Pulsão e dimensão:

Heidegger e a estrutura da aPtidão orgânica[1]

Róbson Ramos dos Reis[2]

resumo: Nos Conceitos fundamentais da metafísica, Heidegger esboçou uma ontologia da vida que concebe os animais e as plantas como totalidades relacionais compostas por aptidões, complexidade orgânica e relação ao ambiente. A estrutura da aptidão é apresentada como formalmente determinada pelo fenômeno da pulsão (Trieb). Tal determinação concede à aptidão a característica de uma dimensão em sentido formal. Neste artigo, realizo uma análise da dimensionalidade orgânica, a partir de dois aspectos da dimensão enquanto tal: a travessia de algo para algo e o domínio de regra para a acolhida de uma multiplicidade. Esses aspectos proporcionam o marco para examinar a dimensionalidade da aptidão pulsional. Da análise resulta que o traço dimensional das aptidões compromete a ontologia da vida, com a aceitação de características como não fixidez, desenvolvimento plástico e relacionalidade ao ambiente e a si mesmo.

Palavras-cHave:  Heidegger. Vida. Aptidão. Pulsão. Dimensão. Regra.

1.

No curso de inverno de 1929/1930, publicado em 1983 sob o título Conceitos fundamentais da metafísica, Heidegger ofereceu uma extensa e detalhada interpretação da condição ontológica dos seres humanos, que devem ser compreendidos como formadores de mundo (weltbildend). Para interpretar o fenômeno do mundo, foi realizada uma comparação com os entes que seriam desprovidos de mundo (weltlos) e com aqueles que seriam pobres de mundo (weltarm). De acordo com tal interpretação, animais e plantas são os domínios de entes cujo modo de ser, a vida, implica uma maneira de determinação e individuação que não seria caracterizada por uma abertura intencional estruturada por mundo. Esse resultado sobre o modo de ser da vida de animais e plantas, por sua vez, resultou de uma interpretação de conceitos fundamentais das ciências biológicas. Segundo essa elucidação, os entes cuja identidade é dada no modo de ser da vida são determinados por duas características: organismo e movimento. Apesar de conter extensas análises, conduzidas em contato direto com as investigações de Hans Spemann, Jacob v. Uexküll e Hans Driesch, a interpretação é incompleta, pois a análise da mobilidade vital não foi realizada. A interpretação ofereceu apenas resultados parciais referentes à noção de organismo.[3] A despeito de ser parcial, a articulação do modo de ser da vida resultou na apresentação de três condições ontológicas que devem ser satisfeitas, para que um determinado ente seja tomado como vivo: 1) ser capaz de um comportamento cativado, isto é, de um tipo de movimento não redutível a processos físico-químicos; 2) possuir um direcionamento intencional para o que se apresenta como fomentador de comportamentos, num círculo ambiental; e 3) oferecer uma esfera de transposição para a qual entes intencionais, humanos ou não, podem ser transpostos, e desenvolver um acompanhamento intencional.[4]

De acordo com essa análise, um indivíduo vivo é uma unidade relacional de aptidões diversificadas. Por conseguinte, a relacionalidade é uma determinação estrutural no modo de ser da vida. Isso significa que a relação ao ambiente não é uma qualificação derivada, de tal sorte que um organismo estaria determinado e adicionalmente ainda possuiria uma relação ambiental. No círculo relacional que é próprio de cada organismo, são desenvolvidos comportamentos de um tipo especial. O organismo não simplesmente reage a estímulos causais de natureza físico-química, mas se comporta em relação a algo com um conteúdo intencional. Não obstante, nesses comportamentos, não haveria a estrutura do algo enquanto algo, que reúne o acesso às condições de identidade do conteúdo intencional (HEIDEGGER, 1983, p. 360-361). Os comportamentos, por sua vez, são relativos a disposições ou aptidões. As aptidões são consideradas mais básicas que os comportamentos e que os sistemas de órgãos os quais perfazem a unidade orgânica. As determinações vitais são, portanto, disposições ou modalidades dinâmicas,[5] e os entes vivos se constituem como unidades de capacidades que têm e dão possibilidades (HEIDEGGER, 1983, p. 321). A unidade das aptidões, por fim, é formada por uma aptidão fundamental, a saber, a capacidade para envolvimento ambiental em um círculo relacional em que algo fomenta comportamentos determinados.

Em resumo, a interpretação ontológica da vida tem, no conceito de aptidão, um fundamento muito básico. Os organismos vivos são entendidos, segundo essa análise, como totalidades disposicionais que formam tecidos e órgãos, colocando-os a seu serviço e promovendo comportamentos referidos a algo que comparece num círculo ambiental próprio. A interpretação da estrutura da aptidão é, pois, um ponto decisivo na ontologia da vida orgânica oferecida por Heidegger. Nesse sentido, o fenômeno central na articulação da estrutura da aptidão é apresentado com a noção de pulsão (Trieb).

2.

O conceito de pulsão é introduzido na interpretação da aptidão orgânica no contexto da diferenciação entre utensílio e órgão. Formalmente, órgãos e utensílios são entes dotados de propriedades modais, o que admite ser expresso no esquema:

1)  X pode B

Entretanto, utensílios e órgãos possuem classes irredutivelmente distintas de propriedades modais: prontidões (Fertigkeiten) e aptidões (Fähigkeiten). Considerando um utensílio U (uma foice) e um órgão O (uma mão), e considerando B como uma classe de atividades, então a diferença entre utensílio e órgão é expressa com as duas instâncias:

2)  U está pronto para B (cortar).

3)  O é apto para B (segurar).

O esquema geral dissimula, entretanto, uma diferença essencial entre órgãos e utensílios. Diferentemente dos utensílios, os órgãos não possuem aptidões, mas, ao contrário, são dependentes das aptidões. As aptidões é que possuem órgãos. Os órgãos estão postos a serviço das aptidões, ao passo que os utensílios possuem utilidades. Além disso, as atividades a que um órgão está apto organizam-se de tal forma a proporcionar certos comportamentos num ambiente. Por fim, o órgão apto está internamente transladado para o seu “para-quê”, diferentemente do utensílio, que necessita de uma ação externa. Pode-se expressar essa condição dizendo que, se um órgão é apto para B, então 1) está a serviço da aptidão para B, e 2) está transladado para B. O órgão apto possui uma condição de ação contínua, o que é expresso com um gerúndio. Desse modo, se um órgão O é apto para B, então O está “Bndo”.[6]

Essa condição representa a presença de um impulsionamento para as metas dos órgãos aptos. Assim, o que é apto, como um ouvido, por exemplo, pertence à aptidão auditiva e sempre está já transladado para a meta de ouvir. Naturalmente, é preciso qualificar essa característica, pois Heidegger não sustenta que não existam interrupções na atividade do órgão. A tese exata é a de que o órgão, sendo dependente da aptidão, é regulado de tal sorte que o seu deixar de efetuar a atividade a que está apto é, igualmente, algo condicionado pela aptidão. A suspensão na atividade continuada também é integrante do ordenamento proporcionado pela aptidão ao órgão. Nesse ponto da análise, Heidegger escreve a respeito do que é apto (das Fähige):

Ele impele a si mesmo de uma maneira determinada para o interior de seu ser-apto para... Este impelir-se e ser-impelido para o interior de um para-quê só é possível no que é apto, se o ser-apto é em geral pulsional. Só há aptidão onde há pulsão. E só onde há pulsão já há também de algum modo, mesmo que ainda sem regra e sob a forma de ensaio, aptidão; e aí subsiste, por sua vez, a possibilidade do adestramento. (HEIDEGGER, 1983, p. 334).

Vê-se, portanto, que o ser-capaz é formalmente qualificado como pulsional. Sem pulsão não há aptidão. Sem considerar agora a relação entre pulsão e adestramento,[7] importa frisar que o caráter pulsional da aptidão orgânica evidencia o tipo de dinamismo próprio da determinação disposicional dos organismos vivos. Dessa forma, tendo presente a característica pulsional da aptidão, o translado até o para-quê do órgão pode ser designado como a condição de ação pulsional contínua. Heidegger avança a análise desse aspecto central na diferença entre órgão e utensílio, destacando uma segunda característica formal da aptidão, a qual é derivada da determinação pulsional:

O pulsional manter-se impulsionado para o interior de um para-quê dá ao ser-apto este caráter de uma travessia (Durchmessung),[8] de uma dimensão em sentido formal, enquanto que, no caso da prontidão, está justamente pronto. A dimensão ainda não está sendo tomada em sentido espacial, mas este caráter dimensional da pulsão e de todo apto qualificado como estar-a-serviço-de (alles diensthaft Fähigen) é a condição de possibilidade para que o animal possa atravessar de uma maneira totalmente determinada um espaço, seja no sentido de um espaço de voo ou do espaço específico que o peixe possui; espaços que, em sua estrutura, são totalmente diferentes uns dos outros. (HEIDEGGER, 1983, p. 334).

A passagem condensa três passos relevantes para a determinação formal da aptidão e do modo de ser da vida em geral: 1) identifica os portadores do traço dimensional ou dimensionalidade, a saber, a pulsão, o ser-apto, e o que é apto e a serviço da aptidão; 2) diferencia a dimensão em sentido formal da dimensão em sentido espacial, estabelecendo uma relação de condicionamento entre a travessia da dimensão em sentido formal e o atravessamento do espaço (e suas dimensões espaciais), por parte de um animal; e 3) estabelece uma completa diferença estrutural no espaço de voo e no espaço de natação dos peixes. Evidentemente, as duas últimas afirmações têm consequências para o entendimento do movimento dos entes vivos no espaço, bem como para a elucidação mais detalhada dos tipos de envolvimentos ambientais em espacialidades estruturalmente diferentes. Contudo, salvo melhor juízo, essas concepções não foram elaboradas por Heidegger. A primeira declaração, entretanto, permite uma análise adicional.

3.

A pulsão é formalmente determinada como uma travessia, um percurso transitado. A isto é acrescentada a característica da dimensão. A pulsão é dimensional, porém, numa acepção inteiramente formal da noção de dimensão. Deve ser ressaltado que o conceito formal de dimensão é usado na interpretação da pulsão, mas não foi objeto de uma elucidação metateórica. No entanto, no comentário de Heidegger à doutrina aristotélica do movimento, há uma importante referência ao sentido formal de “dimensão”. Tendo presente a especificidade do movimento segundo a referência à substância, à quantidade, à qualidade e ao lugar, Heidegger (1976, p. 343) afirma que a transformação ou transição de algo para algo é o caráter mais geral do movimento. No movimento físico de alteração de lugar, mas também no movimento qualitativo (por exemplo, a alteração de cor), está presente o traço de mudança. Ao movimento pertence a estrutura notável (merkwürdige Struktur) do “de algo para algo”, que não precisa ser entendida em sentido espacial. A isso é acrescentado:

A esta estrutura do movimento denominamos sua dimensão e concebemos o conceito de dimensão em um sentido totalmente formal, no qual o caráter de espaço não é essencial. A dimensão significa alcance (Dehnung), sendo que a extensão no sentido da dimensão espacial representa uma determinada modificação do alcance. (HEIDEGGER, 1976, p. 343).

O sentido formal de dimensão é mais geral do que o de dimensão em sentido espacial. Ele refere-se ao interstício ou alcance de variação, que pode ser espacial, mas também é qualitativo ou quantitativo.[9] Todo movimento integra uma transformação de... para. A dimensão em sentido formal ou originário consiste precisamente no alcance de... para.[10] Essa característica do “de... para”, acrescenta Heidegger, deve ser entendida como um sentido totalmente formal de extensão (Erstreckung) ou prolongamento, no qual não está visada a extensão em sentido espacial. O conceito formal de dimensão designa, portanto, uma característica estrutural do movimento em geral.

A noção de dimensão também é trazida por Heidegger, na interpretação do conceito leibniziano de mônada. Na doutrina da mônada como ímpeto (Drang), é ressaltada a tendência à transição de cada estágio respectivo de ímpeto. Na transição dos estágios impetuosos tem-se a formação de unidade e individuação, na qual a mônada tem a possibilidade de conceber-se a si mesma. Pelo fato de a apreensão de si e a unificação da mônada acontecerem na travessia de uma dimensão, Heidegger designa essa abertura como sendo uma abertura dimensional de si (dimensionale Selbstoffenheit):

Algo que, como o ímpeto, é em si mesmo um alcançar, e alcança de tal maneira que é e se mantém neste alcançar, possui em si mesmo a possibilidade de apreender a si mesmo. Em um impulsionar-se para... aquilo que possui ímpeto atravessa uma dimensão, isto é, atravessa a si mesmo e está aberto desta maneira para si mesmo; e está aberto de acordo com sua própria essência. Em razão desta abertura dimensional de si, o que possui ímpeto pode apreender a si mesmo, pode, portanto, além do perceber, apresentar simultaneamente a si mesmo, perceber concomitantemente a si, aperceber. (HEIDEGGER, 1978, p. 117-118).

A despeito de ser um âmbito teórico diferente da doutrina aristotélica do movimento, a presença do termo “dimensão” na interpretação do conceito de mônada sinaliza o elemento comum da estrutura formal da mobilidade, mais propriamente, a transição de... para. Ou seja, Heidegger identifica o traço formal de uma dimensão na doutrina monadológica do ímpeto e da tendência à transição. Nesse caso, não se trata igualmente do sentido espacial, mas de uma modificação muito especial da dimensionalidade, a saber, a modificação em uma dimensão cujo atravessamento promove apercepção ou abertura de si mesmo.

Essas duas referências aportam dois elementos relevantes para o entendimento da noção formal de dimensão. Primeiro, a dimensão em sentido originário significa um prolongamento de... para, uma extensão ou um alcance que está presente no movimento em geral. Todo movimento é uma transição de... para, e possui, em razão disso, uma estrutura dimensional. Em segundo lugar, a dimensão em sentido originário pode sofrer modificações determinadas. Uma delas é a que resulta na dimensão em sentido propriamente espacial. É consistente, além disso, conceber outras modificações dimensionais não espaciais, como as dimensões relativas à quantidade, à qualidade e à substância (no marco da doutrina aristotélica do movimento), e também a dimensão de individuação e apreensão de si mesmo (no âmbito da doutrina leibniziana da mônada como ímpeto). Nesse sentido, é pertinente registrar que Heidegger afirmou que o essencial no entendimento do movimento enquanto transição de... para (μεταβολή) reside no aparecer de algo oculto, no advir à presença (HEIDEGGER, 1996, p. 249).[11] Nesse caso, há uma modificação notável do sentido formal de dimensão, o qual é concernente à dinâmica de saída do ocultamento e chegada à presença manifesta. Em resumo, a dimensionalidade modificável, a que se refere o conceito formal de dimensão, designa o prolongamento ou alcance que vai de algo para algo.

4.

A dimensão originária referida com o conceito formal não é a dimensão propriamente espacial. A travessia da dimensão originária não é, portanto, o percurso ao longo de uma extensão espacial.[12] Não obstante, ao referir-se à dimensionalidade espacial, Heidegger identifica uma determinação adicional que admite ser generalizada para a dimensão enquanto tal. Essa característica, referida na primeira das conferências proferidas em Freiburg, no ano de 1957, é relevante para uma interpretação retrospectiva da característica dimensional das aptidões pulsionais que constituem os organismos vivos. Dimensão é algo familiar que se situa no âmbito do espaço e significa extensão quando se fala, por exemplo, de uma instalação industrial de grandes dimensões. Além disso, também se fala do espaço tridimensional. A respeito da relação entre as dimensões linear e planar, Heidegger (1994, p. 84-85) escreve:

O plano é outra dimensão, em contraste com a linha. Porém, esta não se insere meramente naquela, mas, em relação à multiplicidade linear e acolhendo em si esta multiplicidade, o plano é um outro domínio de estipulação (Bezirk der Maβgabe) para ela. O mesmo vale para o corpo em relação à multiplicidade planar. Corpo, plano, linha contém uma estipulação respectivamente diferente.

Três elementos podem ser ressaltados nessa passagem. A relação entre as dimensões espaciais não é simplesmente quantitativa, no sentido de que haveria uma relação de composição entre as dimensões – por exemplo, a dimensão planar estaria meramente composta por muitas linhas. Em segundo lugar, a dimensão contém em si uma multiplicidade. Por fim, as dimensões espaciais são um âmbito de estipulações ou regras de acolhimento da multiplicidade. Dessa forma, a relação entre as dimensões é a de recepção de uma multiplicidade que já está sob uma regra, em outra estipulação própria. Trata-se, por conseguinte, de uma integração de regras. Logo a seguir, Heidegger amplia a determinação da dimensão como sendo o âmbito da estipulação, o que conduz a um resultado geral sobre a dimensão enquanto tal.

Se deixarmos de lado a restrição ao espaço, então a dimensão mostra-se como o âmbito de uma estipulação. Estipulação e âmbito não são aqui duas coisas distintas ou mesmo separadas, mas uma e a mesma. A estipulação resulta e abre respectivamente um âmbito no qual a estipulação está em casa e pode ser o que é. (HEIDEGGER, 1994, p. 85).

Nessa afirmação, há dois resultados importantes para a análise do conceito formal de dimensão. Primeiro, uma dimensão é um domínio ou âmbito de uma estipulação ou regra (Maβgabe). Como âmbito, a dimensão pode acolher em si uma multiplicidade. Em segundo lugar, a maneira como a dimensão acolhe algo sob si é na forma da submissão a uma regra. A estipulação fornece o elo entre o domínio e o que cai sob ele (MITCHELL, 2015, p. 124). Visto em conexão com a estrutura formal do alcance de algo para algo, a determinação da dimensão como sendo um âmbito da regra implica que a travessia realizada por aquilo que participa da dimensão tem igualmente o sentido de estar sob a direção de uma estipulação. Assim, as modificações na dimensão originária podem ser entendidas como modificações na regra dimensional. De um ponto de vista formal, contudo, o que possui uma característica dimensional também possui uma regulação segundo a estipulação pertinente à sua respectiva dimensão. Pode-se dizer que a cada dimensão é própria uma métrica, porém, não ainda no sentido de uma grandeza suscetível de medição, mas como uma regulagem que, dadas certas modificações, é capaz de ser mensurada e contada (HEIDEGGER, 2000, p. 199; 2007, p. 265).

Sem supor que Heidegger tenha uma análise completa ou mesmo sistemática da noção de dimensão,[13] pode-se, contudo, resumir as características formais da dimensão em sentido originário. Dimensão é um âmbito de regra ou estipulação que acolhe uma multiplicidade. Na medida em que a multiplicidade acolhida é submetida à estipulação, a dimensão é um âmbito relacional, uma “textura de relações.” (MITCHELL, 2015, p. 122). A dimensão pode sofrer modificações, sendo uma delas a dimensão propriamente espacial. Por fim, a dimensão é ainda um alcance ou extensão, uma travessia de... para. Assim, essas características da noção formal de dimensão fornecem o marco teórico para examinar em maior detalhe o caráter dimensional da aptidão pulsional.

5.

O caráter dimensional é atribuído por Heidegger a três instâncias: à aptidão, ao que é apto e tem a característica de estar a serviço da aptidão e à pulsão. Como foi visto, a dimensão em sentido formal tem a estrutura formal da travessia de... para, um alcance ou prolongamento. A aptidão é concebida como possuindo um ser de travessia (dieses durchmessende Sein der Fähigkeit). Nela, reside a travessia que direciona à formação de órgãos, levando-os à condição de ação contínua, isto é, a travessia consiste em formar órgãos e pô-los a serviço da própria aptidão. O alcance dimensional da aptidão abrange, portanto, o desenvolvimento ontogenético e os comportamentos ambientais correspondentes às aptidões. Esse trânsito possui, além disso, um sentido de subordinação. O que a aptidão faz surgir é trazido a uma ligação com a própria aptidão, estando a ela subordinado, seja como estar a serviço ou liberado dele, por exemplo, na atrofia (HEIDEGGER, 1983, p. 335). A questão de se o trânsito dimensional da aptidão poderia ser interpretado com o esquema de possibilidade e efetividade é deixada em aberto. Essa hipótese é sugerida na ponderação de que um organismo não é apenas o conjunto das possibilidades prescritas nas aptidões, mas chega a suas correspondentes efetivações (no ver, escutar, caçar, voar, procriar etc.). O argumento para suspender a interpretação modal do traço dimensional da aptidão reside na exigência de qualificar o significado de possibilidade no domínio específico da vida, algo que não pode ser equiparado com a possibilidade lógica (HEIDEGGER, 1983, p. 343).

Em relação ao que é apto (um órgão), a travessia dimensional significa o deslocamento para a condição de ação contínua. Contudo, esse percurso, por estar determinado pela aptidão, contém um alcance de variação que também inclui a suspensão da atividade ou o desligamento do serviço da aptidão. No nível estrutural da pulsão, entretanto, também está presente a característica dimensional que é dada pela travessia. Nesse caso, como será examinado a seguir, trata-se da formação de uma série pulsional constituída por impulsos que pertencem a uma determinada aptidão e que provocam os movimentos vitais. Essa travessia pulsional é concebida por Heidegger como fechada em si mesma, no sentido de que a liberação de uma pulsão, a partir do encontro no ambiente com um desinibidor pulsional, forma um círculo de comutação de pulsões, ou seja, uma comutação pulsional contínua (HEIDEGGER, 1983, p. 363).

Em resumo, a dimensionalidade formal da aptidão, da pulsão e do que é apto reside num impulsionar-se que se translada para a meta funcional daquilo que está a serviço da aptidão. Porém, Heidegger adiciona uma importante característica da dimensão da aptidão pulsional, ao introduzir o conceito de regra. Anteriormente, foi visto que a dimensão é um âmbito de estipulação ou regra (Maβgabe) de acolhimento de uma multiplicidade. No entanto, a determinação adicional relaciona a regra com a travessia dimensional da aptidão, ou seja, o próprio atravessar é caracterizado com um tipo de regulação. Atravessar a dimensão específica da aptidão é regular a si mesmo, autorregular-se: “O impulsionar-se para o interior do ‘para-que’ próprio e, com isso, este ser de travessia da aptidão é já o regular-se (das Sichregeln).” (HEIDEGGER, 1983, p. 334).

É importante observar que essa afirmação não discrimina qual é a estipulação ou medida (Maβgabe) intrínseca à dimensão da aptidão pulsional, mas caracteriza o percorrer a extensão dimensional como sendo uma regulação. Atravessar a dimensão da aptidão é um regular e, além disso, um regularse a si mesmo. Em contraste com um utensílio, o qual está subordinado a uma instrução externa derivada do plano de produção, aquilo que é apto e está a serviço da aptidão traz consigo a regra e é ele mesmo regulador (HEIDEGGER, 1983, p. 333). No domínio das aptidões vivas, em suma, a travessia da dimensão consiste em uma regulagem interna. A regulação interna não constitui um condicionamento completo e estrito, todavia, ela pode ser entendida como um constante ajuste num âmbito de possíveis variações. Desse modo, a autorregulação proporciona à travessia da dimensão pulsional um traço de subdeterminação, abertura ou plasticidade. Esse aspecto central na dimensionalidade da aptidão pulsional pode ser analisado no marco mais amplo da relação entre dimensão e regra.

6.

Sendo a vida orgânica uma unidade de aptidões, pode-se inferir que a regra de acolhimento de uma multiplicidade na dimensão da aptidão é a capacidade, é ser capaz, é poder. Formalmente, a aptidão é pulsional. Logo, a regra no âmbito das aptidões é de impulsão. Assim, a dimensão da aptidão pulsional tem uma condição de acolhimento que é modal e dinâmica. Além da estipulação de acolhimento, a dimensão também contém uma multiplicidade, que é acolhida sob a regra. No caso da dimensão da aptidão, a multiplicidade é formada por dois tipos de elementos indissociáveis: os impulsos constituintes de uma série pulsional e os órgãos, movimentos e comportamentos formados na aptidão. A multiplicidade na dimensão da aptidão pulsional é, portanto, a complexidade orgânica e sua ação continuada, alcançando a formação de órgãos e seus correspondentes comportamentos ambientais.

Como já foi visto, a travessia do alcance dimensional da aptidão, que leva o que é apto (um órgão) até a condição de ação contínua, tem a forma específica de um autorregular-se. Na autorregulação está igualmente referida uma característica da maneira como opera a estipulação de acolhimento na dimensão da aptidão. Sendo uma autorregulagem, a regra é trazida concomitantemente, brindando à travessia da dimensão pulsional uma característica de plasticidade. Numa passagem muito condensada, Heidegger ofereceu indicações mais definidas para a compreensão da autorregulagem constitutiva da dimensão da aptidão pulsional:

A regulagem não ordena posteriormente o que é alcançado mediante a aptidão, mas o faz impulsionando antecipativamente. No impulsionar para adiante antecipativo-pulsional, ela ordena os possíveis impulsos que pertencem à respectiva aptidão. Essa regulagem é completamente dominada pelo caráter fundamental da aptidão para...; por exemplo, pelo ver, por uma pulsão fundamental que impele e impulsiona através de toda a série dos impulsos. Esses impulsos, que resultam a cada vez da aptidão pulsional, não são meras causas dos movimentos vitais – alimentação, locomoção –, senão que, enquanto pulsões, eles estão sempre perpassando e impulsionando de antemão todo o movimento. (HEIDEGGER, 1983, p. 334).

A passagem permite destacar quatro aspectos da autorregulagem: a ordenação antecipadora dos rendimentos da aptidão, a formação de uma série de impulsos pertencentes à aptidão, a unificação no ordenamento desses impulsos e a natureza igualmente pulsional de tais impulsos. Em relação ao primeiro aspecto, a noção de um impulsionar de modo antecipador refere-se ao tipo de ordenamento daquilo que resulta da aptidão. Não se trata de uma regulagem ulterior de elementos já previamente dados. Ao contrário, o que é originado da aptidão já surge em um ordenamento. Os resultados da aptidão, a complexidade orgânica, os movimentos vitais e os comportamentos ambientais não estão dados e depois são ordenados, mas o seu próprio aparecer já está sob um ordenamento. A complexidade é condicionada pela aptidão, a partir de uma regulação anterior, a qual perpassa e abarca de antemão, de tal sorte que essa mesma complexidade e seu ordenamento são condicionados antecipadamente (KESSEL, 2011, p. 175). O segundo aspecto significa que uma aptidão pulsional está constituída por uma possível multiplicidade de impulsos integrantes. Com a regulação da aptidão, forma-se uma série ordenada de impulsos correspondentes à aptidão. Logo, a autorregulagem da aptidão acolhe a multiplicidade de impulsos ao modo da ordenação de uma unidade serial. A unidade da série, de acordo com o terceiro aspecto, está formada por uma pulsão fundamental. Essa pulsão perpassa todos os impulsos constituintes, impulsionando através deles e fornecendo a determinação específica da série ordenada de impulsos constituintes. Isso significa que a pulsão básica perpassa os impulsos integrantes e segue impulsionando, ao longo da duração da vida do organismo. Por fim, os impulsos integrantes da série ordenada correspondente a uma determinada aptidão fundamental não são apenas disparadores causais dos impulsos subsequentes. Também sendo de natureza pulsional, eles trazem consigo a regra e impulsionam antecipativamente. Portanto, eles também seguem presentes nos impulsos subsequentes.

Segundo Heidegger, esses quatro aspectos indicam que não pode haver uma adequada apresentação mecânica da formação da série de impulsos de uma aptidão. Do que foi exposto, fica sugerido que uma apresentação mecânica da regulagem pulsional implicaria que os impulsos integrantes fossem descritos independentemente, como elos em uma cadeia causal, sem a continuidade integrativa da pulsão fundamental. Sendo mais exato, é possível apresentar mecanicamente o movimento ordenado da aptidão, mas apenas sob a condição de que se desconsidere a estrutura pulsional presente no tipo muito peculiar de poder-ser que é a aptidão. Heidegger (1983, p. 335) conclui que, fundamentalmente, a estrutura da pulsão não é matematizável.[14] Desse modo, a regulação, como a regra de acolhimento da multiplicidade orgânica, é apresentada como sendo uma estrutura:

Portanto, a regulagem que se encontra a cada vez na pulsão enquanto tal é uma estrutura de intrusões pulsionalmente escalonadas, que se antecipam umas às outras, (eine Struktur von triebhaft gestaffelten, sich je vorgreifenden Übergriffen), mediante a qual é traçada previamente a sequência dos movimentos que surge quando a aptidão se põe em jogo. Nesse impulsionar-se, a aptidão já sempre assumiu previamente – em seu ser específico – o âmbito possível de sua realização. Em tudo isso é preciso que se mantenha totalmente afastado o pensamento em uma consciência ou no anímico, assim como em uma “conformidade a fins”. (HEIDEGGER, 1983, p. 335).

Essa passagem afirma explicitamente que a regulação presente na pulsão é uma estrutura na qual os elementos impulsivos invadem uns aos outros, condicionando antecipadamente, ao longo da série impulsiva. Tais elementos estão em relação escalar, o que não precisa significar aumento quantitativo, mas a preservação qualitativa de todos os impulsos antecedentes nos subsequentes. Trata-se de um escalonamento pulsional de impulsos integrantes de uma série unificada pela pulsão básica. Tal estrutura, além disso, forma o âmbito da possível realização da pulsão, ou seja, o âmbito de formação da complexidade orgânica (formação de órgãos, subordinação ao serviço, movimentos vitais, comportamentos ambientais). Por conseguinte, o campo das realizações da aptidão e da complexidade orgânica está previamente delineado na estrutura pulsional.

Dado que a estrutura da regulação pulsional delineia antecipativamente o âmbito das possíveis realizações da aptidão, poderia ser proposta a hipótese de que em tudo isso estaria presente uma atividade consciente de uma alma ou mente. Heidegger nega categoricamente essa suposição, afastando, inclusive, a noção mais específica de uma atividade teleologicamente orientada. Na regulagem da pulsão, não há consciência organizadora que estabeleceria alguma finalidade determinada. A pulsão não é um agente que desenharia previamente o campo para o desenvolvimento da complexidade orgânica.

7.

A essa análise deve-se acrescentar uma determinação adicional, derivada da característica regrada do acolhimento de uma multiplicidade na dimensão em geral. Dado que a dimensão é um âmbito de regra, medida ou estipulação, então a multiplicidade integrada também é relacional. Segue-se que a dimensão enquanto tal é um âmbito de relações. Na aptidão pulsional, a relação entre os impulsos integrantes no ordenamento da aptidão não é de causalidade discreta, mas de continuidade escalar nas intrusões pulsionais. Logo, a formação de órgãos e o translado para suas respectivas condições operativas também estão relacionados. A complexidade orgânica é relacional, mesmo no caso – julgado por Heidegger como muito relevante para o reconhecimento da dependência do órgão em relação à aptidão – de animais unicelulares sem órgãos fixos (HEIDEGGER, 1983, p. 327). No entanto, a relacionalidade na dimensão da aptidão pulsional é mais específica, pois inclui uma relação ao ambiente e a si mesma.

A natureza pulsional da aptidão implica que o órgão formado sempre está transladado para a sua condição de ação contínua (o seu “para-quê”). Há uma constante e diversificada relação com os movimentos orgânicos proporcionados pela ação contínua dos órgãos. Consequentemente, há uma relacionalidade para com os diversos comportamentos proporcionados pelas aptidões. Tendo em vista que, segundo Heidegger (1983, p. 374-375), a unidade das diversas aptidões é baseada na aptidão fundamental para comportar-se num ambiente circundante, então uma forma específica da relacionalidade na dimensão da aptidão pulsional reside na relação dos comportamentos com algo no ambiente. A despeito de considerar que os correlatos dos comportamentos orgânicos possuíam a forma de desinibidores de pulsões, Heidegger insistiu em reconhecer um conteúdo intencional em tais comportamentos. Apesar de não possuir em sua constituição a estrutura do algo enquanto algo, o comportamento gerado na aptidão está referido a algo determinado, que seria visado segundo um conteúdo normativo (HEIDEGGER, 1983, p. 345).[15] Dessa maneira, é relevante uma análise da percepção animal a partir da estrutura dimensional da aptidão. Da mesma forma, uma análise do deslocamento espacial dos organismos precisaria examinar a dependência da estrutura heterogênea da espacialidade animal em relação à dimensão formal da aptidão. Naturalmente, esses problemas não podem ser desenvolvidos agora.

Além da relação ao ambiente, a dimensão da aptidão pulsional também inclui uma relação a si. Na interpretação da noção leibniziana de mônada, Heidegger pôs em evidência duas características da estrutura dimensional do ímpeto: individuação e apercepção. No trânsito impulsivo do ímpeto, acontece a individuação e, em diferentes maneiras, uma abertura de si mesmo.[16] De maneira análoga, na dimensionalidade da aptidão pulsional também está presente um tipo especial de relação a si mesmo. Tal relação, contudo, não é analisada em termos de consciência ou reflexão, mas de preservação de identidade. A aptidão possui uma característica dimensional, porque é um trânsito que chega à formação da complexidade orgânica em condição funcional: a travessia da formação de órgãos ao seu estar em operação. Nessa travessia, a aptidão impulsiona-se a si mesma para si mesma. A aptidão para ouvir, por exemplo, forma os órgãos correspondentes e realiza a audição. Assim, a aptidão possui a característica de levar-se a si mesma até a si mesma, um autoadiantar-se até a si própria. Nesse movimento de deslocamento, a aptidão não se desgarra, porém, ao contrário, preserva-se como propriamente é. Em razão disso, conclui Heidegger, a característica de identidade própria no modo de ser da vida é a propriedade (Eigentümlichkeit), o pertencer a si mesmo, que não se perde na travessia pulsional. Animais e plantas possuiriam uma identidade própria que não é a da personalidade (HEIDEGGER, 1983, p. 339-340), mas a da propriedade.[17]

Por fim, essa dupla relação presente na dimensão da aptidão pulsional é relevante para o problema da individuação orgânica. O exame desse problema deve incluir o fenômeno da mobilidade no modo de ser da vida. Tal movimento tem uma qualidade própria, pois não se trata apenas de um processo físico, mas se estende entre nascimento, crescimento, amadurecimento e morte (HEIDEGGER, 1983, p. 385). O tema ficou simplesmente indicado, pois o problema da mobilidade na vida não foi elaborado. Entretanto, a característica dimensional da aptidão permite inferir um aspecto essencial de não fixidez na individuação orgânica que é decisivo para o entendimento da mobilidade vital. A travessia da dimensão da aptidão tem o sentido de um autorregular-se. A aptidão traz consigo a sua regra específica, que não é uma instrução externa. Essa característica é o que torna possível o adestramento (HEIDEGGER, 1983, p. 334). Nesse sentido, a aptidão possui certa maleabilidade.

De outro lado, a autorregulação implica uma forma de subdeterminação, na medida em que a travessia da dimensão não é uma série discreta de impulsos causais, mas a continuidade escalar que permanentemente se autorregula. Portanto, há uma plasticidade na dimensão que se reflete na individuação orgânica, no sentido de que a individuação é uma acontecer, um trânsito não regulado por uma causalidade estrita. Nesse sentido, a relação intrínseca com o ambiente significa que a mudança e a individuação na vida orgânica assumem a forma de um acontecer. Não obstante, considerando que a estrutura da regulagem pulsional antecipa o campo das possíveis realizações da aptidão, o problema da não fixidez se translada para a mobilidade nas próprias aptidões. O acontecer da vida, como individuação estendida na formação da complexidade orgânica e envolvimento ambiental, pode ser analisado, pois, sob dois aspectos: o da individuação e mobilidade interna às aptidões e o da mobilidade das próprias aptidões.

Heidegger tomou em consideração a possibilidade de atribuir historicidade ao processo vital de um indivíduo animal, todavia, deixou o problema sem resposta. Ele ofereceu, porém, uma orientação para desenvolver o tema. Inicialmente, sustentou que as investigações de Hans Spemann sobre o efeito organizador ofereceram uma base mais ampla e mais sólida para o problema do caráter de acontecimento da organização do organismo (HEIDEGGER, 1983, p. 387). Disso se segue que o fenômeno da indução biológica e do efeito organizador precisaria ser integrado numa interpretação ontológica da mobilidade orgânica.[18] Ademais, a questão também precisaria ser deslocada para o âmbito do fenômeno da espécie. Nesse caso, trata-se da questão sobre o tipo de história própria da espécie e de todo o reino animal (HEIDEGER, 1983, p. 386). O tema é complexo, em razão das conhecidas dificuldades em torno da noção de espécie, mas também em função da necessidade de examinar a relação entre a estrutura dimensional da aptidão pulsional com a noção de evolução.[19] Evidentemente, não se trata de abordar esses problemas agora. 8.

Resumo, a título de conclusão, os resultados da reconstrução empreendida no presente artigo. Duas notas da noção formal de dimensão serviram como marco conceitual para analisar a dimensionalidade das aptidões orgânicas: a dimensão como alcance ou travessia de... para e a dimensão como um âmbito regrado de acolhimento de uma multiplicidade. Na aptidão, a travessia consiste em formar órgãos e submetê-los ao serviço, isto é, levar à condição de ação contínua. A travessia também significa autorregular-se. Como um âmbito de regra, a medida específica da aptidão pulsional é a modalidade dinâmica e impulsiva: poder-ser pulsional. A multiplicidade na dimensão da aptidão pulsional é a complexidade orgânica (a formação de órgãos, o translado para a ação continuada, os movimentos orgânicos e os comportamentos ambientais). Dado que a aptidão está formalmente determinada como pulsão, na multiplicidade acolhida também se encontra uma diversidade de impulsos subsidiários. A medida de acolhimento dessa multiplicidade é uma estrutura de intrusões pulsionais escalares, unificadas e reguladas antecipativamente por uma pulsão básica. Essa estrutura da regulação pulsional é a estrutura da medida de acolhimento de uma complexidade orgânica na dimensão da aptidão, determinando a dimensão como um campo que condiciona previamente o que pode surgir da aptidão.[20]

A análise da característica dimensional da aptidão pulsional e da vida como um todo possui, naturalmente, consequências filosóficas importantes. Uma delas é a diferença irredutível entre os modos de ser da vida e dos artefatos e das máquinas. Além disso, a dimensionalidade da vida é a base para atribuir um tipo de identidade própria, não dissociada do ambiente, aos indivíduos vivos. Com isso, está igualmente admitida a possibilidade de uma transposição e de um acompanhamento humanos e não humanos para o interior de tal identidade própria. Ademais, a dimensionalidade da vida orgânica implica uma noção relacional e plástica de individuação. Essa subdeterminação, se examinada na relação a si e também na relação ao ambiente, introduz uma dinâmica de individuação compatível com um tipo próprio de história no modo de ser da vida. Embora a estrutura do movimento e do acontecer da vida orgânica não tenha sido examinada nos Conceitos fundamentais da metafísica, é possível concluir, no entanto, que a dimensionalidade da aptidão pulsional tem implicações incontornáveis para a intepretação do movimento, no modo de ser da vida. Torna-se evidente, portanto, que a característica dimensional da aptidão, interpretada com base na noção formal de dimensão, tem consequências decisivas para a ontologia da vida orgânica como um todo.

abstract: In The fundamental concepts of metaphysics, Heidegger outlined an ontology of life that conceives animals and plants as relational totalities composed of capabilities, organic complexity, and environmental relations. The structure of capability is presented as formally determined by the phenomenon of drive (Trieb). This determination gives to capability the character of a dimension in the formal sense. In this paper, I undertake an analysis of the dimensionality of organic capability based on two formal aspects of dimension as such: the traversing from something to something, and the domain of a rule for taking up a multiplicity. These two aspects provide a framework for examining the dimensionality of instinctually driven capability. It is argued that the dimensional character of capabilities implies that the ontology of organic life in general must admit features like non-fixity, plastic development, and relations to the environment and to itself.

Keywords: Heidegger. Life. Capability. Drive. Dimension. Rule.

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Recebido: 2017-04-03

Aceito: 2017-08-23



[1] Este trabalho recebeu o apoio do CNPq.

[2] Professor Titular no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS – Brasil. E-mail: robsonramosdosreis@gmail.com

Autor de Aspectos da modalidade. A noção de possibilidade na fenomenologia hermenêutica (2014) e de diversos artigos sobre a obra de Martin Heidegger.

[3] Sobre os limites na interpretação da vida, ver Reis (2014a).

[4] Há uma extensa literatura de análise e crítica da interpretação da vida feita por Heidegger. Adoto, nesse ponto, a reconstrução oferecida por Tristan Moyle (2016).

[5] Sobre a noção fenomenológico-hermenêutica de possibilidade em relação a esse tipo de conceito modal, ver Reis (2014a, p. 25).

[6] A noção de propriedades modais e o esquema apresentado são baseados na análise das modalidades de ação (agentive modalities) realizada por John Maier (2015, p. 114).

[7] Sobre pulsão e de adestramento, ver Ciocan (2003, p. 15).

[8] Utilizo a solução de Irene Borges Duarte, que traduz Durchmessung por “travessia”. Marco Casanova traduz o mesmo termo por “mensuração”, captando a referência à medida que é central no conceito formal de dimensão. Todavia, “mensuração” também conota a ação de medir, o que não está em vista na estrutura de percurso ressaltada no conceito formal de dimensão. 

[9] Nas traduções portuguesa e espanhola do termo Dehnung encontram-se, respectivamente, “dilatação” e “distensión”. Contudo, apesar de captarem sentidos não apenas espaciais da mudança, os dois termos conotam aumento ou acréscimo, o que não parece ser o caso nas mudanças que envolvem diminuição ou transformação de qualidades. Optei por “alcance”, pois, além de conotar uma distância variável, também significa um espectro de mudanças qualitativas e quantitativas.

[10] No entanto, ao abordar em outra ocasião a estrutura geral do movimento (μεταβολή), referindo-se explicitamente à mudança de algo para algo, Heidegger não emprega a designação “conceito formal de dimensão.” (HEIDEGGER, 1996, p. 249).

[11] O que também está sugerido em outros escritos sobre a doutrina aristotélica do movimento, como em Os conceitos fundamentais da filosofia antiga (HEIDEGGER, 1993, p. 171, 323).

[12] Referindo-se à espacialidade do mundo circundante humano, Heidegger afirma que não se trata da dimensionalidade do espaço métrico definido na geometria (HEIDEGGER, 1988, p. 230). Assim como Heidegger, Jeff Malpas também alude a uma dimensionalidade mais básica do que a do espaço geométrico, pois concebe espaço e tempo como formas básicas e complementares da dimensionalidade do lugar (MALPAS, 1999, p. 120, 2006, p. 27-28), sustentando que a dimensionalidade de espaço e tempo está conectada à atividade e ao movimento (MALPAS, 1999, p. 165-173, 2006, p. 107).

[13] Para uma apresentação mais completa da noção de dimensão na obra tardia de Heidegger, ver Andrew Mitchell (2010, 2015, p. 121-128).

[14] Sobre os limites na matematização da vida, ver Reis (2017).

[15] Sobre o problema da intencionalidade orgânica, ver Reis (2014b). Dada a pretensão de generalidade dessa interpretação ontológica, surge a dificuldade de elucidar o conteúdo intencional dos movimentos de vegetais. Tristan Moyle (2016, p. 11-12) sustentou que também nas plantas haveria um tipo primitivo e não perceptual de intencionalidade motora, cujo conteúdo relevante teria uma forma imperativa. Sobre a ontologia das plantas no pensamento de Heidegger, ver também Marden (2014, cap. 10) e Mitchel (2015, p. 97-105).

[16] Para uma reconstrução da interpretação heideggeriana da doutrina leibniziana da mônada, bem como sobre a relação entre pulsão (Trieb) e ímpeto (Drang), ver Kessel (2011, p. 172-177) e Garavito (2012, p. 374-376, 382-387).

[17] Em um texto posterior, Heidegger (2005, p. 29) atribuiu a animais e plantas um tipo de interioridade própria, não baseada na capacidade de dizer “eu”. Evidentemente, essa concepção de identidade orgânica implica dificuldades robustas para uma fenomenologia da vida vegetal (MOYLE, 2016, p. 15).

[18] Sobre Heidegger e Spemann, ver Kessel (2011, p. 73, 119) e Reis (2017).

[19] O tema é controverso. Garavito (2012, p. 377-378) considera que não se pode falar de história natural no sentido de Darwin no marco da ontologia heideggeriana da vida. Kessel (2011, p. 176), ao contrário, sustenta que as aptidões, por serem dinâmicas, são suscetíveis à mudança, e que, no âmbito da natureza, mudança significa evolução.

[20] Dennis Skocz (2004, p. 226-227) sugere que esta característica antecipacional permitiria uma descrição da pulsão como dotada de um tipo de intencionalidade. Nesse sentido, o modo de ser da vida orgânica prescreveria uma forma própria de condicionamento intencional e antecipativo dos entes que podem comparecer no espaço ambiental de animais e plantas.