MeMória e criação eM bergson: sobre o fenôMeno da atenção e os planos de consciência

Silene Torres Marques[1]

resuMo: Tendo como ponto de partida a distinção entre as duas formas de memória, nosso intuito é mostrar o aspecto criador da memória, em Bergson. Para tanto, investigaremos alguns exemplos do segundo e do terceiro capítulos de Matéria e memória, seu segundo livro. O que está em jogo, nesses exemplos, é o papel da memória em seu aspecto vital ou de atenção à vida ou, ainda, mais precisamente, do ponto de vista de sua junção com o corpo. palavras-chave: Memória. Corpo. Atenção. Planos de Consciência. Criação.

O ponto de partida de Matéria e memória, segundo Bergson, foi a análise que se encontra no terceiro capítulo do livro. Ele mostra, nesse capítulo, que o mesmo fenômeno do espírito pode interessar ao mesmo tempo múltiplos e diferentes planos de consciência: planos “[...] que marcam todos os graus intermediários entre o sonho e a ação”; somente no último desses planos haveria uma intervenção do corpo (BERGSON, 2008, p. 444), pois, sendo um centro de ação, o corpo não poderia engendrar representações. Ele transforma excitações recebidas em movimentos reflexos ou voluntários e, desse modo, assegura a eficácia de nossa ação sobre as coisas: é “[...] o veículo de uma ação e não o substrato de um conhecimento.” (BERGSON, 2008, p. 77). E, consequentemente, não pode dar conta de nossas lembranças, as quais são dele independentes.

Por outro lado, há um protagonismo do corpo na percepção que é tanto mais acentuado quanto mais variadas e complexas forem suas ações e reações; por sua vez, essa variedade e complexidade dependem do número e da natureza dos mecanismos motores montados em seu interior. Esses mecanismos são a própria memória do corpo: sob sua forma a ação do passado é armazenada, ou, dito de outro modo, o “passado do corpo” sobrevive (BERGSON, 2008, p. 81-82).

Assim, Bergson distingue dois tipos de memória. A memória do corpo, presente nos mecanismos motores, e a memória propriamente espiritual, existente sob a forma de lembranças independentes (BERGSON, 2008, p. 82). Ele destaca a diferença entre elas através do exemplo da lição aprendida de cor: de um lado, a aprendizagem de uma lição pode se dar como a “aquisição” de uma lembrança, ou seja, da lembrança da lição enquanto aprendida de cor; de outro, a aprendizagem pode ser dar pela “conservação” de uma lembrança, ou melhor, da lembrança de uma das leituras que fiz, quando aprendia a lição. No primeiro caso, a lembrança assemelha-se a um hábito, pois tenho que repetir “um mesmo esforço”, como se tivesse que exercitar meu corpo para situá-la novamente no presente. Tenho consciência desses esforços e exercícios corporais somente quando “entram em jogo”, contudo, trata-se ainda de uma memória, mesmo que sua característica não seja a de conservar as imagens antigas, mas a de prolongar “seu efeito útil”, em mecanismos montados no corpo, até o presente (BERGSON, 2008, p 87). Por isso, é uma memória voltada para a ação, e requer um “determinado tempo” para que eu desenvolva “todos os movimentos de articulação requeridos, como uma espécie de encenação; enfim, “a lição uma vez aprendida” é parte do meu presente, tal como meu hábito de caminhar ou de escrever; daí Bergson afirmar que “[...] ela é vivida, ela é ‘agida’, mais que representada.” (BERGSON, 2008, p. 85). No segundo caso, trata-se da lembrança de uma leitura particular, ela “é uma representação e não mais que uma representação”: não possui nada semelhante a um hábito, é algo único, “como um acontecimento de minha vida”; diferente das lembranças de todas as outras leituras[2] que serviram para aprender a lição de cor, possui uma data e por isso não pode repetir-se (BERGSON, 2008, p. 84). Profundamente diferente da lembrança resultante da lição aprendida de cor, difere dela em natureza, constituindo uma experiência desinteressada e independente da ação. É uma lembrança espiritual, posso alongá-la ou abreviá-la, atribuindo-lhe uma determinada “duração”. Ela faz parte de uma memória pura, uma memória que conserva integralmente meu passado: e, ao fazê-lo, não negligencia nenhum detalhe dos acontecimentos ocorridos em minha vida (BERGSON, 2008, p. 85-86).

A artificialidade do exemplo dado por Bergson pode ocultar o fato de que essas duas memórias se constituem conjuntamente na experiência perceptiva e, de certo modo, se relacionam, pois a percepção de um objeto provoca em nós movimentos pelos quais a ele nos adaptamos[3]; a repetição desses movimentos cria mecanismos que se tornam hábito e determinam as atitudes que, se ajustando “automaticamente” à nossa percepção das coisas, proporcionam a reação apropriada[4]: o “equilíbrio com o meio” se dá desse modo e, assim também o passado fica registrado através dos hábitos motores (BERGSON, 2008, p. 89). Mas, “ao mesmo tempo” que ocorre essa adaptação motora, a consciência “retém” sucessivamente a imagem das situações que viveu, alinhando-as conforme se sucederam[5]. Nesse processo, essas imagens se conservam na memória, a fim de depois se reproduzirem na consciência. “Para que servirão essas imagens-lembranças?”, pergunta Bergson, que logo acentua que o que está em jogo é o caráter utilitário da percepção. Desse modo, tudo se passa como se essas imagens pudessem desnaturar o caráter prático da vida. Daí a negativa de Bergson, porque nossa “consciência atual”, sempre voltada à “adaptação de nosso sistema nervoso à situação presente”, descarta todas as imagens passadas que não se enquadram na percepção atual e contribuem para sua utilidade. Isto é, há um critério de “eficácia prática” na seleção das lembranças que completam a percepção, o mesmo que, no primeiro capítulo do livro, vigorava para a seleção das imagens pelo corpo. Quer dizer, há um critério de “eficácia prática”[6] na seleção das lembranças que completam a percepção, de modo que a memória “motora” está constantemente inibindo a memória espontânea ou, “pelo menos”, aceitando “[...] dela apenas o que é capaz de esclarecer e completar utilmente a situação presente.” (BERGSON, 2008, p. 90). Consequentemente, as lembranças espontâneas e involuntárias permanecem “caprichosas em suas manifestações”, haja vista sua não correspondência aos critérios da utilidade que naturalmente estabelecemos, em nossa percepção ordinária.

Destas duas memórias, a primeira é verdadeiramente orientada no sentido da natureza; a segunda, entregue a si mesma, iria antes em sentido contrário. A primeira, conquistada através do esforço, continua sob a dependência da nossa vontade; a segunda, toda espontânea, é tão caprichosa em reproduzir quanto fiel em se conservar. (BERGSON, 2008, p. 94).

Se um acidente perturbar o “[...] equilíbrio mantido pelo cérebro entre excitação exterior e reação motora”, afrouxando “[...] por um instante a tensão dos fios que vão da periferia à periferia passando pelo centro”, as lembranças caprichosas saem da obscuridade (BERGSON, 2008, p. 90). A consciência torna-se desatenta[7], ou seja, não atende às urgências da percepção útil. Essas lembranças espontâneas são imagens de sonho, são imagens involuntárias, por isso, quando queremos “saber realmente uma coisa” para dela dispor, não há outra saída senão “aprendê-la de cor”. Isso significa que criamos um mecanismo motor capaz de suprir e substituir essas imagens (BERGSON, 2008, p. 91). A verdadeira natureza dessa lembrança espontânea Bergson mostra[8], no terceiro capítulo do livro. Nesse ponto, no entanto, critica a psicologia por tê-la ignorado e ter levado em conta apenas o que denomina “formas intermediárias” ou impuras das duas memórias. A psicologia se restringe ao o fenômeno misto que resulta da coalescência entre imagem-lembrança e movimentos, fenômeno que julga ser simples. Ora, justamente por ser misto, esse fenômeno sempre terá dois aspectos: um, o de um hábito motor, e outro, o de “uma imagem mais ou menos conscientemente localizada.” Segundo Bergson, ao pressupor o misto como simples, a psicologia não investiga a essência da lembrança e acaba supondo um mecanismo, o mesmo que “serve de base ao hábito motor”, como seu substrato.  A consequência é a hipótese do armazenamento das lembranças no cérebro[9] (BERGSON, 2008, p. 95).

Ao chamar a atenção para a complexidade da mistura entre imagenslembrança e movimentos, Bergson já revela um aspecto crucial de sua segunda obra, necessário para sua compreensão, sobretudo porque o que está em jogo é a própria relação entre corpo e espírito. Ou seja, a diferença de natureza profunda entre as duas memórias não impede que elas possam se misturar, “cada uma abandonando algo de sua pureza original” e, assim, constituir nossa experiência concreta.

Situando-nos do ponto de vista dessa experiência concreta e real, na qual se unem, a despeito de sua diferença natureza, movimentos cerebrais e lembranças, ação nascente e memória independente, nosso objetivo é trazer à tona um aspecto um tanto negligenciado da memória em Bergson, presente justamente em nosso esforço de adaptação às exigências da situação presente. Trata-se da memória enquanto atividade criadora, como mostraremos, num primeiro momento, a partir da consideração do reconhecimento atento, analisado por Bergson ainda no segundo capítulo do livro, logo após a diferenciação, que acabamos de ver, entre a duas formas de memória. Num segundo momento, iremos ao terceiro capítulo, para evidenciar, a partir do exemplo do cone invertido, os dois movimentos possíveis da memória, ou da “consciência presente”, os quais permitem ao mesmo tempo pensar a oposição e a colaboração entre percepção (presente) e lembrança (passado), assim como a determinação dos diferentes planos de nossa vida consciente. Portanto, é a psicologia[10] elaborada por Bergson, nos dois capítulos centrais de seu segundo livro, que guiará nosso texto.

reconheciMento e atenção: as relações entre percepção, atenção e MeMória

Se há duas formas sob as quais o passado sobrevive, há também duas maneiras pelas quais a experiência passada é utilizada pela ação presente, ou seja, há duas formas de reconhecimento. “No limite”, há um “reconhecimento no instantâneo”, realizado apenas pelo corpo, sem a intervenção de lembranças, um reconhecimento pragmático, pois se constitui de movimentos esboçados ou começados que visam a se adaptar ao objeto percebido, para principalmente “saber servir-se dele”; por tenderem a certa atitude, em geral reflexa, eles caracterizam esse reconhecimento como objetivo e automático.

Mas é o reconhecimento atento que Bergson aprofunda[11] e que também nos interessa, aquele que “exige a intervenção regular de lembrançasimagens”. Trata-se de um reconhecimento que começa igualmente com uma atividade motora, porém, não há um prolongamento da percepção com o objetivo de obter efeitos úteis e um afastamento do objeto percebido; ao contrário, os movimentos começados promovem uma recondução ao objeto, destacando seus contornos, dando-lhes uma forma. As lembranças análogas à percepção presente aos poucos vão se fundindo nesse “molde”, deixando para trás “muitos de seus detalhes” (BERGSON, 2008, p. 107). Assim, haveria inicialmente uma detenção dos movimentos e a introdução de outros mais sutis cuja função é justamente “[...] tornar a passar sobre os contornos do objeto percebido”; as lembranças continuam esse processo. Como isso se dá? O que está em jogo efetivamente, para nosso autor, é justamente o trabalho do espírito, que definiria assim a atenção, ou seja, “[...] a misteriosa operação pela qual o mesmo órgão, percebendo no mesmo ambiente o mesmo objeto, descobre aí um número crescente de coisas.” (BERGSON, 2008, p. 110). Esse trabalho é realizado pela memória, e é um trabalho de criação a partir do esboço traçado pelos movimentos corporais: ao entregar à percepção as imagens antigas que a ela se assemelham, ela “[...] cria novamente a percepção presente, ou melhor, duplica essa percepção ao lhe devolver, seja sua própria imagem, seja uma imagem-lembrança do mesmo tipo.” Esse processo é cada vez mais intensificado, quando a lembrança não consegue dar conta dos detalhes da percepção:

[…] um apelo é lançado às regiões mais profundas e afastadas da memória, até que outros detalhes conhecidos venham a se projetar sobre aqueles que se ignoram. E a operação pode prosseguir indefinidamente, a memória fortalecendo e enriquecendo a percepção, a qual, por sua vez, atrai para si um número crescente de lembranças complementares.12 (BERGSON, 2008, p. 111). 

Por conseguinte, a atenção teria por base um trabalho elementar de reconstrução, comparado ao trabalho de um telegrafista que reenvia um

hipótese de Bergson, a qual é exposta e explorada entre as páginas 118 e 146 do segundo capítulo, é a de que as lesões afetam a “ação nascente ou possível”, mas a ação somente, e não destroem as lembranças: ora, elas poderiam impedir que o corpo tomasse a atitude apropriada, frente ao objeto, à lembrança evocada; ora, elas cortam os vínculos da lembrança com a realidade presente, impedindo que a lembrança se atualize (BERGSON, 2008, p. 108).

12 A teoria da atenção, apresentada no segundo capítulo do livro, antecipa a tese sobre os planos de consciência do terceiro capítulo. “Para mostrar como uma lembrança poderia, de grau em grau, vir a inserir-se numa atitude ou num movimento, teremos que antecipar um pouco as conclusões de nosso próximo capítulo.” (BERGSON, 2008, p. 109).

telegrama, expedindo “palavra por palavra”; ora, assim como precisamos saber manipular um aparelho para reenviar um telegrama, é preciso que saibamos reproduzir a imagem que recebemos da percepção. Em outras palavras, que saibamos reconstruí-la por um esforço de síntese[12] (entre ela e as lembranças que possam complementá-la), ou por uma “série de hipóteses”, as quais equivaleriam às diversas imagens escolhidas sucessivamente pela memória. Essa seleção é comandada pelos movimentos cerebrais, que fixam o contorno dos objetos como um quadro. Consequentemente, perceber não pode somente se reduzir a impressões recolhidas ou elaboradas pelo espírito. É preciso, portanto, ter em conta que toda percepção atenta supõe uma reflexão: “[...] a projeção exterior de uma imagem ativamente criada, idêntica ou semelhante ao objeto e que vem moldar-se sobre seus contornos.” (BERGSON, 2008, p. 112). Mas não existem apenas essas imagens “idênticas ao objeto”. Nossa memória armazena outras que a ele se assemelham e também outras que possuem com ele um parentesco remoto. Todas essas imagens vão ao encontro da percepção, interpretando-a e dela se nutrindo o suficiente para adquirirem força e vida, a fim de se exteriorizarem. Bergson faz referência às experiências de Münsterberg e Külpe, nesse ponto, mas sobretudo destaca as de Goldscheider e Müller sobre o mecanismo da leitura como um processo de criação ou reconstrução:

[…] esses pesquisadores estabeleceram que a leitura corrente é um verdadeiro trabalho de adivinhação, nosso espírito colhendo aqui e ali alguns traços característicos e preenchendo todo intervalo com lembranças-imagens que, projetadas sobre o papel, substituem-se aos caracteres realmente impressos e nos dão sua ilusão. (BERGSON, 2008, p. 113).

Essas conclusões comprovam que “criamos ou reconstruímos” o tempo todo, de modo que nossa percepção distinta ou refletida pode ser comparada a um círculo fechado ou, mais propriamente, a um circuito elétrico no qual todos os elementos se mantêm “em estado de tensão[13] mútua”. Bergson insiste nessa comparação, porque ela indica uma representação da percepção atenta muito distinta daquela costumeiramente aceita pelos estudiosos do tema. Ou seja, uma percepção que não é mais um processo de trajeto único, que iria da excitação ocasionada pelo objeto às sensações, das sensações às ideias e destas a pontos cada vez mais longínquos de nossa memória, fazendo-nos distanciar cada vez mais do objeto e não voltando mais ele. De modo contrário, a tese de Bergson sobre a percepção atenta supõe esse estado de tensão mútua, como um circuito elétrico, justamente porque essa representação ilustra a estreita junção entre o espírito e seu objeto: “[...] nenhum estímulo partido do objeto é capaz de deter sua marcha nas profundezas do espírito”, ele deve sempre retornar ao objeto percebido (BERGSON, 2008, p. 114). O termo usado é “solidariedade”, de maneira que uma mudança, no estado de concentração, a passagem a estados de concentração superior, por exemplo, provoca uma transformação no sistema, quer dizer, “circuitos completamente novos” são criados; esses circuitos envolvem o primeiro circuito, mas têm em comum com ele apenas o objeto percebido (BERGSON, 2008, p. 114). Tal é a concepção bergsoniana do trabalho intelectual envolvido no ato de atenção![14]

Através do exemplo da Figura 1 (BERGSON, 2008, p. 115), Bergson faz menção a esses diferentes círculos da memória que serão estudados no terceiro capítulo: há primeiramente o círculo mais restrito, mais próximo da percepção imediata e que por isso contém apenas o objeto e a imagem consecutiva que vem cobri-lo; atrás dele haveria outros círculos, os quais serão tanto maiores quanto maior for o esforço de “expansão intelectual”. E já antecipa uma tese que será basilar no próximo capítulo, qual seja: no reconhecimento atento, a totalidade memória está presente em cada um desses círculos; capaz de dilatar-se indefinidamente, essa memória reflete sobre objeto seus próprios detalhes ou aqueles que podem ajudar a compreendê-lo. É assim que não apenas reconstruímos o objeto, mas ainda, com ele, as condições virtualmente dadas no sistema que o envolve. Em outras palavras: a atenção progride de tal forma que ela cria[15] novamente, “[...] não apenas o objeto percebido, mas os sistemas cada vez mais vastos aos quais ele pode se associar”; quanto mais a memória se expande, camadas mais profundas da realidade são reconhecidas (BERGSON, 2008, p. 115). É nesse sentido que há uma repetição da “mesma vida psicológica” em um “[...] número indefinido de vezes, nos estágios sucessivos da memória, e o mesmo ato do espírito poderia ser desempenhado em muitas alturas diferentes.” Mas a percepção presente orienta a ação, que, por sua vez, exige a explicitação de um saber do passado, juntamente com a adaptação precisa à situação presente. Desse modo, “[...] no esforço de atenção, o espirito, que é memória, se dá sempre por inteiro, mas se simplifica ou se complica conforme o nível que escolhe para realizar suas evoluções” (BERGSON, 2008, p. 115). Tudo depende do grau de tensão adotado pelo nosso espírito, que pode fazer com que a percepção desenvolva em nós um número determinado de lembranças-imagens. Enfim, sendo “[...] reconhecimento em todos os seus estágios, ou seja, sentido do presente pelo saber do passado, descoberta do sentido das situações dadas” (HYPPOLITE, 1991, p. 476), essa memória atenta é criadora, viva, maleável e móvel em seu esforço de interpretação e adaptação à situação presente.

percepção concreta: a continuidade entre presente e passado, o exeMplo do cone

Para Bergson, a autonomia da memória é dada pela conservação em si do passado. Sendo evidente a realidade do espírito, é “[...] no fenômeno da memória que devemos tocá-lo experimentalmente.” (BERGSON, 2008, p. 76-77). No entanto, essa autonomia ocorre mais de direito do que de fato, pois, tanto a lembrança pura quanto a lembrança-imagem e a percepção não se produzem, “de fato”, isoladamente (BERGSON, 2008, p. 147). Como mostrou, em seu primeiro capítulo, a percepção da matéria não se constitui sem a “adesão” de certas lembranças à percepção, o que indicava que a matéria não nos é dada em toda a sua radicalidade externa e objetiva: a percepção, com efeito, “[...] está impregnada de lembranças-imagens que a completam interpretando-a” (BERGSON, 2008, p. 147); como se, desse modo, a matéria passasse por uma espécie de “consciencialização” ao ser percebida. Por outro lado, é o recorte que nossa inserção perceptiva opera no mundo que determina as lembranças as quais irão inserir-se à percepção e ajustar-se à situação presente. Essas lembranças, que a todo momento se encarnam na percepção, participam da lembrança pura e, ao encarnar-se, começam a materializá-la, ou naturalizá-la, uma vez que ela existe apenas de direito.[16] Ora, é nesse sentido que essas lembranças, que Bergson denomina lembranças-imagem, participam ao mesmo tempo da lembrança pura e da percepção. São um misto, e por isso possibilitam uma continuidade entre passado e presente, tornando “[...] impossível afirmar com precisão onde um dos termos [percepção, lembrançaimagem e lembrança pura] acaba, onde começa o outro.” (BERGSON, 2008, p. 148). Caberia então perguntar: se há essa espécie de continuidade, como pensar a radical diferença entre espírito e corpo, ou memória e percepção? Operando uma separação entre espírito e matéria, que, na verdade, nunca se realiza inteiramente. Assim como há uma virtual coincidência da consciência com as coisas, há também uma virtual coincidência da consciência consigo mesma. Ambas as possibilidades nunca se realizam inteiramente. A causa da impossibilidade dessas coincidências é a impossibilidade de viver inteiramente a duração das coisas e a da consciência. Por isso, nunca há liberdade completa, nem necessidade realmente absoluta. É nesse sentido que, em Bergson, o problema da relação entre alma e corpo é equacionado no plano da relação e não no da definição dos termos.

No terceiro capítulo de Matéria e memória, nosso filósofo revela um dado crucial que permite esse equacionamento. Trata-se de uma precisão conceitual, a qual parte da seguinte indagação: “O que é para mim o momento presente?” (BERGSON, 2008, p. 152). O que está em jogo é a noção de consciência presente que, adverte Bergson, não é instantânea: ela é na verdade a contração do passado e do futuro imediatos, e por isso “já é memória”: percepção do passado imediato, de um lado, determinação do futuro imediato, de outro (BERGSON, 2008, p. 153). Bergson é ainda mais preciso, ao afirmar que o presente concreto “[...] consiste em grande parte no passado imediato”, pois, na “mais breve percepção possível de luz” há uma duração:

[…] trilhões de vibrações tiveram lugar, sendo que a primeira está separada da última por um intervalo enormemente dividido. A sua percepção, por mais instantânea, consiste portanto numa incalculável quantidade de elementos rememorados […]. Nós só percebemos, praticamente, o passado, o presente puro sendo o inapreensível avanço do passado a roer o futuro. (BERGSON, 2008, p. 167).

Assim, Bergson (2008, p. 168) acredita poder mostrar, nesse ponto, o vínculo entre as duas espécies de memória, anteriormente separadas: uma vez que o presente é, na verdade, nosso passado imediato, e se não percebemos praticamente senão o passado, e a consciência presente sendo já memória, as duas memórias vão se unir intimamente[17]. Como consequência, o corpo adquire uma nova dimensão. Ele torna-se a parte de nossa representação que está sempre renascendo, sempre presente, limite de nossa consciência; mas também surge como o lugar de passagem[18] dos movimentos que recebemos e dos que devolvemos, por isso, é sede dos fenômenos sensório-motores (BERGSON, 2008, p. 169). Nosso filósofo propõe, dessa forma, representar todas as lembranças acumuladas em nossa memória pela figura de um cone (BERGSON, 2008, p. 169): deste, a base, assentada no passado, é imóvel; o vértice, situado no presente e avançando sem cessar, incessantemente toca o “plano móvel” de nossa representação atual: nele, concentra-se a imagem de nosso corpo, que, evidentemente, faz parte também de nossa representação atual: sua função é receber e reagir às ações vindas das imagens que formam o campo de nossa representação (BERGSON, 2008, p. 169). Nessa representação[19], a relação entre a memória espontânea e a memória motora é contínua: a todo momento há um trânsito entre elas, que, nesse movimento dinâmico, se complementam. Inseparáveis, a memória verdadeira serve de base à memória do corpo, “[...] constituída pelo conjunto dos sistemas sensóriomotores que o hábito organizou, é portanto uma memória quase instantânea.” (BERGSON, 2008, p. 169). Ou seja, a “memória pura” coloca à disposição dos mecanismos sensório-motores as lembranças que vão orientá-los e dirigilos, conforme a reação apropriada; e os aparelhos sensório-motores, de sua parte, definem o meio de as “lembranças impotentes” se tornarem presentes. Quer dizer, é preciso que a lembrança “[...] desça das alturas da memórias pura” para poder inserir-se no plano da ação e tornar-se consciente. Contudo, é preciso que o presente lance um apelo, ao qual a lembrança responde, pois “[...] é dos elementos sensório-motores da ação presente que a lembrança retira o calor que lhe confere vida” (BERGSON, 2008, p. 170).

Esse vai e vem contínuo entre as extremidades do cone, ou seja, entre as duas memórias (mecanismos motores e a totalidade do passado) caracteriza nossa atividade normal consciente. A adequação entre essa totalidade e esses mecanismos, entre o que denomina plano do sonho e plano da ação, Bergson chama de bom senso ou senso prático. A “firmeza” desse ajuste entre a memória do corpo e a memória pura, assim como a maneira “precisa” como ambas se inserem uma na outra, serão precisamente os indicadores dos “espíritos bem equilibrados”, isto é, aqueles que se adaptam perfeitamente à vida: homens de ação que com presteza e sagacidade conseguem convocar todas as lembranças capazes de auxiliá-lo numa dada situação, mesmo que esses indivíduos constituam verdadeiras barreiras às lembranças inúteis ou indiferentes. Bergson distingue o impulsivo do sonhador: o primeiro seria aquele que, por falta de sagacidade, reage imediatamente a uma excitação, aquele que caminha muito rápido na ansiedade de viver o puro presente; já o segundo  também não se mostraria adaptado à ação, uma vez que sua característica principal é viver no passado meramente por prazer, as lembranças emergindo à sua consciência, mas não tendo qualquer proveito para a situação atual. Nenhum dos dois possuiria bom senso, que é, com efeito, saber ajustar percepção e lembrança, isto é, saber fazer com que a memória siga com precisão os contornos da situação presente, a ponto de resistir a qualquer outro apelo (BERGSON, 2008, p. 170).

Um ser humano que sonhasse sua existência ao invés de vivê-la manteria certamente sob seu olhar, a todo momento, a multidão infinita de detalhes de sua história passada. E aquele que, ao contrário, repudiasse essa memória com tudo o que ela engendra, encenaria sem cessar sua existência ao invés de representá-la verdadeiramente: autômato consciente, seguiria a encosta dos hábitos úteis que prolongam a excitação em reação apropriada. (BERGSON, 2008, p. 172).

O primeiro indivíduo não conseguiria sair do particular e do individual, considerando cada imagem a partir de seu lugar e data, ou seja, do que uma difere das outras; o outro estaria sempre conduzido pelo hábito e, por isso, extrairia de uma situação o aspecto que se assemelha praticamente a outras, conferindo, assim, uma determinada generalidade à sua ação. A manifestação plena desses estados extremos ocorre excepcionalmente. Na vida normal, eles se “[...] penetram intimamente, abandonando deste modo, um e outro, algo de sua pureza original.” (BERGSON, 2008, p. 173). A ideia geral aparece justamente na confluência desses extremos.

as ideias gerais e os planos de consciência

O exemplo do cone e a relação entre as duas memórias servem de base para a formulação de uma teoria sobre as ideias gerais, fundamentada na “percepção das semelhanças”. Bergson (2008, p. 173) anuncia que seu propósito é “[...] seguir a memória pura, a memória integral, no esforço contínuo que ela faz para inserir-se no hábito motor.” Com esse propósito, acredita que conhecerá melhor o papel e a natureza dessa memória, assim como procurará esclarecer as noções de semelhança e generalidade. O ponto de partida de sua teoria, diferentemente das teorias nominalistas e conceitualistas, as quais ele critica[20], é a ideia de que, na percepção, partimos do geral e não do particular, e que é a intervenção da memória que, aos poucos, particulariza o objeto (o exemplo do reconhecimento atento já mostrava como, ao abranger cada vez mais a totalidade do passado, o objeto da percepção também era reconhecido). Bergson refere-se a um fundo de generalidade ou semelhança: a cor e o odor do capim que são sentidos como generalidade pelo herbívoro, por exemplo. “É o capim em geral que atrai o herbívoro”. Essa generalidade sentida é o único dado imediato de sua percepção exterior, limitada pelas necessidades de uma determinada situação.[21] Somente após essa apreensão primeira do “capim em geral”, a memória do herbívoro fará as diferenciações entre os tipos de paisagem. Essa operação, que extrai as semelhanças do meio, não é um “esforço” de natureza psicológica, mas, antes, o desenvolvimento de uma tendência existente no mundo físico: a ação do ácido clorídrico sobre o carbonato de cálcio é sempre a mesma, assim como a planta extrai dos solos mais diversos o mesmo nutriente e o animal percebe em seu ambiente imediato apenas o que interessa praticamente. Assim, quando percebemos, vamos sempre das semelhanças às diferenças individuais, do todo às partes.

De fato, percebemos as semelhanças antes dos indivíduos que se assemelham, e, num agregado de partes contíguas, o todo antes das partes. Vamos da semelhança aos objetos semelhantes, bordando sobre a semelhança, essa talagarça comum, a variedade das diferenças individuais. (BERGSON, 2008, p. 183-184).

Essa concepção de Bergson traz consequências importantes em relação à tese psicológica do primado da associação de ideias, porque ela pressupõe que nossa percepção começa por uma dissociação (parcelamos a continuidade do real) do todo, e deste extraímos só o que nos interessa praticamente. Essa generalidade da sensação é explicada pelo próprio modo de funcionamento dos esquemas motores, os quais levam em conta apenas as percepções que se prolongam em reações semelhantes e o organismo podendo obter o mesmo resultado útil – acionando um mesmo mecanismo de ação. As nuances mais variadas e percepções mais diversas são subsumidas a uma ideia geral sentida e experimentada.

No entanto, Bergson postula a existência de uma outra generalidade (uma vez que a semelhança de que o espírito parte não é a semelhança a que o espírito chega, quando conscientemente generaliza): desse modo, partimos (o espírito) “[...] de uma semelhança sentida, vivida ou, se quiserem, automaticamente desempenhada”, para chegarmos a uma semelhança inteligentemente percebida ou pensada (BERGSON, 2008, p. 178-179). No desenrolar desse processo, ocorre um duplo esforço da memória[22] e do entendimento: a primeira, introduzindo distinções nas semelhanças; o segundo, procurando extrair do hábito das semelhanças “a ideia clara de generalidade.”

Essa idéia de generalidade não era, na origem, senão nossa consciência de uma identidade de atitude numa diversidade de situações; era o próprio hábito, remontando da esfera dos movimentos à do pensamento. Mas, dos gêneros assim esboçados mecanicamente pelo hábito, passamos, por um esforço de reflexão efetuado sobre essa própria operação, à idéia geral do gênero; e, uma vez constituída essa idéia, construímos, agora voluntariamente, um número ilimitado de noções gerais. (BERGSON, 2008, p. 179).

A reflexão pela qual chegamos à ideia geral (passagem da generalidade sensível à generalidade intelectual) é uma capacidade de nosso entendimento de forjar novos esquemas motores, imitando aqueles fornecidos pela natureza. Esses aparelhos artificiais respondem, em “número limitado”, a “uma quantidade ilimitada de objetos individuais”: a palavra pronunciada “cadeira”, por exemplo, responde a uma quantidade de cadeiras individuais.

Essa operação que nos torna capazes de construir gêneros forma, segundo Bergson, imagens “instáveis e evanescentes”; em que consiste esse fenômeno essencial da vida mental? Ele se reporta ao esquema do cone antes traçado: a ideia geral move-se incessantemente entre o vértice (esfera da ação – equilíbrio sensório-motor) e a base (esfera da memória pura – lembranças em sua totalidade); no vértice, a ideia geral adquire a “forma bem nítida de uma atitude corporal ou de uma palavra pronunciada”, na base, “o aspecto, não menos nítido, dos milhares de imagens individuais nas quais viria se romper sua unidade frágil”. O essencial aqui é que a ideia geral é um progresso.[23] A imagem do cone sendo fundamental, pois não conseguimos fixá-la em nenhuma das suas extremidades, ela nos escapa: “Ela consiste na dupla corrente que vai de uma à outra - sempre pronta, seja a cristalizar-se em palavras pronunciadas, seja a evaporar-se em lembranças.” (BERGSON, 2008, p. 180).

Contudo, é preciso completar essa imagem e mostrar que “[...] há milhares e milhares de repetições de nossa vida psicológica” (BERGSON, 2008, p. 181), figuradas por outras seções do cone, repetições, como havia sugerido anteriormente[24], que garantem a união entre a memória pura (base do cone) e os esquemas corporais (vértice do cone). Desse modo, Bergson retoma sua teoria do reconhecimento[25] para explicar o “mecanismo” envolvido nas associações sucessivas entre percepção e lembranças. Esse ponto é, para nós, central:   

Supusemos que nossa personalidade inteira, com a totalidade de nossas lembranças, participava, indivisa, de nossa percepção presente. Então, se essa percepção evoca sucessivamente lembranças diferentes, não é por uma adjunção mecânica de elementos cada vez mais numerosos que ela exerceria, imóvel, uma atração ao seu redor; é por uma dilatação de nossa consciência inteira, que, expandindo-se sobre uma superfície mais vasta, é capaz de levar mais longe o inventário detalhado de sua riqueza. Tal como uma nebulosa, vista em telescópios cada vez mais potentes, converte-se em um número crescente de estrelas. (BERGSON, 2008, p. 184).

Segundo Bergson, a teoria associacionista é incapaz de explicar a associação de ideias, devido à sua concepção atomista da vida psicológica. Ao conceber percepção e lembrança como “átomos psicológicos”, realidades fixas, ela não consegue esclarecer por que e como uma lembrança escolhe outras para associar-se, seja por contiguidade, seja por semelhança, e acaba supondo “forças misteriosas” e mesmo o acaso como responsáveis por essa associação. Ora, nossos estados internos e a consciência imediata constituem um todo indiviso e solidário. Assim, a associação das ideias pode ser explicada pelo “[...] duplo movimento de contração e de expansão pelo qual a consciência estreita ou alarga o desenvolvimento de seu conteúdo” (BERGSON, 2008, p. 185), movimento que é deduzido das “necessidades fundamentais da vida.”( BERGSON, 2008, p. 185-190). Oscilando entre as duas extremidades do cone, nossa vida psicológica normal realiza um duplo esforço, do qual resulta, “[...] a todo instante, uma quantidade indefinida de estados possíveis da memória”, repetições da totalidade de nossa vida passada, como já havia pontuado, os quais denomina agora planos de consciência. Ora, a amplitude desses planos depende de sua maior ou menor aproximação da base do cone; por outro lado, o que vier à luz terá que se enquadrar no esquema sensóriomotor e àquilo que se assemelha à percepção e a ação a se realizar.

Em outros termos, a memória integral responde ao apelo de um estado presente através de dois movimentos simultâneos, um de translação, pelo qual ela se dirige por inteiro ao encontro da experiência e se contrai mais ou menos, sem se dividir, em vista da ação, o outro de rotação sobre si mesma, pelo qual se orienta para a situação do momento a fim de apresentar-lhe a face mais útil. (BERGSON, 2008, p. 188).

Assim, há os movimentos de contração ou de expansão, pelos quais a consciência presente contrai, e a lembrança adquire uma “forma mais banal”, ou alarga a totalidade de seu conteúdo, e a lembrança se torna mais pessoal; porém, existe ainda, em cada nível possível, uma explicitação de determinada situação passada que pode dar conta do presente. Enfim, há um passado individual que pode ser explicitado conforme a situação presente, mas essa explicitação pode ser feita em diversos níveis ou tons mentais, os quais correspondem aos sucessivos e distintos graus de tensão da memória.[26]

Terminemos nosso texto apenas pontuando o que escreve Bergson, nas páginas conclusivas de seu livro:

Completar uma lembrança com detalhes mais pessoais não consiste, de modo algum, em justapor mecanicamente lembranças a esta lembrança, mas em transportar-se a um plano de consciência mais extenso, em afastar-se da ação na direção do sonho. Localizar uma lembrança não consiste também em inseri-la mecanicamente entre outras lembranças, mas em descrever, por uma expansão crescente da memória em sua integralidade, um círculo suficientemente amplo para que esse detalhe do passado aí apareça. Esses planos não são dados, aliás, como coisas inteiramente prontas, superpostas umas às outras. Eles existem antes virtualmente, com essa experiência que é própria às coisas do espírito. A inteligência, movendo-se a todo instante ao longo do intervalo que os separa, os reencontra, ou melhor, os cria de novo sem cessar: sua vida consiste nesse próprio movimento. (BERGSON, 2008, p. 272, grifo nosso).

Portanto, a memória, em Bergson, é essencialmente uma atividade criadora: contraindo-se ou expandindo-se, “cria” os “milhares e milhares” de planos de consciência – ou cortes – virtuais, pois são espirituais, que compõem o intervalo entre o plano do sonho e o plano de ação. Sendo consciência presente, ao mesmo tempo que dá sentido à experiência, nela introduz um saber, de modo que, adaptando-se ao real, não faz senão a “[...] síntese do passado e do presente em vista do futuro.” (BERGSON, 2008, p. 248). 

abstract: Starting from the distinction between the two forms of memory, our intention is to show the creative aspect of memory in Bergson. To do so, we will investigate some examples from the second and third chapters of Bergson’s second book, Matter and Memory.

Keywords: Bergson. Memory. Creation. Attention. Consciousness.

referências

BERGSON, H. Matéria e memória. São Paulo : Martins Fontes, 1999.

 ______. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

______. Matière et mémoire. Edition critique. Paris: PUF, 2008.

DELEUZE, G. Le Bergsonisme. Paris: PUF, 1997.

HYPPOLITE, J. Figures de la pensée philosophique. Paris: PUF, 1991. T. I. Cap. VII.

MOURÉLOS, G. Bergson et les niveaux de réalité. Paris: PUF, 1964.

WORMS, F. Introduction à Matière et mémoire de Bergson. Paris, PUF, 1997a.

______. La théorie bergsonienne des plans de conscience: genèse, structure et signification de Matière et mémoire. In: GALLOIS, P.; FORZY, G. (Dir.). Bergson et les neurosciences. Le Plessis Robinson: Institut Synthélabo pour le progrès de la connaissance, 1997b. p. 85-108. ______. A concepção bergsoniana de tempo. Dois Pontos : Revista dos Departamentos de Filosofia da Universidade Federal do Paraná e da Universidade Federal de São Carlos, v. 1, n. 1, p.129-149, 2004.

______. Bergson ou os dois sentidos da vida. São Paulo: UNIFESP, 2011.

Recebido em 09/01/2017

Aceito em 19/02/2017



[1] Silene Torres Marques é professora da Universidade Federal de São Carlos e atua na área de Filosofia

Francesa Contemporânea. E-mail: silenetmarques@hotmail.com

[2] “Sua imagem imprimiu-se necessariamente de imediato na memória, já que as outras leituras constituem por definição, lembranças diferentes.” (BERGSON, 2008, p. 84). 

[3] De acordo com uma das teses principais do primeiro capítulo do livro, nossa percepção possui uma função essencialmente adaptadora, a qual a distancia do conhecimento puro e a vincula ao discernimento prático.

[4] De acordo com Bergson (2008, P. 89), essa seria a própria finalidade de nosso sistema nervoso: os nervos aferentes levam ao cérebro excitações que escolhem “inteligentemente sua via” e depois se transmitem aos mecanismos motores que foram criados pela repetição.

[5] Tema tratado por Bergson, entre as páginas 147 e 167.

[6] Esse critério é o mesmo que, no primeiro capítulo do livro, vigorava para a seleção das imagens pelo corpo.

[7] Bergson utiliza a expressão “atenção à vida” no terceiro capítulo do livro (p. 192-193).

[8] Conforme p. 147-152 e 155-164.

[9] Na verdade, há uma confusão entre “a memória que retém e alinha as repetições sucessivas sob forma de imagens-lembranças” e o “hábito que o exercício aperfeiçoa”; assim, o efeito da repetição relacionase com um “único e mesmo fenômeno indivisível”, o qual, reforçando-se ao se repetir, torna-se mais visível. Mas, como se trata de um hábito motor que corresponde a um mecanismo, acaba-se por supor que esse mecanismo estaria desde sempre no “fundo da imagem”, e que o cérebro é um “órgão de representação.” (BERGSON, 2008, p. 96). 

[10] De acordo com a definição dada por Bergson, no prefácio, e sua perspectiva de abordagem nos dois capítulos centrais do livro. A psicologia, afirma, “[...] tem por objeto o estudo do espírito humano funcionando utilmente para a prática”; e, ainda: “[...] a análise psicológica deve se pautar a todo momento sobre o caráter utilitário de nossas funções mentais, essencialmente voltadas para a ação.” (BERGSON, 2008, p. 8-9).

[11] A abordagem do reconhecimento atento é central para a confirmação da hipótese, apresentada na página 108, sobre o papel do cérebro na conservação das lembranças. Segundo Bergson, o papel do abalo (movimento) propagado pelos nervos aferentes aos centros perceptivos não é fazer surgir imagens (o que sustentaria a tese de que a memória é uma função do cérebro) e sim “[...] imprimir ao corpo uma certa atitude na qual as lembranças vêm inserir-se.” Esses abalos se limitam a movimentos que garantem a adaptação do corpo ao meio, sendo as lembranças, portanto, de outra ordem. Assim, a explicação sobre os distúrbios de memória surgidos de uma lesão cerebral não poderia se fundamentar na hipótese de que as lembranças possuíam um lugar na região lesada e foram com ela destruídas. A

[12] Bergson diverge da maioria dos autores citados nas páginas 109 e 110 (dentre eles Wundt, Maudsley e Ribot), os quais acreditam que a atenção seja um meio de análise uma vez que ela tornaria o objeto mais distinto e diferente dos outros; para Bergson (2008, p. 349-355 notas), a análise seria na verdade o resultado de uma série de sínteses entre percepções e lembranças.

[13] Primeira aparição do termo “tensão” de enorme importância para a compreensão dos “tons” da vida mental e os planos de consciência no terceiro capítulo.

[14] Essa atenção será posteriormente denominada “esforço intelectual”. Cf. “O esforço intelectual”, estudo aparecido em 1902, na Revista Philosophique.

[15] Grifo nosso.

[16] Percepção pura e lembrança pura aparecem em Matéria e memória como os limites de nossa experiência real; diferentes em natureza, existem de direito, como condições dessa experiência.   

[17] De fato, na economia geral da obra, Bergson (2008, p. 156-166) já demonstrara a noção de existência e a necessidade de se admitir estados psicológicos inconscientes.

[18] Nosso corpo, a todo instante, elabora um corte transversal no devir universal (BERGSON, 2008p. 81 e 154).

[19] Que não difere da representação antes feita do reconhecimento atento: trata-se de mostrar como nosso passado se insere no presente, de sorte a dar conta das exigências da situação presente.

[20] Para Bergson (2008, p. 176), há um postulado comum a essas teorias: “[...] ambas supõem que partimos da percepção de objetos individuais. A primeira compõe o gênero por uma enumeração; a segunda o extrai através de uma análise; mas é sobre indivíduos, considerados como realidades dadas à intuição imediata, que incidem a análise e a enumeração.”  

[21] “Dê agora um passo a mais; imagine uma consciência rudimentar como pode ser a de uma ameba agitando-se em uma gota d’água: o animálculo sentirá a semelhança, e não a diferença, das diversas substâncias orgânicas que é capaz de assimilar.” (BERGSON, 2008, p. 177-178).

[22] Grifo nosso.

[23] Essa é a base da crítica ao nominalismo e ao conceitualismo.

[24] Como apontamos na página 07 (p. 115-116).

[25] Conforme página 06 (p. 114-115).

[26] “Uma palavra de uma língua estrangeira, pronunciada a meu ouvido, pode fazer-me pensar nessa língua em geral ou em uma voz que a pronunciava outrora de uma certa maneira. Essas duas associações por semelhança não se devem à chegada acidental de duas representações diferentes que o acaso teria trazido sucessivamente à esfera de atração da percepção atual. Elas respondem a duas disposições mentais diversas, a dois graus distintos de tensão da memória, aqui mais próxima à imagem pura, ali mais voltada à resposta imediata, ou seja, à ação.” (BERGSON, 2008, p. 188-189).