A deutsche NatioN e A rAzão tupiniquim: o pensAmento vivo diAnte do conceito estéril

Luis Fellipe Garcia[1]

resumo:  Este artigo é um exercício de leitura comparada dos textos Reden an die deutsche Nation, publicado por Johann Gottlieb Fichte, em Berlim, em 1808, e Crítica da razão tupiniquim, publicado por Roberto Gomes, em São Paulo, em 1977. Se, à primeira vista, os dois universos de discurso parecem tão distantes que dificilmente se vê o que os aproxima, parece haver contudo uma flama comum que os anima, na medida em que ambos buscam evitar o aprisionamento do espírito local nos grilhões de um universo simbólico que não é o seu. O objetivo deste estudo é explorar cada uma das obras, em seus respectivos contextos, a fim de delinear os aspectos dessa chama comum que as motiva; após a confrontação dos dois textos, far-se-á, como conclusão, um breve esboço dos possíveis ganhos dessa abordagem comparativa. pAlAvrAs-chAve: Razão. Língua. Colonização. Educação.

i   introdução

Berlim, sala da Academia de Ciências da Prússia, 13 de dezembro de 1807. Johann Gottlieb Fichte, diante de um público composto por estadistas, oficiais, eruditos, comerciantes, dentre outros homens influentes de seu tempo, inicia uma série de discursos posteriormente recolhidos e publicados sob o título de Reden an die deutsche Nation (em português, Discursos à nação alemã), nos quais ele esboça um projeto de resistência diante do exército de Napoleão, que ocupa Berlim desde o dia 27 de outubro de 1806.[2] A ocupação de Berlim vem se somar a uma série de derrotas do exército saxônico-prussiano: com efeito, em Jena, Auerstädt, Halle, Prenzlau, os triunfos de Napoleão se sucedem e só encontram termo em virtude da Paz de Tilsit, assinada no dia 9 de julho de 1807, com o czar russo Alexandre, e, segundo a qual, a Prússia perde a metade de seu território.[3]

Diante de Berlim ocupada e da fragmentação física do território, oriunda da dissolução definitiva da já enfraquecida unidade política do Sacro Império Romano Germânico[4], Fichte emprega seu dom de predicador para dirigir-se àqueles que teriam o poder de implementar um novo sistema educativo nos territórios ocupados. Com efeito, o objetivo central do filósofo não é o de incitar uma insurreição armada para expulsar os franceses de Berlim, mas, antes, o de constituir um projeto de resistência epistemológica capaz de fazer frente à iminente colonização do espírito local. Fichte anuncia, assim, um projeto educativo cujo objetivo é conectar o pensamento às suas raízes vivas – isto é, à sua cultura, à sua história, à sua língua – o que constitui, segundo ele, a melhor forma de resistência, face ao invasor.

São Paulo, 1977, um dos momentos cinzentos da história do Brasil, em plena ditadura militar, Roberto Gomes dirige-se ao público da ex-colônia portuguesa, agora governada por uma elite que ecoa interesses econômicos e estratégicos estrangeiros, através do livro-manifesto intitulado Crítica da razão tupiniquim. Assim como Fichte antes dele, o pensador brasileiro explora os desafios de articular um pensamento vivo – intimamente ligado à sua cultura, sua história, sua língua –, a partir de uma nação marginalizada por forças externas. Trata-se agora, todavia, não de um projeto de prevenção contra a instituição de uma colonização interior, a qual existe desde que o Brasil se chama Brasil – em referência à madeira que os portugueses encontravam em abundância no território, o pau-brasil, e da qual se preservou o nome, em detrimento da coisa[5] – trata-se, antes, do diagnóstico da situação mesma da colonização e da busca de ferramentas epistemológicas para tentar escapar de tal situação.

Dois textos, duas línguas, duas nações, dois tempos históricos, dois contextos sociopolíticos, dois mundos – o da filosofia alemã e do pós-colonialismo. À primeira vista, os dois universos de discurso parecem tão distantes que dificilmente se vê o que os aproxima; no entanto, parece haver uma flama comum que anima as palavras de ambos, na medida em que tanto Fichte quanto Gomes buscam evitar o aprisionamento do espírito local nos grilhões de um universo simbólico que não é o seu. O objetivo deste estudo é explorar cada uma das obras, em seus respectivos contextos, a fim de delinear os principais aspectos dessa chama comum que as motiva; após a confrontação dos dois textos, far-se-á, como conclusão, um breve esboço da relevância dessa abordagem comparativa.

ii   os RedeN aN die deutsche NatioN e seu contexto

Os Reden an die deutsche Nation de Fichte tiveram um destino consideravelmente turbulento. Se, por um lado, trata-se provavelmente do texto fichteano mais lido e mais conhecido por leitores que não se dedicam ao estudo da filosofia, por outro lado, ele recebeu interpretações tão incomensuráveis quanto polêmicas. Já se viu nele “um ato de autodefesa de um profeta”(LAUTH, 1992, p. 200), o esforço de um pedagogo buscando motivar moral e espiritualmente uma nação desmoralizada (BAUMANN, 2006, p. 178), ou mesmo um dos precursores intelectuais do nazismo, em razão do tom fortemente nacionalista provindo de certas passagens.[6] Esperamos que o argumento aqui desenvolvido ajudará a explicitar o absurdo desta última interpretação, a qual passa ao largo precisamente da referência ao contexto e, por conseguinte, da ideia mesma de um projeto de resistência epistemológica formulado no interior de um território ocupado.

Com efeito, face a Berlim ocupada, Fichte sequer fala em resistência armada ou insurreição: o foco de sua preocupação é outro, a saber, o risco iminente de uma transformação da ocupação exterior em uma colonização interior; diante desse perigo, ele vê apenas uma saída, a qual ele resume nos seguintes termos: “em uma palavra, o que eu proponho é que uma transformação completa da educação é o único modo de preservar a existência [im Dasein zu erhalten] da nação alemã”[7]; uma transformação capaz de alimentar a independência e a autonomia intelectual das novas gerações, as quais devem desenvolver o pensamento na língua local, impedindo assim todo tipo de subordinação cultural. O projeto educativo dos Reden fichteanos é, como ficará mais claro na sequência, um projeto de resistência diante de uma colonização epistemológica iminente.

De início, é preciso notar que tal projeto é formulado menos de 30 anos após o próprio Rei da Prússia, Frederico II, ter-se queixado publicamente e em francês do parco desenvolvimento da língua alemã; no seu ensaio De la littérature allemande, publicado em 1780, ele enfatiza: “considero-a uma língua semibárbara, que se divide em tantos dialetos diferentes quanto se tem províncias na Alemanha”(FREDERICO II, 1780, p. 6-7); como observa Norbert Elias, no seu clássico O processo civilizador, o fato de o líder político prussiano se expressar em francês, longe de ser anódino, apenas “atesta sua filiação” à sociedade de corte, “cujo gosto, estilo e língua eram, de maneira geral, os mesmos por toda a Europa.” (ELIAS, 1990, p. 68). Contrapunha-se, dessa forma, à fragmentação territorial e mesmo linguística das províncias alemãs uma unidade cultural e idiomática supranacional da sociedade de corte, para a qual as línguas locais se manifestavam como línguas bárbaras.

Essa fratura interna entre a língua cotidiana e a língua erudita tinha consequências sobre o mundo da produção conceitual; com efeito, Leibniz, provavelmente o maior filósofo alemão antes do surgimento da Crítica da razão pura, publicara suas obras-primas (Discours de métaphysique, Essais de théodicée e La monadologie), em francês; do mesmo modo, Christian Wolff, apreciado por Kant como “o maior dentre os filósofos dogmáticos” (KANT, 2008, BXXXVI), apesar de ter fixado alguns conceitos-chave em língua alemã, como Bewusstsein e an sich, redigiu a maior parte de seus trabalhos em latim. E mesmo Kant, antes da publicação da primeira Crítica, em 1781, tinha na dissertação De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis sua obra de maior vigor filosófico. Pode-se dizer, assim, que até a geração precedente à de Fichte, nascido em 1762, o alemão era considerado uma língua menor, cujas conquistas, tanto no mundo da literatura como no da filosofia, eram ainda consideravelmente escassas.

Essa situação já começa a mudar, no fim da década de 1760, com a Sturm und Drang (tempestade e ímpeto), um movimento de jovens poetas e escritores, entre os quais grandes nomes que viriam a se consagrar, como Johann Gottfried Herder, Friedrich von Schiller e Johann Wolfgang von Goethe, e que, em oposição à cultura subordinada aos ditames do classicismo francês, afirmavam valores ligados à experiência imediata, à espontaneidade e ao sentimento (Empfindung)[8], articulados em obras redigidas em língua alemã, inspiradas por vezes em canções populares (Volkslieder)[9] e que viam em Lutero, cuja tradução da Bíblia para o alemão é um marco na constituição do Hochdeutsch moderno, um gênio da língua.[10] Tal movimento foi como uma corrente de oxigênio para jovens escritores e intelectuais, para os quais o racionalismo e o classicismo francês eram artificiais, diante da língua e das questões locais. Paralelamente à progressiva consagração dos primeiros grandes nomes da literatura alemã, Kant publica, em 1781, em língua local, uma obra que iria determinar grande parte do vocabulário filosófico futuro: a Kritik der reinen Vernunft. É nesse momento de transição e de articulação de novos conceitos em uma língua que, ainda em 1780, era tida pelo rei da Prússia como “semibárbara”, que Fichte começa a construir sua filosofia. A esse respeito, ele confessa, em carta a Anna Henriette Schütz, em janeiro de 1794, poucos meses antes da publicação do texto programático, anunciando seu próprio sistema filosófico: “tenho pensado bastante, já há algum tempo, em dar à filosofia um dialeto (Mundart) mais maleável e, em particular, mais alemão (deutsch)”.[11]

Cabe notar que a palavra deutsch deriva das formas antigas diutisch, diutsch, tiutsch, tiusch, utilizadas a partir do século X e que são variantes, por sua vez, do substantivo Teudo (povo) e do adjetivo theodisce (que pertence ao povo, popular), usados desde os tempos de Carlos Magno para caracterizar dialetos populares em contraste com a língua latina oficial; segundo o Etymologisches Wörterbuch der deutschen Sprache, o termo era usado, por vezes, no sentido de “interiorano, local”, e, por vezes, no sentido de “inculto, incapaz, tolo” (KLUGE, 2002, p. 371-372) [12]; uma possível tradução desse sentido original do termo seria aborígene ou autóctone. Nessa perspectiva, quando Fichte fala em buscar um Mundart, um dialeto ou uma língua falada (Mund significa boca), mais deutsch, no momento em que o latim e o francês ainda dominam boa parte do vocabulário filosófico, isso significa aproximar a língua filosófica da língua falada pelos locais.

Cabe notar ainda que a estabilização de um vocabulário na língua local representa igualmente o desenvolvimento de um universo simbólico comum, em meio a um grande número de variações dialéticas entre os principados germânicos. Tal desenvolvimento constituía uma ferramenta comunitária particularmente importante, diante da fraca unidade política e social dos principados, em razão de rivalidades internas reforçadas pela dissolução do Sacro Império Romano Germânico; nesse cenário, como ressalta Erich Fuchs, até mesmo a simples menção à ideia de um Estado Nacional já seria suficiente para provocar uma reação negativa de principados como a Bavária, a Saxônia e Württemberg, o que representaria o fracasso de um projeto comum (FUCHS, 2010, p. 273-274).  

Em uma palavra, o cenário social e cultural diante do qual Fichte tomara publicamente a palavra, no fim de 1807, era tal que (i) a fratura entre a língua erudita e a língua cotidiana era ainda recente e (ii) apesar das variações dialéticas do alemão, a presença em potencial de um universo simbólico comum constituía um dos poucos ligames comunitários disponíveis em um território social e politicamente fragmentado. Diante desse contexto, Fichte elabora seus Discursos, um projeto educativo cujo fio condutor é precisamente uma reflexão sobre a língua (die Sprache).

O projeto de uma educação com enfoque no desenvolvimento conceitual em língua local, i.e., em deutsch, tem o objetivo de alimentar nos estudantes a capacidade de engendrar eles mesmos seus conceitos estruturantes de uma visão de mundo, ou, no vocabulário de Fichte, de elaborar suas próprias “imagens do suprassensível”, pois, quando um povo adota os conceitos de uma outra língua “já bastante desenvolvida quanto à designação do suprassensível”, tais conceitos, “ao invés de claros e estimulantes, aparecem-lhe tão arbitrários quanto a parte sensível da língua.” (GA, I, 10, p. 150.). Trata-se assim de evitar tal arbitrariedade, estimulando a independência e a autonomia intelectual dos estudantes, a fim de que eles possam explorar as potencialidades expressivas de seu próprio idioma e o horizonte de produção conceitual por ele aberto: “(é preciso) criar novas palavras e dar um novo e mais restrito significado às já existentes”, como escreve Fichte na já citada carta a Anna Schütz (GA, III, 2, p. 48).[13]

Acrescenta-se ainda que as potencialidades da língua são as potencialidades expressivas da comunidade por ela formada, porque, como nota Fichte, são os homens que “são formados pela língua, muito mais do que a língua o é pelos homens”: ela constitui “o órgão social do homem.” (GA, I, 10, p. 145). Ora, se o homem é socialmente constituído pela língua, é claro que aquilo que chamamos de “conceitos estruturantes” e que Fichte denomina “imagens do suprassensível”, na medida em que são criados em uma língua e exportados a comunidades formadas por outra língua, resultam em uma fratura entre a realidade social de tal comunidade e os conceitos nos quais sua visão de mundo é formulada e constituída; há, por conseguinte, uma fratura entre o corpo social e, para utilizar a expressão fichteana, “os olhos de seu espírito.” (GA, I, 10, p. 150). Dito de outro modo, a grade conceitual que estrutura a visão de mundo da comunidade seria produzida por olhos que não são os seus, os quais, por sua vez, perceberão o mundo de um modo igualmente estranho ao seu. Um corpo social dotado de olhos transplantados não constitui apenas um corpo fraturado, mas um corpo colonizado.

O corolário de tal transplante é uma profunda fratura entre a cultura intelectual e a realidade social, já que as questões formuladas em seus conceitos fundamentais, “as imagens do suprassensível”, serão sempre questões alheias à história, ao contexto sociopolítico e ao universo simbólico da comunidade da qual tais questões pretendem tratar. É nesse momento que a língua se separa de sua raiz viva de tal modo que a pesquisa se converte em “jogos geniais sem consequência”, uma espécie de quebra-cabeça epistemológico, “um simples meio de passar o tempo de forma agradável” (GA, I, 10, p. 165), pois, em virtude da fratura entre o corpo e os olhos, as pesquisas não nascem jamais de uma necessidade premente que elas teriam por missão satisfazer.

O distanciamento entre as classes instruídas e o resto do corpo social tem um efeito perverso, não só sobre a pesquisa, que se desconecta de sua realidade social, mas sobre a relação entre acadêmicos e não-acadêmicos; com efeito, um dos resultados mais perversos desse distanciamento é o fato de que as classes instruídas desenvolvem progressivamente um sentimento de alheamento à realidade e à comunidade a que pertencem e “não sentem a necessidade de ajudá-la”, de tal modo que, pouco a pouco, grassa entre elas uma espécie de desprezo pela própria realidade social, o qual “toma formas cada vez mais evidentes e cruéis” e se traduz no aparecimento de “um muro de separação entre as classes instruídas e o resto do povo.” (GA, I, 10, p. 163).

O projeto fichteano de uma educação nova, para resistir à ameaça de uma colonização interior, pretende alimentar a independência e a autonomia das novas gerações, a fim de que elas possam explorar as potencialidades da língua dentro da qual suas relações sociais se constituem, de sorte que os conceitos estruturantes das pesquisas fundamentais tenham uma relação intrínseca com a realidade social da qual eles derivam, o que poderia proporcionar, em longo prazo, não apenas a edificação de uma resistência epistemológica diante da colonização, como também uma harmonia progressiva e mesmo uma continuidade natural entre o corpo social e os olhos do espírito. Uma comunidade na qual as questões fundamentais das classes instruídas advêm diretamente da realidade social a que pertencem é, segundo Fichte, uma comunidade capaz de resistir, em longo prazo, a todo tipo de colonização.

Ademais, é apenas assim que uma comunidade poderá chegar a produzir o que Fichte chama de uma verdadeira filosofia da vida, por oposição a uma filosofia estéril e pálida. Com efeito, de um lado, a fratura entre o corpo social e sua grade conceitual fundamental tem por consequência a articulação de uma filosofia baseada em princípios fixos e imutáveis, a qual tende a tratar a sociedade como um mecanismo matematicamente previsível e a política como “a arte de articular toda a vida na sociedade em uma engrenagem e em um mecanismo artificial”, no qual toda questão social constitui um simples problema de aritmética (GA, I, 10, p. 186); como tais engrenagens sociais têm limites fixos e imóveis entre si, segue-se que os únicos que se devem beneficiar de uma formação educacional são os operadores da máquina (GA, I, 10, p. 188). Em outras palavras, o distanciamento entre o corpo social e seus conceitos estruturantes desdobra-se em uma mecanização da sociedade e de seus membros, a qual, por sua vez, implica uma percepção sociopolítica segundo a qual a formação educacional não seria um bem necessário para todos.

Por outro lado, quando a produção conceitual se conecta às raízes vivas de seu corpo, o espírito encontra-se animado de vida própria e a formulação dos princípios fundamentais segue esse movimento vital; nesse cenário, cada vida é a expressão de uma espontaneidade irredutível à condição de peça artificial de uma engrenagem e que deve ser alimentada e desenvolvida no quadro de uma formação educacional, visando à constituição de uma independência intelectual cujo horizonte é a autonomização do corpo social liberado dos limites rígidos de princípios fixos e imutáveis (GA, I, 10, p. 188). E, assim, de modo análogo, a aproximação entre as classes instruídas e o povo desdobra-se em uma continuidade entre a realidade social e a filosofia, cujo corolário é a tendência a perceber a formação educacional como um bem do qual todos devem desfrutar.

O projeto educativo dos Reden, cujo fio condutor é uma reflexão sobre a língua, revela uma determinação recíproca entre os planos epistemológico e sociopolítico; com efeito, educar o povo a produzir conceitos em sua própria língua (plano sociopolítico) cria as condições materiais para o desenvolvimento de conceitos estruturantes em ligação direta com a realidade social (plano epistemológico), o que, por sua vez, reverbera em uma aproximação entre as classes instruídas e o resto do povo (plano sociopolítico), cujo horizonte é a formação de uma imagem, a mais rica possível, em função de sua própria língua e cultura, do Absoluto (uma filosofia da vida, na qual os planos sociopolítico e epistemológico se determinam reciprocamente). É com base na convicção dessa determinação recíproca entre política e epistemologia que Fichte formula seu projeto de resistência epistemológica, diante da crise sociopolítica desencadeada pela ocupação francesa do território germânico.

iii   A cRítica da Razão tupiNiquim e A flAmA comum

Se os Reden fichteanos se articulam, a partir de um território europeu fragmentado e sob o risco de tornar-se colônia da nação vizinha, a Crítica da razão tupiniquim, do autor brasileiro Roberto Gomes, é publicada em um território sul-americano unificado enquanto produto de facto da colonização. Como o título já o indica, a obra de Gomes não constitui Discursos, mas uma Crítica, de modo que ela opera em um plano distinto dos Reden fichteanos, na medida em que se trata de diagnosticar um estado de coisas negativo e, eventualmente, propor alternativas; em outras palavras, mais do que um efeito sobre os ânimos, objetivando a instituição de um projeto prático, trata-se de diagnosticar um problema; pode-se dizer assim que a diferença entre os Discursos e a Crítica tem uma relação direta com a diferença entre os contextos de formulação das obras: de um lado, um combate às ramificações iminentes de um acontecimento político recente; de outro, o diagnóstico de um problema já consolidado e enraizado.

Quanto à palavra tupiniquim, cabe frisar que corresponde ao nome da tribo indígena que habitava uma parte consideravelmente larga da costa brasileira, à época da chegada dos portugueses; estima-se que, no século XVI, a população tupiniquim contava com por volta de 100.000 índios, número que chegou a ser reduzido a 1.386 indivíduos, em 1997, e, hoje, segundo o censo mais recente, compreende 6.646 indivíduos, o que constitui ainda pouco mais de 6% da população original.[14] A palavra tupiniquim, que significa “tupi ao lado, vizinho”, ou “aquele que invoca tupi”, tornou-se no uso cotidiano da língua sinônimo de “coisa de índio”, por oposição ao que é propriamente civilizado; o uso do termo foi ainda estendido e consolidado como sinônimo de brasileiro não-civilizado, por oposição aos portugueses[15], muito provavelmente porque os tupiniquins habitavam a região onde desembarcaram os primeiros portugueses, nas terras do Atlântico Sul (BUENO, 1998, p. 91). É curioso como a significação do termo, sob esse aspecto, “local, não-civilizado”, assemelha-se às origens do significado do termo deutsch, como vimos acima. Dessa maneira, com o título de Crítica da razão tupiniquim, o autor pretende articular uma crítica dessa razão tida por não-civilizada, a qual é a razão brasileira, de modo que o questionamento central do autor gira precisamente em torno da existência e das condições de desenvolvimento de uma filosofia propriamente local, uma filosofia tupiniquim, local, deutsch.

Contrariamente a Fichte, que elabora um projeto visando a resistir diante do perigo iminente de uma sujeição epistemológica, Roberto Gomes escreve da perspectiva de alguém que remete a um fato já ocorrido; com efeito, a colonização dos modos de saber, em um país cujo próprio nome alude à madeira cuja extinção enriqueceu seus colonos, não é apenas um risco, mas um fato – e é precisamente desse fato que o autor pretende explorar as camadas sociocognitivas. Antes de fazê-lo, Roberto Gomes elabora, de início, sua definição do que, segundo ele, constitui uma verdadeira filosofia, uma definição que se aproxima bastante daquilo que Fichte chama de “filosofia da vida”, pois, com efeito, para o pensador brasileiro, tal filosofia é somente aquela capaz de expressar seu tempo e lugar – nas palavras do autor, “pensar o que se é como se é” (CRT, p. 18)[16] – e de engendrar um modo de ver, uma visão, em função das potencialidades de sua própria posição (no vocabulário de Fichte, uma imagem do suprassensível), porque “a originalidade da filosofia consiste em descobrir-se em determinada posição, assumindo-a reflexivamente.” (CRT, p. 22). Para alcançá-lo, segundo Gomes, uma verdadeira filosofia deve ser capaz de fazer um “strip-tease cultural”, isto é, ela deve exibir a coragem de despir-se de convenções sócio-históricas, a fim de revelar suas origens mais íntimas.

Despir-se significa confessar do ponto de vista mais íntimo possível quem a formula e de que posição histórico-conceitual se o faz:

Ao inverso do comumente suposto, não é uma desvinculação do lugar e do tempo que confere profundidade a um pensamento como, por exemplo, o de Platão. Seu grande mérito é ser a expressão realizada do espírito grego num dado momento [...] seu pensamento torna-se incompreensível se não levarmos em conta a íntima conexão que aí existe entre política e filosofia. (CRT, p. 19).

Pode-se dizer, de modo análogo, que a filosofia aristotélica não existiria sem a estrutura sociocultural articulada pela polis grega e que seu strip-tease cultural reconduz precisamente a esse pressuposto fundamental; o mesmo argumento é válido no que diz respeito a Kant e ao idealismo alemão, em relação à Revolução Francesa e aos conflitos oriundos da formação do Estado Moderno, em cujo strip-tease cultural a razão revelou sua dimensão jurídica e histórica. Esses pensadores foram grandes, na medida em que condensaram de maneira potente as questões de seu tempo, abrindo nesse mesmo gesto todo um universo de questões futuras. Entretanto, é claro que um problema para um grego do século V ou para um alemão do século XVIII e XIX pode não ser um problema para mim, que me situo em um outro ponto do espaço e do tempo, mas ele pode também o ser, nas palavras do autor, “se eu o fizer meu.” (CRT, p. 23). Fazer meu um conjunto de questões não significa ignorar o contexto no qual ele surgiu, bem ao contrário, significa conhecer precisamente o contexto no qual tais filosofias foram formuladas e diante do qual elas tomavam posição, pois o espírito potente que elas exprimem deriva precisamente dessa “atitude filosófica (crítica)”, face a um estado de coisas, uma atitude que proporciona a articulação dos problemas, a partir de uma perspectiva renovada, uma nova imagem do suprassensível. Nas palavras do autor:

A crítica é algo a ser assumido, uma posição do espírito. E não a assumo do ponto de vista da eternidade. Por um motivo simples: não estou na eternidade. Estou no tempo, num lugar. Ao assumir a postura crítica a partir deste tempo e lugar, deixa de haver distância entre o que digo e o que sou – inexistindo qualquer diferença entre estar e ser. Digo o que sou. Isto é filosofia. Meu strip-tease cultural. CRT, p. 31).

 

Esse ato de despir-se culturalmente, contudo, não é, segundo o autor, realizado no Brasil; ao contrário, aqueles que se dedicam à pesquisa e à filosofia, no País, são, por excelência, de acordo com a expressão de Gomes, homens sérios, daqueles que vestem terno e gravata, mesmo quando “o calor é brutal” (CRT, p. 14), e fazem citações em latim, grego, alemão ou francês. Ao invés de despir-se, o intelectual reveste-se em roupas e línguas que o isolam em um universo epistêmico que se distancia progressivamente da realidade que o entorna, um isolamento cuja consequência infausta é a frequente incapacidade de realizar o que Gomes denomina como a tarefa fundamental da filosofia, a saber, “enxergar um palmo diante do nariz.” (CRT, p. 15).

Ademais, um infeliz desdobramento desse isolamento das classes instruídas é que a razão se converte em um instrumento de afirmação de uma superioridade social e cultural em relação aos outros, ela se torna com uma espécie de mercadoria que se exibe, para se distinguir da massa inculta; dessa forma, sugere o autor, uns se distinguem exibindo relógios ou anéis, outros fazendo citações em latim. Uma tal razão, conforme o pensador brasileiro, não é apenas estéril, como dizia Fichte, mas ela constitui uma espécie de ornamento; nas palavras do autor, “no homem sério, triunfa a razão ornamental.” (CRT, p. 14).

Essa seriedade e essa incapacidade de ver a realidade são oriundas da fratura entre o linguajar, dito erudito, e a língua local; não apenas os conceitos estruturando a visão de mundo, as imagens do suprassensível, são produzidos alhures e em outra língua, como, além disso, a língua local é sistematicamente atacada e rejeitada como uma língua intrinsecamente não-filosófica, exatamente como o alemão o era, à época de Fichte. O português é tratado, nesse cenário, como um entrave à reflexão fundamental, pois ele teria uma debilidade que se manifesta na impotência para traduzir precisamente expressões latinas, alemãs, gregas ou francesas. Esquece-se, assim, afirma Gomes, que “as expressões alemãs ou latinas são justamente isso: originais. Nasceram lá, lá foram criadas, e trazem a marca de um momento, suas importâncias e urgências” (CRT. p. 65), e que é isso o que dificulta a tradução, e não uma suposta debilidade da língua; olvida-se, por conseguinte, que “toda investigação deveria ser interna, de dentro para fora, das importâncias e urgências para as palavras e a língua” (CRT, p. 68), e que tal investigação exige, como escrevia Fichte, na carta para Anna Schütz, “criar novas palavras e dar um significado renovado às já existentes.” (GA, III, 2, p. 48).

Essa situação, similar em toda América Latina, é, no Brasil, ainda agravada por uma particularidade da colonização portuguesa em relação à espanhola; contrariamente a grande parte das nações latino-americanas que conheceram suas primeiras universidades, já nos séculos XVI e XVII, o Brasil não teve nenhuma universidade na época colonial e sua primeira universidade foi fundada somente no século XX, em Manaus.17 Como consequência, até bem recentemente, as classes instruídas brasileiras eram enviadas a Coimbra, em Portugal, para fazer seus estudos.[17] Houve assim, até o início do século XX,

17 As primeiras universidades da América Espanhola datam do século XVI, sendo fundadas em territórios que são hoje a República Dominicana (1538), Peru (1551), México (1551), Bolívia (1552) e outros; para uma reconstrução de fôlego da história da universidade, na América hispanófona, ver: (RODRIGUEZ CRUZ, 1973). No Brasil, havia desde 1792 – ano da fundação da Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, no Rio de Janeiro – escolas de ensino superior especializadas em domínios particulares do conhecimento, como o ensino militar (a Real Academia, de 1792), medicina (Faculdade Nacional de Medicina, 1808) e direito (Faculdade de Direito de São Paulo, 1827); contudo, a primeira universidade, isto é, a primeira instituição de ensino superior a reunir cursos em áreas diversas, como Exatas, Humanas e Saúde, é a Escola Universitária Livre de Manaus, fundada em 1909 já no início do século XX. A essa discrepância corresponde, como mostra Sergio Buarque de Holanda, no seu célebre Raízes do Brasil, uma discrepância na presença de estabelecimentos gráficos responsáveis pela impressão de livros, existentes na cidade do México, desde 1535, e só introduzidos verdadeiramente no Brasil, no século XIX (BUARQUE DE HOLANDA, 2004, p. 119-122).

literalmente, um oceano de distância entre o centro onde as questões eruditas eram formuladas e a realidade cotidiana da nação.

Dessa fratura entre o universo simbólico de questões eruditas e aquele da realidade social, o autor extrai ainda outro corolário que se soma àquele da transformação da razão em um ornamento: o ecletismo. Ele é oriundo do fato de que o pensamento brasileiro, não produzindo conceitos a partir de seu contexto sócio-histórico, termina por apenas importá-los, desligados, nesse processo, de suas origens; esses troncos desenraizados tornam-se peças de um quebra-cabeças epistemológico, onde os pensadores se divertem a cruzar e descruzar, montar e rearranjar – positivismo, marxismo, existencialismo, idealismo, estruturalismo –, em que tudo pode se misturar com tudo, pois nenhum desses galhos mortos se enraízam em problemas sociais e políticos reais. O erudito, incapaz de ver o está diante de seu nariz, aceita os –ismos vindos do estrangeiro e põe-se a jogar com eles, entretido naquilo que Fichte chamava de “jogo genial sem consequências”.

Esse exercício epistemológico de conciliação possibilitado pelo desenraizamento das correntes filosóficas de seus respectivos ambientes socioculturais tem, por sua vez, o efeito de maquiar oposições, perdendo justamente a força produtiva desses conflitos para a produção de novas ideias. Na tentativa de conciliar as peças desse quebra-cabeça epistemológico, a razão acaba por obliterar precisamente aquilo que poderia se converter no motor da formulação de problemas e, eventualmente, da formulação de novos conceitos – em uma palavra, a obliteração de oposições faz com que o conflito criador se converta em pensar anestésico (CRT, p. 84).

Essa razão, conciliadora de –ismos e obliteradora de conflitos, é apenas a contrapartida de uma razão dependente, cuja tarefa parece ser a de reproduzir uma grade conceitual (ou imagens do suprassensível) produzidas alhures; e, assim, na medida em que os conceitos estruturantes são importados, as ideias no Brasil, para citar um autor célebre, constituem-se como “ideias fora do lugar”.19 Tal transplante de ideias se traduz não raro em uma espécie de violên

da Universidade de Coimbra, Joaquim Ramos de Carvalho, “78% dos ministros brasileiros entre 1822 e 1940 foram estudantes em Coimbra”. Disponível em: http://www.ufcg.edu.br/prt_ufcg/assessoria_ imprensa/mostra_noticia.php?codigo =14478. Acesso em: 23 nov. 2017.

19 Trata-se do famoso ensaio de mesmo título do crítico literário Roberto Schwarz, no qual ele distingue dois tipos de falsidade: de um lado, uma ideia pode ser falsa, quando corresponde a “aparências, encobrindo o essencial”; de outro lado, pode sê-lo “num sentido diverso”, como um contrassenso que enviesa e altera toda a estruturação da realidade; este segundo caso de falsidade corresponde às ideias fora do lugar (SCHWARZ, 1977).

cia epistêmica, porque “coisas problemáticas para um europeu podem ser, para nós, falsos problemas que somente à custa de violência mental e grande alienação conseguimos revestir de importância.” (CRT, p. 77). Nessa perspectiva, diante da indisposição a enfrentar diretamente a negação e a aceitar o conflito de ideias, a razão, conciliadora e dependente, mostra-se como uma espécie de acidente da razão essencial, a pura, a que vem de fora. Não uma razão do não-ser, mas, pior, uma razão que reclama esmolas do ser, para construir seu passatempo preferido: o quebra-cabeças epistemológico.

Em resumo, o autor identifica, primeiro, (i) como deve se constituir uma verdadeira filosofia, a saber, como um strip-tease cultural em que se confessa aberta e corajosamente a posição precisa, a partir da qual uma visão de mundo é engendrada; indica, em seguida, (ii) que, factualmente, há um isolamento das classes instruídas que se desdobra em usos distorcidos da razão, a qual, por um lado, converte-se em um ornamento conferidor de status, e, por outro lado, age como conciliadora de movimentos filosóficos, obliterando precisamente as oposições que lhe possibilitariam articular novos conceitos; revela-se, então, (iii) o motivo pelo qual a filosofia entre nós não é como ela deveria ser, uma vez que ela reflete a dependência epistêmica resultante da consolidação da colonização político-econômica em uma colonização cultural, na qual o processo de formulação das questões fundamentais se distancia da realidade social e política. Diante desse quadro, o autor indica, brevemente, (iv) o que se deve fazer para rearticular os fragmentos dessa fratura entre classes instruídas e corpo social, a saber, conectar o pensamento às suas raízes vivas, o que depende de uma reapropriação da própria história, da própria cultura e da própria língua, a língua brasileira de todos os dias, na qual as urgências de seus falantes e seus modos de existência se revelam.

Exceto pelo item (ii), a descrição crítica de como as coisas são, os demais itens revelam uma flama comum com os Reden fichteanos, na medida em que, para ambos os autores, (i) a filosofia deve ser intimamente conectada às particularidades linguísticas e culturais daquele que a enuncia, (iii) o motivo pelo qual essa conexão pode falhar é oriundo da consolidação de uma situação de dependência cultural diante do qual (iv) se deve pôr em prática uma série de medidas para reconectar a produção conceitual à realidade sociocultural na qual ela surge, o que autor brasileiro aponta de maneira esquemática e que Fichte desenvolve sob a forma de um projeto educativo.

iv A relevânciA dA AbordAgem

O objetivo do exercício filosófico aqui posto em prática, de modo esquemático, consiste em articular os textos ao contexto sociopolítico de suas composições; a aposta que atravessa todo o argumento é aquela segundo a qual quanto mais se exploram as raízes sócio-históricas, “as raízes vivas”, dos Discursos fichteanos e da Crítica gomesiana, mais se revela a comensurabilidade entre os espíritos, animando os dois corpos textuais. Esse esforço não pretende ser uma interpretação, no sentido escolástico, de Fichte ou de Gomes, mas se trata sobretudo de assumir a exterioridade de um texto em relação ao outro e de deslocar a perspectiva a partir da qual se aborda um e outro.

Do ponto de vista da exegese fichteana, tal deslocamento de perspectiva permite que se coloque em evidência o fato de que o texto constitui a formulação de um projeto cujo objetivo é impedir a conversão de uma ocupação exterior em uma colonização interior. Na medida em que tal fato é convertido em chave de leitura do texto, evitam-se interpretações equivocadas, as quais, ao considerar os Reden fichteanos como um suposto antepassado de um nacionalismo expansionista, passam ao largo do ponto central da obra, a saber, a constituição de um projeto pedagógico capaz de se consolidar como um instrumento de resistência epistemológica de longo prazo.

Com efeito, tal abordagem permite conceber o projeto educativo dos Reden como um conjunto de medidas formuladas por alguém que via o perigo iminente da concretização de uma fratura entre a origem constitutiva dos conceitos fundamentais e o corpo social ao qual tais conceitos deveriam se aplicar; uma concretização que, na medida em que ela tende a se desdobrar no surgimento progressivo de um desprezo das classes instruídas em relação ao povo, pode resultar na transformação do pensamento em um passatempo, através do qual aqueles que são instruídos se convencem da particularidade e mesmo do privilégio de seu status face aos demais. A aproximação entre os universos semânticos de Gomes e de Fichte enseja sublinhar assim essa dimensão fundamental dos Reden fichteanos, a saber, a articulação de um conjunto de medidas de resistência epistemológica, visando a evitar uma colonização interior cuja consolidação se traduziria em um aprofundamento da fratura do corpo social.

De modo análogo, da perspectiva de uma recepção da obra de Gomes, a aproximação torna visível, por contraste, que a fratura oriunda do colonialismo constitui a consolidação da inanição do pensamento filosófico em função do desligamento da razão de suas raízes vivas. Um tal desligamento se desdobra na fragmentação do corpo social, cujos olhos do espírito quedam fechados em função do favorecimento de olhos importados de corpos outros; a tarefa da filosofia, “enxergar um palmo diante do nariz”, torna-se assim impossível, pois o nariz e os olhos pertencem a corpos diferentes. Para recuperar a capacidade de ver, seria necessário que cada corpo explorasse suas potencialidades, o que passa necessariamente pela exploração de sua própria voz, em sua própria língua. Uma língua nem mais nem menos bárbara ou não-filosófica do que aquela da qual se servia Fichte, para pôr em movimento, de modo eloquente, seu projeto filosófico em um universo simbólico tido por semibárbaro uma geração apenas antes da sua. Se Gomes ilumina em Fichte a perspectiva defensiva e epistemológica de seu projeto, Fichte ilumina em Gomes o fato de que a verdadeira filosofia é uma imagem local (deutsch/tupiniquim) do todo, uma perspectiva do cosmos, pois confessa abertamente as origens socioculturais de seus conceitos estruturantes formulados ou transformados em sua própria língua, uma filosofia cujo horizonte é um intercâmbio intercultural de imagens do suprassensível.

De um lado, um filósofo alemão ocupado em defender e consolidar um recém-nascido universo simbólico sob ameaça de destruição; de outro lado, um filósofo brasileiro, cujo universo simbólico é, de fato, colonizado; há certamente uma grande diferença entre os dois mundos, mas a tematização sincera do risco de um desflorestamento do pensamento nos permite aproximar Fichte desse movimento de combate de todo tipo de colonização interior. Com efeito, tanto do lado do saxão do início do século XIX como do lado do brasileiro do fim do século XX testemunha-se a importância e, mesmo, a necessidade do engendramento de uma imagem do Absoluto, a partir das potencialidades próprias a cada corpo social, e que se revela na língua de cada comunidade falante; a ideia produção de imagens do Absoluto a partir das particularidades locais é a ideia de um cosmopolitismo situado.

GARCIA, L. F. The German nation and Tupiniquim reason: living thought in the face of the sterile concept. Trans/form/ação, Marília, v. 41, n. 4, p. 53-74, Out./Dez., 2018.

AbstrAct: This article is an exercise in the comparative reading of the Fichte’s Reden an die deutsche Nation (Addresses to the german nation), published in Berlin in 1808, and Robert Gomes’ Crítica da razão tupiniquim (Critique of tupiniquim reason), published in São Paulo in 1977. At first glance, the two universes of discourse appear to be so distant as to render considerably difficult any kind of comparison. However, they seem to be animated by a common spirit inasmuch as both are essays that articulate an epistemological resistance to the imminent danger of being enclosed in a symbolic universe that bears no contact with their own socio-political realities. The aim of this study is to explore each text in its respective context, so as to delineate the main aspects of their commonality. After the comparing the texts, we say a brief word in conclusion on the relevance of this comparative approach.

Keywords: Reason. Language. Colonization. Education.

referênciAs

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Recebido: 18/01/2017

Aceito: 20/10/2017

 



[1] Pesquisador do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD) na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG – Brasil. E-mail: luisfellipegarcia@gmail.com

Seu percurso acadêmico inclui um mestrado sobre o princípio aritotélico de não-contradição pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, um segundo mestrado sobre a figura do tribunal nas críticas kantianas pela Université Catholique de Louvain dentro do quadro do programa Erasmus Mundus Europhilosophie, e um doutorado sobre a concepção fichteana de filosofia pela Université Catholique de Louvain, que serviu de base para a obra recentemente publicada  La philosophie comme Wissenschaftslehre: le projet fichtéen d’une nouvelle pratique du savoir. Hildesheim / New York / Zürich: Georg Olms, 2018 (col. Europaea Memoria). Além de publicações sobre filosofia clássica alemã – como La matrice juridique et révolutionnaire de la pensée kantienne. Kriterion, n. 138, 2017; e Knowing, Creating and Teaching – Fichte’s Conception of Philosophy as Wissenschaftslehre. Fichte-Studien, v. 46, 2018 – o autor tem ainda trabalhos sobre filosofia intercultural e decolonial – como De la Monoculture de la Raison à l’Écologie des Savoirs – Boaventura de Sousa Santos et la lutte contre l’épistémicide. In: L’art du comprendre, n. 25 – Visages de la pensée ibérique. Paris: Vrin, 2018; Die Inszenierung des Subjekts – für eine Neubewertung unserer philosophischen Erbschaft. In: GURJANOV, Filip (Ed.). Die Unzugänglichkeit des Selbsts. Interkulturelle Perspektiven auf die Subjektivität. Nordhausen: Traugott Bautz GmbH, 2017; e La pensée nomade et les ontologies cachées – Eduardo Viveiros de Castro face à la pensée régulatrice. Interpretationes, v. VI, 2015.

[2] Uma reconstituição assaz completa do ambiente no qual Fichte pronunciou seus discursos – incluindo uma lista com os nomes de seus ouvintes mais importantes, as datas de cada um dos pronunciamentos e suas repercussões políticas imediatas – encontra-se no texto introdutório redigido por Erich Fuchs, para a excelente edição das obras completas de Fichte, realizada pela Academia Bávara de Ciências, entre 1962 e 2012; para a introdução em questão, ver FICHTE, J. G. Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften.  Org. E. Fuchs; H. Gliwitzky; R. Lauth; P. K. Schneider. Stuttgart: Friedrich Fromann, 1962-2012, série I, v. 10, p. 3-96 – doravante, GA. Outra boa introdução aos discursos, precedida de uma contextualizaçao histórica, está na recente edição dos Reden, feita pela casa editorial Felix Meiner. Ver Fichte (2005. p. VII-LXXXIX.

[3] O território da Prússia foi reduzido de 314.418 para 158.008 km2 e a população caiu de aproximadamente 10 milhões de pessoas, em 1804, para 4,6 milhões, em 1808 – cf. (MIECK, 1992,  p. 17ss).

[4] O agrupamento político do Sacro Império continha regiões de dialetos e costumes diversos, as quais, sob a influência de Napoleão, que interveio diretamente na independência dos reinados da Baviera e de Wurtemberg, desmembraram-se progressivamente, culminando, no dia 6 de agosto de 1806, na abdicação do Imperador Francisco II e na definitiva dissolução do Sacro Império. O documento de abdicação está disponível na internet, no endereço: http://www.documentarchiv.de/nzjh/1806/franzII-niederlegung-kaiserkrone.html; para uma reconstituição histórica da dissolução do Sacro Império, ver (VON ARENTIN, 1993, p. 109-129).

[5] Estima-se que, à época da chegada dos portugueses, havia cerca de 70 milhões de árvores de paubrasil, ao longo do território local (D’AGOSTINI, S. et al., 2013, p. 15); a acelerada exploração, durante o século XVI, levou à proibição da extração, no início do século XVII, o que, entretanto, não impediu o seu avanço; no começo do século XX, a árvore chegou a ser considerada extinta, até que, em 1928, “o estudante de agronomia João Vasconcelos Sobrinho e o professor de botânica Bento Pickel verificam a existência do pau-brasil em São Lourenço da Mata, no Engenho São Bento, hoje Estação Ecológica do Tapacurá, pertencente à Universidade Federal Rural de Pernambuco.” (D’AGOSTINI, S. et al., 2013, p. 20). Para uma reconstituição da sequência de nomes atribuídos ao território, entre 1500 e 1510, até a consolidação do nome Brasil, ver Relano (2011, p. 62-68).

[6] Para essa apropriação ideologicamente enviesada dos Discursos de Fichte, contribuíram, como nota Erich Fuchs, alguns fatores históricos, como o resfriamento do interesse por seu sistema filosófico, nos anos que sucederam a sua morte, em 1814 (causado pela influência adquirida por Schelling e Hegel, no cenário erudito germânico e pelo atraso na publicação de suas obras completas, realizada apenas em 1834, três anos após a morte de Hegel) e o subsequente renascimento do interesse por suas obras, no centenário de seu nascimento, em 1862, em um momento de escalada do nacionalismo prussiano sob Bismarck, que assume naquele mesmo ano o cargo de ministro-presidente da Prússia; os dois fatores em conjunto contribuíram para a recepção de textos como os Reden de modo isolado do sistema filosófico no qual se articulam, perdendo assim de vista o caráter eminentemente cosmopolita que perpassa a filosofia fichteana (FUCHS, 2010, p. 267-284); aliás, data precisamente de 1862 o ensaio do historiador e futuro deputado nacionalista pro-bismarckiano Heinrich von Treitschke, o qual recupera a figura de Fichte como “o salvador da pátria alemã”, cujo nome será honrado quando o povo estiver pronto a “se sacrificar pelo Estado” (VON TREITSCHKE, 1871, p. 140). Abre-se assim o terreno para interpretações catastróficas, como as leituras de Bergmann (1933); ou de Huber (1936). Um dos objetivos deste artigo é o de mostrar que, ao se ler os Reden a partir do contexto histórico em que foram pronunciados, i.e., o das Províncias Germânicas, em 1807, percebe-se que se trata de um projeto de resistência e mesmo de autodefesa epistemológica, e não de uma apologia ao expansionismo militar, contra o qual precisamente os Reden pregavam a resistência.

[7] No original: “Mit Einem Worte, eine gänzliche Veränderung des bisherigen Erziehungswesens ist es, was ich, als das einzige Mittel die deutsche Nation im Dasein zu erhalten, in Vorschlag bringe.”  (GA, I, 10, p. 112, tradução nossa).

[8] Para uma reconstrução do movimento da Sturm und Drang e sua significação filosófica, em particular no que diz respeito à relação entre racional e irracional, que ganhará uma dimensão importante, tanto no idealismo alemão como no pós-modernismo, ver Bertram (2000).

[9] Uma das principais obras da Sturm und Drang é uma compilação de canções populares publicada por Herder, em 1778 – ver Herder (1778). A publicação de tais peças marcadas pela oralidade e contendo inúmeras expressões dialetais entrava claramente em conflito com a rigidez sintático-gramatical oriunda do racionalismo francês.

[10] Nas palavras de Herder, “[Lutero] é aquele que acordou e libertou a língua alemã, esse gigante adormecido.” (HERDER, [1767]). Com efeito, as traduções de Lutero da Bíblia – Novo Testamento, 1522, e Velho Testamento, 1534 – constituem um momento tanto de fixação de uma série de expressões das línguas germânicas sob a forma escrita como da criação de inúmeras novas palavras; assim como Herder depois dele, Lutero vai converter expressões populares e a língua oral cotidiana em língua escrita: uma boa caracterização desse processo é dada pelo próprio Lutero, o qual afirma que, para se fazer uma boa tradução, “é preciso perguntar à mãe de família em casa, às crianças na rua, aos homens comuns no mercado [como se diz alguma coisa], e então ver na cara deles [auf das Maul] como eles falam e traduzir conforme o que se vê.” (LUTHER, 1530). (o texto original pode ser consultado em: <https://www.literaturportal-bayern.de/images/lpbblogs/redaktion/gross/SendbriefDolmetschen. pdf>. Acesso em: 16 out. 2018.

[11] Carta a Anna Henriette Schütz, de 15 de janeiro de 1794 (GA, III, 2, p. 47-48). Eis a passagem original: “Ich denke seit einiger Zeit gar sehr darauf, der Philosophie auch eine geschmeidigere, und besonders eine deutsche Mundart zu verschaffen.” (Tradução nossa).

[12] Conferir igualmente a entrada “deutsch” no Das Wortauskunftssystem zur deutschen Sprache in Geschichte und Gegenwart. Disponível em: https://www.dwds.de/wb/deutsch. Acesso em: 19 nov. 2017.

[13] No original: “Neue Worte bilden, vorhandene in einer neuen, eingeschränkten Bedeutung brauchen

– das wird unumgänglich sein.”

[14] Dados oriundos do mais recente censo indígena do IBGE (de 2010), cujos detalhes estão disponíveis no site <http://indigenas.ibge.gov.br/estudos-especiais-3/o-brasil-indigena/povos-etnias.html>. Para um quadro geral do despovoamento responsável pela redução de uma população original de cerca de 3 milhões de habitantes (as estimativas oscilam entre 2 e 4 milhões) aos pouco mais de 300 mil indígenas restantes, no início do século XXI, ver: http://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiroe-povoamento/historia-indigena.html. Acesso em: 23 nov. 2017.

[15] Uma reconstituição histórica do significado do termo encontra-se em: (NAVARRO, 2013, p. 484).

[16] Gomes (1977, p. 18) Crítica da razão tupiniquim.  – doravante CRT.

[17] A Universidade de Coimbra passou a atrair um número crescente de brasileiros, sobretudo após a reforma universitária promovida pelo Marquês de Pombal, em 1772, o que, como notam os historiadores Magnus Pereira e Ana Lúcia da Cruz, fazia parte de uma estratégia política colonial, na medida em que, “levando-se em conta o receio de que as ideias revolucionárias da Europa continental contaminassem os ‘homens bons’ da sua melhor colônia, Portugal procurou aportar a juventude da colônia do Brasil na sua ‘ilha de letrados’, preparando-a para assumir serviços de reconhecimento e governação imperiais.” (DA CRUZ; PEREIRA, 2009, p. 207). No entanto, mesmo após a reforma, esse número continuou consideravelmente limitado, pois apenas 720 estudantes brasileiros se graduaram, entre 1775 e 1821 (MORAIS, 1942, p. 141 ss), o que, como sublinha Sergio Buarque de Holanda (2004, p. 119), representa um contingente dez vezes menor do que número de graduados na Universidade do México, no mesmo período. Esses poucos bacharéis, constituindo de fato uma ilha de letrados, vão ocupar os cargos mais influentes e dar as diretrizes do futuro Estado brasileiro; com efeito, como observa o vice-reitor