Discursos Duplos (Dissoi logoi), TraDução anoTaDa
resumo: Tradução anotada do tratado anônimo sofístico datado do começo do séc. IV a.C., Dissoi Logoi, ou “Discursos Duplos”. A apresentação do texto traz informações básicas sobre transmissão do texto, autoria, datação e uma pequena discussão sobre a caracterização das teses nele presentes. As notas da tradução analisam passagens e conceitos importantes, sugerem questões e inter-relações com outras obras, buscando traçar um panorama possível de interpretação do texto. O tratado, incompleto, compõe-se de nove pequenos capítulos que versam sobre temas importantes durante o período de atuação do movimento sofista e pode ser considerado um exemplar das técnicas retóricas ensinadas por esses pensadores. palavras-chave: Discursos Duplos. Sofística. Retórica. Antilogia. Relativismo.
inTroDução
O Dissoi Logoi (doravante DL) é um tratado anônimo cujos manuscritos foram transmitidos com obras de Sexto Empírico.[2] Foi publicado pela primeira vez por Stephanus, em 1570, com o título Dialexeis (“discussões, conversas”)3, como apêndice a sua edição de Diógenes Laércio.[3] A edição-padrão, atualmente, costuma ser a de Diels e Kranz, Fragmente der Vorsokratiker (1903 -1912). No entanto, o texto-base de minha tradução é o proposto por Robinson (1979), pois, comparado ao de Diels e Kranz, ele seria menos drástico nas emendas, adições e supressões.
Acerca de sua datação, considera-se legítima a interpretação da passagem 1.8: “Na guerra (e falarei primeiro sobre os acontecimentos mais recentes), a vitória dos lacedemônios sobre os atenienses e seus aliados [...]”, como uma menção ao fim da guerra do Peloponeso, que ocorreu em 404 a.C., concluindo-se que a data de composição do tratado deva situar-se por volta de 404-390 a.C.[4] Corrobora essa datação o fato de todas as alusões e citações serem de autores e personagens anteriores a esse período, assim como os acontecimentos a que se refere. A evidência mais favorável a essa data é, no entanto, o próprio conteúdo do tratado: ambientado à mise-en-scène do fim do séc. V a.C., ele apresenta questões típicas dos debates pré-platônicos e, certamente, de debates estimulados pelo movimento sofista.
Por outro lado, não é possível estabelecer com segurança a natureza e, principalmente, o propósito do tratado. Estruturalmente, ele poderia ser classificado de várias formas: esboço de um discurso sofístico; anotações feitas a partir de leituras ou aulas (cursos); uma tarefa escolar incompleta; apontamentos para uma aula, um manual ou uma fala; anotações para uso privado; um tratado com topoi retóricos que ficou incompleto ou teve partes perdidas; compilação de excertos de outros tratados sofísticos; resumo de um debate real ou escolar... Aparentemente, não era destinado à publicação ou, ao menos, ainda não estava pronto para tal.
Tem-se especulado muito acerca da autoria do tratado, o qual, nos Mss., é anunciado como “de um anônimo” (anonumou tinos). Nenhuma hipótese, porém, foi ainda largamente aceita. Não havendo informações externas disponíveis, a matéria depende inteiramente da leitura do texto, que não oferece muitos dados confiáveis. Assim, as tentativas de atribuir-lhe um autor, a grande parte delas construída de suposição em suposição, são bastante questionáveis.[5]
O tratado está escrito em um dórico com características ocidentais; não um dórico puro, nem mesmo uma forma atribuída com precisão a alguma localidade específica[6], mas um dórico com significativas interferências do jônico. Por isso, talvez, a sugestão de Robinson (1979, p. 51) de que o autor tenha tentado escrever num dialeto que não era o seu, no intuito de dirigir-se a alguma comunidade dórica, soe interessante. Convém lembrar que os sofistas foram, em geral, itinerantes.
A busca pelas influências filosóficas do texto tem suscitado as mais diversas opiniões. Untersteiner (1996, p. 463-474), seguindo Rostagni, defende sua origem pitagórica,[7] acrescentando que há uma influência sofística proveniente de Hípias,[8] e que o tratado é escrito contra Górgias. Dupréel (1980, p. 190-200) aprofunda a argumentação a favor da influência de Hípias: ele compara os capítulos 8 e 9 do DL com os diálogos Hípias Maior e Hípias Menor, de Platão, e conclui que devam ser entendidos, respectivamente, como um elogio ao conhecimento enciclopédico (polimatia) e um elogio à mnemotécnica. Ele também atribui a Hípias o papel de iniciador de debates em forma de pergunta e resposta (uma posição que os testemunhos tradicionais dificilmente sustentariam). Para Untersteiner e Dupréel, o DL é basicamente composto de uma série de teses (relativistas) gorgiânicas, e uma série de antíteses (absolutas), à maneira de Hípias (ROBINSON, 1979, p. 59).
Relacionar o DL com Hípias deve-se, a princípio, à leitura do capítulo 9, que trata da memória. Hípias ficou famoso por valorizar sobremaneira a mnemotécnica e foi considerado, inclusive, seu inventor,[9] mas isso não significa que ele possa ser considerado o único detentor e/ou incentivador dessa técnica àquela época. O capítulo 8 é de interpretação mais difícil, e relacioná-lo com Hípias parece dever-se a um acúmulo de suposições feitas a partir de informações transmitidas por Platão, as quais não estão confirmadas por outras fontes.
Gomperz (1965, p. 138-179) encontrou influências de Protágoras (principalmente), Hípias, Górgias e do círculo socrático. Para ele, a estrutura antilógica do tratado está relacionada ao método protagórico. Kranz (1976, p. 640) acredita que o autor do DL está igualmente influenciado por doutrinas sofísticas e socráticas. Taylor (1911, p. 93) sugere que o DL esteja influenciado pelo eleatismo: “[...] temos no dissoi logoi um exemplar de erística antiga que exibe ao mesmo tempo marcas de origem eleática e de considerável influência socrática.” Para ele, “[...] o escritor dá claras indicações de pertencer à classe de pensadores semi-eleáticos representados para nós no círculo socrático por Euclides e seus companheiros megáricos.” (KRANZ, 1976, p. 640). Levi (1940) refutou as posições destes três últimos autores: “[...] todas as tentativas de explicar as diferenças de composição do texto e de determinar sua estrutura introduzem nele elementos que ele próprio não contém [...] é melhor admitir [...] que a obra é um conglomerado de partes desconexas.” Segundo esse autor, é possível encontrar no tratado influências de Protágoras, Demócrito, Heráclito, Hípias, Górgias, Zenão de Eléia e Sócrates.
Robinson (1979, p. 54-73), após discutir as proposições levantadas por seus antecessores, conclui que é mais provável que a principal influência sobre o autor do DL tenha sido Protágoras, com alguma influência menor de Hípias, e ainda menor de Górgias, e a possibilidade de alguma influência socrática. Dueso (1996 , pág. 178)), por sua vez, conclui que o DL “[...] oferece, no fundamental e em esboço, duas filosofias antagônicas [...], que correspondem a dois personagens chaves no último terço do séc. V, a saber, Protágoras e Sócrates.”
Dueso alude a duas filosofias antagônicas, porque, no tratado, as afirmações em primeira pessoa são contraditórias: - a favor da tese: (1. 2); (2. 2 e 20); (3. 1 e 7); (4.1); - a favor da antítese: (1. 11 e 17); (2. 26); (3. 15); (5. 6 e 11). Tal situação levou alguns comentadores a considerar o autor sem talento (DIELS; KRANZ, 1960, p. 405; BARNES, 1979, p. 215), incapaz de perceber a diferença entre as teses,[10] o que é, talvez, a principal responsável pela disparidade de opiniões acerca da(s) doutrina(s) filosófica(s) que influencia(m) o autor.
É importante observar como as teses são formuladas e apresentar a problemática que envolve sua compreensão. A caracterização de tese e antítese beneficia-se da seguinte análise:
- no enunciado geral, os pares de conceitos em questão são apresentados com artigo:
• peri to agatho kai to kako; peri to kalo kai to aiskhro; peri to dikaio kai to adiko;
- no resumo da tese, esses termos aparecem sempre sem artigo:
• to auto esti [agathon kai kakon][11]; touto kalon kai aiskhron; touto dikaion kai adikon;
- e, no resumo da antítese, sempre com artigo:
• allo to agathon, allo to kakon; allo to kalon, allo to aiskhron; allo to dikaion, allo to adikon.
A sintaxe grega é, de fato, ambígua entre “x é y”, e “y é x”, porém, as evidências de uso indicam que a regra geral é que sujeito será o termo definido com o uso do artigo. Assim, na tese, os termos agathon e kakon (bom e ruim) seriam, ao que tudo indica, predicados de to auto (definido com o artigo) (forma contrata: touto ou touton); assim, teríamos: “a mesma coisa (to auto = sujeito) é boa e ruim” (termos predicados); e não: “o bem e o mal (termos como sujeitos) são a mesma coisa” (to auto = predicado).
Essa posição evidencia-se também nos exemplos oferecidos como argumentos da tese (1. 1-10), (2. 2-20), (3. 2-12), em que os termos agathon e kakon (bom e ruim) são sempre predicativos. A antítese, todavia, parece interpretar diferentemente esse enunciado, supondo que a tese se comprometa com a identidade dos termos “bem” e “mal”, pois sua réplica será: “uma coisa é o bem, outra distinta o mal”; os adjetivos (bom, ruim) aparecem, então, substantivados (com artigo), no neutro singular, referindo-se, suponho, ao valor abstrato da propriedade (o bem, o mal), à sua característica substantiva e não adjetiva, e são sujeitos da oração.
A maioria dos tradutores[12] enuncia a tese tal como a interpreta a antítese (supondo a identidade de bem e mal), o que parece ser uma tradução cristalizada. Indício disso é a tradução da passagem 5. 4: touton ara kai kouphoteron kai baruteron. Se seguissem um padrão, esperar-se-ia: “mais leve e mais pesado são o mesmo.” Mas Sprague (1968), por exemplo, traduz por: “therefore the same thing is both heavier and lighter”, e Sousa e Pinto (2005) por: “o mesmo talento[13] é, portanto, simultaneamente mais leve e mais pesado.” Em 2.21, o enunciado é explícito: to auto pragma aiskhron kai kalon estin – “a mesma coisa (ou ação) é bela e feia.” E também em 4.1: ton auton [logon pseustan kai alathe], aqui, ton auton é masculino e só pode concordar com logon: “o mesmo discurso é verdadeiro e falso.” Ainda assim, alguns intérpretes repetem também aqui o equívoco possível apontado acima, como é o caso de Aguiar (2006): “defendem [...] que o verdadeiro e o falso são idênticos.”
O uso aparentemente indiscriminado das duas formulações, com e sem artigo, está frequentemente presente na antítese. Algumas vezes, ela explicitamente formula as expressões, como se o que a tese afirmasse fosse a coincidência dos conceitos: em 1.12 e 16; 2. 21. Na maioria das vezes (1.14, 15, 16 e 17; 2.22 e 24; 3, 13 - duas vezes - e 15), porém, retoma-as tal como formuladas, com os conceitos como predicados, sem artigo. Esse aparente livre intercâmbio das proposições na antítese, que sugeriria a equipolência delas, pode, na verdade, possuir valor argumentativo, indicando um jogo retórico.
Também seria possível entender a oposição com ou sem artigo como uma oposição entre definido versus indefinido. A ausência de artigo definido pode ser traduzida com o indefinido, assim: “a mesma coisa (to auto = sujeito) é [um] bem e [um] mal.” De qualquer forma, o sujeito permanece sendo marcado pelo artigo. Para essa opção, há ainda a possibilidade de tradução: “a mesma coisa (o mesmo) (to auto = sujeito) é uma coisa boa e uma coisa ruim”, que estaria de acordo com os exemplos, onde os adjetivos se mantêm no neutro singular, mesmo quando o que qualificam é um substantivo simples de outro gênero ou número (1. 2, 3, 4, 6, 7, 8, 9 e 10),[14] e não uma oração infinitiva (como na grande maioria dos exemplos): por ex.: 1. 3 nosos (substantivo masculino) toinun tois men astheneunti kakon, tois de iatrois agathon (adjetivo neutro) – “a doença é uma coisa ruim para os que estão doentes, mas uma coisa boa para os médicos.” Contudo, também assim se fala de uma “mesma coisa”, que ora é boa, ora é ruim.
O entendimento da distinção das proposições modifica essencialmente a leitura do texto e converte-se em questão fundamental para o reconhecimento do problema abordado no tratado. A interpretação que sugere que tese e antítese tratem, respectivamente, da identidade e diferença das propriedades como conceitos (bem e mal), solução da maioria dos tradutores, não pode, do meu ponto de vista, estar presente senão como uma ambiguidade latente - não evidente na tese (2.20): “Disse que demonstraria que as mesmas coisas são feias e bonitas, e demonstrei em todos estes casos.”, mas pressuposta pela antítese (1. 17): “e não digo o que é o bem (to agathon), mas procuro mostrar que a mesma coisa não seria boa e ruim.” Alçar essa opção possível à categoria de matéria em debate empobrece o texto e contamina-o com uma indesejável e inexata unicidade. Em princípio, a diferença entre os dois tipos de proposição é facilmente perceptível, por isso, a necessidade de, ao invés de modificar substancialmente o texto, consertando na tradução as ambiguidades que ele apresenta, procurar mantê-las e, assim, incentivar o questionamento acerca da presença delas.
TraDução
Discursos Duplos1, 2
1. Sobre bom e ruim
(1) Duplos discursos sobre o bom e o ruim3 são proferidos na Grécia4 pelos pensadores5. Pois uns dizem que o bom é uma coisa, e o ruim, outra6; enquanto outros, que é a mesma coisa7: ela pode ser8 boa para uns, mas ruim para outros, e para a mesma pessoa ora é boa, ora é ruim.9
(2) Eu10 mesmo tomo o partido11 destes últimos, e irei expor o raciocínio, começando pela vida humana, cujas preocupações são a comida, a bebida e o sexo. Pois essas coisas, por um lado, são ruins12 para os que estão doentes, mas, por outro, são boas para os que estão saudáveis e delas têm necessidade. (3) E o excesso dessas coisas certamente é ruim para aqueles que se excedem, no entanto, para os que as vendem e obtêm lucro, é bom. Da mesma forma, a doença é ruim para os que adoecem, e é boa para os médicos. Até mesmo a morte, ruim para os que morrem, é boa para os que vendem serviços funerários e para os fabricantes de caixões. (4) Para os agricultores é bom quando o cultivo da terra proporciona uma colheita farta, mas para os comerciantes é ruim. Que os cargueiros colidam e se quebrem certamente é ruim para seus proprietários, mas é bom para os construtores de barcos.
(5) Além disso, uma ferramenta corroer-se, perder o fio ou quebrar é ruim para os outros, mas para o ferreiro é bom; que os potes se quebrem é ruim para os outros, bom para o ceramista; as sandálias se desgastam ou arrebentam, ruim para os outros, bom para o sapateiro.13 (6) Certamente, nas disputas esportivas, artísticas ou bélicas (na corrida14, por exemplo), a vitória é boa para os que vencem, e ruim para os vencidos. (7) E assim é com lutadores, pugilistas e com todos os artistas: a competição de cítara, por exemplo, por um lado, é bom para os que vencem, por outro, é ruim para os que são vencidos. (8) Na guerra (e falarei primeiro sobre os acontecimentos mais recentes15), a vitória dos lacedemônios sobre os atenienses e aliados foi boa para os lacedemônios, mas foi ruim para os atenienses e aliados16; e a vitória que os gregos obtiveram sobre o rei persa foi boa para os gregos, e, ao mesmo tempo, ruim para os bárbaros.17 (9) Sem dúvida, a tomada de Troia foi boa para os aqueus, mas para os troianos foi ruim. E o mesmo em relação ao que passaram tebanos e argivos.18 (10) A batalha entre centauros e lápitas foi boa para os lápitas e ruim para os centauros.19 Ademais, no combate ocorrido, segundo se narra, entre os deuses e os Gigantes, a vitória obtida foi uma coisa boa para os deuses, porém, ruim para os Gigantes.20
(11) Um outro raciocínio21 sustenta que o bom seria distinto do ruim, e da mesma forma que o nome é diferente, assim também a coisa.22 Eu próprio distingo23 desse modo. Pareceme que não ficaria claro que coisa é boa e que coisa é ruim, se fossem o mesmo e não um diferente do outro24; de fato, isso seria surpreendente.25 (12) Creio que aquele que diz essas coisas não saberia responder ao que lhe perguntasse: “Diga-me, você já fez alguma coisa boa para os seus pais?”26, e diria: “Muitas e importantes.” Ora, então, deveria fazer aos seus pais coisas ruins, muitas, se o bom e o ruim são o mesmo.27 (13) “E para os seus parentes, você já fez alguma coisa boa? Logo, o que você fazia para eles era algo ruim. E para os seus inimigos, você já fez alguma coisa ruim? Então você fez muitas coisas boas para eles, as maiores. (14) Vamos lá, responda-me também isso: se a mesma coisa é boa e ruim, você lamenta os pobres por terem muitas coisas ruins e, ao mesmo tempo, considera-os felizes por desfrutarem de tantas coisas boas?” (15) E nada impede que o grande rei persa esteja em situação semelhante aos pobres. Pois as inúmeras e valiosas coisas boas que possui são todas ruins, se a mesma coisa é boa e ruim. E o mesmo deve ser dito sobre tudo. (16) Considerarei, no entanto, cada caso, começando pelo beber, pelo comer e pelo sexo. Pois é a mesma coisa para os que estão doentes, fazer essas coisas é bom para eles, se a mesma coisa é boa e ruim. E para os que adoecem, adoecer é bom e também ruim, se o bom é a mesma coisa que o ruim. (17) E assim com todas as outras coisas que estão ditas no discurso anterior. E não digo o que é o bom28, mas tento explicar que a mesma coisa não seria boa e ruim, mas que um é diferente do outro.29, 30
2. Sobre bonito e feio31
(1) Sobre o bonito e o feio também são proferidos dois discursos opostos. Uns dizem que o bonito seria uma coisa, e o feio, outra, diferente de fato32, tal como no nome. Já outros dizem que a mesma coisa é bonita e feia. (2) Eu tentarei explicar esse argumento da seguinte forma: é bonito, por exemplo, que um menino na flor da idade seja favorável a um homem valoroso que está enamorado dele, mas é feio que o faça a um homem belo que não o ame.33
(3) E para as mulheres é bonito banhar-se dentro de casa, e feio fazê-lo na palestra; mas para os homens, tanto na palestra quanto no ginásio é bonito. (4) E ter relações sexuais com o marido em lugar tranquilo, onde se está protegida por paredes, é bonito; mas é feio fazê-lo ao ar livre, onde alguém possa ver.34 (5) Além disso, ter relações sexuais com o próprio marido é bonito, mas com o marido de outra é muito feio. E, claro, também para o homem é bonito que se deite com sua mulher, e feio que o faça com a de outro.35 (6) Enfeitar-se, maquiar-se ou usar joias é feio para o homem, mas é bonito para a mulher. (7) Fazer bem ao amigo é bonito, ao inimigo é feio. Correr dos inimigos de guerra é feio, mas dos competidores na pista de corrida é bonito. (8) Assassinar amigos e concidadãos é feio, mas matar inimigos é bonito. E o mesmo em todos os casos. (9) Falarei, agora, sobre as coisas que as cidades e os povos consideram feias.36 Por exemplo, para os lacedemônios, é bonito que as meninas se exercitem com os braços nus e andem sem túnicas, enquanto, para os jônios, isso é feio. (10) E é bonito que os meninos não aprendam nem artes nem letras37, mas, para os jônios, é feio não saber todas essas coisas. (11) Para os tessálios, é bonito que eles próprios domem os cavalos e mulas que tiram da manada, e que matem, esfolem e cortem seu boi eles mesmos; na Sicília, isso é feio, e é tarefa de escravos.38 (12) Para os macedônios, parece bonito que as meninas, antes do casamento, se apaixonem e tenham relações sexuais com outro homem; porém, depois que se casam, é feio. Para os gregos, nos dois casos é feio. (13) Para os trácios, é um ornamento as meninas tatuarem-se; para os outros povos, no entanto, a tatuagem é um castigo para os criminosos. Os citas consideram bonito que o homem que assassina alguém arranque seu couro cabeludo e leve o escalpo diante de seu cavalo e que, após ter recoberto de ouro ou prata o crânio da vítima, beba nele e faça libações aos deuses; entre os gregos, ninguém iria querer ficar sob o mesmo teto que uma pessoa que tivesse cometido tais atos.39 (14) Os massagetas cortam seus pais em pedaços e comem-nos, e ser enterrado em seus filhos parece-lhes a mais bela sepultura; entre os gregos, se alguém fizesse isso, morreria miseravelmente, expulso da Grécia, por ter cometido coisas tão feias e terríveis.40 (15) Os persas acham bonito que os homens se maquiem como as mulheres, e que tenham relações sexuais com as filhas, mães e irmãs; para os gregos, isso é feio e é contrário à lei.41 (16) Já os lídios consideram bonito que as jovens se prostituam, façam dinheiro e assim se casem; entre os gregos, ninguém desejaria desposar tal mulher.42 (17) Os egípcios também não consideram bonitas as mesmas coisas que os outros. Pois aqui é bonito que as mulheres teçam e façam trabalhos manuais, mas lá, que os homens o façam, e que as mulheres façam aquelas coisas que aqui são para homens. Amassar a argila com as mãos e o trigo com os pés para eles é bonito, mas para nós, o certo é o contrário. (18) Penso que, se alguém mandar todos os homens reunirem em um só lugar as coisas que cada um considera feias e, então, pegarem dentre estas coisas aí juntadas as que cada um tem por bonitas, nada seria deixado para trás, mas tudo seria levado por eles.43 Pois não têm todos as mesmas opiniões. (19) Apresentarei também um poema: Encontrarás outra lei entre os mortais, se distinguires44 desta maneira: nada é definitivamente bonito nem feio, mas é o momento45 que torna as mesmas coisas feias e bonitas, transformando-as.46
(20) Diz-se, em geral, que todas as coisas são bonitas no momento certo, e feias no momento errado. O que obtive, então? Disse que demonstraria que as mesmas coisas são feias e bonitas, e demonstrei em todos esses casos.
(21) Sobre o bonito e o feio também se diz que seriam um diferente do outro. Pois, se alguém perguntasse àqueles que sustentam que a mesma coisa47 é bonita e feia se eles alguma vez fizeram algo bonito, eles terão de admitir que o que fizeram foi feio, se o bonito e o feio forem o mesmo. 48 (22) E, se conhecem um homem bonito, esse mesmo homem é feio; se for branco, é também negro. Se for bonito honrar os deuses, então é feio honrar os deuses, se a mesma coisa é bonita e feia. (23) E o mesmo deve ser dito por mim em todos os casos; torno, porém, ao que eles dizem. (24) Se a mesma coisa é bonita e feia e é bonito que a mulher se enfeite, então também é feio que a mulher se enfeite. E isso se aplica nos demais casos. (25) Na Lacedemônia, é bonito que as meninas pratiquem ginástica; na Lacedemônia, é feio que as meninas pratiquem ginástica; e assim por diante. (26) Dizem que, se reunissem tudo que é considerado feio pelos povos de todas as partes e, em seguida, eles fossem chamados para levar dali o que consideram bonito, todas as coisas seriam levadas embora como bonitas. Eu me espanto que, reunidas as coisas feias, elas venham a ser bonitas, uma vez que não chegaram assim. (27) Ao menos se tivessem trazido cavalos, bois, ovelhas ou homens, com certeza não tirariam algo diferente; nem trazendo ouro, levariam ferro; e nem se trouxessem prata, teriam levado chumbo. (28) Levariam realmente coisas bonitas no lugar das feias? Vejamos: se alguém trouxesse um homem feio, poderia levá-lo de volta bonito? Tomam por testemunhas os poetas, mas o propósito de suas obras é o prazer e não a verdade.
3. Sobre justo e injusto
(1) Duplos discursos são proferidos também sobre o justo e o injusto. Para uns, uma coisa seria o justo e outra o injusto. Para outros, a mesma coisa é justa e injusta. Eu tentarei defender esta última posição.49 (2) E, em primeiro lugar, direi que é justo mentir e enganar. Pode-se afirmar que fazer isso com os inimigos é feio e baixo, mas com os mais próximos não, com os pais, por exemplo. Se o pai ou a mãe precisa tomar um remédio que não quer, não é justo colocá-lo em sua bebida ou comida e não contar que está ali?50 (3) Portanto, mentir para os pais e enganá-los realmente é justo, e também roubar o que é do amigo e usar a força contra os mais queridos. (4) Por exemplo, se um familiar transtornado e abatido com algo estiver prestes a se suicidar com um punhal, corda, ou outro instrumento qualquer, é justo roubá-lo, se for possível? Ou, se se chegar tarde e ele já o tiver em mãos, não é justo usar a força para arrancá-lo dele? (5) E por que não seria justo escravizar os inimigos, se fosse possível capturar toda uma cidade e vendê-la? E parece justo arrombar prédios públicos. Pois, se nosso pai, condenado à morte, estivesse preso, tendo sido pego por inimigos políticos, por acaso não seria justo invadir, tomar-lhes o pai e assim salvá-lo? (6) E quanto ao perjúrio: se alguém, capturado por inimigos, jurasse que, ao ser libertado, trairia sua cidade, acaso faria a coisa certa, mantendo sua palavra? (7) Eu acho que não, o melhor é perjurar e salvar a cidade, os amigos e os templos pátrios. Então, na verdade, o perjúrio é justo. E também pilhar templos – (8) deixo de lado os bens de cada cidade, e falo do que é comum a toda a Grécia, como os tesouros de Delfos e Olímpia. Se a captura da Grécia pelo bárbaro for iminente e a salvação estiver nestas riquezas, não é justo tomá-las e utilizá-las para a guerra? (9) E matar os mais próximos é justo, como fizeram Orestes e Alcmeão51; e o deus revelou que era justo que eles agissem assim.
(10) Tratarei agora das artes e das obras dos poetas. De fato, na composição de tragédias e na pintura, o melhor é aquele que mais engana, criando coisas semelhantes às verdadeiras. (11) Quero acrescentar o testemunho de antigos poemas. De Cleobulina: Vi um homem roubando e enganando com violência, e agir com violência, isso era o mais justo. (12) Esses versos são muito antigos, os seguintes são de Ésquilo: De um engano justo, deus não está longe; Às vezes, um deus honra o momento de dizer mentiras.
(13) Um discurso oposto52 sustenta que uma coisa é o justo e outra o injusto, diferente na realidade assim como no nome. Pois, se alguém perguntasse aos que dizem que a mesma coisa é justa e injusta, se já realizaram algo justo para com seus pais, eles concordariam. Logo, seria também algo injusto, pois afirmam que a mesma coisa pode ser justa e injusta. (14) E ainda: se se conhece um homem justo, esse mesmo homem é, então, injusto (e, com efeito, seguindo o mesmo raciocínio, ele é também grande e pequeno). E os que cometem muitas ações injustas devem morrer53. (15) Sobre essas coisas já é o bastante. Considero então o que eles dizem, acreditando demonstrar que a mesma coisa é tanto justa quanto injusta. (16) Pois, o fato de ser justo roubar o que é do inimigo demonstra que a mesma coisa é também injusta, se o discurso deles for verdadeiro; e o mesmo vale para as outras afirmações. (17) Citam as artes, mas nelas não há o justo e o injusto. Os poetas certamente não escrevem seus poemas buscando a verdade, mas para proporcionar prazer aos homens.
4. Sobre verdade e falsidade54, 55
(1) Discursos duplos são proferidos também acerca do falso e do verdadeiro. Uns dizem que o discurso verdadeiro é diferente do falso. Outros, pelo contrário, afirmam que são o mesmo discurso. (2) Isso é o que também eu afirmo: primeiro, porque são ditos com as mesmas palavras; depois, porque, quando o discurso é proferido, se o que diz aconteceu tal como é dito, esse discurso é verdadeiro; se não aconteceu, esse mesmo discurso é falso. (3) Por exemplo, o discurso que acusa alguém de pilhar um templo: se a ação56 ocorreu, o discurso é verdadeiro; se não ocorreu, falso. E assim também, certamente, com o discurso de defesa. Ao menos os tribunais julgam o mesmo discurso tanto falso quanto verdadeiro. (4) Se estivéssemos sentados e disséssemos, um depois do outro: “sou um iniciado”, todos diríamos o mesmo, mas somente eu diria a verdade, uma vez que o sou. (5) É evidente, portanto, que o mesmo discurso, quando nele está presente o falso, é falso, e, quando nele está presente o verdadeiro, é verdadeiro (do mesmo modo que uma pessoa é a mesma, quando criança, jovem, adulta ou velha).
(6) Diz-se também que o discurso falso seria distinto do verdadeiro - diferindo em nome, <e assim também na realidade>. Pois, se alguém perguntasse àqueles que dizem que o mesmo discurso é falso e verdadeiro, qual dos dois é o discurso deles e a resposta fosse: “falso”, ficaria claro que seriam dois57; se dissessem: “verdadeiro”, o mesmo discurso seria falso58. E se, alguma vez, disse algo verdadeiro, ou testemunhou que algo fosse verdade, isso tudo é falso. Se ele conhece um homem verdadeiro, o mesmo homem é falso. (7) De acordo com sua tese, eles dizem que o discurso é verdadeiro, se o acontecimento ocorre, e que é falso, se não ocorre. Portanto, há diferença59. (8) E, em relação aos juízes, que julgam <o mesmo discurso verdadeiro e falso> (porque não presenciam os fatos),60 (9) eles mesmos concordam que é falso o discurso no qual se mistura o falso, e verdadeiro aquele em que se mistura o verdadeiro.61 E isso faz toda a diferença.62, 63
5. (1) “Os loucos e os sensatos, os sábios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas. (2) Em primeiro lugar, eles usam os mesmos nomes: terra, homem, cavalo, fogo e todos os outros. Também fazem as mesmas coisas: sentam-se, comem, bebem, dormem, e tudo o mais do mesmo jeito. (3) E, além disso, a mesma coisa64 é tanto maior quanto menor, mais e menos, mais pesada e mais leve. Dessa forma, as mesmas coisas são tudo.65 (4) O talento é mais pesado que a mina, e mais leve que dois talentos: portanto, a mesma coisa é mais leve e mais pesada. (5) O mesmo homem vive e não vive, e as mesmas coisas são e não são: pois as coisas que estão66 aqui não estão na Líbia, e aquilo que está na Líbia não está no Chipre. E todo o resto conforme o mesmo raciocínio. Consequentemente, as coisas são e não são.”67
(6) Os que dizem isto - que os loucos, os sábios e os ignorantes dizem e fazem as mesmas coisas, e outras coisas que seguem esse raciocínio - não falam corretamente. (7) Pois, se alguém perguntasse a eles se a loucura difere da sensatez e a sabedoria da ignorância, diriam: “sim”. (8) Pois bem, é evidente que eles concordarão que cada um age de acordo com o que é. Então, se fazem as mesmas coisas, os sábios são loucos, e os loucos são sábios, e todas as coisas assim misturadas confundem-se. (9) Deve-se também levantar a questão sobre quem fala quando convém, os sensatos ou os loucos. Pois afirmam, quando alguém pergunta, que falam as mesmas coisas, porém, os sábios quando convém, e os loucos quando não convém. (10) Dizendo isso, pensam que acrescentar “quando convém” e “quando não convém” é irrelevante para, desse modo, não ser mais a mesma coisa. (11) Mas eu penso que as coisas mudam não só com tais acréscimos, mas também quando os acentos são alterados68: como Glaukos (Glauco) e glaukos (branco); Ksantos (Xanto) e ksantos (amarelo); Ksuthos (Xuto) e ksuthos (dourado)69. (12) Essas são diferentes em relação à mudança no acento, as seguintes por serem pronunciadas com a vogal longa ou breve: Turos (Tiro) e turos (queijo); sakos (escudo) e sakos (estábulo)70; e há as que diferem por deslocamento de letras: kartos (força) e kratos (da cabeça); onos (asno) e noos (intelecto). (13) Portanto, havendo tal diferença sem retirarmos nada, o que diremos se alguém acrescenta ou tira algo? Mostrarei como isso se dá. (14) Se alguém tirasse um de dez, já não seria mais nem dez e nem um; e com as outras coisas também é assim.71,72 (15) E, sobre o mesmo homem ser e não ser, pergunto: “Ele é em algum aspecto ou em sentido absoluto?” Certamente, se alguém afirma que não é, mente ao responder “em sentido absoluto”. Logo, essas coisas são tudo [apenas] em sentido relativo.73
6. Sobre a sabedoria e a excelência74, se podem ser ensinadas75.
(1) Há também um discurso, nem verdadeiro nem novo, que diz que sabedoria e excelência não poderiam ser ensinadas nem aprendidas. Os que dizem isso se apoiam nas seguintes provas: (2) Não é possível preservar consigo o que você transmite a alguém. Uma prova é essa. (3) Outra prova é que, se fosse possível ensinar sabedoria e excelência, haveria professores conhecidos como tais, como os há de música. (4) A terceira é que os homens na Grécia que se tornaram sábios teriam ensinado seus próprios filhos e amigos. (5) A quarta é que há pessoas que já frequentaram os sofistas e não tiraram disso proveito algum. (6) A quinta é que muitos que não se associaram aos sofistas tornaram-se notáveis. (7) Mas eu considero esse discurso demasiado simplista, pois sei que os professores que ensinam letras conhecem-nas também eles próprios, e que os professores de cítara tocam cítara. Quanto à segunda prova, que diz não haver professores de sabedoria e excelência conhecidos como tais: o que ensinam os sofistas senão justamente sabedoria e excelência? (8) E que foram os anaxagóricos e pitagóricos? Quanto à terceira, Policleto ensinou seu filho a fazer estátuas.
(9) E, se alguém não ensinou, isso não prova nada; porém, se um ensinou, isso prova que é possível ensinar.76 (10) E a quarta, se, junto aos sofistas sábios, alguns não se tornam sábios, também muitos, quando estudantes, sequer aprenderam as letras. (11) Existe, também, certa disposição natural, graças à qual alguém que não estudou com um sofista se torna capaz, por ser de boa índole, de compreender facilmente a maioria dos assuntos, após ter aprendido um pouco junto àqueles com quem aprendemos também a língua77; parte desta, na verdade, aprendemos (uns mais, outros menos), um com o pai, outro com a mãe. (12) E se alguém não acredita que aprendemos a língua, mas que já nascemos sabendo, convença-se a partir disto: se se enviasse uma criança recém-nascida para a Pérsia e ali ela fosse criada, sem ouvir a língua grega, ela falaria persa; e, se se trouxesse uma criança de lá para cá, ela iria falar grego. Assim, aprendemos a língua e não sabemos quem foram nossos professores.78,79 (13) Desse modo, concluo meu discurso: à sua disposição, começo, fim e meio; e não estou dizendo que sabedoria e excelência podem ser ensinadas, mas que considero aquelas provas insuficientes.
7. (1) Alguns oradores dizem que os cargos públicos devem ser atribuídos por sorteio, mas essa não é a melhor maneira de ver as coisas. (2) Deveríamos perguntar a quem fala isso: “Por que você não distribui as tarefas de seus criados por sorteio - de forma que o condutor de bois, caso seja sorteado cozinheiro, cozinhará; enquanto o cozinheiro conduzirá os bois; e assim por diante? (3) E por que não reunimos os ferreiros, os carpinteiros e os ourives e decidimos, por sorteio, o que devem fazer, obrigando-os a cumprir o ofício sorteado e não aquele que conhecem?” (4) Podemos fazer o mesmo também nas competições musicais - decidimos por sorteio tanto os competidores quanto a modalidade em que cada um irá competir - o flautista talvez toque cítara, e o citarista, flauta. Na guerra, arqueiros e hoplitas cavalgarão, cavaleiros tornar-se-ão arqueiros; assim, todos farão aquilo que não sabem nem são capazes de fazer. (5) Dizem também que isso seria bom e inteiramente democrático. Já eu penso que não é nada democrático. Pois, nas cidades, há homens inimigos da população que, caso a fava80 por sorte os designasse, arruinariam o povo. (6) É necessário, pelo contrário, que o próprio povo observe e escolha todos aqueles que lhe são favoráveis: os que são aptos para comandar o exército, outros para guardar as leis e os demais.
8. (1) Considero ser próprio do <mesmo> homem e da mesma arte81 ser capaz de tratar um assunto com brevidade82, conhecer a verdade das coisas83, advogar corretamente, ser capaz de falar em público, conhecer as técnicas dos discursos, e, sobre a natureza de todas as coisas84, sem exceção, ensinar como é e como veio a ser.85,86 (2) Em primeiro lugar, quem tem conhecimento acerca da natureza de todas as coisas, como não será capaz também de agir corretamente em todas as situações? (3) Além disso, quem tem conhecimento das técnicas dos discursos saberá também falar corretamente87 sobre tudo. (4) Pois quem pretende falar corretamente precisa88 falar sobre o que conhece. Portanto, conhecerá89 todas as coisas. (5) Pois conhece as técnicas de todos os discursos, e todos os discursos são sobre todas as coisas <existentes>. (6) Quem pretende falar corretamente precisa conhecer aquilo sobre o que falaria <...>90, e ensinar a cidade, corretamente, a realizar coisas boas e evitar as ruins. (7) Tendo o conhecimento dessas coisas, conhecerá também as coisas diferentes dessas, pois irá conhecer tudo. Porque essas coisas fazem parte de todas as coisas e, em vista do mesmo, aquilo que é preciso será feito, se necessário.91 (8) Caso não92 saiba tocar flauta, sempre terá a capacidade de tocar, se for preciso fazer isso. (9) Quem é hábil nas contendas judiciais precisa ter conhecimento correto do justo, pois as causas tratam disso.93 Conhecendo isso, conhecerá também seu contrário e as coisas que lhe são diferentes. (10) Precisa também conhecer todas as leis; é claro que se não vier a conhecer as coisas94, não conhecerá suas leis. (11) Pois, quem conhece a lei95 da música? Justamente o que conhece música. Quem não conhece música, tampouco conhece sua lei. (12) Sem dúvida, quem conhece a verdade das coisas conhece todas as coisas; o argumento é simples. (13) Este <capaz de tratar uma questão> com brevidade deve, quando perguntado, dar respostas96 sobre qualquer assunto. Portanto, precisa conhecer todas as coisas.
9. (1) A maior e melhor descoberta já feita é a memória97, útil para a vida e para todas as coisas, tanto para a busca intelectual98 quanto para a sabedoria.99,100, 101 (2) Isso é possível, se você prestar atenção, <pois>, seguindo esse caminho102, a mente irá perceber mais como um todo o que você aprendeu.103 (3) Segundo, é preciso praticar toda vez que ouvir algo. Pois, ao ouvir e repetir muitas vezes as mesmas coisas, elas ficam na memória. (4) Em terceiro lugar, relacionar104 o que se escuta com o que já se sabe, como no seguinte exemplo: se é preciso memorizar Crisipo, relaciona-o com khrusos (ouro) e hippos (cavalo). (5) Outro exemplo: relacionar Pirilampo com pur (fogo) e lampein (brilhar). Procede-se assim em relação a nomes. (6) Já com as coisas105, faz-se desta forma: o que diz respeito à coragem, relaciona-se a Ares e Aquiles; a arte do ferreiro, com Hefesto; a covardia, com Epeios...106
noTas Da TraDução
1 Tomo por base o texto grego proposto por Robinson (1979). Possíveis divergências estão indicadas em nota.
2 Opto pela tradução canônica, para facilitar o reconhecimento do texto; creio que o entendimento de dissoi deva ser “invertido”, “inverso”, ainda assim “complementar”. Entre outras ocorrências, cf. Eurípides, Hipólito, v. 385 e ss.: “[...] e mesmo coisas vergonhosas, que apresentam duas facetas (dissai d’eisin): uma delas não é má, a outra é o aniquilamento das famílias, (se a diferença se tornasse clara a tempo, coisas opostas não teriam um só nome).” (grifo meu) (Trad. Kury, 2001); Eurípides, Fr. 189: “Em todos os casos, se a pessoa for inteligente no falar, poderia estabelecer um debate de argumentos duplos (disson logon)” (Trad. Kerferd, 1990); e Protágoras DK80 A1: “Sobre todas as coisas há dois discursos opostos um ao outro”. Nos cinco primeiros capítulos, a estrutura é mais claramente antilógica.
3 Os estudiosos divergem acerca de como interpretar e traduzir o adjetivo neutro singular substantivado: neste capítulo, to agathon e to kakon. Para Dueso (1996, p. 179), essa forma expressa o valor abstrato de uma propriedade, o não-aplicado; todavia, sua tradução é “lo bueno y lo malo”, e não “el bien y el mal”, embora deixe claro que a interpretação deva ser esta última. Esse autor acrescenta que, para “aplicações concretas dessa propriedade”, para se referir ao conjunto, a forma seria o neutro plural: ta agatha, “as coisas boas”. Assim, a afirmação allo to agathon, allo to kakon (na antítese), mais à frente, realmente referir-se-ia à propriedade abstrata, ao bem e ao mal: “[...] o bem é diferente do mal”. Essa afirmação deve-se, de acordo com esse autor, ao fato de a antítese acreditar que, na tese, os termos são usados também dessa forma, tendo afirmado assim que “o bem e o mal são idênticos”; ou, ao menos, por supor que essa seria uma operação efetuável, uma consequência do que a tese propõe. Porém, o discurso da tese é to auto estin [kakon kai agathon], não há substantivação (substantificação) dos termos, seu uso parece ser em sentido aplicado, como adjetivos, e, portanto, estaria assim constatando a possibilidade de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa: “a mesma coisa é boa e ruim”. De fato, a tese em momento algum usa os termos substantivados, apenas a antítese é que a retoma dessa forma. Os contraargumentos da antítese, nesse caso, reduzem ao absurdo uma tese que não foi proposta, logo, segundo Dueso, os discursos, graças ao “equívoco” dos defensores da antítese, não compartilham da mesma linguagem, e a tese não é refutada. Robinson (1979, p. 151), por sua vez, acredita que o adjetivo neutro singular substantivado se refira tanto ao universal quanto ao particular; essa ambiguidade seria, então, responsável pelo dissídio. A antítese atribui (propositalmente ou equivocadamente?) à tese a afirmação “to agathon kai to kakon to auto esti”, em sentido universal: “tudo que é bom e tudo que é ruim é igual”, o que a tornaria, no limite, identitária. No entanto, caso a tese tivesse proposto esse enunciado, só poderia, conforme os exemplos apresentados por ela, tê-lo afirmado em sentido particular: “o que é bom e o que é ruim é idêntico <em relação a certos aspectos>.” Segundo essa interpretação, as duas posições estariam falando sobre a coisa, sobre algo concreto a que se aplica uma dada propriedade, e o conflito dar-se-ia entre atribuição particular (individual) e universal (em conjunto). Enquanto a tese estaria propondo que, em alguns casos, uma coisa pode ser boa e ruim, a antítese estaria interpretando isso como: as coisas boas e as coisas ruins são todas iguais, logo, “dá tudo na mesma.” Por isso, a antítese investe contra as consequências, que julga absurdas, dessa suposição, procurando salvaguardar a diferença: as coisas são ou isso ou aquilo. De minha parte, concordo com Dueso (op. cit., p. 179), a opção de Robinson, conquanto possível, mascara a questão da possível transformação da propriedade em conceito. O uso dos adjetivos neutros substantivados marca, justamente, a possibilidade de se alçar a discussão da realidade concreta para a abstrata: “[...] temos a abstração quando o elemento universal, por meio do artigo e de sua força indicativa e demonstrativa, é colocado como algo determinado, tornando-se, assim, portador de um nome [...] e, portanto, ‘objeto do pensamento’’’ (SNELL, 2001, p. 234). Tal processo, que permite “[...] ver a realidade à distância e de cima” (SOLMSEN, 1975, p. 124), é comum em Tucídides e outros pensadores, durante a segunda metade do séc. V a.C. (cf. SNELL, op. cit., p. 229 e ss. e SOLMSEN, op. cit., p. 83 e ss.). Soma-se a essa a questão de a sintaxe grega ser ambígua entre “x e y é o mesmo” e “a mesma coisa é x e y”, que dá margem à interpretação “equívoca” da tese pela antítese, como mencionei na apresentação do texto. Tendo em vista os exemplos expostos, Robinson (op. cit., p. 162) observa que a tese pode ser chamada “contextualista”: “[...] um e o mesmo evento/ação/estado de coisas irá variar de coloração moral de acordo com o contexto. Assim, os proponentes da suposta contra-tese […] parecem estar atacando um boneco de palha [strawman], já que eles (deliberadamente ou não) interpretam a proposição touton kalon kai aiskhron como identitária quando ambas as evidências, a própria sintaxe da sentença e os argumentos de 2. 2-20, deixam claro que ela é meramente predicativa.” Dueso, e também Robinson, como eu, diferenciam o sujeito pelo uso do artigo: termos substantivados = sujeitos, o que evidencia a leitura da tese como predicativa. Robinson (op. cit., p. 163) possivelmente está correto, ao afirmar que o leitor ou ouvinte perspicaz repararia facilmente que as duas posições não se contradizem. Há, contudo, tradutores, como exposto antes, que acreditam que tese e antítese versem ambas sobre a qualidade abstrata: “to auto estin [_ kakon kai _ agathon]” = “o bem e o mal são o mesmo”; “allo to agathon, allo to kakon” = “o bem e o mal são diferentes”, de forma que, desse ponto de vista, a tese realmente proporia a identificação dos conceitos e a antítese seria de fato uma contra-tese. O mais provável, no entanto, é que, em maior ou menor medida, os gregos convivessem com as ambiguidades mencionadas, com a possibilidade delas – consciente ou inconscientemente. Por isso, minha opção foi procurar artimanhas para manter, sempre que possível e quando for o caso, a questão em aberto; tentei produzir um texto em português que apresentasse um nível de complexidade parecido com o do texto grego, isto é, que permitisse que os mesmos questionamentos fossem levantados. Obviamente, a intenção não assegura que o objetivo tenha sido atingido. Um exemplo: em português, o adjetivo “bom” e o substantivo “bem” são diferentes (em inglês, ambos podem ser “good”), isso significa que traduzir por “o bem e o mal” ou por “o que é bom e o que é ruim” privaria o leitor da ambiguidade, direcionando a forma para o uso ou abstrato ou aplicado. Por isso, tomei a liberdade de usar o adjetivo “bom” substantivado, tentando com isso sugerir as duas acepções: “o bom”, a qualidade abstrata, e “o que é bom’, a coisa. Também levei em consideração a tradução corrente de to kalon por “o belo”, e não “a beleza”, embora esse termo tenha uma longa história interpretativa e possa soar já teórico. Outra informação interessante é que Platão parece ter sentido a necessidade de criar uma expressão para se referir à forma (Forma) e não ao concreto, e evitar a ambiguidade: auto to kalon, “o belo mesmo”, “o belo em si”.
4 A menção à Grécia pode ser um indício da magnitude da polêmica. Além disso, o fato de, nesse caso, não serem mencionados argumentos da Academia ou do Liceu reforça a datação do tratado para a passagem do séc. V para o IV a.C.
5 Literalmente, “pelos que filosofam”; embora a questão seja incerta, tem-se preferido a acepção ampla: o termo (e apenas ele, não necessariamente a prática), a essa época, ainda não teria adquirido o sentido técnico que foi instituído mais tarde, a partir das discussões propostas por Platão. Em favor da acepção ampla, também se diz que visões semelhantes às encontradas no DL estão presentes nas obras de homens como Eurípides e Heródoto, entre outros não-filósofos.
6 Provavelmente, entre esses poderia estar Sócrates, por preocupar-se com a definição individual de conceitos morais, como o bem e o mal, apesar de talvez a prática socrática ter efetuado ainda uma outra operação possível, mas não necessariamente manifesta, no DL.
7 Dada a sentença anterior, poder-se-ia supor que a frase completa aqui seria: toi de legousin hos <to agathon kai to kakon> to auto estin – “dizem que o bom e o ruim são a mesma coisa.” No entanto, a frase seguinte e os exemplos de 1.2-10 comprovam que essa posição se compromete apenas com os termos como adjetivos: to auto estin <_ agathon kai _ kakon>. Como sugere Robinson (op. cit., p. 150), poderia haver interesse no efeito paradoxal da ambiguidade acima mencionada entre “x e y são o mesmo” e “a mesma coisa é x e y”. Conquanto seus argumentos deixem claro a proposição predicativa, a tese ainda permitiria, sintaticamente, a possibilidade da ambiguidade. Cf. Aristóteles, Metaph., 1062b 15, em que a sentença predicativa (to auto... kakon kai agathon) se refere à consequência relativista da doutrina do homem medida de Protágoras, que resultaria, para o estagirita, na negação do princípio de não-contradição. Mais à frente, Aristóteles dirá (1063a 10): “[...] devemos questionar a verdade com base nas coisas que sempre se conservam do mesmo modo e não que sofrem alguma mudança.” (grifo meu) Como se posicionou Aguiar (2006): “[...] os DL não querem solucionar a confusão entre o que é essencial e acidental. O caminho tomado pela argumentação do texto anônimo é o do muitas vezes e não o caminho do sempre. Ao se enveredar por uma senda que não busca chegar à essência das coisas, mas ao melhor uso argumentativo, pragmático, do logos, ele opta por trabalhar acidentalmente, o que é primordial para que possa relativizar suas asserções. E isso é feito sem um juízo de valor ontológico ou normativo.”
8 O uso do optativo é frequente em lugares onde poderíamos esperar um indicativo depois do verbo principal, cf. 1.11; 1.17; 2. 21; 4.6. Robinson (1979, p. 154) observa que a intenção do autor pode ser aparentar neutralidade. Poderia ainda ser a de atenuar a afirmação, colocando-a no nível do potencial. Porém, devido à constância do uso, isso também pode simplesmente indicar um vício de linguagem, por parte do autor.
9 Essa afirmação confirma que a tese está usando os termos kalon e aiskhron de forma predicativa. Assim, o argumento seria que, baseando-se na experiência, diferentes valorações podem ser dadas para a “mesma coisa”, de acordo com diferentes situações e perspectivas, em diferentes tempos e lugares.
10 Acerca dos enunciados em primeira pessoa, Dueso (1996, p. 136) acredita que tese e antítese reflitam as posições de dois oradores rivais, como numa disputa oratória. Nesse caso, a forma antilógica de influência protágorica estaria refletida apenas na construção “a mesma coisa é x e o contrário de x”, presente na tese. Robinson (1979, p. 74) sugere que as afirmações em primeira pessoa poderiam ser um elemento retórico característico deste tipo de escrito antilógico. Dessa forma, então, a antilogia seria o princípio norteador do texto como um todo e se provaria pela complementaridade das posições.
11 potitithemai: “associar-se com, estar a favor de, estar ao lado de, tomar partido de”, contrasta com a construção mais branda usada em 2.2 e 3.1: peiraomai, “tentar”.
12 Os adjetivos estão, em geral, no neutro singular, de sorte que eles não mudam a forma, concordando com o sujeito: uma tradução literal seria, portanto, “x é uma coisa boa” ou “x é um bem”, mas optei por “x é bom”, e por sempre concordar adjetivo com sujeito. Além disso, é importante destacar que optei por traduzir os adjetivos repetidos sempre que possível pela mesma palavra, isto é, agathon, por exemplo, sempre é “bom”; quando, na verdade, eu teria à disposição outras várias acepções possíveis. Usar uma palavra para cada contexto comprometeria o caráter reiterativo do texto, que joga, justamente, com os diversos sentidos, com as diferentes aplicações de um mesmo termo. A opção por manter essa característica do texto produz por vezes passagens canhestras em português, porque dificilmente o termo escolhido dá conta de todos os usos do termo grego.
13 Cf. Protágoras, 334a-c: “algo variado e multiforme é o bem”. “Depois da fala de Protágoras, o público aplaude, como se tivesse sido exposta uma doutrina original e importante.” (DUESO, 1996). Uma interpretação dessa passagem pode ser: “A doutrina de Protágoras é que o bem não é um objeto nem uma qualidade, mas uma relação. [...] As condutas boas e más não formam para todos e para sempre classes necessariamente disjuntas.” (ibidem).
14 “Na competição do estádio”: medida de distância equivalente a 125 pés, ou 206,25 metros.
15 Essa é a passagem que sugere a datação do texto ou, ao menos, seu terminus a quo.
16 A derrota dos atenienses e aliados deu-se na batalha de Egospótamos, em 405/404 a.C.
17 As Guerras Persas ocorreram entre 490-479 a.C. Duas batalhas importantes deram a vitória aos gregos, no ano de 479 a.C. – a de Plateia e a de Mícale.
18 Talvez uma referência à expedição mítica conhecida como os “Sete contra Tebas”.
19 Os centauros, convidados do casamento do rei dos Lápitas, Peirítoos, tentaram raptar a noiva, Hipodâmia, e outras mulheres de seus anfitriões. Na batalha que se seguiu, os centauros foram derrotados e expulsos do monte Pélion.
20 Os Gigantes, segundo se narra, rebelaram-se contra os deuses, mas foram derrotados e aprisionados nas profundezas da terra.
21 Aqui tem início a antítese, o discurso oposto. Segundo a interpretação de Dueso, já mencionada, após a exposição da tese, um outro debatedor tomaria agora a palavra.
22 Pragma, em sentido geral, remete tanto a “coisa, fato, ação, evento” como “circunstância, situação” – e, por isso, “realidade” (como uso em 4.6): o conjunto das coisas reais (concretas) em oposição aos seus nomes. A relação entre onoma/pragma como “nome/coisa” (ou, algumas vezes, ergon, “ação”), paralela à antítese nomos/physis (“convenção/natureza’), foi um tópico muito recorrente e de extrema importância para os gregos antigos. O entendimento dessa relação reflete o pensamento sobre o vínculo linguagem e realidade, bem como, em determinado momento, a questão da significação dos nomes. Cf. Eurípides, Fenícias, v. 499 e ss.: “Se, para todos, a mesma coisa fosse, por natureza, ao mesmo tempo, boa e sábia, não existiria entre os homens a discórdia de ambígua linguagem. Mas não existe nada idêntico ou semelhante com exceção dos nomes (onomasin); a coisa (ergon) não é assim.” E Aristóteles, Metaph., 1006b 22: “Mas o ponto em discussão não é saber se o mesmo ente pode a um tempo ser e não ser um homem quanto ao nome (onoma), e sim quanto ao fato (pragma). Ora, se ‘homem’ e ‘não-homem’ não diferem na significação, evidentemente ‘não ser homem’ outra coisa não significará senão ‘ser homem’; de modo que ‘ser homem’ equivalerá a ‘não ser homem’, pois tudo será uma coisa só.” (Trad. Vallandro, 1969, p. 95). A concepção arcaica parece ter reconhecido no nome, considerando a experiência do rito, sua função (in)vocativa, capaz de manifestar ou introduzir o ser. Essa valoração da palavra pode ser encontrada atualmente tanto na poesia quanto no folclore popular (crendices e tabus) e em práticas supersticiosas e/ou religiosas (invocações, maldições, entre outras). Aceito como uma propriedade do ser que nomeia, possuiria o poder de instaurá-lo (cf. Hes. Teog. 149). Onoma, em Homero, diz-se para o nome próprio (cf. Il. 9.515; 10.68; 18.449), a única unidade linguística isolável equivalente a nossa palavra, aparecendo em oposição a ergon e pragma, entendidos, nesse ambiente, primordialmente como ação guerreira; ou oposto à pessoa mesmo. A explicação etimológicosemântica dos onomata, principalmente dos deuses, desde muito cedo, tornou-se parte da técnica poética, sendo um recurso utilizado por rapsodos, poetas líricos e trágicos. Quando os poemas épicos se tornaram algo como textos morais para os gregos, a exegese dos nomes foi um recurso empregado na tentativa de explicar o que não era facilmente compreendido, já que os textos apresentavam alguma dificuldade de interpretação, dada a disparidade entre a concepção presente neles e a vigente à época, e mesmo por conta do desconhecimento do vocabulário. A crítica e a elucidação desses textos passou a integrar a própria recitação dos mesmos, e a ênfase na explicação das palavras dever-se-ia à crença numa verdade oculta nelas, a análise desvelava ao público seu sentido profundo e verdadeiro, no nome subjaziam informações sobre a coisa. Onoma passa logo a designar, então, qualquer nome (substantivo), sem perder, no entanto, sua característica primeira, impregnando o pensamento sobre a linguagem com a ideia de que qualquer nome é próprio. A necessidade de explicações racionalistas encontrou na etimologia e na alegoria um modo de proceder sem questionar ou afrontar a tradição. Procedimentos exegéticos baseados na análise do onoma forneciam respostas e, por isso, foram alçados à categoria de ferramentas de reflexão. As possibilidades de relações de cunho cognitivo, ontológico e moral, reveladas na análise do nome, instauram uma forma de investigação da realidade que tem na linguagem uma via de conhecimento. “A concepção de que sob cada onoma subjaz a coisa e seu logos (ou explicação) chegará até Aristóteles e mais além.” (ELICEGUI, 1977, p. 10). Heráclito teria unido essa concepção de linguagem à prática filosófica. O vínculo palavra-coisa é levado a outro nível por ele: a importância da polissemia dos termos é usada como argumento para o constante devir do universo e a distinção estabelecida por ele entre o nível comum da linguagem (logos), presente no discurso cotidiano, e o nível profundo (Logos), transmissor e manifestante da sabedoria ligada à organização do universo, deixa entrever a importância que Heráclito conferiu à linguagem como desveladora das relações profundas da realidade. Parmênides também parece ter dado grande importância à linguagem, na medida em que estava relacionada ao pensar e ao ser. O que é dito deveria se referir ao que é, assim não poderia existir um significado que fosse diferente da realidade. Os nomes seriam expressões do ser e, ainda que contraditórios, não poderiam ser ilusórios. A linguagem comum teria se tornado defeituosa e polissêmica, por causa das falsas percepções humanas; apesar disso, ou contra isso, o ser e a verdade deveriam sobrepor-se à linguagem. A crença no vínculo entre realidade e linguagem e a convicção de que há um nível subjacente à linguagem, o qual permite a explicação da realidade, i.é., conhecer o nome é conhecer a coisa, parece provocar uma necessidade de ajuste. Delineia-se, desde então, a disposição de manipular, controlar a linguagem, de maneira a revelar mais prontamente relações “verdadeiras” com/sobre o real. “O nome fala a verdade sobre as coisas: onoma ornis - o nomen é um omen [“o nome é um sinal, agouro ou presságio”].” (WOODBURY, 1958, p. 155). A ideia de que o onoma guarda o logos de uma coisa sugere que o logos de uma coisa corresponda a seu onoma, de sorte que onoma equivalerá à expressão que o explica - e assim diferenciar onoma de pragma é também diferenciar uma expressão daquilo (da coisa) a que se refere: expressões diferentes indicam coisas diferentes, são onomata diferentes. Verifica-se, então, um vínculo onoma/ pragma - linguagem/realidade. Supondo que essa ideia de vínculo estivesse subjacente ao argumento em questão, uma interpretação possível da passagem do DL poderia ser: “o onoma da coisa que é boa é to agathon (o bom, o bem), porque agathon é seu logos; e o onoma da coisa que é ruim é to kakon. To agathon e to kakon são onomata diferentes, referemse a (indicam) coisas diferentes no mundo (‘o nome é diferente, assim também a realidade’); to agathon e to kakon não são e não podem ser nomes para a mesma coisa, porque então ela teria dois logoi opostos, e não saberíamos mais qual o logos de cada coisa (o que ela é: ‘o que é bom e o que é ruim’).” O que já supõe, no mínimo, uma operação: agathon Y to agathononoma ao , do logos ao onoma; esse cálculo possibilitaria novas operações: daí, e de novo, do
logos (a pergunta pelo logos de to agathon) Y abstração, ideia logos verdadeiro para cada coisa: é impossível Y conceito Y Forma; e várias escolhas: 1. veracidade do vínculo – só há um
contradizer; 2. descrédito do vínculo: exercício da contradição; 3. quebra do vínculo: é inevitável contradizer; 4. imposição do vínculo: não se deve contradizer; e assim por diante. Além disso, e por outro lado, no século V a.C., a racionalização crescente, a consolidação do alfabeto, a difusão da literatura escrita, entre outros fatores históricos, propiciaram que aos poucos surgisse um novo entendimento da linguagem. Passível de ser decomposta em elementos (letras e sílabas) sem significado, e de ser analisada em seu valor próprio - uma concepção materialista que foi ligada à figura de Demócrito. Demócrito teria considerado a linguagem arbitrária e fruto de convenção ou instituição. Posições assim influenciaram alguns pensadores a desvicularem-na da realidade, atendo-se, portanto, a questões e potencialidades meramente linguísticas (discursivas, sonoras), movimento que acaba, porém, por evidenciar ainda mais problemas epistemológicos. A questão da orthotes onomaton (“correção dos nomes”) é, nos sofistas, ao que tudo indica, uma discussão acerca da definição para a correta aplicação pragmática das palavras – comparação, distinção e escolha do vocábulo mais apropriado ao uso pretendido, orientando a melhor escolha, a mais adequada à situação (ainda que possa ter sido, em Pródico, por exemplo, a procura do logos de cada onoma). Mas parece tornar-se, novamente, em Platão, uma indagação acerca da adequação da linguagem à realidade, de como a primeira pode representar verdadeiramente a segunda. Em vista de tantos desajustes manifestos, Platão teria acabado desqualificando a linguagem comum como caminho seguro para se conhecer o real.
23 O verbo é diaireuomai, cf. Heráclito, B 1 DK (diaireon) e Pródico, A 14, A 16, A 17 DK. Pródico era conhecido por sua insistência em distinguir os nomes (diairein ton onomaton), analisando matizes semânticos dos vocábulos aparentemente sinônimos. Alguns viram nesse procedimento um antecedente do método de divisão socrático, que tem papel decisivo na dialética platônica. Contudo, ao que tudo indica, o interesse de Pródico estava relacionado ao uso correto da linguagem, tal como expresso em nota anterior, e não visava a inquirir a essência correspondente a um determinado nome e dividir cada noção, dicotomicamente, em subespécies, mas demonstrar que não eram sinônimos os termos vulgarmente considerados como tal (cf. SOUSA; PINTO, 2005, p. 155-156). De qualquer forma, é bastante provável que seu método tenha exercido grande influência sobre Sócrates. Voltando ao nosso texto, a antítese afirma que há dois nomes distintos, to agathon e to kakon, e que há duas coisas distintas – todavia, não é o que é específico de ser to agathon ou to kakon (a essência, ou seja, uma definição do conceito) que se busca, não será dito o que é to agathon e o que é to kakon, mas que são diferentes (1.17). O argumento seguinte, no entanto, sugere que a diferença entre to agathon e to kakon é necessária, para que uma coisa seja entendida como agathon ou kakon.
24 Na tradução de Dueso (op. cit., p. 153), hekateron, nessa frase, se refere não a agathon e kakon da frase anterior, mas sim a tagathon e to kakon do início de 1.11: “Me parece, en efecto, que no sería evidente cuáles son las cosas buenas y cuáles las malas, sino uno y otro (el bien y el mal) fueran lo mismo y no distintos.” O mesmo para Robinson (op. cit., p. 161): “[...] pois hekateron (um e outro) é mais naturalmente ‘cada um dos dois componentes da identidade to agathon e to kakon’(cf. 2.21), enquanto a frase imediatamente anterior é, claro, meramente predicativa. A suposta contradição não é de fato uma contradição.” Uma coisa é a igualdade entre ekeino ho esti kalon e ekeino ho esti aiskhron (“aquilo que é bom e aquilo que é ruim”) (mesma coisa, e julgamentos opostos, dependendo de quem (e quando e como)); outra, a diferença entre to agathon e to kakon. Se se tratam de duas coisas, dois assuntos, não há contradição – o conflito seria aparente, parece sugerir Robinson, as visões são complementares – no entanto, a tensão permanece como efeito da manipulação da linguagem.
25 Dillon e Gergel (2003, p. 405) afirmam que “[...] este argumento revela um descuido primitivo com a diferença entre absoluto e relativo, e lembra o tipo de argumento retratado por Platão como tendo sido alardeado por uma figura tal como Eutidemo.” (grifo meu) Acredito que seja isso mesmo, revelar, demonstrar possibilidades argumentativas, porém, de como o descuido pode ser utilizado: a suposta falta de cuidado, apenas, não nos comprova que os sofistas não percebiam a diferença, ao contrário, pode indicar que a valorizaram somente no que tinha de mais palpável: como uma diferença nas maneiras de dizer.
26 O texto apresentado por Diels é: εἶπον δή μοι, ἤδη τύ τι τοὶ γονέες ἀγαθόν ἐποίησαν; - “[...] diga-me, seus pais já lhe fizeram alguma coisa boa?”. Robinson (1979), que seguimos, diz manter a versão dos Mss., onde o sentido seria: “[...] é ilógico restringir as atitudes para com os pais a atitudes boas, já que atitudes de natureza contrária, isto é, ruins, seriam igualmente boas.”
27 Para Kranz (1937) e Ramage (1961, apud ROBINSON, op. cit., p. 156), de 1.12 a 1.17 teríamos o fragmento de um diálogo genuinamente socrático, ainda que primitivo e mal elaborado.
28 Uma típica preocupação socrática era a busca pela definição dos termos, principalmente morais, cf. Aristóteles, Metaph., 987b 1-5. Como já mencionado anteriormente, esse interesse socrático foi inclusive suposto como um desdobramento do método de distinção de sinônimos aparentes de Pródico.
29 A antítese não chega a defender sua posição, explicando por que, ou como, o bom é diferente do ruim (o bem do mal), apenas produz uma réplica à posição anterior, evidenciando problemas aí implicados. Essa é uma tática comum também aos diálogos socráticos de Platão: as asserções refutadas são conclusões do próprio Sócrates acerca de doutrinas de seus adversários.
30 Percebam-se os movimentos da antítese: comparar 1.16 e 2.1 com o modo como a antítese passa de uma sentença de identidade (1.12) a uma sentença predicativa (1.14), usa os dois tipos na mesma seção (1.16) e termina com uma sentença predicativa explícita e uma de identidade encoberta (1.17). O mesmo em 2. 20, 21, 22 e 24, como se não houvesse diferença entre os dois tipos de sentença. Poderia ser ingenuidade do autor, mas, um propósito propedêutico não deve ser descartado. A intenção poderia ser evidenciar aos alunos os problemas envolvidos numa argumentação desse tipo: em que operações ela se apoia. Mais que supor que essa argumentação realmente refute a tese, instruir na detecção de raciocínios falaciosos (ROBINSON, op. cit., p. 77, 150, 151). Isso reforçaria a afirmação tantas vezes feita em defesa dos sofistas, contra Platão, de que eles estavam conscientes dos limites (do alcance) das estratégias discursivas que propunham.
31 O sentido, de acordo com os contextos apresentados, seria: “decente” e “vergonhoso” ou “adequado” e “inconveniente”, isto é, moral e/ou socialmente aceito e não. Peri kalou significa, à letra, “sobre o belo”, mas o vocábulo grego kalos tem também a conotação valorativa, no plano moral, do que é “bom”, e aiskhros tem o significado pejorativo de “vil”, “indecoroso”. Também se usa, na linguagem coloquial, a oposição ‘bonito/feio’, num sentido próximo deste indicado (cf. SOUSA; PINTO, op. cit., p. 288).
32 “De fato” traduz to soma (“corpo”). Aqui a oposição onoma/pragma é substituída por onoma/soma, o que reforça a existência de uma contraparte objetiva do nome como um argumento para a distinção, tal como existiria a pessoa a quem se refere seu nome. Taylor (1911, p. 103) menciona a aproximação de soma com idea (eidos ou idee), ambas ao lado de physis, em oposição a onoma e nomos, um sentido que persistiria, segundo o autor, em Platão e Aristóteles.
33 Cf. Platão, Phaedr. 230e ss. e Symp. 183d.
34 Cf. Heródoto, 1. 203; 3. 101; Xenofonte, Anab. 5. 4. 33; Platão, Hipp. Mai. 299a.
35 Para o homem é feio, mas para a mulher é muito feio: o grau superlativo do adjetivo certamente não é usado à toa.
36 Algumas afirmações etnológicas dadas pelo autor coincidem com passagens de Heródoto, no entanto, detalhes e até mesmo informações gerais que aparecem no DL não se encontram no historiador. Isso poderia sugerir que ambos tenham trabalhado com fontes mais antigas. Em nota, indico algumas passagens que podem ser comparadas.
37 grammata.
38 Cf. Eurípides, Electra 815 ss.
39 Cf. Hdt. 4. 65, 66.
40 Cf. Hdt. 1. 216; 4. 26; 3. 38.
41 Cf. Hdt. 3.31; Xenofonte, Mem. 4. 4. 20.
42 Cf. Hdt. 1.93.
43 Cf. Hdt. 3. 38, 7. 152.
44 O verbo é diaireo, cf. nota 25.
45 ho kairos.
46 Estes versos costumam ser atribuídos a Eurípides, cf. Robinson, op. cit., nota ad loc.
47 Enunciado explícito: to auto pragma.
48 Perceba-se a reformulação do enunciado, transformando os termos predicados em sujeitos da oração.
49 Também sobre o tema, cf. [Platão sp.], Peri dikaíou; Xenofonte, Cyrop. 1.6.26 ss.; Platão, Res. 331b-d, Leg. 860 c-e;
50 A correspondência, inclusive literal, entre passagens deste capítulo e o diálogo de Sócrates e Eutidemo, retratado por Xenofonte, Memorab. 4. 2. 14 ss., tem instigado a busca de sua fonte primeira: Sócrates; o próprio autor do DL; ou outro pensador mais antigo. A questão é incerta, cf. Robinson, op. cit., nota ad. loc. com bibliografia mencionada.
51 Ambos mataram a própria mãe para vingar o pai.
52 antios logos.
53 Passagem complicada. Diels propõe: καὶ <αἰ> λέγοιτο ῾πολλὰ ἀδικήσας ἀποθανέτω᾿, ἀποθανέτω <καὶ πολλὰ καὶ δίκαια δια>πραξάμενος. “Se fosse dito: “que morra aquele que cometer muitas injustiças”, que morra também o que fez muitas coisas justas.”
54 Pseudeos é genitivo do substantivo pseudos e não do adjetivo pseudes, cujo neutro singular não é encontrado em escritos mais antigos, cf. LSJ9, s.v. Alatheias pode ser genitivo do substantivo alatheia (dórico para aletheia), mas também uma variante para to alathes, cf. Robinson, op. cit., p. 190. Para to pseudos oposto a to alathes, ver adiante 4.5, e Platão, Euthyd. 272b, Gorg. 505e, Resp. 382d., entre outros.
55 Cf. Platão, Euthyd., 283a e ss. (acerca de qualquer enunciado ser verdadeiro); Aristóteles, Soph. El., 178b 24 e ss. (acerca de uma proposição ser falsa e verdadeira), Cat. 4a 23 - b 13 (acerca de asserções e opiniões admitirem os contrários).
56 ergon. A retomada desta afirmação pela antítese em 4. 7 usa o termo pragma, traduzido então por “acontecimento”.
57 Se dissessem que é falsa sua afirmação de que “o discurso verdadeiro e o falso são o mesmo”, então, o discurso verdadeiro e o falso não seriam o mesmo, seriam diferentes.
58 Para o argumento da autorrefutação, peritrope, empregado desde a antiguidade contra afirmações relativistas atribuídas aos sofistas, ver Platão, Euthyd. 286c, Theae. 171; Demócrito, DK 68 A114.
59 As seções 7 e 8 são complicadas e podem estar corrompidas ou apresentar lacunas; sigo o texto proposto por Blass, conforme Dueso (op. cit., p. 138 e 191). A passagem seria uma réplica ao proposto pela tese em 4.3, que fala de um mesmo discurso e cita a prática dos tribunais. A antítese pretende demonstrar (4.7) que do próprio argumento deles se segue que são dois discursos distintos, um falso e outro verdadeiro.
60 Uma das interpretações dessa passagem poderia ser que a antítese deturpa o que a tese diz em 4.3, acreditando que despreze o julgamento dos juízes: já que eles não presenciam os fatos, não podem dizer se há correspondência. Mas a tese parece simplesmente afirmar que um mesmo discurso, expresso com as mesmas palavras, será ora verdadeiro, ora falso, a depender dos eventos, o que seria comprovado pela prática dos tribunais.
61 Também os juízes reconheceriam que são dois discursos diferentes. Isso, além de reforçar a antítese, poderia ter sido dito no intuito de salvaguardar a prática jurídica (cf. nota anterior).
62 Cf. Platão, Alc. i, 109b; Leg. 944c.
63 Com base nesse capítulo, e como leitura do tratado mesmo, apresento duas posições: 1) Kneale e Kneale, acerca da reflexão sobre problemas de lógica formal antes de Aristóteles: “[O DL] é obviamente parte de um prolongado debate sobre a possibilidade de falsidade e contradição. Como o fragmento está mutilado é impossível saber bem de que se trata, mas parece que o autor defende que é possível não só fazer afirmações contraditórias (antilegein) mas mesmo sustentar em diversos contextos, duas teses plausíveis que se contradizem uma à outra. Para provar desenvolve uma série de antinomias, cada uma com uma tese e uma antítese. De interesse especial é a quarta antinomia na qual o autor mostra que é possível sustentar ambos os lados de uma contradição sobre verdade e falsidade. Na tese ele tenta mostrar que a verdade e a falsidade são idênticas [sic] citando o exemplo de uma forma verbal, e.g., ‘Sou um iniciado’ que é verdadeira quando dita por A e falsa, quando dita por B. Deste argumento é, no entanto, possível tirar a conclusão de que não é a expressão verbal (a frase) que pode ser verdadeira ou falsa. Esses predicados têm que ser aplicados àquilo que é expresso pela frase, i. é., a afirmação ou a proposição. Podemos ter aqui a origem da distinção estoica entre phone e lekton. Esse argumento estabelece o mesmo princípio acerca das noções de verdadeiro e de falso que o argumento do Eutidemo acerca de validade, nomeadamente que essas noções não podem ser ligadas a simples esquemas verbais.” (KNEALE; KNEALE, 1972). 2) E Rossetti, abordando o que chama de relativismo fenomenológico de Protágoras, do DL e de outros textos sofísticos, diferenciando esse relativismo de um pessimismo epistemológico, por evidenciar-lhe o “desacordo respeitoso”, o qual reconhece a dignidade das opiniões que não partilhamos, sobretudo a dignidade dos julgamentos descritivos e das opiniões que se apoiam sobre experiências pessoais diretas e imediatas, e que não se estende a opiniões que não se sustentam - por exemplo, à opiniões intencionalmente caluniosas que inventam e falsificam dados existentes, considerará o DL exemplar da souplesse desse relativismo: “[...] a análise [no DL] é enriquecida pela possibilidade de se estabelecer a falsidade de um julgamento descritivo quando o fato a descrever é, em geral, inequívoco. Mas o autor do DL contempla outros recursos também, e, se nos três primeiros capítulos ele adere manifestamente [sic] ao relativismo da ‘verdade’, em outro, no quinto, ele nos assegurará que há casos em que o julgamento bem pode ser manifestamente falso: por exemplo, não podemos reivindicar que o homem normalmente (convencionalmente) sentado está de pé, ou que onos seja a mesma coisa que noos. A flexibilidade deste relativismo me parece então notável.” (ROSSETTI, 1986).
64 O enunciado é explicíto: to auto pragma.
65 A julgar pelos exemplos dados, essa afirmação resumiria as possibilidades de se atribuir diferentes predicados a uma mesma coisa, isto é, todos eles seriam possíveis: essa coisa é potencialmente qualquer coisa. O enunciado, no entanto, contém a já mencionada ambiguidade entre “x é y” e “y é x”, tendo sido, por conta disso, traduzido muitas vezes por “tudo é o mesmo” – que, na verdade, é a consequência inversa que a antítese imputa à tese para assim poder refutá-la.
66 “Ser, estar, existir e haver” pode ser dito com o mesmo verbo em grego, por isso, esse exemplo serve para confirmar a afirmação imediatamente anterior.
67 As coisas (físicas) = ta pragmata são/estão/existem e não são/não estão/não existem (em algum lugar ou de alguma forma). A confusão provém da ambiguidade gerada pelo duplo sentido do verbo ser: ser-existencial e ser-predicativo, entre ser absolutamente e ser em algum aspecto. A considerar os exemplos, a afirmação se daria em sentido relativo, no entanto, sua forma é ambígua e dá margem à falácia conhecida como a dicto secundum quid ad dictum simpliciter, que assim é explicada por Aristóteles: “[...] ocorre quando o que se predica em parte é tomado como se fosse predicado de forma absoluta, [...] pois não é o mesmo ser alguma coisa (ti) e ser absolutamente [ou simplesmente] (aplos).” (Soph. El. 166b 38-167a 3). Cf. nota 27.
68 Temos, no mínimo, duas leituras interessantes para a conexão entre as passagens 5.10 e 5.11, com diferentes resultados: Sousa e Pinto (op. cit., p. 295), Robinson (op. cit., 129 e notas ad loc.) e Sprague (1968, p. 163) apresentam, aproximadamente, a seguinte interpretação: “eles acrescentam “quando convém” e “quando não convém”, mas as coisas não se alteram com isso; as coisas se alteram quando se muda o acento, se trocam as letras (etc.). Robinson (idem) acredita num equívoco: para a tese, o “quando convém” e “quando não convém” (o contexto: ex. falar vaca para vaca - convém, e vaca para cavalo – não convém) indicaria se quem fala (a mesma coisa: vaca) é louco ou sensato. Porém, a antítese supõe que o acréscimo estaria pressupondo uma mudança no significado, por isso, sustentará que somente uma modificação na palavra poderia alterá-lo, somente outra palavra indica outra coisa (“vaca” dito “quando não convém” não significa “cavalo”). Também Desbordes (1987, p. 40-42) apoia sua argumentação em interpretação semelhante a essa, com uma diferença no tom: o contexto poderia fazer crer que não é mais a mesma coisa (a mesma palavra), mas, em matéria de linguagem, a mudança tem que se dar na palavra: “[...] duas palavras são diferentes não porque se referem a coisas diferentes, mas porque possuem sentidos diferentes, e essa diferença está marcada na matéria mesma das palavras por uma diferença concreta, quão pequena for. [...] Tratando-se de linguagem, a resposta à questão “o mesmo ou o outro” é inteiramente interna e desligada de toda relação com o mundo exterior.” (ibidem, p. 41, grifos meus). Semelhante às leituras de Mittman, Ribeiro e Targa (2008, p. 28) e Gagarin e Woodruff (1995, p. 305), eu sugiro a seguinte interpretação: eles acrescentam “quando convém” e “quando não convém” e isso muda a coisa; as coisas se alteram, sim, não só assim, mas também quando se muda o acento, se trocam as letras (etc.); logo, os loucos e os sensatos não falam a mesma coisa. Na minha opinião, essa leitura está de acordo com a argumentação da antítese em 4.6, 4.7 e 4.9, quando conclui, utilizando as próprias colocações da tese, que o enunciado verdadeiro é diferente do falso, e também está de acordo com a colocação da antítese, em 5.13: acrescer ou retirar algo muda a coisa. Parece-me o mesmo argumento de 4.9, algo como: de acordo com sua tese, eles dizem que os sensatos falam quando convém, e os loucos quando não convém; portanto, há diferença. Em 2.23, a antítese sustentou que “[...] se a mesma coisa é bonita e feia, então, na Lacedemônia é bonito que as meninas pratiquem ginástica, e na Lacedemônia é feio que as meninas pratiquem ginástica”, de sorte que a manutenção do complemento “na Lacedemônia” parece fazer parte de seu argumento de que assim se fala da mesma coisa. A tensão permanece entre a visão relativista, perspectivista, ou contextualista, da tese e a leitura em bloco da antítese.
69 Todos os exemplos mencionam palavras “iguais”, porém, com acentos recaindo, ora na primeira, ora na segunda sílaba.
70 Como o autor menciona, a diferença, não marcada na transliteração, está na presença das “mesmas” vogais, ora longas, ora breves.
71 Cf. Platão, Crátilo, 432a-b: “Crátilo: Mas tu percebes muito bem, Sócrates, que quando atribuímos aos nomes, de acordo com a gramática, as letras a e b, ou qualquer outra letra, se acrescentarmos ou subtrairmos ou deslocarmos uma, não poderemos dizer que escrevemos o nome, embora incorretamente; não escrevemos de jeito nenhum, pois o que nessa mesma hora surgiu foi outro nome, uma vez introduzidas todas aquelas modificações. Sócrates: É preciso ver, Crátilo, se não estamos considerando o assunto por um prisma errado. Crát.: Como assim? Sóc.: É bem possível que se passe conforme dizes com o que só existe necessariamente, ou não existe, por meio de números. O número dez, por exemplo, ou outro qualquer que te aprouver: se acrescentares ou suprimires alguma coisa, tornar-se-á imediatamente outro número; [...].” (Trad. Nunes, 1980, p. 182).
72 Desbordes (op. cit., p. 41) chama a atenção para a antiguidade dessa quadripartição – mutação (acentos, duração), metátese (ordem das letras), adição e subtração –, atribuída geralmente aos estoicos.
73 Réplica a 5.3. A interpretação de Dueso e Robinson é que a antítese aceita que “as mesmas coisas sejam tudo”, mas apenas de maneira relativa (pei), secundum quid, e não de maneira absoluta (ta panta), simpliciter. Cf. nota 67. O que acaba por ser, por fim, a explicitação do argumento que estava na base de suas colocações até agora. O fato, já mencionado muitas vezes, é que a tese, devido aos exemplos utilizados, não se compromete com afirmações em sentido absoluto.
74 Costuma-se traduzir arete por “virtude”, termo que evitei usar, por crer que transmite um conceito cristão de castidade e/ou correção moral. Na discussão apresentada no Protágoras de Platão, acerca da possibilidade ou não do ensino de arete, discussão esta que se assemelha em muitos pontos à do DL, o que está em jogo, pela visão sofística, é a possibilidade de, através do ensino, tornar um homem influente, capaz de tomar decisões adequadas e ser honrado pelos demais, recebendo distinção e reconhecimento público, bem como posição de destaque no governo da cidade; e, pela visão socrática, a desconfiança de que o ensino que vem de fora não pode incutir qualidades superiores num homem, caso ele já não as possua. A tradução por “virtude”, parece-me, poderia vir a desmerecer o debate. O ponto de contato dar-se-ia entre o entendimento socrático-platônico de arete como “virtude” da alma, essencialmente moral, e o uso que indica a competência e, então “virtude”, nas artes e em política. A tradução por excelência, ainda que não dê conta de todas as ocorrências, tenta manter a ligação com aristos (o melhor, superlativo de agathos) e a relação com o domínio de uma tekhne, um saber fazer, e segue Cassin (2005, p. 336).
75 O título aparece em Diels e Kranz.
76 Nesta seção (6.9), sigo o texto de Diels e Kranz. A proposta de Diels e Kranz simplifica a colocação do autor e parece estar de acordo com construções presentes em 6.10 e 6.12. De qualquer forma, tal como a de Robinson, é uma conjectura não totalmente corroborada pelos Mss. e pode ser criticada. Também Dueso (1996), aqui, segue Diels e Kranz, sem, contudo, mencionar que o faz.
77 Ta onumata (lit. os nomes, as palavras). Duas ocorrências na seção seguinte: 6.12.
78 Cf. Platão, Protagoras, 327e - 328a: “Agora, você age com desdém, caro Sócrates, porque todos, cada qual na medida dos seus próprios meios, são professores de excelência, embora ninguém, a seus olhos, se encontre em condições de ensiná-la. Ou ainda, é como se você procurasse por alguém capaz de ensinar a falar o grego, pois também não lhe pareceria que só existe um mestre [...].” (Trad. Cassin, 2005, p. 345)
79 Desbordes (op. cit., p. 36) assim interpreta esta passagem: “Reconhece-se uma prova banal da ‘convenção’ que rege a linguagem [...]. Mas nosso autor faz melhor [...]: a linguagem não é uma emanação das coisas, mas [também] não é mais uma propriedade da raça e do sangue - não se fala espontaneamente [...], mas por imitação do entorno, qual for. A linguagem é uma propriedade difundida por toda uma comunidade, ela é a mesma para todos e não se pode atribui-la a ninguém. É um fenômeno autônomo, independente das coisas, mas independente também da pessoa que a emite, que não é mais que um suporte temporário.” 80 O sorteio era feito usando-se favas.
81 Dueso (1996) propõe: “Siguiendo el critério de las propias técnicas, considero que un hombre experto se define por su capacidade para...” Segundo esse autor (1996, p. 196), kata tas autas tekhnas está presente em todos os Mss., tendo sido alterado por Blass. A tradução que ele fornece, no entanto, me parece inapropriada. Mesmo assim, o texto original permanece incerto e parece pouco adequado concluir, com base apenas nessa passagem, algo definitivo sobre o capítulo, tal como sustentar que se defenda aí a polimatia. Creio que da interpretação dessa frase, até o momento insatisfatória, dependeria um melhor entendimento do propósito deste capítulo.
82 No original: dialegesthai kata brakhu - fica a dúvida acerca da necessidade de aproximar essa habilidade com o procedimento geralmente adotado por Sócrates, nos chamados diálogos socráticos de Platão. Dueso (op. cit., p. 197): “[...] dialogar con preguntas y respuestas breves”; e Robinson (op. cit., p. 137): “[...] to converse in brief questions and answers.” Numa breve consulta à tradução do Protágoras de Platão, feita por Lombardo e Bell (1997, p. 746790), diálogo em que o modo de tratar um assunto se torna motivo de debate, percebe-se que as ocorrências dos compostos do verbo dialegomai são preferivelmente traduzidas por compostos do verbo to discuss, sem qualificação (assim, em 337a, 335d, 347e, 348b, por exemplo). Em 336c, onde se evidencia o procedimento socrático em comparação à longa exposição feita por Protágoras, prefere-se uma tradução qualificada: dialectical discussion; e apenas o enunciado explícito dialegestho eroton te kai apokrinomenos é então traduzido por let him engage in a question-and-answer dialogue. Ver adiante 8. 13.
83 pragmata.
84 hapanta.
85 Dueso (op. cit., p. 171-176) e Taylor (1911, p. 127) acreditam que o capítulo defenda posições socráticas acerca das qualidades do político; Robinson (op. cit., p. 77, 80 e 81) descreve o capítulo como uma listagem das qualidades de um político-orador exemplar, e sugere um propósito propedêutico sofístico, por trás da aparência paradoxal das asserções aí apresentadas, as quais se assemelham às apresentadas no Eutidemo de Platão. Observese que, no decorrer do capítulo, as competências listadas na primeira seção são tratadas aparentemente em sequência inversa.
86 Cf. Platão, Euthyd. 293-297 (Eutidemo e Dionisodoro lançam mão de diversos sofismas, para demonstrar a Sócrates que todos conhecem todas as coisas, se conhecerem apenas uma); Gorg. 456-459 (Górgias discorre sobre o poder da retórica e menciona que o orador é capaz de falar sobre todas as questões); Soph. 232b e ss. (discussão acerca da capacidade do sofista de discutir e conhecer qualquer assunto), sugere-se comparar principalmente as seguintes passagens: Soph. 232d 1-2 e DL 8.6, 8.9, 8.10; Soph. 232c 8-10 e DL 8.1 (fim); Soph. 232b 11-12, 232e 3-4 e DL 8.1, 8.3, 8.5, 8.13, (in.); Soph. 234c 4 e DL 8.1, 8.12; e Soph. 232c 4-5 e DL 8.1, 8.2.
87 O advérbio grego orthos contém a mesma ambiguidade que o português corretamente - falar “apropriadamente” ou falar “com exatidão, com veracidade”. Dentro do ambiente sofístico, falar ou advogar corretamente pode exprimir também a ideia de falar “persuasivamente”, obtendo êxito na causa.
88 Possivelmente há interesse na ambiguidade do termo, podendo funcionar como argumento falacioso ligado à seção anterior: para falar corretamente, é preciso conhecer o assunto sobre o qual se fala; quem tem o conhecimento das técnicas discursivas fala corretamente sobre tudo; logo, conhece tudo. Aparece também em 8.6, 8.9, 8.10 e 8.13.
89 Dueso (op. cit., p. 197) dá a tradução: “En efecto, tratará de conocer todas las cosas”: pois acredita ser um “futuro expressando uma necessidade mais que um fato, também em 8.7.” Discordo.
90 Segundo Robinson (op. cit., p. 230), os Mss. indicam uma lacuna de 4 ou 5 linhas aqui.
91 Esta passagem é uma das mais difíceis do tratado, pois não há certeza acerca do texto correto, muito menos de como deva ser interpretado, e os resultados são os mais díspares possíveis: Dueso (op. cit., p. 198): ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων, τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ
δέοντα πράσσεσθαι χρή - “Pues todos los seres humanos llevan a cabo los mismos actos, pero es preciso hacer aquello que es conveniente en relación com un mismo acto.”; Robinson (op. cit.,
p. 138-139): ἔστι γὰρ ταῦτα τῶν πάντων, τῆνα δὲ ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα παρέξεται,
αἰ χρή. - “For these <objects of knowledge> are part of all <objects of knowledge>, and the exigency of the situation will, if need be, provide him with those <other objects>, so as to achieve the same end”; Diels e Kranz (1960, p. 416): ἔστι γὰρ ταὐτὰ τῶν πάντων τῆνα, <ὁ> δὲ
ποτὶ τωὐτὸν τὰ δέοντα πράξει, αἰ χρή - “Estas coisas são as mesmas em todos os casos. E ele fará o que deve, diante do mesmo caso, se for preciso.” (Trad. MITTMAN; RIBEIRO; TARGA, 2008). Eu sigo o texto proposto por Robinson, porém, mantenho πρασσεῖται, presente nos Mss. (conforme informação constante nas três edições mencionadas). Uma tradução semelhante à minha é dada por Gagarin e Woodruff (1995, p. 308): “For these things belong to all things and, if necessary, he will accomplish the other things that need to be done.” Para a interpretação dada pelos autores citados, ver notas ad loc.
92 A negação está presente em todos os Mss., porém, foi eliminada na edição de Diels (DUESO, op. cit., p. 198).
93 Dueso substitui ταὶ δίκαι por τὰ δίκαια – “pues con esto tienen que ver las acciones justas.” – que, segundo ele, está em todos os manuscritos. Sua leitura é que o conhecimento da justiça (to dikaion) é a condição para conhecer as ações justas (ta dikaia): “O duplo nível ‘justiça-ações justas’ ou ‘beleza-coisas belas’ é uma exigência tipicamente platônica.” (DUESO, op. cit., p. 176).
94 pragmata.
95 nomos pode significar também “melodia”.
96 Cf. Platão, Gorg. 449b: “Sóc. Górgias, estarias disposto a continuar conversando como estamos fazendo agora, perguntando umas vezes e respondendo outras? [...] queira responder com brevidade às perguntas. Górg. [...] tentarei responder com a máxima brevidade. [...] ninguém seria capaz de dizer as mesmas coisas em menos palavras que eu.” (Trad. minha, com base em CALONGE, 1999).
97 O autor parece se referir, de acordo com as seções seguintes, mais propriamente à arte da memória (mnemotécnica ou mnemônica) que à faculdade de memorização. Uma memória treinada era de vital importância para os oradores na antiguidade e tornou-se parte do estudo formal de retórica: cf. Ad Herennium (tratado anônimo composto em I a.C.), III, 28-40, inclusive esta passagem, dedicada à memória, inicia-se com um elogio parecido àquele do DL: “Passemos agora ao tesouro das coisas inventadas e à guardiã de todas as partes da retórica: a memória.” (Trad. FARIA; SEABRA, 2005, p. 181). Esta obra, descrita por Yates (1984, p. 5) como a principal e única fonte completa para o estudo da arte da memória, tanto no mundo grego quanto latino, voltará a ser citada, pois sua discussão sobre memória de coisas e memória de palavras, papéis dados a lugares e imagens, esclarece detalhes deste pequeno capítulo do DL.
98 es philosophían, cf. nota 6. A tradução de Robinson (1979, p. 141) para a frase é: “for both general education and practical wisdom”. Cf. Élio Aristides (DK 79 1): “[...] filosofia designava uma espécie de amor pelo belo e um estudo relativo aos discursos, não nesta orientação atual, mas como uma educação em geral.” (grifo meu) (Trad. SOUSA; PINTO, 2005, p. 52).
99 A menção à sabedoria é, para Dueso (op. cit., p. 199), prova de que este capítulo faça parte da estrutura conceitual dos quatro últimos, que, segundo ele, tratam do conceito de ciência, sendo, em conjunto, a parte positiva do que chama tese B, a antítese, cuja influência seria nomeadamente Sócrates.
100 Este é o capítulo que se pode mais facilmente relacionar com Hípias, a quem foi atribuída uma memória invulgar, entre muitas outras habilidades, bem como o desenvolvimento de técnicas mnemônicas específicas que constituíam matéria de ensino, cf. Platão (Hipp. Min. 368d 6-7 e Hipp. Mai. 285e), Filostrato (V. Soph. 1.11.1) e Xenofonte (Symp. 4.62). Contudo, é no mínimo questionável que ele fosse o único a possuir e ensinar essas técnicas. Para uma leitura que vê neste capítulo uma abordagem inovadora da memória no ambiente ético-político, traçando seu caminho desde a obra dos antigos poetas à sua valoração dentro da paideia sofística, ver AGUIAR, 2006, p. 87-93 e DETIENNE, 1988, passim. É oportuno lembrar que Cícero (I a.C.), no seu De oratore, apresenta um relato de como o poeta Simônides (séc. VI-V a.C.) teria inventado a arte da memória.
101 Desbordes (1998) cita este capítulo como um exemplo do interesse do autor do DL pela linguagem: “[...] trata-se de tornar consciente o processo da memória que está na base mesmo da competência linguística: a linguagem não é uma justaposição ao infinito de palavras isoladas, irredutíveis umas às outras; pode-se estabelecer entre elas relações, começar a esboçar uma rede, um sistema. E um sistema baseado nas propriedades materiais das palavras, aquelas que se pode manipular à vontade.” (ibidem, p. 36).
102 Robinson (1979, p. 141 e 239) traduz por following this course, i.é., o curso de memorização que estaria descrito nas seções seguintes.
103 A ordem de algumas palavras entre as seções 2 e 3 aqui está alterada em comparação com o texto proposto por Diels e Kranz.
104 O verbo é katatithemi: “relacionar” ou “associar”, no entanto, considerando o que os tratados remanescentes mais antigos nos dizem sobre a arte da memória, a tradução literal por “colocar” também estaria adequada. De fato, a mnemônica é descrita pelos romanos como a técnica de organizar arquitetonicamente lugares (loci) na memória, e dispor, então, ordenadamente, nesse espaço mental, as imagens (imagines) daquilo a ser lembrado: “A memória artificial constitui-se de lugares e imagens. [...] Por exemplo, se queremos guardar na memória um cavalo, um leão ou uma águia, será preciso dispor suas imagens em lugares determinados.” (Ad Herennium, III, 29. Trad. FARIA; SEABRA, 2005, p. 183).
105 Novamente a distinção onoma/pragma, cf. nota 22. Aqui os exemplos parecem opor nomes próprios a substantivos comuns, no entanto, a distinção possivelmente se dá entre memorização de palavras, nomes (onomata) e memorização de coisas (pragmata). Essa divisão aparece exposta nos tratados posteriores que versam mais longamente sobre a arte da memória, tal como o anônimo Ad Herennium, e as obras De oratore, de Cícero, e Institutio oratoria, de Quintiliano. No Ad Herennium (III, 33), é dito que há dois tipos de imagens, uma para coisas (res), outra para palavras (verba): coisas são os próprios casos, um assunto inteiro, o tema do discurso, que deve resumir-se em imagens; palavras são sequências ordenadas de palavras (uma poesia, por exemplo), e o método parece sugerir a semelhança sonora para construção da imagem. Minha tradução de peri andreias, nesta seção, por “o que diz respeito à coragem” (da mesma forma, em elipse, e deixando margem para alguma ambiguidade, com peri khalkeias - arte do ferreiro - e peri deilias - covardia) pode ter (re) forçado a comparação entre os tratados, de sorte que coisas não seriam os substantivos apresentados (coragem, arte do ferreiro, covardia), mas teriam o sentido ampliado do que é relativo a. Desbordes (op. cit., p. 36) acredita que essa divisão, entre memória de palavras e memória de coisas, testemunhe o desejo de fazer da linguagem um objeto autônomo.
106 A indicação de que o texto prossegue além deste ponto é dada pelos Mss. Não se sabe, todavia, quanto foi perdido.
absTracT: This article is a translation, followed by notes, of the anonymous Sophist treatise from the 4th century b.c., Dissoi Logoi (Twofold Arguments). The introduction provides basic information about text transmission, authorship, and date of composition, as well as a brief discussion of the work’s content. Important passages and concepts are analyzed in the notes to the translation. In addition, questions about the work and its interrelations with other works are discussed, and a reading of the text is developed. The treatise was transmitted in an incomplete form and contains nine small chapters on the central themes of the Sophist movement. It can be considered an example of the rhetorical techniques taught by those thinkers.
KeyworDs: Twofold arguments. Sophists. Rhetoric. Antilogy. Relativism.
referências
AGUIAR, G. Ambivalência e relativismo nos Dissoì lógoi. 2006. 130f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFMG, Belo Horizonte, 2006.
BLASS, F. Eine schrift des Simmias von Theben? Jahrbücher für Classische Philologie, v. 123, p. 739-740, 1881.
CASSIN, B. O Efeito sofístico. São Paulo: Ed. 34, 2005.
CÍCERO. Retórica a Herênio. Traução de A.P.C. Faria e A. Seabra. São Paulo: Hedra, 2005.
CONLEY, T. M. Dating the so-called Dissoi logoi: a cautionary note. Ancient Philosophy, v. 5, n. 1, p. 59-65, 1985.
DESBORDES, F. Aux origines de la linguistique: l’exemple des Dissoi logoi. In: MELLET, S. (Org.). Études de linguistique generale et de linguistique latine : offertes en homage a Guy Serbat. Paris : La Socièté pour L’information Grammaticale, 1987. p. 33-43.
DETIENNE, M. Os mestres da verdade na Grécia Arcaica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
DIELS, H.; KRANZ, W. Die Fragmente der Vorsokratiker. Berlin: Weidmannche
VerlagsBuchhandlung, 1960. V. 2.
DILLON, J.; GERGEL, T. L. The greek sophists. London: Penguin, 2003.
DUESO, J. S. (Ed.) Protagoras de Abdera. Dissoi logoi: textos relativistas. Madrid: Akal, 1995.
DUPRÉEL, E. Les sophistes: Protagoras, Gorgias, Prodicus, Hippias. Neuchâtel: Éditions du Griffon, 1980.
GAGARIN, M.; WOODRUFF, P. Early Greek political thought from Homer to the sophists. Cambridge; New York: Cambridge University Press, 1995.
GANTUIA, E. et al. Introducción a la lexicografía griega. Madrid: Instituto Antonio de Nebrija, 1977.
GOMPERZ, H. Sophistik und Rhetorik: das Bildungs ideal des eu legein in seinem Verhaltniss zur Philosophie des 5. Jahrhundert. Stuttgart: Teubner, 1965 (1912).
KERFERD, G. B. O movimento sofista. São Paulo: Loyola, 1990.
KNEALE, W.; KNEALE, M. O desenvolvimento da lógica. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1972.
KRANZ, W. Vorsokratisches IV: die sogennanten Dissoì lógoi. In: CLASSEN, C. J. (Org.). Sophistik. Darmstadt: Wiss Buch, 1976.
LEVI, A. J. On two-fold statements. American Journal of Philology, n.61, p. 292-306, 1940. MAZZARINO, S. Il pensiero storico classico I. Bari: Laterza, 1966.
MITTMAN, A.; RIBEIRO, L. F. B.; TARGA D. C. Discursos duplos: tradução. 2008. Submetido a publicação.
PLATÃO. Crátilo. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Universidade Federal do Pará, 1980.
______. Protagoras. Tradução Stanley Lombardo and Karen Bell. In: COOPER, J. M. (Ed.). Plato: complete works. Indianapolis; Cambridge: Hackett, 1997. p. 746-790.
PLATÓN. Gorgias. Tradução de J. Colange Ruiz. In: ______. Diálogos II. Madrid: Gredos, 1999. p. 9-145.
POHLENZ, M. Aus Platos werdezeit. Berlin: 1913.
RAMAGE, E. S. An early trace of socratic dialogue. American Journal of Philology, v. 82, n. 4, p. 418-424, oct.1961.
ROBINSON, T. M. Contrasting arguments: an edition of the dissoi logoi. New York: Arno, 1979.
ROSSETTI, L. La certitude subjective inébranlable. In: CASSIN, B. (Ed.) Positions de la sophistique. Paris: J. Vrin, 1986.
ROSTAGNI, A. Un nuovo capitolo della retórica e della sofistica. Studi Italiani di Filologia Clássica, Florença, n. 2, p. 148-201, 1922.
SOLMSEN, F. Intellectual experiments of the greek enlightenment. Princeton: Princeton University Press, 1975.
SOUSA, A. A. A.; PINTO, M. J. V. Sofistas: testemunhos e fragmentos. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 2005.
SNELL, B. A cultura grega e as origens do pensamento europeu. São Paulo: Perspectiva, 2001.
SPRAGUE, R. K. Dissoi logoi or dialexeis: two-fold arguments. Mind, v. 77, n.306, p. 155-167, apr. 1968.
TAYLOR, A. E. Varia socratica: First Series. Oxford: James Parker & Co., 1911.
TRIEBER, C. Die Dialékseis. Hermes, n. 27, p. 210-248, 1892.
UNTERSTEINER, M. Sofisti: testimonianze e frammenti III. Florencia: La Nuova Italia, 1961.
______. I Sofisti. Milano: Bruno Mondadori, 1996.
WOODBURY, L. Parmenides on Names. In: ANTON, J.P.; KUSTAS, G.L. (Ed.). Essays in ancient greek philosophy. New York: New York Press, 1958. p. 145-160.
YATES, F. The art of memory. Chicago: University of Chicago Press, 1984.
Recebido em 10/06/2016
Aceito em 17/12/2016
[1] Doutora em Letras pela Universidade Federal do Paraná com a tese (inédita) Sexto Empírico: Contra os Gramáticos. Tradução, introdução e notas. Foi professora de Língua e Literatura Grega nessa mesma instituição (2014-2016). Recentemente, participou das traduções de Aristóteles ou o vampiro do teatro ocidental, de Florence Dupont, e Antístenes: o discurso próprio, de Aldo Brancacci, ambos no prelo. A tradução presente neste artigo é fruto de sua pesquisa de Mestrado, parcialmente financiada com recursos CAPES-REUNI. E-mail: joseane.prezotto@gmail.com
[2] Não se sabe por que o texto foi atribuído a Sexto Empírico. Fabricius, em sua edição do tratado, em 1724, afirma que isso ocorreu devido a uma confusão, e o autor seria, na verdade, Sexto de Queronea, um anticético. A hipótese, contudo, não foi aceita. Na opinião de Dueso (1996), “[...] a associação do tratado com Sexto Empírico deve-se a motivações teóricas: com efeito, os Dissoi Logoi seriam uma boa confirmação do princípio (arkhe) do sistema cético, a saber, que ‘a cada proposição se opõe uma proposição equivalente’ (S.E. P. 1. 12).” Vale lembrar que o DL não necessariamente se compromete com a afirmação de que os dois discursos apresentados sejam equivalentes. Segundo Floridi (2002), o DL está presente em vinte e dois dos cinquenta e quatro manuscritos gregos de Sexto Empírico. 3 O título pelo qual é conhecido atualmente, Dissoi Logoi, são as palavras inicias do texto. Robinson (1979, p. 78) observa que esse título pode ser infeliz, já que é meramente uma frase de efeito baseada nas palavras iniciais do texto que chegou até nós, refletindo apenas a estrutura dos cinco primeiros capítulos, e não do texto como um todo.
[3] Isso leva a crer que não considerasse Sexto Empírico o autor do texto, mas também não o atribui a Diógenes Laércio.
[4] Provavelmente, no período entre o fim da Guerra do Peloponeso e o começo da Guerra Coríntia, a qual durou de 394-387 a.C., já que esta guerra, na qual Corinto se juntou a Atenas, Tebas e Argos contra Esparta, não é mencionada. Mazzarino (1966 apud ROBINSON, 1979, p. 34) é o único que sugere uma data anterior, entre 457 e 429 a.C. Contra ele, manifestaram-se Untersteiner (1996) e Robinson (1979). Conley (1985 apud DUESO, 1996, p. 133) argumentou que as evidências internas apenas sugerem um terminus a quo; também Kerferd (2003, p. 94) sustenta essa posição, sustentando que a passagem coloca em relação temporal apenas as guerras citadas, mas não o momento em que o texto é escrito. De qualquer forma, as demais evidências não são, com isso, descaracterizadas: o próprio Kerferd sugere o começo do século IV a.C.
[5] Para um estudo completo (até sua época) acerca das tentativas de atribuir autoria ao tratado e estabelecer suas influências filosóficas, incluindo as de seus editores dos sécs. XVII, XVIII e XIX, ver Robinson, (1979, p. 41-73).
[6] As formas do particípio dativo plural, tais como poleunti (“os que vendem”), astheneunti (“os que adoecem”, mistharneonti (“os que obtêm lucro”), por exemplo, não são reconhecidas como características de nenhuma cidade. Para Robinson (1979), elas são um erro: “[...] a troca eo > eu é comum a muitos dialetos dóricos, e teriam assumido – erroneamente – que, porque a terceira pessoa plural do presente em dórico termina em –onti, o dativo masculino plural do presente particípio teria (como em ático e jônico) um final idêntico.”
[7] Trieber (1892 apud DUESO, 1996) afirma que “[...] já na Antiguidade se acreditava que somente os pitagóricos haviam escrito em dórico e que, sem este erro, os DL teriam compartilhado o triste destino de outros textos sofísticos. A preferência da Idade Média por textos pitagóricos e místicos justificaria sua transmissão.” Contra a leitura de Rostagni, ver também Aguiar (2006, p. 40-46).
[8] A relação do tratado com Hípias foi apontada já em 1889 por Dümmler. Trieber (1892) sugeriu que o autor seria o próprio Hípias ou um de seus seguidores, o mesmo pensou Pohlenz (1913) (ROBINSON, 1979).
[9] XENOFONTE, Symp. 4. 62; PLATÃO, Hpp.Ma. 285e, Hpp.Mi. 368d.
[10] Para Nestle (1940, p. 439 apud DUESO, 1996, p. 136), o autor se encontra completamente desamparado em sua opção entre as duas teses opostas, e refuta a tese protagórica da relatividade dos valores de uma forma torpe e infantil.
[11] Os termos não aparecem nessa sentença, mas as sentenças seguintes, exemplificativas, expressam justamente esse uso.
[12] Gomperz (1912): “die Andern aber, beides sei dasselbe” (1); “Die Einen erklären sie für identisch” (2); “die andere [erklären sie] für identisch” (3). Untersteiner (1961): “Altri, invece, (affermano) che (il bene e il male) coincidono” (1,1); “Altri, invece, sostengono che bello e turpe sono identici” (2. 1); “altri, invece, (affermano) che il giusto e l’ingiusto s’identificano” (3. 1). Sprague (1968): “but others say that they are the same” (1. 1); “and others say that the seemly and disgraceful are the same” (2. 1); “and others that the just and the unjust are the same” (3. 1). Dumont (1969): “Mais pour d’autres, honorable e répréhensible sont identiques” (2. 1); “Les autres que le juste et l’injuste sont identiques”(3. 1). Piqué (1985): segue os mesmos padrões. Sousa e Pinto (2005): “outros dizem que são o mesmo” (1. 1); “Outros, pelo contrário, dizem que decente e vergonhoso são o mesmo.” (2. 1); “outros dizem que justo e injusto são o mesmo.” (3. 1). Dessas traduções, por mim foram consultadas: Gomperz (1912), Sprague (1968), Sousa e Pinto (2005), as outras são citadas por Dueso, 1996, p. 179. Tradutores que, como eu, evidenciam a diferença entre as teses, distinguindo-as pelo uso ou não do artigo definido, são: Robinson (1979): “Other say that the same thing is both seemly and shameful” (2. 1); “Others that the same thing is just and unjust” (3. 1); Gagarin e Woodruff (1995): “while others say that the same thing can be both” (1. 1); “others say that the same thing is proper and shameful” (2. 1); “the same thing is right and wrong” (3. 1); Dueso (1996): “Otros mantienen que la misma cosa es bella y fea” (2. 1); “Otros, por el contrario, afirman que la misma cosa es justa e injusta.” (3. 1); Mittmann, Ribeiro e Targa (2008): “outros dizem que a mesma coisa é boa e má” (1, 1); “outros dizem que o mesmo é belo e feio” (2. 1); “outros, que o mesmo é justo e injusto” (3. 1).
[13] De fato, “talento”, uma moeda grega, é o objeto em questão na frase anterior, mas essa frase tem a mesma estrutura linguística das que são traduzidas como identificando os predicados. O “simultaneamente” é a solução das autoras para kai ... kai....
[14] Mas 2.20: panta kairoi men kala enti, en akairia d’aiskhra – “todas as coisas são bonitas no momento certo, mas são feias no momento errado”; e: tauta aiskhra kai kala eonta – “as mesmas coisas são feias e bonitas”, em que os adjetivos estão concordando em gênero e número (neutro plural) com o sujeito.