeno amplo e complexo, capaz de se adaptar aos valores capitalistas e mesmo, de alguma maneira, já ter antecipado de forma parcial certos aspectos, como a ética monástica do trabalho, mas ainda reservada a um setor de consagrados. Desse modo, com a afinidade eletiva, seria possível pensar “entre a ética católica e o capitalismo, uma espécie de afinidade negativa.” (LÖWY, 2000, p. 40). Weber abriria uma chave para pensar como e por que parte da Igreja Católica iria insistir em se opor aos rumos impostos pelo capitalismo, ao menos alertando sobre os malefícios que o mundo sofre, submetido ao espírito capitalista.
Seria esse tipo de incompatibilidade ética de fundo que permitiria o deslocamento de um setor do cristianismo em direção à afinidade com a ética marxista, como exemplificaremos no item a seguir. Nesse livro importante, reeditado em 2016, com revisão e adição de capítulos novos, Löwy aplica as formas apresentadas acima como instrumental de análise para a conformação do sentimento anticapitalista na América Latina, como teste para suas hipóteses, destacando os estudos sobre o setor progressista da Igreja Católica no Brasil, a participação dos cristãos nas insurreições na América Central, sua influência sobre o MST – Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra e, mesmo, sobre o protestantismo de libertação.
Um pouco mais de uma década depois, o autor publica uma nova obra referencial intitulada A jaula de aço (2014), na qual retoma todos os passos e aplicações do conceito de afinidade eletiva, a partir de possíveis graus de convergência mútua, indicando para aplicar ao cristianismo de libertação e ao marxismo o nível segundo o qual seria
o processo pelo qual duas formas culturais/religiosas, intelectuais, políticas ou econômicas ou uma forma cultura e o estilo de vida e/ou os interesses de um grupo social entram, a partir de certas analogias significativas, parentescos íntimos ou afinidades de sentido, numa relação de atração e influência recíprocas, de escolha ativa, de convergência e de reforço mútuo. (LÖWY, 2014, p. 71-72).
Nesse sentido, uma forma religiosa como a formulação teológica do cristianismo de libertação, a teologia da libertação, desenvolve uma relação de atração, convergência e reforço mútuo com os interesses de um grupo social e uma forma intelectual que se configura no marxismo revolucionário. Com essa categoria interpretativa, como Löwy a utiliza, propomos demonstrar, nos tópicos a seguir, uma possibilidade de sua aplicação concreta com vistas a renovar as clássicas análises das relações entre religião e política.
Neste ponto, é importante destacar, entre outros, dois elementos da teoria marxista aos quais se propõe aplicar o conceito de afinidade eletiva de Weber, em sua relação com o cristianismo de libertação e sua teologia. No período entre 1844 e 1846, Karl Marx começou a formular sua teoria, tendo como base a revolução na qual os trabalhadores se mobilizariam em busca da autoemancipação, para estabelecer um sistema no qual a exploração de uma classe (a burguesia) sobre a outra (o proletariado) teria fim. O autor de Ideologia alemã rompeu com a tese de Hegel, segundo a qual o mundo seria criação do espírito, em que a consciência determinaria a realidade. Marx define da seguinte forma o método elaborado pela teoria neo-hegeliana:
O progresso consistia em subordinar também à esfera das representações religiosas ou teológicas as representações metafísicas, políticas, jurídicas, morais e outras, supostamente predominantes; ao mesmo tempo, proclamava-se a consciência política, jurídica e moral como consciência religiosa ou teológica, e o homem político, jurídico e moral, o “homem” em última instância, como religioso. Postulou-se o domínio da religião. (MARX, 2008b, p. 8).
Marx rompe com a crítica neo-hegeliana pelo fato de ela não levar em conta os indivíduos reais, nas suas condições materiais de vida, atribuindo à religião, como forma de consciência, o papel predominante na sociedade. A abordagem necessária deveria considerar a situação econômica real, material, bem como as relações sociais produzidas entre os indivíduos. Nas relações sociais, os indivíduos produziriam relações independentes de suas vontades ou, como enfatiza Marx, “assim como a sociedade mesma produz o homem enquanto homem, assim ela é produzida por meio dele.” (MARX, 2004, p. 106). A própria religião deveria ser reinterpretada, com base nesse princípio.
Nessa concepção, a produção dos meios de satisfação das necessidades humana básicas, com a produção da sua vida material, é o contexto das relações sociais no qual as pessoas produzem novas necessidades com expectativa de satisfação. É uma interpretação dialética da consciência. Marx ressalta que “a consciência é, portanto, de início, um produto social e o será enquanto existirem homens.” (MARX, 2008b, p.25). Como consequência, a posição do indivíduo na sociedade seria dada na relação dos conjuntos das forças produtivas e da sua distribuição. Para Marx, o modo de produção é um modo de vida e, neste, pessoas têm um estilo de vida em comum, assim como interesses que geram a sua consciência e identificação em uma classe social. Esta é uma primeira caracterização importante, pois foi amplamente apropriada como instrumental analítico da sociedade por muitos setores da teologia da libertação.
O outro ponto também adotado por esse setor, para criticar os valores e o funcionamento do sistema capitalista, é o caráter denominado por Marx de “fetichista” que caracteriza a mercadoria. Com sagacidade, desvendou os segredos das relações entre capital e consumo, os quais, por meio da produção de mercadoria, engendram a geração de lucro, a partir da exploração do trabalho no sistema capitalista.
Marx argumenta que as relações sociais reais estão mascaradas pela presença da mercadoria, na sociedade capitalista. Ao invés do trabalho humano, a mercadoria é a chave do sistema capitalista, porque em função da produção e da usurpação da mais valia extraída do trabalho, em sua produção, que os capitalistas obtêm o lucro. Nas sociedades capitalistas, as pessoas tratam a mercadoria como algo que possui um valor intrínseco, ignorando o real valor que a constitui, por meio do trabalho humano que a reveste. Nesse sentido, Marx (2008a, p. 53) afirma:
Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho, também desaparece o caráter útil do trabalho neles corporificados; desvanecem-se, portanto, as diferentes formas de trabalho concreto, elas não mais se distinguem umas das outras, mas, reduzem-se, todas, a uma espécie de trabalho, o trabalho humano abstrato.
Essa característica desemboca em crescente processo de fetichismo. Isso ocorre porque a mercadoria é apresentada socialmente como algo “mágico”, pronta em si, sendo ofuscados os aspectos envolvidos em sua produção. A mercadoria produz nas pessoas sempre uma grande vontade de posse, corroborando a tese segundo a qual o capitalismo sempre faz surgir novas necessidades nas pessoas. Assim, a mercadoria tem em si, além de tudo, um grande poder, o qual Marx qualifica como “mistério”:
A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social entre os trabalhos individuais dos produtos e o trabalho total dela. (MARX, 2008a, p. 95).
A mercadoria, ao encobrir o processo de exploração em que consiste sua produção, ajuda na criação da lógica de mercado. Esta, por sua vez, gera uma sensação de igualdade nas pessoas, pois, no mercado, todos têm a mesma oportunidade de consumir. Entretanto, assim como a mercadoria omite a exploração e a apropriação do trabalho humano, o mercado obscurece o fato de apenas uma minoria poder comprar ou agir a seu bel prazer. Dessa forma, mercadoria e mercado constituem aspectos-chave da lógica capitalista desnudados por Marx. A teoria do fetichismo é um aspecto do pensamento de Marx por vezes omisso nos economistas marxistas, porém, ao contrário, esteve no fundamento da crítica do capitalismo como “religião fetichista” desenvolvida por um importante setor da teologia da libertação, referenciado em Franz Hinkelammert, Hugo Assmann, Pablo Richard e outros (COELHO, 2014). Esse setor deslocou a crítica à idolatria da construção de simples objetos considerados sagrados por seu poder mágico, a fim de resgatar a radicalidade da tradição judaico-cristã da crítica dos falsos deuses que subjugam a dignidade humana, agora exigindo sacrifícios em nome dos valores do sistema de mercados.
Setores importantes do cristianismo na América Latina se aproximam com diferentes nuances das ideias marxistas. Por vezes, cristãos foram perseguidos como comunistas na ditadura militar ou por setores da hierarquia eclesial conservadora. O conceito de afinidade motiva entender os diferentes graus de aproximação entre esse setor do cristianismo e o marxismo.
O cristianismo de libertação é o movimento social dos cristãos que influenciou importantes setores eclesiais e políticos, ao se somarem às lutas populares, em uma releitura do Evangelho. Enquanto ação concreta de engajamento militante, assumiu diversas formas e deu origem a movimentos muitas vezes autônomos das estruturas eclesiais. Sua práxis, por vezes revolucionária, desenvolveu-se ao longo da segunda metade do século XX, a partir da concepção da “Igreja dos pobres”, a qual seria uma “herdeira da rejeição ética do capitalismo pelo catolicismo – a ‘afinidade negativa’.” (LÖWY, 2000). Esse movimento ganhou força na Igreja Católica, mas não apenas nela, atingindo boa parte do cristianismo latino-americano, gestando fundamentos teóricos para compreender a realidade na qual estava inserida, permitindo o surgimento e/ou consolidação da teologia da libertação. Vale ressaltar que nem todos os teólogos da libertação aderiram aos princípios marxistas. Muitas foram, também, as formas de aproximação, seja instrumental, seja estrutural, com o marxismo. No entanto, compartilham, enquanto “visão social de mundo”, de certos elementos de afinidade eletiva.
Os militantes leigos e membros do clero passaram a denunciar a situação do desemprego estrutural, no continente, a pobreza, fome e, como agravante, a emergência dos regimes totalitários na região, muitos dos quais suportados e em sintonia com o capital financeiro internacional, o qual resultou em um quadro extremamente danoso, especialmente para a parcela mais pobre da população. Löwy (2000, p. 104) propõe:
Em termos gerais, os teólogos da libertação e as lideranças das comunidades de base criticam a ideologia modernizante das elites latino-americanas (tanto conservadoras como progressistas) e focalizam os limites, as contradições e os desastres da modernidade industrial/capitalista.
Nesse contexto, foram se confirmando os pontos contrários entre o capitalismo e certos valores morais da tradição cristã. Neste estudo, enfatizamos elementos presentes de maneira mais expressiva na tradição católica, não excluindo analogias e aproximações com o universo protestante, uma vez que essas características figurariam na visão social de mundo da teologia da libertação, de modo geral. Destacamos seis características que possibilitam a confluência entre as duas estruturas históricas, a teologia da libertação e a abordagem marxista, sem que necessariamente se fundam. Entre essas características, temos (1) a crítica do individualismo, (2) a injustiça como ponto central da elaboração teórica, (3) a visão universalista, (4) a concepção de sociedade centrada na comunidade, (5) a crítica ao capitalismo e (6) a esperança na transformação social.
O primeiro aspecto, na crítica ao individualismo, frisa Löwy que “ambos rejeitam a afirmação de que o indivíduo é a base da ética e criticam as visões individualistas de mundo” (LÖWY, 2000, p. 116). Desde a encíclica Rerum novarum, de 1889, a Igreja Católica consolida um posicionamento contrário aos valores da modernidade, entre eles o individualismo. Já o marxismo tem como uma de suas premissas o fato de que o indivíduo só encontra o seu lugar, na sociedade, a partir da identificação com a classe à qual pertence. No segundo aspecto, a injustiça como ponto central, destaca que “ambos acham que os pobres são vítimas de injustiça” (LÖWY, 2000, p. 116), a qual é decorrente de estruturas sociais e não apenas de uma falha moral dos indivíduos. Não aceitam passivamente a situação de pobreza e opressão, conclamando à ação. “Ambos compartilham o universalismo”, terceiro aspecto, ressaltando que, tanto para o cristianismo quanto para o marxismo, há uma substância maior e mais importante acima de etnia, nacionalidade e cultura. Esse elemento mais geral e universal encontra-se nas duas doutrinas.
Quanto ao quarto ponto, o grande valor à comunidade, nota-se que, para os teólogos da libertação, a sociedade almejada é aquela em os indivíduos vivam em harmonia uns com os outros, na qual o trabalho e seus frutos sejam compartilhados, como eram nas primeiras comunidades cristãs. O marxismo tem como aspecto central a abolição da propriedade privada e o uso coletivo dos meios de produção. Mesmo não sendo sempre a mesma proposta, convergem no ponto comunitário.
No quinto aspecto, destaca que “ambos criticam o capitalismo e as doutrinas do liberalismo econômico, em nome de algum bem comum considerado mais importante que os interesses individuais de proprietários privados.” (LÖWY, 2000, p.117). A concentração econômica nas mãos de uma só classe, a burguesia, como situação geradora da pobreza de milhões de pessoas, é um problema central para o marxismo e aparece como pecado estrutural do capitalismo, na teologia da libertação. Logo, as críticas à fome, ao desemprego e à exploração predatória da natureza são fundamentadas na defesa da vida humana. O sexto e último elemento ressalta que “ambos têm a esperança de um reino futuro de justiça e liberdade, paz e fraternidade entre toda a humanidade.” (LÖWY, 2000, p. 117, grifo nosso). Para isso, são necessários a ação de conscientização da população pobre e o trabalho militante conjunto, para a conseguinte ruptura com o sistema capitalista.
Podemos exemplificar a diferença de enfoques dessa associação com alguns breves exemplos. A principal característica da linha teórica que Leonardo Boff representa, na teologia da libertação, com respeito às outras abordagens, está justamente na visão instrumental da relação com o marxismo, isto é, confere o papel de ferramenta de análise e explicação da realidade ao marxismo, no uso de suas categorias de análise da sociedade:
No afã de descobrir os mecanismos geradores da pobreza, a teologia da libertação se viu obrigada a procurar uma racionalidade mais pertinente que aquela que a tradição teológica oferecera pela filosofia [...]. As ciências humanas, especialmente as sociais, ofereceram um instrumental analítico capaz de descobrir as causas estruturais da opressão e de elaborar modelos alternativos. (BOFF, 1998, p. 60).
Nesse sentido, o marxismo representa um aporte metodológico das ciências sociais para a teologia, um momento do fazer teológico, configurado pela reflexão sobre a sociedade.
Outra possibilidade pode ser expressa na convergência com as concepções de história e do papel da práxis como luta de libertação radical, conforme encontrado em Gustavo Gutiérrez. Na conclusão de sua obra célebre, afirma:
A teologia da libertação que busca partir do compromisso por abolir a atual situação de injustiça e construir uma sociedade nova deve ser verificada pela prática desse compromisso; pela participação ativa e eficaz na luta empreendida pelas classes sociais exploradas contra seus opressores. A libertação de toda forma de exploração, a possibilidade de uma vida mais humana e mais digna, a criação de um homem novo passam por essa luta. (GUTIÉRREZ, 2000, p. 365).
Um terceiro grau de afinidade pode ser exemplificado na linha teórica da teologia da libertação que reivindica uma convergência estrutural das análises marxistas e o fazer teologia, na perspectiva libertadora, em todo o fazer teológico, implicando não apenas a análise social, a finalidade da crítica e o método, com base nas aproximações entre a teoria do fetichismo e a noção bíblica judaico-cristã de idolatria. Nessa linha estão incluídos Hinkelammert, Assmann e Enrique Dussel.
Além do nível da elaboração teológica, há outro nível de afinidade eletiva, entre marxismo e cristianismo, que é o nível da ação pastoral. Um bom exemplo dessa possibilidade entre os religiosos mais engajados com a causa dos pobres é a ação pastoral concebida pelo bispo D. Pedro Casaldáliga, da Prelazia de São Félix do Araguaia (MT). Ele atuou de forma engajada na denúncia dos abusos das autoridades e na defesa dos mais pobres, por vezes considerados à margem da sociedade. Casaldáliga defende o socialismo e condena o capitalismo como assassino. Materializa a afinidade eletiva entre a teologia da libertação e o marxismo:
Eu exijo simplesmente democracia, justiça e liberdade; eu estou exigindo socialização, que acho que é a palavra que melhor pode traduzir irmandade, como diz o povo do sertão, uma igualdade. Eu exijo igualdade, e não sou eu que exijo, é Deus que exige. (CASALDÁLIGA apud MARTINS, 1979, p. 126).
Mesmo com níveis diferentes, os seis aspectos observados por Löwy aplicam-se à análise da relação conceitual e teórica entre marxismo e teologia da libertação. Nosso objetivo, após evidenciar essas diferenças, é exemplificar, de modo geral, como esses elementos estão presentes no conjunto da proposta teológica em questão. Tal proposta de análise não evita tais distinções, mas possibilita encontrar, na diversidade teórica, elementos constituintes como referenciais da teologia inspirada no cristianismo de libertação, bem como permite uma instigante proposta de compreensão das suas convergências com certo tipo de marxismo. revolução e AnticApitAlismo: A críticA dAs estruturAs no cristiAnismo dA libertAção
A teologia da libertação propõe fazer uma análise da realidade social para compreendê-la e agir concretamente junto àqueles que são vítimas da opressão e da pobreza sistêmica. Seus autores tinham como objetivo romper com análises metafísicas e abstratas, as quais não refletiam a realidade da América Latina. Ressalta Leonardo Boff: “Simplesmente não se parte já de quadros teóricos elaborados abstratamente e sistematicamente, mas de uma leitura cientificamente mediatizada da realidade, dentro da qual se processa a práxis da fé.” (BOFF, 1998, p. 36). A questão central não é a fé cristã em si, mas a situação social na qual o cristão se encontra vivenciando essa fé, ou seja, uma realidade de exploração e privação provocada pela dominação social. Essa perspectiva reflete tanto a análise a partir da injustiça como a crítica ao capitalismo (elementos indicados como 2 e 5, neste artigo). Daí a necessidade, na crítica do individualismo (característica 1), de “uma nova ética social com referência religiosa, que utiliza a mediação da análise de classe.” (HOUTART, 1994, p. 96).
Essa metodologia propõe revelar os mecanismos de opressão, a partir do modelo econômico implantado na América Latina, convencida de que o sistema capitalista é responsável pelo cenário social desastroso da região. Boff assevera ser “preciso estudar os mecanismos geradores de pobreza e violência dos direitos humanos; o problema, geralmente, não é pessoal, mas estrutural.” (BOFF, 1994, p.53). Nesse sentido, a crítica à estrutura social geradora da desigualdade, opressão e exclusão deve ser gestada em um outro universalismo distinto do capitalista. Faz referência à característica indicada como um objetivo mais geral compartilhado (característica 3, neste artigo).
Diante da proposta do modelo econômico desenvolvimentista, Gutiérrez assinala:
Desenvolvimentismo passou a ser sinônimo de reformismo e modernização. Isto é, de medidas tímidas, ineficazes a longo prazo, quando não falsas e finalmente contraproducentes para alcançar uma verdadeira transformação. Os países pobres têm cada vez mais consciência de que seu subdesenvolvimento é subproduto do desenvolvimento de outros países, devido ao tipo de relação mantido atualmente com eles. (GUTIÉRREZ, 2000, p. 82).
É interessante, nesse aspecto, notar a influência da teoria da dependência na concepção da relação de dependência econômica dos países periféricos em relação às nações centrais. Gustavo Gutiérrez vê o estado de pobreza nas nações mais pobres como fruto de “um subdesenvolvimento [que] é subproduto do desenvolvimento de outros países, devido ao tipo de relação mantido atualmente com eles.” (GUTIÉRREZ, 2000, p.82). Todavia, essa dependência não se restringe apenas à esfera econômica: “esta dependência significa opressão em nível econômico, político e cultural.” (BOFF, 1994, p.27). Nessa situação, já se percebem dois grandes problemas condenados pela teologia da libertação, que são a passividade diante da exploração causada pelo sistema capitalista e o não respeito às tradições culturais e econômicas da América Latina.
A América Latina, nesse contexto, teria sido tomada pela mentalidade capitalista, com os desejos e as necessidades de uma nação desenvolvida, mas sem estar desenvolvida. O homem capitalista, completamente absorvido pela mentalidade do capital (geração e acumulação de valor), anula-se como homem concreto, como homem espiritual. Há o predomínio da liberdade, mas não uma liberdade do indivíduo, porém, da mercadoria. Franz Hinkelammert indica no capitalista um “empobrecimento total do empresário como homem concreto para que ele possa enriquecer como empresário.” (HINKELAMMERT, 1985, p. 235). É a articulação com a teoria do fetichismo de Marx.
Cria-se, na sociedade, um fetichismo que coloca em risco não apenas as relações entre pessoas, mas afeta a relação do fiel com Deus, o qual é substituído pela mercadoria criada pelo sistema capitalista. As relações na sociedade tornam-se corrompidas pela idolatria e fetichismo vigentes, deturpando a fé cristã. O homem se torna submetido aos ídolos, representados pelo dinheiro, a mercadoria e o próprio mercado. Postulando que a idolatria gera uma transcendência que gera e oculta a opressão, Pablo Richard sentencia: “O homem que cai na armadilha da idolatria, sob o jugo do poder, perverte sua consciência, invertendo os valores de verdade, justiça e paz e, ao mesmo tempo, enganando-se no conhecimento de Deus.” (RICHARD, 1982, p. 29).
Em coerência com as características apresentadas (em especial 3 e 4), deve ser dado destaque ao fato de que a crítica aos valores capitalistas, bem como o funcionamento de seu sistema, o qual gera empobrecimento e opressão, não possui apenas um viés econômico: o atual sistema é causador do pecado social. É esse pecado, ao qual os setores mais conservadores fecham os olhos, que o cristianismo da libertação denuncia e combate, pois “vê isso [os mecanismos de opressão] não apenas como um dado sociológico. Interpreta-o como pecado social, como injustiça que ofende a Deus e ao irmão.” (BOFF, 1994, p. 225). A opção preferencial pelos pobres[4] advém justamente por conta do pecado criado pelas condições sociais, pois quem está privado das condições mínimas de subsistência se afasta de Deus, segundo os teólogos da libertação. Por conseguinte, a situação de desastre social não é vista como uma situação desvinculada da vivência espiritual, mas estando elas ligadas, pois a situação de miséria e injustiça desvirtua a relação com Deus. Gustavo Gutiérrez (2000, p. 166), a respeito disso, salienta: “Teologicamente, essa situação de injustiça e opressão é qualificada como uma ‘situação de pecado’, pois ‘lá onde se encontram injustas desigualdades sociais, políticas, econômicas e culturais, rejeita-se o dom da paz do Senhor; mais ainda, o próprio Senhor’.”
A relação indivíduo-Deus fica comprometida, a partir do estado de injustiça e pobreza, pervertendo a ordem estabelecida por Deus. Criam-se novos ídolos, mas ídolos de opressão contra grande parte do povo, originando um duplo pecado: o pecado social resulta no pecado espiritual na relação com Deus. Nesse sentido, Richard denuncia: “a experiência da idolatria, especialmente numa situação de opressão, apresenta-se como o grande obstáculo histórico para a revelação e a fé em Deus.” (RICHARD, 1982, p. 37).
Assim, a teologia da libertação, por meio de sua análise da sociedade, teria encontrado os mecanismos de geração de pobreza, desigualdade e violência na América Latina. A análise abriu espaço para a ação e a libertação do povo, a partir da característica central da esperança, devendo ser concretizada:
A experiência sócio-política do subdesenvolvimento como estrutura de dependência e de dominação do centro sobre a periferia, como vimos, levou à consciência de libertação. Esta criou um horizonte novo e uma nova óptica pela qual podemos compreender o passado sob as condições do presente e iluminar dimensões ocultas, mas presentes em qualquer articulação humana. Seria ideológico e por isso empobrecedor se reduzíssemos a categoria libertação ao seu conteúdo analítico. (BOFF, 1998, p. 22, grifo nosso).
Devido à afinidade das propostas da teologia da libertação com a teoria marxista, uma sociedade socialista ou um sistema que superasse o capitalismo seria o ideal, porque seriam rompidas as relações de classe e de dominação. Dessa maneira, François Houtart defende romper com o atual sistema e “procurar outra lógica correspondente a outro modo de produção, o que trazido para o contexto histórico atual não é outra coisa a não ser o socialismo.” (HOUTART, 1994, p.96).
Gustavo Gutiérrez preocupa-se em encerrar com as causas da situação de pobreza e opressão, pois a busca de melhorar o sistema capitalista provou não ser bem-sucedida:
Apenas uma quebra radical no presente estado de coisas, uma transformação profunda no sistema de propriedade, o acesso ao poder da classe explorada, uma revolução social que rompa tal dependência podem permitir a passagem a uma sociedade diferente, a uma sociedade socialista. Ou, pelo menos, torná-la possível (GUTIÉRREZ, 2000, p. 82).
Uma ruptura revolucionária para uma sociedade diversa, tornando possível o socialismo. Os elementos da radicalidade anticapitalista aparecem expressos de forma explícita. Leonardo Boff também parte da necessidade de romper com o estado de injustiça, pois qualquer proposta que não transformar o ethos cultural vigente será apenas mais do mesmo. O compromisso com a fé é condição indispensável para colocar em prática propostas de mudança. Rompendo com propostas abstratas, os irmãos Boff assim se manifestam:
A teologia da libertação anseia e luta por uma nova sociedade já neste mundo: uma sociedade alternativa à capitalista, mas realmente alternativa e por isso que vai mais além dos socialismos reais, na direção do projeto desses últimos e de suas potencialidades intrínsecas, o qual encontra uma grande ressonância na tradição da fé. (BOFF; BOFF, 2001, p.149, grifo nosso).
Não obstante, é importante notar, nessas passagens, como o método de análise da sociedade tem como objetivo compreender os mecanismos de opressão que agem contra grande parte da população latino-americana. O principal responsável pelo estado de coisas negativo, no nosso continente, foi identificado no sistema capitalista, e sua superação se daria a partir da abolição de tal sistema. A superação do sistema capitalista visando a maior justiça é o ponto-chave. A luta e o compromisso forjados em questão humana e espiritual resultam em ação política e social, na afinidade com diversas categorias do marxismo.
O método formulado por Marx procurava entender o funcionamento das estruturas da sociedade, para transformá-la, em função de seus fundamentos concretos, expondo, a partir dessa visão, uma sociedade permeada por contradições. Foi exatamente essa capacidade de analisar a sociedade que ensejou que os principais teólogos do cristianismo da libertação utilizassem a teoria marxista como instrumento capaz de compreender e transformar a realidade na qual estavam inseridos.
As afinidades entre marxismo e certa teologia permitiram avançar nas apropriações, incorporando toda a teoria do fetiche de Marx à temática da idolatria do capital e do mercado, como potente crítica social. A associação entre marxismo e teologia, muitas vezes ignorada pelas ciências sociais, apesar do apelo profético de Walter Benjamin, em sua tese I sobre o conceito de história, pode ser fecundamente analisada com base no instrumental analítico do marxismo weberiano.
A metodologia proposta por Michael Löwy permanece estimulando a novas aproximações, possibilitando identificar as nuances e generalidades, seja nos diversos níveis de expressão, seja nos distintos graus de congruência. Dessa forma, renova os estudos sociais da religião em sua associação com a política, modificando a chave tradicional da abordagem de exclusão mútua total entre ambas. Esse instrumental analítico não colabora apenas na compreensão de fatos sociais, na perspectiva histórica, como passado, na compreensão da radicalização social de um setor conservador da sociedade em direção a uma aposta revolucionária. Por um lado, propicia identificar contextos de continuidade dessa tradição, bem como buscar outros deslocamentos de resistência derivados dela. É uma tentativa de sistematização, cooperando para a consolidação de uma abordagem específica do tema.
SOFIATI, F. M.; COELHO, A. S.; CAMILO, R. A. L. Affinities between Marxism and liberation Christianity: a dialectical-comprehensive analysis. Trans/form/ação, Marília, v. 41, n. 4, p. 115-134, Out./Dez., 2018.
AbstrAct: The appropriation of concepts of Marxist theory by liberation theologians can be considered incoherent, whether in terms of the historical relationship of mutual condemnation between Marxists and clerics, or in terms of the distinction between religion and political economy that is typical of modernity. However, Weber’s concept of elective affinity, in the interpretation of the Franco-Brazilian sociologist Michael Löwy, makes it possible to renew the studies of social phenomena in which Marxism and Christian theology seem to merge into a radical social critique, as in the case of liberation theology. This analytical approach enables us to identify the sense in which some Marxist categories are appropriated within the framework of liberation Christianity. In a bibliographical analysis that makes reference to Löwy’s work, we present the development of the concept of elective affinity in the Weberian-Marxist tradition and identify elements of its convergence with the theology of liberation Christianity. Finally, we look for examples of these elements in texts from different expressions of liberation theology.
Keywords: Liberation theology. Marxism. Elective affinity. Michael Löwy.
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Recebido: 27/05/2017
Aceito: 25/09/2017
[1] Professor Associado de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás,
Goiânia, GO – Brasil. E-mail: sofiati@gmail.com Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo.
[2] Professor do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, SP – Brasil. E-mail: allan.filos@gmail.com
Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo.
[3] Professor Efetivo do Instituto Federal de Mato Grosso, Cuiabá. MT – Brasil. E-mail: rodrigoalc@ uol.com.br
Doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás.
[4] Para entender melhor o deslocamento conceitual da expressão, ver Sofiati (2013).