Um InImIgo do Povo: o LIvre-Pensador e o sUIcídIo[1]

Ulisses Razzante Vaccari[2]

A meu pai

RESUMO: Partindo de uma leitura da peça Um inimigo do povo, de Ibsen, o presente texto procurará definir o livre-pensador como aquele que se opõe ao pensamento ou aos pensamentos dominantes, ousando pensar por si próprio. Ao fazê-lo, o livre-pensador se sacrifica, cometendo uma espécie de suicídio (material e moral), proveniente de seu amor incondicional pela sua comunidade. A partir da definição de Ibsen, o artigo procurará alguns exemplos na história do pensamento que a corroborem, como Sócrates, Galileu e Espinosa. No caso da arte, o texto tecerá algumas considerações acerca da transposição dessa condição do livre-pensador para o teatro, como acontece com o Galileu, de Brecht, e A morte de Empédocles, de Hölderlin. Ao final do texto, pretende-se mostrar que também Nietzsche possui uma concepção a respeito do livre-pensador, o qual deve se tornar atemporal e póstumo.

PALAVRAS-CHAVE: Livre-Pensamento. Suicídio. Autossacrifício. Romantismo.

Que exige um filósofo de si, em primeiro e em último lugar? Superar em si seu tempo, tornar-se ‘atemporal’. Logo, contra o que deve travar seu mais duro combate? Contra aquilo que o faz um filho de seu tempo. (NIETZSCHE, O caso Wagner).

Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. (CAMUS, O Mito de Sísifo).

1 IntrodUção

A certa altura do livro III da República, Platão faz uma referência um tanto enigmática a uma antiga disputa entre arte e filosofia. Antiga já à sua época, a relação entre arte e filosofia, que de certo modo marca os próprios diálogos platônicos, perpassa a história do pensamento ocidental, aparecendo das mais variadas formas, nos mais diversos pensadores. Para alguns, tratase de uma relação impossível, como afirma, por exemplo, Friedrich Schlegel, num conhecido fragmento: “[...] naquilo que se chama filosofia da arte falta habitualmente uma das duas: ou a filosofia, ou a arte.” (SCHLEGEL, 1997, p. 22). Para outros, tem-se uma das relações mais ricas do conhecimento humano, no sentido de que a linguagem e expressão próprias da arte seriam capazes de atingir um domínio inacessível à filosofia. Aquilo que a filosofia só consegue dizer por meios rigorosos, utilizando-se de conceitos universais abstratos, a arte o faz por meio de obras concretas singulares, as quais trazem a especulação suprassensível da filosofia para um tempo e lugar determinados. A própria estética ou filosofia da arte nascem desse intercâmbio entre o conceito filosófico universal e a obra de arte concreta. Assim o fez Platão, ao criticar a poesia homérica na República, bem como Aristóteles, ao recorrer ao Édipo Rei, de Sófocles, para iluminar seu conceito de catarse (muito embora o contrário também seja possível: que o conceito de catarse tenha sido derivado diretamente da peça sofocliana). Em todo caso, a filosofia da arte tem início no momento em que se percebe que, ao conceito filosófico abstrato, é possível subsumir um exemplo concreto particular, retirado da arte.

O presente texto se apoia nessa mesma tradição milenar: o objetivo é mostrar como uma ideia propriamente filosófica – o livre pensamento – foi abordada e tratada de forma variada por diferentes autores e artistas, ao longo da história. Partindo de uma leitura da peça Um inimigo do povo, do norueguês Henrik Ibsen, cujo objetivo é pôr em cena a trágica posição do livre-pensador diante das ideologias, tema igualmente antigo na história do pensamento, o texto partirá em busca de alguns outros exemplos, procurando salientar algumas nuances entre eles. Muito embora variem os modos de tratamento e a tática da abordagem, a ideia, em todos esses casos, parece ser sempre a mesma: ao se opor ao pensamento dominante e assim ousar pensar por si próprio, o livre-pensador executa um ato de autossacrifício, espécie de suicídio (material e moral) que, ao final, se revela um ato de amor incondicional. É porque o livre-pensador ama e deseja ver o progresso de sua comunidade, de sua sociedade ou da própria humanidade que ele se opõe e contesta suas certezas, na maioria das vezes, de modo intenso e virulento.

2 o LIvre-Pensador de Ibsen

Em Um Inimigo do Povo, Henrik Ibsen põe em cena a trágica e intragável posição do livre-pensador. Representado na peça pelo personagem do Dr. Stockmann, o livre-pensador de Ibsen é um médico responsável por cuidar da qualidade da água do balneário municipal de uma pacata cidade nórdica. Motivo de orgulho do prefeito (irmão do médico), dos jornais e dos cidadãos, o balneário atrai gente de todo o país e do estrangeiro, em busca do efeito medicinal das suas águas, o qual inunda também os cofres do prefeito, de alguns empresários e dos próprios jornais. Em poucas palavras, o balneário municipal é a menina dos olhos da cidade. Um belo dia, entretanto, o Dr. Stockmann começa a suspeitar da qualidade da água do balneário; alguns indícios revelam que ela talvez estivesse sendo contaminada pelos esgotos de algumas das residências próximas. Por isso, o doutor resolve testar a água num laboratório e o resultado, como ele já esperava, é positivo: a água continha elementos tóxicos provenientes dos curtumes. A primeira reação do Dr. Stockmann é contar a notícia aos editores do jornal local, chamado A Voz do Povo, para que a verdade fosse publicada em forma de artigo, logo no dia seguinte. Ao ouvir a notícia do doutor, os editores do jornal, comovidos e convencidos do perigo da situação, prometem-lhe um espaço no periódico para o seu artigo. Mas é precisamente nesse ponto que a história sofre sua primeira reviravolta (ou peripécia, no sentido aristotélico), com a entrada em cena do prefeito da cidade, seu irmão. Ao saber das intenções do doutor, o prefeito logo se mostra avesso à ideia de divulgação da notícia sobre a contaminação das águas, alertando para o fato de que espantaria os visitantes e levaria à falência tanto o balneário como a própria prefeitura e todos os negócios que dependiam dele. Insensível ao apelo do irmão, segundo o qual a verdade deveria prevalecer acima dos interesses privados, o prefeito alerta o doutor a não levar adiante a história, ameaçando-o de perder seu emprego e ter a opinião pública voltada contra ele.

Mas o Dr. Stockmann é um homem de princípios; está absolutamente convencido de que a verdade precisa vir à tona, devendo estar acima dos interesses particulares do prefeito e de uma minoria de empresários que lucram com o balneário. Os espíritos mais pragmáticos dos dias atuais o considerariam certamente um sonhador, um homem ingênuo, incapaz de conviver com a mentira e a hipocrisia. E é justamente por conhecer o espírito obstinado do irmão que o prefeito, nesse meio tempo, faz uma visita à redação do jornal A Voz do Povo e explica aos seus editores as “nefastas” consequências que o artigo do doutor traria para a cidade e para o balneário. Afirma sem pudor que as ideias de Stockmann levariam a cidade à falência, à bancarrota geral, que as pessoas perderiam seus empregos, passariam fome, que haveria um colapso geral. Aturdidos com essas imagens apocalípticas do prefeito, os editores do jornal decidem publicar não mais o artigo revelador do Dr. Stockmann, porém, no seu lugar, um texto do próprio prefeito em que este calunia as intenções do irmão, acusando-o de ser contra a prosperidade da cidade, enfim, de ser um inimigo do progresso e dos seus bons negócios.

Apesar desses dois golpes, a oposição do seu próprio irmão, o prefeito, e a traição dos editores do jornal, antes seus amigos, o Dr. Stockmann não desiste daquilo que julga agora ser sua obrigação moral com aquela comunidade. Pensa que os recentes fatos tornam ainda mais urgente a denúncia desse grupelho e de suas intenções enganosas, que o povo necessita saber que a tão celebrada prosperidade da cidadela é falsa e fundada numa mentira! “Nós vivemos de um comércio de imundícies e de veneno! Esta riqueza infundada está baseada numa mentira!” (IBSEN, 2001, p. 73), diz Stockmann ao prefeito. Difamado pelo próprio irmão poderoso e influente, o doutor, numa tentativa já desesperada de conter as calúnias e trazer à tona a verdade, convoca uma assembleia popular em que espera esclarecer o “mal-entendido”. Todavia, novamente o prefeito e os editores do jornal se adiantam na assembleia e tomam a palavra antes que o Dr. Stockmann pudesse fazê-lo. Em suas falas, o prefeito e os editores o acusam mais uma vez de ser contra o desenvolvimento da cidade e de querer a sua destruição. Inflamados pelos discursos virulentos do prefeito e dos editores, os cidadãos presentes convencem-se da insanidade do Dr. Stockmann, o qual passa a ser insultado e xingado com os mais criativos nomes e palavrões. E é em meio aos xingamentos que o doutor, finalmente, começa o seu discurso, espécie de clímax da peça.

Profundamente decepcionado e humilhado com a sua difamação pública diante da tentativa de participar das decisões da cidade, seu discurso é uma crítica mordaz à democracia. Contrariamente à imagem que se tem dessa forma de poder, a democracia, diz Stockmann, não garante por si só a livre expressão e a liberdade de pensamento. Democracia, pelo contrário, é apenas uma noção pomposa de que se serve meia-dúzia de poderosos para manipular a grande maioria, em vista de seus interesses privados. Desse modo, essa ideia, comumente aceita, de que, na democracia, é a maioria quem comanda, revelase uma farsa e uma falácia, pois esse regime permite aos mesmos poderosos de sempre mandarem e desmandarem nos assuntos públicos, com o consentimento das massas. Esse pensamento, por fim, conduz o Dr. Stockmann à terrível conclusão de que, no regime democrático, a grande maioria deve ser considerada inimiga da verdade e da liberdade. “O inimigo mais perigoso da verdade e da liberdade, entre nós, é a enorme e silenciosa maioria dos meus cidadãos. Esta massa amorfa” (IBSEN, 2001, p. 126), afirma o doutor, em seu tumultuado pronunciamento. As duras palavras ofendem ainda mais o público já antes enfurecido que, levando a assembleia ao caos total, exige a retratação imediata do insano orador. Mas o Dr. Stockmann, a essa altura, já não pensa mais nas consequências de sua atitude; já não está mais preocupado com sua família, com seu emprego, nem com sua fama de lunático. Está numa posição claramente suicida, qual livre-pensador, que, a despeito das críticas, ameaças e insultos, decide ir até o fim na defesa de sua posição, que ele julga ser a verdade. Não a verdade dogmática, eterna e imutável, contudo, a verdade revelada pelo passar do tempo, pelo desenvolvimento histórico, pelo frescor de um pensamento novo. No mesmo discurso do quarto ato, afirma: “Sim, essa é, também, uma das minhas descobertas. Somente o pensamento livre, as ideias novas, a capacidade de um pensar diferente do outro, o contraditório, podem contribuir para o progresso material e moral da população.” (IBSEN, 2001, p. 134).

Assumindo conscientemente essa posição, recusa-se de pronto a se retratar pelo seu pronunciamento, quadruplicando o assim já intolerante ódio dos presentes, do público formado pelo povo mais humilde, pelo prefeito e pelos editores do jornal.

Assim, ao fim do seu discurso, após um grande tumulto, a assembleia decide finalmente declarar o Dr. Stockmann um inimigo do povo: “Pela unanimidade dos votos, salvo o de um homem embriagado, a assembleia declara que o Dr. Thomas Stockmann, médico da Estação Balneária, é um inimigo do povo. (Gritos e aplausos)” (IBSEN, 2001, p. 140). Humilhado e insultado, o doutor se recolhe à sua casa, que tem as vidraças apedrejadas aos gritos de “inimigo do povo, inimigo do povo!” No quinto ato, é despejado de sua própria casa pelo seu senhorio, e seus filhos são insultados e humilhados na escola. Agora, trata-se de contar os não poucos prejuízos causados por seu apego à verdade e aos princípios, por sua atitude, por assim dizer, kantiana com a moralidade.

3 LIvre-Pensamento, sUIcídIo e amor

Ao se opor dessa forma radical ao status quo, ao poder, à grande maioria, na defesa de uma convicção própria, o personagem do Dr. Stockmann de Ibsen encarna, em sua forma mais crua e radical, a figura do livre-pensador. No seu discurso citado, faz um uso consciente da expressão “pensamento livre”, evidenciando não estar ligado a nenhum partido, nenhum interesse particular, nem a uma linha determinada de pensamento, enfim, a nenhuma ideologia. Nessa condição, opõe-se ao prefeito, defensor do interesse dos banqueiros, à imprensa, personificada no veículo A voz do povo e cuja função é criticar todo tipo de transformação, toda novidade de pensamento[3], e, por fim, opõe-se à grande maioria dos cidadãos, manipulada pelo conluio dos dois primeiros a “pensar” como eles. Essa liberdade radical assumida pelo livre-pensador, esse descolamento consciente de todo partido, grupo ou linha de pensamento faz dele o ponto mais vulnerável dessa intrincada relação de poder, a parte que sucumbe necessariamente diante de forças tão poderosas. As consequências da liberdade de Stockmann, afinal, são extremamente nefastas: ao fim da peça, ele se encontra desempregado, humilhado, despejado e expulso de sua própria comunidade.

Esse seu declínio, entretanto, está implicado no seu ato radicalmente livre: ao longo da peça, Stockmann toma paulatinamente consciência de que sua atitude o levará necessariamente ao ocaso, de modo que se trata de uma escolha livre dessa posição, ou seja, da aceitação consciente das sombrias consequências implicadas em seu ato. Ao ser oficialmente declarado inimigo do povo pela assembleia popular, o doutor torna-se uma espécie de bode expiatório, no sentido original do termo, oriundo da tragédia grega; uma figura em que a opinião pública despeja seu ódio consciente e inconsciente, por não suportar sua liberdade, sua autonomia, por se sentir ameaçada diante de uma figura a tal ponto ousada a se opor solitariamente a todas as esferas, a ameaçar em sua solidão aterrorizante a “harmonia” milenar da comunidade. O ódio da opinião pública que se volta contra o livre-pensador, assim, se explica pela arrogância inerente à sua figura; a arrogância de se julgar certo, enquanto todos os outros estão errados (o que dá espaço ao mesmo tempo para a figura do impostor).[4]

Ora, a arrogância é uma das características dos personagens trágicos por excelência, de Édipo a Antígona. Mas é a arrogância de uma Antígona, por exemplo, ao contestar as leis da cidade, que propulsiona o drama, conduzindo-o a um desenvolvimento e um desfecho (trágico). Designada pelos gregos como hýbris, desmedida, essa arrogância, expressa na contestação da lei, na desobediência civil, é necessária não apenas para a situação dramática propriamente dita, mas também para a transformação do tempo, para o seu desenrolar; a arrogância e a prepotência do herói tornam-se a engrenagem a efetivar a passagem de uma época histórica para outra. Como assinala Friedrich Hölderlin, nesse mesmo sentido, a moralidade só teve seu início no momento em que a lei moral foi pela primeira vez infringida (HÖLDERLIN, 1992b, p. 496). A promulgação da lei apenas não é suficiente para que a moralidade se institua como tal. Para isso, a desobediência é necessária e, sem ela, não há moralidade, nem história. Para que a transição histórica se realize e uma nova época surja das ruínas do passado, é igualmente necessário o sacrifício do arrogante personagem. Para o desenvolvimento histórico, tanto do drama como da história universal, torna-se necessário que o personagem expie sua arrogância, sua hýbris, tal como acontece com o Dr. Stockmann e com muitos outros personagens retirados de obras de arte, principalmente da tragédia.

A humanidade conheceu muitos livres-pensadores, encarnados por artistas, cientistas e filósofos, os quais assumiram como vocação a função de pensar por si próprios, ao que pagaram um preço caro por essa soberba. A lembrança mais imediata é Sócrates, ele próprio declarado inimigo público pelas autoridades de Atenas, pelo crime de corrupção da juventude. Assim como o Stockmann de Ibsen, também Sócrates infringiu as leis de sua cidade, opondo-se arrogantemente a uma tradição milenar, proveniente dos tempos de Homero e Hesíodo. Ao contestar toda uma tradição calcada nas epifanias divinas, nas inspirações, nos sacerdotes, oráculos, augúrios e visões, Sócrates fundou a racionalidade filosófica, mostrou o poder do pensamento racional ao ocidente, pelo que foi agraciado com uma condenação à morte. Sem a sua “infração”, entretanto, a história não teria avançado e, talvez, a humanidade estivesse ainda vivendo nos tempos da mitologia grega (o que, num certo sentido, não seria de todo ruim, embora se afigure impossível). Apenas porque foi levado à morte é que a passagem para uma outra era se consolidou e se realizou; apenas porque expiou sua soberba com a própria vida, a engrenagem da história se moveu em direção ao futuro, trazendo um novo tempo, uma nova época, a época da filosofia e das cidades-estados gregas.

Essa mesma soberba, essa mesma arrogância aparece igualmente como uma das principais características de Galileu, na sua contestação dos milenares dogmas da Igreja. Foi essa atitude que o levou à descoberta das manchas solares, ao que recebeu a sentença da fogueira pela Inquisição (embora tenha, ao fim, escapado dela). Essa sua condição solitária do pensador situado no momento trágico em que duas tradições distintas se chocam, uma milenar e caduca (representada pelos acadêmicos aristotélicos) e outra nova (concentrada na figura solitária do cientista), foi posta em cena na peça Galileu Galilei, de Brecht. A tensão, na peça, entre as duas posições chega ao clímax insustentável na famosa cena em que Galileu recebe os acadêmicos aristotélicos em sua residência e, em posse do telescópio, solicita aos rogados e relutantes senhores que olhem a comprovação empírica da nova verdade no aparelho. Indignados, os acadêmicos se recusam a tal ato vexatório, alegando que a verdade já havia sido revelada por Aristóteles, não sendo uma engenhoca qualquer capaz de abalar sua validade eterna, imutável e imperecível. A despeito das súplicas de Galileu, que tem a seu lado, debalde, a empiria, os acadêmicos se retiram: onde já se viu, afinal, tanta arrogância, tanta prepotência, tanto descolamento em relação a um valor ensinado por séculos a fio e universalmente reconhecido como “a verdade”?

Nessa mesma linha, também Espinosa, por ter criticado as teologias ortodoxas, apontando o absurdo da ideia de um deus transcendente, sentado em sua bondosa cadeira feita de nuvens, foi excomungado ao mesmo tempo das comunidades cristã e judaica. Esta última, com efeito, foi suficientemente clara na sua determinação:

Pela decisão dos anjos e julgamento dos santos, excomungamos, expulsamos, execramos e maldizemos Baruch de Espinosa […] Maldito seja de dia e maldito seja de noite; maldito seja quando se deita e maldito seja quando se levanta; maldito seja quando sai, maldito seja quando regressa […] Ordenamos que ninguém mantenha com ele comunicação oral ou escrita, que ninguém lhe preste favor algum, que ninguém permaneça com ele sob o mesmo teto ou a menos de quatro jardas, que ninguém leia algo escrito ou transcrito por ele. (Texto da sinagoga de Amsterdam de 1656, apud SCLIAR, 1993, p. 72).

Diante de tantos exemplos, pergunta-se: o que leva adiante o livrepensador, nessa sua empreitada “suicida”? O que o faz ir até o fim e aceitar tão serenamente seu destino? No caso de Sócrates, Platão mostrou que o ato suicida do filósofo é plenamente coerente com o ato do pensamento radical. No Fédon, Platão defende que a filosofia, considerada uma forma de pensamento que eleva o homem em direção ao mundo das ideias, é vista como um exercício para a morte: “Assim, pois, Símias, em verdade estão se exercitando para morrer todos aqueles que, no bom sentido da palavra, se dedicam à filosofia, e o próprio pensamento de estar morto é para eles, menos que para qualquer outra pessoa, um motivo de horrores!” (PLATÃO, 1972, p. 75) – diz Sócrates, a uma determinada altura do diálogo. Ao ensinar o homem a se despregar da carne e da matéria, o pensamento genuíno (filosófico) ensina a alma a não reencarnar ao fim do seu ciclo próprio, permanecendo no estado puro de contemplação da Ideia. Esse estado de contemplação do mundo suprassensível, situado para além da vida terrena, é a verdadeira vida. A sabedoria filosófica, assim, ensina ao filósofo a não temer a morte, pois lhe garante que a morte é morte somente do corpo, considerado a prisão da alma. Para o filósofo, a morte do corpo significa assim o verdadeiro nascimento, o nascimento para a vida eterna. Dessa maneira, segundo Sócrates, seria uma “[...] contradição se [os filósofos] não se encaminhassem com alegria para o além onde, uma vez chegados, terão a esperança de encontrar aquilo por que em toda a sua vida se mostraram apaixonados: a sabedoria, que era o seu amor” (PLATÃO, 1972, p. 75), de sorte que “[...] será o cúmulo da extravagância [...] que exista o temor da morte no espírito de um tal homem.” (PLATÃO, 1972, p. 76).

Essa definição socrática de morte associada à filosofia arrebatou muitos espíritos. Hölderlin, na modernidade, foi um deles. A tal ponto o impressionou a coragem socrática diante da morte, bem como a clareza da tarefa que, enquanto pensador, tinha pela frente, que escolheu encená-la em sua tragédia moderna.[5] Apenas mais tarde resolveu substituir Sócrates por Empédocles, mais afim ao seu próprio pensamento. Em todo o caso, A morte de Empédocles tem como tema a condição solitária do pensador situado na transição trágica de duas épocas: uma milenar e caduca, e outra nova. A peça (que possui três versões distintas, todas inacabadas) se inicia com a expulsão de Empédocles de Agrigento, sua cidade natal, pelos seus concidadãos. Humilhado e execrado, Empédocles dirige-se ao Etna, vulcão em que pretende se atirar e pôr um fim à sua miserável existência. O motivo de sua expulsão é a mesma hýbris, a mesma desmesura, a mesma prepotência do Dr. Stockmann, expressa no drama pela ânsia do personagem central de saber mais do que lhe é permitido. Desejoso de conhecer as verdades próprias do mundo dos deuses, Empédocles ultrapassa o limite do humano (como Prometeu), atraindo para si a ira dos seus concidadãos, ao que se aproxima muito do quinto ato da peça de Ibsen, no qual o personagem, declarado inimigo do povo, é igualmente expulso e humilhado. Mas, ao contrário da peça de Ibsen, o acento no Empédocles de Hölderlin recai sobre o processo de tomada de consciência do personagem de que a única saída que lhe resta é o suicídio, em direção ao qual, na verdade, ele já havia se encaminhado desde o momento em que resolveu ultrapassar o limite humano. Em certo sentido, também as decisões do personagem da peça de Ibsen representam uma espécie de suicídio social, na medida em que possui consciência das consequências de seus atos e as aceita, em troca da defesa de suas ideias. No Empédocles, entretanto, o suicídio não aparece apenas como algo implícito, como uma consequência longínqua dos atos do personagem. A peça, pelo contrário, começa e se desenvolve em torno da decisão do personagem de atirar-se nas chamas do vulcão, bem como das dúvidas interiores que experimenta a partir dessa decisão. A morte de Empédocles de Hölderlin, nesse sentido, é uma alegoria mais direta do que a de Ibsen acerca da atitude conscientemente suicida do livre-pensador.

Como afirma Camus, em O Mito de Sísifo, “[...] só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio” (CAMUS, 2013, p. 17). Não há dúvida de que a sentença do filósofo francês se situa num contexto claramente diferente do de Hölderlin. Enquanto a frase de Camus deve ser compreendida no contexto próprio do existencialismo francês, refletindo assim em que medida a saída mais plausível ao aparente absurdo da existência está ou não no suicídio, Hölderlin reflete sobre a tragicidade inerente à figura do livrepensador (no caso, do poeta), de maneira geral. Contudo, as diferenças entre um projeto e outro se diluem consideravelmente, quando se considera que, ao longo de suas três versões, o Empédocles também estabelece uma relação direta entre o pensamento radical e o sacrifício que ele representa, sentido igualmente implicado na sentença de Camus. Além disso, ambos os projetos se aproximam, quando se constata que a frase de Camus faz uma referência velada a Novalis, autor romântico contemporâneo de Hölderlin, o qual afirma, em um de seus fragmentos:

O ato filosófico genuíno é suicídio; tal é o real começo de toda filosofia, nessa direção vai todo o carecimento do novato filosófico, e somente esse ato corresponde a todas as condições e características da ação transcendental.

(NOVALIS, 2001, p. 31).

Essa concepção de Novalis está eivada da desconfiança cética do pensamento de Friedrich Heinrich Jacobi quanto ao ambicioso projeto do idealismo alemão, cuja construção seguia a todo vapor, à sua época. Novalis, Hölderlin e a grande maioria dos autores desse período leram Jacobi à exaustão, incorporando, em seus pensamentos, cada um à sua maneira, o seu ceticismo em relação não apenas ao idealismo, mas à filosofia propriamente dita. Para esse autor, a pretensão dos filósofos idealistas de atingir o absoluto, o âmbito do puro pensamento (o transcendental a que se refere Novalis, na citação), equivaleria a um salto mortale, um salto para a morte. Ambígua em si mesma, a afirmação de Jacobi aponta para múltiplas interpretações possíveis. O salto mortale pode se referir à cisão entre vida e filosofia que, no idealismo alemão, foi levada às últimas consequências. Quanto mais se falava a linguagem da Ideia e do Absoluto, mais longínqua da vida se punha a filosofia e sua linguagem abstrusa. Consequentemente, ao fazê-lo, mais essa filosofia se aproximava da morte. Definido como o extremo oposto do senso comum, o absoluto se situa no extremo oposto da vida, ao que se pode concluir, com Jacobi, que perseguilo corresponderia a negar a vida e ir ao encontro da morte. Entretanto, para os espíritos livres, como é o caso de Novalis e de Hölderlin, a sentença de Jacobi constituiria um excelente ensejo para ir além desse seu sentido mais ordinário, servindo-lhes como adubo para a fermentação do romantismo latente em suas filosofias. Para os românticos, de um modo geral, o salto mortale de Jacobi poderia muito bem funcionar como uma imagem da condição trágica do pensador que, a partir do momento em que se põe a pensar a vida, a nega necessariamente, ao mesmo tempo em que sela uma espécie de compromisso com a morte.

É nesse sentido que todo ato filosófico genuíno é suicídio e é nesse mesmo sentido que a tragédia de Hölderlin A morte de Empédocles procura transpor esse salto mortale inerente ao métier do filósofo para a arte. Ao fim e ao cabo, a peça representa a atitude do pensador como um ato em si mesmo suicida, de sorte que, segundo a lógica que se pode apreender da peça, pensar é suicidar-se, é saltar conscientemente para o reino da morte. O indivíduo, afinal, que se põe no front do pensamento, opondo-se com ele ao bloco inerte de uma tradição milenar, não pode lhe resistir sem sucumbir à sua força.

A aproximação com Novalis atesta o romantismo dessa concepção, presente de certo modo na própria visão socrática do pensador situado diante da morte. Em curtas palavras, esse romantismo reside na negação da vida imediata em prol de uma Ideia inalcançável, ponto no qual o romantismo se reconcilia com o idealismo que Jacobi pretendia criticar. Distintos apenas na forma como essa ideia deve ser buscada, tanto um como o outro flertam com a morte, ao assumirem uma posição clara de negação da vida imediata.

No caso específico do “romantismo” de Hölderlin, esse suicídio, entretanto, não deve ser visto como um ato de desespero. A atitude suicida do livre-pensador, em sua peça, não é uma simples fuga romântica do mundo incapaz de compreendê-lo. Nesse ponto, Hölderlin se separa do romantismo mais radical de um Werther, por exemplo, cujo suicídio surge como uma fuga desesperada do personagem incompreendido e excluído da vida social. Em Hölderlin, antes, como parece ser também o caso em Ibsen, o ato suicida é um ato de autossacrifício consciente, que se dá em prol de algo maior que o indivíduo e seus interesses particulares. E é essa consciência de seu ato, conquistada após um longo processo, que lhe permite encarar serenamente a morte como vocação e destino, à maneira socrática, tal como se lê na fala que Empédocles pronuncia, na cena que antecederia seu salto mortale:

Aqui permaneço sereno, pois me espera A nova hora, longamente preparada:

Não mais em imagem como outrora

Entre os mortais, encontro o vivente

Em efêmera bem-aventurança, mas sim na morte [...] (HÖLDERLIN, 2008, p. 331).

A serenidade de Empédocles diante de sua morte iminente funda-se na compreensão de que seu destino é semelhante não apenas ao de Sócrates, mas também ao de Cristo (a figura de Empédocles opera um sincretismo entre o paganismo grego e o cristianismo). Assim como este, sua destinação (Bestimmung) consiste no seu sacrifício individual em prol da humanidade, ato que revela um amor incondicional, transcendente à sua pessoa e aos seus interesses particulares imediatos. Trata-se de um amor pelo gênero, pela espécie humana, a qual é purificada por meio de seu ato. Ora, esse amor implicado no ato suicida do livre-pensador aparece igualmente no discurso de Stockmann. A certa altura, afirma o personagem, em seu discurso: “Amei minha cidade natal tanto quanto meus filhos. Quando tive de deixá-la, eu era apenas um menino; e a distância, a recordação do passado sempre fazia com que minhas lembranças fossem transfiguradas pelo carinho.” (IBSEN, 2001, p. 123). Num certo sentido, é esse excesso de amor que, transbordando do indivíduo, o leva a se sacrificar; é por não saber conter esse sentimento desmedido que ele se atira contra as forças irrefreáveis da história e da tradição. E é somente devido a esse choque trágico-amoroso que o tempo flui, as coisas mudam e a história se transforma; é somente porque há oposição, negação e contradição que o espírito sai de si mesmo, se movimenta e retorna a si, consciente de sua tarefa.

4 o LIvre-Pensador como homem PóstUmo

Ao longo de sua obra, Nietzsche criticou à exaustão o romantismo implicado na tese de Platão acerca do mundo das ideias. Para Nietzsche, essa crença numa vida após a morte possibilitada pela teoria platônica (levada às últimas consequências pelo Cristianismo) acarreta a perigosa negação do que realmente importa: a vida terrena imediata. “A moral nega a vida...” (NIETZSCHE, 2009, p. 9), escreve, em uma de suas obras. A partir do momento em que se institui a promessa de uma vida no além, baseada na divisão platônica do mundo em sensível e suprassensível, material e ideal, bem e mal, o homem passa a viver em prol de uma mentira. Essa teoria constitui assim o núcleo de uma das piores doenças da humanidade, o romantismo, o qual atinge seu ápice nos tempos modernos, no período em que viveu o próprio Nietzsche. Nesse sentido lato empregado pelo filósofo, o romantismo é a tendência do homem de desprezar o imediato e seguro, em vistas do desconhecido e incomensurável, de negar o existente e certo, em vistas daquilo que ele não possui e jamais possuirá. Essa ideia, da qual se imbui a modernidade cristã, é uma doença para a qual o pensamento pessimista de Nietzsche é a cura, como se lê em Humano, demasiado humano, um “livro para espíritos livres”, que faz uso de termos tais como “cura espiritual”, “autotratamento antirromântico”; um livro, enfim, escrito “[...] contra um temporário adoecimento da forma mais perigosa do romantismo.” (NIETZSCHE, 1978a, p. 124).

Por um lado, o romantismo, ligado que era à tradição cristã, dava sinais de exaustão ao final do século XIX. Por outro, entretanto, mostrava, por meio do entusiasmo popular pelas óperas de Wagner, que esse fim ainda estava longe de ser alcançado. Seria preciso combater com virulência essa derradeira aparição da doença romântica, tal como ela ressurgia em Wagner[6], a fim de que o homem fosse capaz de desenvolver plenamente suas potencialidades, ao mesmo tempo em que superaria a moral cristã. Nietzsche, por isso, se impõe uma tarefa árdua: “[...] comecei por proibir-me a fundo e fundamentalmente toda música romântica, essa arte equívoca, grandiloquente, abafada, que tira o espírito de seu rigor e alegria e faz crescer toda espécie de obscura nostalgia, de anseio esponjoso.” (NIETZSCHE, 1978a, p. 125). 

A recusa radical da música wagneriana implica uma oposição radical a toda tradição ocidental baseada na milenar religião cristã. Essa oposição a seu tempo e à tradição milenar conduz necessariamente o livre-pensador a uma solidão igualmente radical, entretanto, que é vista por Nietzsche como condição necessária para a tomada de consciência de sua tarefa, diante de seu povo e de seu tempo. No mesmo Humano, demasiado humano, ao se opor radicalmente a toda essa tradição milenar encarnada na figura de Wagner, Nietzsche escreve tê-lo invadido a premonição de estar “[...] condenado a desconfiar mais profundamente, a desprezar mais profundamente, a estar mais profundamente sozinho do que antes.” (NIETZSCHE, 1978a, p. 125). Essa solidão, que, no fundo, resulta de uma oposição não somente a tudo e a todos, mas também a si mesmo, revela para ele o caminho, concede-lhe a certeza de estar trilhando a senda correta, bem como a tarefa que tem diante de si:

Doravante solitário e maldosamente desconfiado de mim tomei dessa forma, não sem desgosto, partido contra mim e por tudo o que precisamente a mim fazia mal e me era duro: assim reencontrei o caminho para aquele bravo pessimismo, que é o oposto de toda mendacidade romântica, e também, como quer-me parecer hoje, o caminho para “mim” mesmo, para minha tarefa. (NIETZSCHE, 1978a, p. 125-126).

Que esta não pequena tarefa seja definida como a cura da modernidade em relação à doença do romantismo, isso só fica claro a partir do momento em que Nietzsche adota esse “método” filosófico que consiste na mais radical oposição a tudo e a todos, incluindo a oposição a si mesmo. Em O caso Wagner, esse “método” é descrito como uma espécie de exercício disciplinador do olhar em relação aos sinais de decadência da época, da qual são exemplos a própria música wagneriana e a divisão cada vez mais acentuada entre bem e mal. A partir do momento em que disciplina o olhar para enxergar os sinais da época decadente e corrupta, a mesma do Dr. Stockmann de Ibsen, o filósofo eleva-se do tempo presente, decadente e corrompido, tornando-se atemporal, condição esta essencial a todo filósofo livre-pensador:

Que exige um filósofo de si, em primeiro e em último lugar? Superar em si seu tempo, tornar-se “atemporal”. Logo, contra o que deve travar seu mais duro combate? Contra aquilo que o faz um filho de seu tempo [...] Para uma tarefa assim, era-me necessária uma disciplina própria – tomar partido contra tudo doente em mim, incluindo Wagner... Um profundo alheamento, esfriamento, desalento face a tudo o que é temporal e temporâneo. (NIETZSCHE, 2009, p. 9).

Essa definição do livre-pensador que combate sua época e seu tempo, tornando-se “atemporal”, está intimamente ligada à noção nietzschiana do homem póstumo, encontrada no Anticristo e no Zaratustra. Por ter-se elevado à atemporalidade, o livre-pensador não pode mais ser compreendido pelos seus contemporâneos; agora, nessa sua condição, não escreve mais para o presente, mas para o tempo que virá, para o futuro. No prólogo do Anticristo, ao alertar que se tratava de um livro para homens raros, ajunta que “[...] somente o depois de amanhã me pertence” e que “[...] alguns [homens] nascem póstumos.” (NIETZSCHE, 2008, p. 11). A consciência de ser um homem póstumo – como o próprio Zaratustra – é-lhe revelada a partir da observação da decadência e da corrupção do presente, ainda incompreensível a seus contemporâneos:

É um doloroso, um arrepiante espetáculo, que despontou para mim: abri a cortina da corrupção do homem. [...] Entendo corrupção, já se adivinha, no sentido de décadence: minha afirmação é que todos os valores nos quais a humanidade enfeixa agora sua mais alta desejabilidade são valores de décadence. (NIETZSCHE, 1978b, p. 348).

As críticas virulentas que dirige ao presente, assim, são provenientes da plena consciência do declínio da tradição, a qual logo se extinguirá. Ao aludir a corrupção e decadência, não se trata obviamente de uma visão moralista da época, justamente objeto de crítica de Nietzsche. As palavras corrupção e decadência são usadas aqui no sentido de decomposição natural, aplicada a qualquer objeto que sofre a ação do tempo e chega ao seu termo. Assim como se corrompem os objetos da natureza, cujo fim dá ensejo ao começo de algo novo, assim também se corrompem os valores de toda uma época, de toda uma cultura, corrupção que o livre-pensador pressente antes dos demais. Se, pois, critica e se opõe a esses valores decadentes e corruptos, é porque prevê a inevitabilidade de seu desaparecimento, ao mesmo tempo em que pressente o anúncio do futuro. Em última instância, ele tem consciência do caráter da época de transição entre dois grandes períodos da história. Ao mesmo tempo em que vê ruir um, enxerga o outro surgindo no horizonte, essa transição constituindo o objeto de seus escritos críticos. Ora, não há outro modo de mostrar a decadência do presente e o anúncio do futuro, a não ser indo contra as ideias e os valores do seu tempo. Curiosamente, essa mesma consciência da caduquice do presente e o pressentimento de um futuro próximo aparecem também no discurso do Dr. Stockmann, de Ibsen, o qual se revela igualmente um homem póstumo, num sentido muito próximo do de Nietzsche. No quarto ato da peça, afirma o personagem:

Penso no pequeno grupo de indivíduos que estão sempre na linha de frente, longe da mesmice da maioria, lutando por novas verdades, demasiado novas para que a maioria as compreenda e as admita. Vou dedicar toda a minha energia e a minha vida a contestar a pseudoverdade de que a voz do povo é a voz da razão! Que sentido têm as verdades proclamadas pela massa, massa esta que é manobrada pelos jornais e pelos poderosos? São velhas e caducas. [...] Quais são, pois, essas verdades em torno às quais os homens comuns gostam de agrupar-se? São verdades tão velhas que já se acham próximas à decomposição. Mas quando uma verdade chega a esse ponto, ela também está em vésperas de se tornar uma mentira. (IBSEN, 2001, p. 128).

Em última análise, o passar do tempo, o andar da história, torna mentirosos os valores de uma época decadente; não condizem mais com os novos ares. Diante dos avanços da ciência de um Galileu, as ideias de Aristóteles tornaram-se mentirosas, por não se adequarem mais aos fatos. Historicamente consideradas, não há dúvidas de que, em sua época, foram verdadeiras, porque estavam em sintonia com o pensamento de seu tempo. Todavia, com o avanço do pensamento e da ciência, muitas de suas teorias caíram por terra e aqueles que insistem em conservar essa sua “verdade”, a despeito do que dizem os fatos, agem de má fé, devendo ser considerados mentirosos. No período de transição, entretanto, no frescor dos tempos vindouros, esse tornar-se mentira do que foi tido durante tanto tempo como verdade ainda não está claro, não se mostrou ainda como mentira. É natural que os homens se aferrem ao passado no qual viveram por tanto tempo, que se lhes apresenta como certo e seguro, em relação ao futuro ainda incerto e desconhecido. Desse modo, é trabalho do livre-pensador mostrá-lo; é sua tarefa evidenciar esse processo de degenerescência da antiga verdade, em vistas do novo. Num certo sentido, é tarefa do livre-pensador acelerar o processo de decadência e guiar sua época nessa transição, ao mesmo tempo em que se sacrifica nela e por ela.

ABSTRACT: Starting from a reading of Ibsen’s An Enemy of the People, the present text will seek to define the free thinker as one who opposes the dominant thinking or thoughts, daring to think for himself. In doing so, the free thinker sacrifices himself, committing a kind of suicide (material and moral) out of his unconditional love for his community. Based on Ibsen’s definition, the article seeks examples in the history of thought that corroborate this idea, as in the cases of Socrates, Galileo and Spinoza. The text will make some considerations about the transposition of this condition of the freethinker to the theater, as in Brecht’s Galileo and Hölderlin’s The Death of Empedocles. At the end of the article, we pretend to show that Nietzsche also had a conception of the free thinker as one who must become timeless and posthumous.

KEYWORDS: Free thinking. Suicide. Self-sacrifice. Romanticism.

referêncIas

CAMUS, A. Le mythe de Sisyphe. Paris: Gallimard, 2013.

HÖLDERLIN, F. Hölderlin Briefe. In: SCHMIDT, J. (Ed.). Sämtliche Werke. Frankfurt am Main: Deutscher Klassiker, 1992a.

______. Über das Gesetz der Freiheit. In: SCHMIDT, J. (Ed.). Sämtliche Werke. Frankfurt am Main: Deutscher Klassiker, 1992b.

______. A Morte de Empédocles. Tradução de Marise Moassab Curioni. São Paulo: Iluminuras, 2008.

IBSEN, H. Um inimigo do povo. Tradução de Pedro Mantiqueira. Porto Alegre: L&PM, 2001.

NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1978a.

______. O Anticristo. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1978b.

______. O Anticristo: maldição contra o cristianismo. Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM, 2008.

______. O caso Wagner. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

NOVALIS, F. Pólen. Tradução de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 2001.

PLATÃO. Fédon. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Abril Cultural, 1972.

SCHLEGEL, F. O dialeto dos fragmentos. Tradução de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1997.

SCLIAR, M. Se eu fosse Rothschild: citações que marcaram a trajetória do povo judeu. Porto Alegre: L&PM, 1993.7

Recebido / Received: Aprovado / Approved



[1] http://dx.doi.org/10.1590/S0101-317320160005000011

[2] Doutor em Filosofia pela USP, com estágio na Universidade de Trier/Alemanha, é professor de Estética e Filosofia da Arte no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); traduziu autores da Filosofia alemã, tais como Fichte e Adorno, e trabalha atualmente com a Filosofia alemã dos séculos XVIII, XIX e XX, principalmente no que tange à relação entre Arte e Filosofia.

[3] A certa altura do seu discurso, afirma Stockmann que o jornal A voz do povo “[...] prega a ignorância, prega a velha mentira que herdamos dos nossos pais de que [...] as ideias novas fazem mal para a sociedade.” (IBSEN, 2001, p. 135).

[4] Na Crítica do Juízo (§ 47), Kant já alertava para a ambiguidade inerente à contestação das regras própria do gênio. É difícil distinguir se a implosão da tradição, realizada pelo gênio criador, é autêntica ou se se trata apenas de um impostor ou de um falso profeta.

[5] Originalmente, Hölderlin pretendia escrever uma tragédia sobre a morte de Sócrates. Cf. a carta a Neuffer, de 10 de dezembro de 1794 (HÖLDERLIN, 1992a, p. 157).

[6] Em O caso Wagner (2009, p. 10), reaparece a mesma imagem da doença e da cura, agora em relação ao autor do Parsifal: “Minha maior vivência foi uma cura. Wagner foi uma de minhas doenças.”