Fantasmas de Realismo na obRa de J. m. Coetzee[1][2]

Ana Falcato[3]

RESUMO: Com um estilo sóbrio e minimalista, a prosa literária de J. M. Coetzee é um espaço criativo onde diferentes identidades literárias são constantemente baralhadas e uma perigosa sobreposição de alter-egos é sistematicamente ensaiada. Pensando sobre todas essas nuances, filósofos contemporâneos a trabalhar sobre a obra do escritor sul-africano têm descrito o seu trabalho como “realista-modernista’. Neste artigo, discuto uma obra específica de Coetzee (Diário de um Mau Ano) – focando sobretudo a estranha técnica gráfica da tripartição da página em três vozes literárias e a respectiva relação com a ideia de “pensamento ético de substituição” –, confrontando-a com a sua obra como um todo. Num segundo momento, apresento um modelo filosófico para explicar o seu “realismo modernista” e termino traçando o impacto desse modelo filosófico sobre a própria filosofia que o apresenta.

PALAVRAS-CHAVE: J.M.Coetzee. Pensamento ético de substituição. Diário de um Mau Ano. Realismo modernista.

1 intRodução

É certamente um facto bem conhecido que scholars de Filosofia Moral e de Estética (muito especialmente na tradição anglo-americana) têm vindo a desenvolver parte substancial do seu trabalho em torno de exemplos literários[4]. Ao observador atento, um “diálogo contínuo” (por vezes crítico) entre um grupo de filósofos da referida tradição e um grupo mais restrito de escritores contemporâneos parecerá promissor (e historicamente responsável) relativamente a uma despenalização do preconceito platónico, claramente sancionado na República, quanto à convivência possível entre filósofos e escritores (ou idólatras da mimesis) na cidade Ideal.

Um leitor assíduo desse diálogo moderno poderá acalentar uma secreta esperança de que as duas tradições (filosófica e literária) tenham, finalmente, reiniciado um processo de reconciliação, após um longo divórcio de quase dois mil e quinhentos anos de História. Na condição de filósofos, porém, sempre necessitamos de mais evidência – alguma prova tangível – sobre essa alegada reconciliação. Daí a importância de seguir atentamente os actos dramáticos desse reencontro entre escritores e filósofos – lendo-os ou ouvindo-os em ambas as direcções: da Filosofia para a Literatura e, na direcção crítica inversa, da Literatura para a Filosofia.

Trabalhos muito recentes em ambas as tradições parecem atestar essa tão esperada reconciliação, em diferentes formas literárias – dramática, serial e até (literalmente) dialógica. Assim, em The Wounded Animal, Stephen Mulhall (2009) dedica-se exclusivamente à discussão de um romance de John Coetzee – Elizabeth Costello – e respectivos entrecruzamentos (por vezes perigosas sobreposições) entre a identidade literária do autor do romance e a da respectiva protagonista (Elizabeth), descrevendo os projectos de ambos (John Coetzee e Costello) como manifestações de uma já clássica reflexão modernista sobre as condições e os constrangimentos da técnica do realismo formal no romance moderno. Coetzee (2013), por seu turno, dedica uma parte do seu mais recente romance – A Infância de Jesus – a uma discussão (não desprovida de aspectos cómicos) sobre o eterno “drama” filosófico quanto à existência de Universais. Peter Singer, por fim, no seu comentário a The Lives of Animals, de 1999, cria um diálogo filosófico, entre um filósofo chamado Peter Singer e a sua filha Naomi, sobre a ética animal (COETZEE, 1999)4

EAGLETON, T. The english novel: an introduction. Oxford: Blackwell, 2005; LEAR, J. A case for irony. the Tanner lectures on human values. Cambridge, Mass.; London: Harvard University Press, 2011; Ethical thought and the problem of communication: a srategy for reading diary of a bad year. In: SINGER, P.; LEIST, A. (Ed.). J. M. Coetzee and ethics; MULHALL, S. The wounded animal: J. M. Coetzee and the difficulty of reality in literature and philosophy. Princeton; Oxford: Princeton University Press, 2009; The self and Its Shadows: a book of essays on individuality as negation in philosophy and the arts. Oxford: Oxford University Press, 2013; NUSSBAUM, M. Love’s knowledge. Oxford: OUP, 1990; SINGER, P.; LEIST, A. Introduction to J. M. Coetzee and ethics.

4 Veja-se SINGER, P. Reflections. In: COETZEE, J. M. et al. The lives of animals. Edited by Amy Gutmann. Princeton; New Jersey: Princeton University Press, 1999. p. 85-93.

O que estará, de facto, a motivar essa “conversa”, esse diálogo crítico e responsável – se, de todo em todo, se trata de um autêntico diálogo e não de uma imposição da voz socrática sobre toda a espécie de interlocutores cativos na teia de diferentes vícios?

Para começar a responder a essa difícil questão, seleccionámos um romance de Coetzee que pode deixar o leitor completamente perplexo. Diário de um Mau Ano, escrito em 2007, servir-nos-á de ponto de partida para mapear as implicações modernistas num romance realista – do ponto de vista da técnica formal e de diferentes puzzles de conteúdo narrativo –, e reconduzir a discussão para o campo de uma filosofia que se assume a si própria “na condição do Modernismo”. O meu objectivo não é, pois, uma mera identificação de pontos de intersecção produtivos ou filosoficamente tuteladores entre um texto literário moderno e um ensaio filosófico que interpretativamente lhe responde, correndo sempre o risco de o “explicar”, dissolvendo-o enquanto Arte. Ao invés, tentarei encenar neste mesmo ensaio uma transformação da compreensão de nós mesmos enquanto leitores – transformação possibilitada pelo trabalho consideravelmente terapêutico do romance de Coetzee sobre os seus leitores (mesmo quando esses leitores são filósofos).

Num primeiro momento desta análise, será discutida a relevância de um estranho vocábulo, que um filósofo como Jonathan Lear tem vindo a elaborar no decurso de um diálogo com o escritor sul-africano: a noção de “pensamento ético de substituição”. Num segundo momento, explorarse-á o efeito “realista modernista” que um autor como Mulhall identifica na obra de Coetzee, aplicando-o, numa dobra reflexiva sobre a filosofia que assim descreve a obra do escritor sul-africano, sobre o próprio projecto filosófico que criou esse vocábulo para discutir o projecto literário do escritor.

2 diáRio de uma viagem da alma

De entre a vasta obra de J. M. Coetzee, esta leitura concentrar-se-á em Diário de um Mau Ano[5], em grande medida devido à estranheza do seu impacto estilístico – único na obra do autor –, potenciador de uma genuína dificuldade de leitura. Nesse livro, Coetzee usa uma técnica de composição extremamente problemática: cada página está dividida em duas ou três secções, separadas por traços horizontais, cada uma instanciando uma voz literária diferente. Essa configuração gráfica da página tem um impacto perturbador por si só. Assim, a secção de topo em cada página corresponde a uma série de “crónicas de opinião” (intitulada Opiniões Fortes: 12 de Setembro de 2005 – 31 de Maio de 2006) por um distinto e idoso escritor sul-africano, chamado JC. A secção intermédia corresponde à voz privada de JC e relata, num registo desapaixonado e realista, os seus encontros diários com uma jovem dactilógrafa filipina chamada Anya, que JC contratou para o ajudar na composição das suas crónicas de opinião – encomendadas por uma editora alemã. Na secção inferior da página, encontramos as vozes de Anya e Alan (o namorado da rapariga, caracterizado como rude, misógino e paranóico). Assim, nas duas secções inferiores da página de Diário de um Mau Ano, Coetzee pode explorar os vários estágios da decadência física de JC, polarizando-os com a energia erótica ainda vibrante na sua vida e invocada pelas visitas diárias de Anya.

Um primeiro encontro com esse texto confronta o leitor com o conflito entre três vozes narrativas totalmente singularizadas – as vozes de JC, Anya e Alan – e um confronto simultâneo entre esse confronto e uma quási-quarta voz literária, correspondente à voz pública, extremamente politizada, de JC. Esse enquadramento – gráfico, por um lado, e de uma hierarquia de identidades literárias, por outro – configura uma moldura modernista de Opiniões Fortes, desenhada no romance como um todo – Diário. Sabemos que os problemas literários muito específicos colocados por esta obra – como a tripartição da página – e um possível propósito ético subjacente a essa estranha técnica (que adiante explorarei) podem ser enquadrados em discussões filosóficas mais amplas sobre o impacto do estilo literário – a forma como uma determinada posição ou ideia é articulada – sobre a veiculação dessa ideia ou conteúdo. No centro dessas discussões, encontramos filósofos – muitas vezes dando expressão a alguns conflitos internos à história e ao cânon da própria Filosofia – que tratam teoricamente o que parece ser o mesmo problema com que Coetzee se depara nessa obra. Um exemplo já clássico dessa discussão sobre a dicotomia estilo-conteúdo, na obra literária como no texto filosófico, dentro da tradição filosófica anglo-americana, é o trabalho de Martha Nussbaum. Na Introdução de Love’s Knowledge, de 1990, encontramos a seguinte passagem:

A “Antiga Querela entre os Poetas e os Filósofos”, como Platão […] a caracteriza na República, só pôde ser designada como uma querela por ser sobre um e o mesmo assunto. O assunto era a vida humana e como vivêla. E a querela era uma querela sobre a forma literária, tanto como sobre o conteúdo ético, sobre formas literárias comprometidas com determinadas prioridades éticas […]. As formas de escrita não eram vistas como meros repositórios onde diferentes conteúdos pudessem indiferentemente ser vertidos; a forma era ela própria uma afirmação, um conteúdo. (NUSSBAUM, 1990, p. 15).

A tese forte de Nussbaum representa um quadrado de combinações: no texto filosófico (onde o estilo literário, o exercício da forma na veiculação de conteúdos, é amiúde sacrificado a prioridades de substância teórica), tanto quanto no texto literário (onde o cultivo da arte da forma pode chegar a níveis tão barrocos que tornam o conteúdo imperscrutável – sobretudo nos projectos modernistas do princípio do século XX), o estilo é, ele próprio, uma afirmação de conteúdo. Porém, como adiante também veremos, Nussbaum está longe de ser a única voz filosófica a discutir essas questões. 

Tendo começado este ensaio com um texto literário, concentrar-me-ei primeiro na segunda tese defendida por Nussbaum, sustentando que a prosa literária de Diário e, muito especialmente, a sua estranha composição formal constituem um exemplo notável, no panorama literário contemporâneo, da inseparabilidade na veiculação bem-sucedida de conteúdos de pensamento da técnica de composição literária escolhida. O que o romance de Coetzee mostra é que a forma literária é, ela própria, uma afirmação, um conteúdo, e que a composição formal é já uma maneira de defender determinadas posições teóricas. Todavia, esse conteúdo veiculado pela própria forma literária não é uma “mera matéria bem-enformada”, uma combinação casualmente feliz entre uma técnica de composição textual e o pensamento expresso de maneira privilegiada por esse suporte literário.

Pelo contrário, o texto de Coetzee vai provar-nos que pode veicular pensamento ético através de uma simulação directa de pensamento ético, escrita num registo literário próximo (mas distinguível) do de Diário de um Mau Ano – a essa simulação, chamámos “pensamento ético de substituição” e o registo próximo é o que Coetzee emprega em Opiniões Fortes, o livro de JC[6]. O resultado prático – no sentido filosófico – dessa simulação numa colecção de “opiniões políticas fortes”, atribuídas por Coetzee a JC, é a esterilidade ética de um texto teoricamente muito convincente e esteticamente amputado (também desenvolverei essas ideias adiante).

Neste ponto da minha reflexão, duas questões, estreitamente interligadas, têm de ser explicitadas: (1) o que é que significa, exactamente, a afirmação de que a estrutura de Diário de um Mau Ano permite a veiculação de pensamento ético? E (2) como é que o romance de Coetzee possibilita essa veiculação, precisamente através da encenação de uma forma distorcida de pensamento ético?

Alguns filósofos actualmente a trabalhar sobre a obra de Coetzee – como Jonathan Lear – têm insistido que pode ser mais fácil para um escritor detectar e bloquear formas simuladas de pensamento ético do que para um filósofo (como hoje, profissionalmente, nos entendemos) – dado o exercício sistemático do último em técnicas de raciocínio especialmente abstractas, as quais, por sua vez, são também projectadas na elaboração de sistemas éticos fechados.

Porém, para melhor entender a noção de “pensamento ético de substituição”, em Diário, ainda teremos que recorrer a um experimento de pensamento de tipo filosófico e autorreferencial. O experimento centrase na figura do filósofo que está na situação de querer fazer uma afirmação com valor ético, sobre um problema ético – à luz do que já expusemos sobre a estrutura narrativa e os personagens do romance, podemos considerar JC uma instanciação desse tipo de filósofo. Mas também o autor deste artigo pode ser considerado um alvo do experimento. Imaginemos, então, que o nosso filósofo quer defender a ideia de que as verdades mais relevantes sobre a psicologia humana não podem ser comunicadas ou apreendidas por meio da mera actividade intelectual (ou, para colocar o problema em termos mais canónicos, do ponto de vista histórico-filosófico, através do puro exercício da razão), uma vez que o jogo livre das próprias emoções tem um papel cognitivo fundamental nessa apreensão.

Se o nosso filósofo vier defender essa posição numa forma textual em que apenas a “parte intelectiva da alma” encontra expressão e apenas o intelecto do leitor é formalmente invocado – como é usual na prática do ensaio ou tratado filosófico e como é certamente o caso em Opiniões Fortes – a situação imaginada pode ser confrontada com a seguinte questão: será que o nosso filósofo acredita no conteúdo da sua própria tese? Como podemos salvá-lo da acusação de inconsistência? Claro: pode-se pensar que o filósofo acredita que a tese psicológica não está ela própria entre as verdades sobre a psicologia humana que só podem ser assimiladas através de estados emocionais relevantes. Ou talvez o autor acredite que a tese psicológica é uma dessas verdades, mas não esteja interessado na assimilação do conteúdo da mesma pelo leitor. Seja como for, este simples experimento mostra a facilidade com que o paradoxo é criado.

Por contraste, se um autor literário quiser veicular a mesma ideia, poderá evitar a heresia filosófica da inconsistência, na medida em que a sua prosa lhe pode permitir veicular o conteúdo proposicional da tese psicológica por intermédio dos recursos estilísticos da mesma (ainda que tenha de inventar um novo modelo gráfico para desenvolver a ideia, como seja a tripartição da página do livro). A plasticidade dos recursos estilísticos da prosa literária pode ser usada pelo novelista para, por exemplo, expor a ideia fundamental da tese psicológica numa textura literária que concretiza um envolvimento emocional directo (o que não é certamente o caso com a prosa de JC, em Opiniões Fortes). O autor literário pode, inclusive, expor o conflito presente na versão filosófica do paradoxo da tese psicológica, incorporando a discussão filosófica da mesma num texto mais amplo que, em última instância, expõe a inconsistência da mera versão proposicional da tese psicológica, como acima descrita. Veremos como Coetzee (ao contrário de JC) faz ambos os movimentos, em Diário de um Mau Ano.

Textos literários na tradição do Modernismo – como Diário e, em geral, toda a obra de Coetzee, desde Dusklands (COETZEE, 1974) – parecem permitir esse complicado desdobramento dos objectivos de uma ideia relativamente simples: por possibilitarem a combinação alternada de uma forte expressão de emoções (e perversões) com material reflexivo mais estruturado, mostram a verdade da ideia simples da tese psicológica, encenando-a desde os mais diferentes anglos, ao invés de a afirmar. Mais importante ainda: um texto como Diário permite a Coetzee expor a inconsistência da formulação filosófica nua da tese psicológica através de uma incorporação da mesma (formulação filosófica nua), num texto mais amplo e polarizado, onde a mesma é subsequentemente refutada.

O que temos, então, até este ponto? Um exercício de atenção minucioso ao tipo de storytelling operativo em Diário de um Mau Ano leva-nos superar as dificuldades inerentes ao paradoxo da tese psicológica e começar a responder às questões (1) e (2), formuladas acima. Se, enquanto filósofos, considerarmos que a veiculação de pensamento ético num texto literário implica (ou exige) algum tipo de orientação prática para como devemos viver e, simultaneamente, queremos que essa indicação inclua ainda orientação sobre como ler o texto literário que temos em mãos e apreciar a sua mensagem, então podemos dizer que essa obra de Coetzee responde a ambas as solicitações, incorporando uma mensagem negativa sobre como podemos falhar em ambas as frentes, ou seja, chamando a atenção do leitor para o facto de que a genuína veiculação de pensamento ético pode (demasiado) facilmente ser subsumida numa simulação de pensamento ético – aquilo a que chamámos “pensamento ético de substituição” – e ainda destacando um nível de interpretação para o texto que temos diante, que é tentador e inadequado.

Aquilo a que temos vindo a chamar “pensamento ético de substituição” é uma mera simulação (na maior parte dos casos, muito bem intencionada) de pensamento ético – uma simulação ou mimesis, a qual, mesmo quando é intelectualmente impecável (ou, talvez, sobretudo quando é assim), não faz a mínima diferença prática para a forma como lemos o mundo e conduzimos as nossas vidas. Nesse romance polémico, John Coetzee parece sugerir que esta é justamente a forma de pensamento veiculada por Opiniões Fortes e a atitude geral de JC para com o seu livro e os seus leitores.

Com este breve sumário do problema ético em Diário de um Mau Ano, podemos agora avançar para outra questão colocada pelo método de Coetzee: como é que podemos não sucumbir à simulação de pensamento ético, numa obra literária? Veremos que a resposta de Coetzee a esse segundo problema ético – sendo o primeiro o risco de não darmos pela diferença entre simulação e a “coisa ela mesma” – passa pela própria estrutura tripartida da página do livro e a exposição dos seus leitores ao “livro dentro do livro”, ou seja, a Opiniões Fortes dentro de Diário.

3 o esCRitoR do esCRitoR

Podemos pensar que não é preciso ir muito longe na especulação sobre o que pode ligar o autor do livro Opiniões Fortes, JC, e o autor de Diário de um Mau Ano. Mas algo terá de ser dito sobre esse ponto, não apenas para que o presente ensaio não pareça contornar uma obviedade que qualquer leitor desprevenido do livro de Coetzee poderá detectar – como se isso fosse algo que, alegadamente, um ensaio filosófico pode dispensar – mas sobretudo porque essa suposta obviedade só parcialmente o é. Associar JC e John Coetzee tem implicações bem mais ardilosas do que a mera curiosidade estilística ou heteronímica, facilmente atribuível a uma vaidade autocomplacente, por parte do segundo. De facto, a tentação para fazer confluir a identidade de ambos – escritor e escritor do escritor – é parte do resultado de já termos, como leitores, sucumbido a uma forma de pensamento ético de substituição. Todavia, não é completamente fácil ver porquê.

Afinal de contas, JC é um idoso escritor sul-africano, recentemente fixado na Austrália, que, por encomenda de um editor alemão, anui a registar num livro colectivo as suas opiniões sobre alguns temas prementes da nossa sociedade global: terrorismo, conflitos étnicos, aquecimento global, direitos dos animais, experiências genéticas. Como JC confessa, à margem de Opiniões Fortes, o projecto pareceu-lhe excelente desde o início: “Uma oportunidade de rezingar em público, uma oportunidade de exercer uma mágica vingança sobre o mundo por se negar a conformar-se com as minhas fantasias: como podia eu recusar?” (COETZEE, 2008, p. 33). Mas há algo que inequivocamente separa o escritor e o escritor do escritor: JC está claramente disposto a publicar as suas opiniões fortes sobre problemas sociais contemporâneos, como os frutos teóricos ressequidos de uma etapa da vida em decréscimo de vitalidade. John Coetzee não está. Este só publicou opiniões fortes lado a lado com “opiniões fracas” – um “Segundo Diário” de anotações íntimas – e com as notas de um quotidiano em acentuado processo de decrepitude, rotina quase sempre cinzenta que ainda convive com uma série de inconveniências – eróticas, por exemplo. John Coetzee fala-nos de JC, entregando-nos também o seu livro de opiniões (ou seja, Opiniões Fortes).

Além disso, a técnica de escrita adoptada por Coetzee, em Diário, pode ser interpretada como uma manobra retórica que, ao confrontar o leitor com um desafio (mesmo uma dificuldade) de leitura, consegue veicular conteúdos heteróclitos, apenas assimiláveis por “diferentes partes da alma”. Opiniões Fortes está literalmente incrustado em Diário de um Mau Ano; se o primeiro tivesse sido publicado isoladamente, o tipo de leitura e abordagem requeridas seriam muitíssimo diferentes daquelas que o último exige de nós.

Sejamos claros: a disparidade entre o tipo de conteúdos articulados no topo da página, em Opiniões Fortes, e as anotações sobre a vida quotidiana de JC, Anya e Alan é tão abissal como para induzir uma esquizoidia de leitura e de assimilação do que se lê. Leia-se como e quanto isso é assim:

[Sobre a Democracia] O problema essencial da vida do Estado é o da sucessão: como assegurar que o poder passe de umas mãos para outras sem disputa armada. Em tempos tranquilos esquecemos os horrores da guerra civil, a rapidez com que ela resvala para o morticínio indiscriminado. A fábula de René Girard dos gémeos em guerra é pertinente: quanto menores são as diferenças substantivas entre as duas partes, mais assanhado é o ódio que votam uma à outra. Vem à mente a observação de Daniel Defoe sobre a luta religiosa em Inglaterra: que os partidários da igreja nacional juravam a sua aversão aos papistas e ao papado sem saberem se o papa era um homem ou um cavalo.[…]

Durante todo o tempo que ela transmitia estas informações bastante desconexas, o ar à nossa volta crepitava positivamente com uma corrente que não podia provir de mim – eu já não exsudo correntes –, e por conseguinte havia de provir dela e não se dirigir a ninguém em particular, limitando-se a ser libertada no ambiente. Acolhimento, repetiu ela, ou então talvez recursos humanos, também tinha alguma experiência em recursos humanos (fossem estes o que fossem); e mais uma vez a sombra de uma dor perpassou por mim, a dor que antes referi, de uma espécie metafísica ou pelo menos pós-física. (COETZEE, 2008, p. 13).

Se lêssemos Opiniões Fortes isoladamente, seguindo o livro maior que o incorpora horizontalmente, em três momentos separados de leitura, o primeiro dos três nos colocaria frente-a-frente com um espaço de argumentação. O livro de JC, que Coetzee recusou dar-nos separadamente, dirige-se de forma praticamente exclusiva à parte da alma que é racional. Gostaríamos de frisar que existe nessa abordagem uma afinidade emissor-receptor, na medida em que a parte racional da alma de JC se dirige à parte racional da alma do leitor de Opiniões Fortes. Claramente, esta é uma observação redutora in extremis. Porém, é metodologicamente útil para a interpretação de Diário como um todo e ainda para decifrar o papel terapêutico que Coetzee assume, quer como escritor do único dos dois livros publicado em seu nome, quer como criador de JC.

Se, ao invés, optarmos por uma leitura vertical da página de Diário de um Mau Ano, deparar-nos-emos com aquilo a que um filósofo como Jonathan Lear chamou “a spectacle of embedding” (LEAR, 2010, p. 70). Com a plasticidade dessa expressão, Lear tornou-nos quase visual o epicentro da conexão forma-conteúdo em Diário: quer dizer, lendo verticalmente o livro, observamos como a compilação das opiniões fortes de JC está incrustada, encimando-a, na apresentação das fantasias e ritos quotidianos das três personagens que a obra de Coetzee introduz.

Notável é apercebermo-nos de que, descendo na leitura da página também descemos à parte inferior da alma (e até à apresentação de partes inferiores do corpo: do corpo de Anya, do corpo de JC e do corpo de Alan). A exposição “inferior” de aspectos da vida quotidiana das três personagens é a parte expurgável de um livro de opiniões fortes sobre problemas sociais e políticos contemporâneos, abordados a partir da dimensão ética dos mesmos; contudo, não é expurgável da obra integral que John Coetzee quis escrever. Portanto, Opiniões Fortes é um (pseudo)livro escrito sob a forma e a tutela do argumento; só que essa forma mais não é do que um aspecto da unidade orgânica de matéria e forma constituída pelo livro de opiniões fortes de JC incrustado nas coisas e nos episódios que são a sua vida diária. A autoridade literária de JC, enquanto protagonista de Diário de um Mau Ano, influencia a estrutura fundamental do romance: Coetzee faz-nos ler Opiniões Fortes, e não se limita a informar-nos que a colecção de ensaios foi composta pelo seu protagonista (porque, se o fizesse, a leitura da obra resultante – sem a colecção de ensaios – não constituiria o mesmo tipo de experiência que a leitura do livro total de Coetzee efectivamente constitui).

Teremos de examinar com mais detalhe e, finalmente, ir para além dos elementos mais ou menos metodológicos e associativos até aqui fornecidos, se quisermos explicitar como a incrustação das opiniões morais fortes de JC na descrição da sua vida privada quotidiana, da de Anya e da de Alan desautoriza uma via de pensamento ético de substituição, promovendo, através da forma desconcertante que o presente texto de John Coetzee assume, pensamento ético genuíno. Para tal, teremos de desenvolver os seguintes dois movimentos: a) examinar como o modo de escrita de Diário de um Mau Ano se demarca disso a que chamámos “pensamento ético de substituição”, instanciando esse tipo de pensamento; b) analisar uma das opiniões incluídas em Opiniões Fortes, para obter, com algo próximo de um “estudo de caso”, uma confirmação de (a).

4 substituição do pensamento étiCo de substituição

Temos de detalhar a nossa análise do fenómeno “pensamento ético de substituição”. A ideia subjacente é mais facilmente expressável através de uma simplificação massiva.

Vamos supor que existe uma respeitável figura num meio académico determinado – digamos, um Professor de Problemas Éticos Contemporâneos em Yale – que passa um semestre lectivo na universidade com a qual tem um vínculo principal e um outro semestre numa universidade estrangeira; vamos aceitar que o nosso distinto académico tem uma actividade docente pendular, entre a Europa e os Estados Unidos. O distinto académico dedica a sua vida profissional a escrever artigos técnicos, colunas de opinião e textos de conferências sobre “questões e problemas éticos contemporâneos” (e não seria impossível que algum dos artigos se chamasse Fantasmas de Realismo na obra de J. M. Coetzee). Tanto nas universidades europeias como nas americanas, o docente universitário é, geralmente, bem remunerado e o nosso ilustre académico não é, de forma nenhuma, uma excepção. Dedicando-se a escrever artigos especializados, colunas de opinião, entradas de enciclopédia etc., sobre temas tão na ordem do dia como o aquecimento global, os direitos dos animais, a crise financeira, a violência de género, a pedofilia, a venda de armas nucleares ao Irão, o nosso distinto académico habituou-se há muito a viver com as coisas tal como elas são e a tirar uma série de vantagens da sua própria vantagem intelectual.

O tipo de trabalho desenvolvido pelo nosso distinto académico – certamente demasiado realista para ter sido puramente inventado – pode considerar-se uma instância de “pensamento ético de substituição”, sobretudo na medida em que o alegado conteúdo ético das suas abordagens é veiculado num esquema meramente informativo (tal como Opiniões Fortes e, muito provavelmente, este texto) sem nenhuma necessidade visível de qualquer tipo de envolvimento emocional.

Com esse exemplo diante de nós, voltemos então a Diário. O leitor familiarizado com a obra de Coetzee sabe que, ao narrar experiências de barbárie em primeira pessoa ou como testemunha, a voz do escritor (nos seus mais diversos alter-egos e pseudónimos) pode ser morbidamente apática. Porém, como adiante veremos, é justamente essa estratégia discursiva que lhe fornece um antídoto eficaz contra qualquer forma concebível de pensamento ético de substituição. Diário de um Mau Ano expõe-nos a um assunto que é, em si mesmo, um problema ético: a intromissão de formas de pensamento ético de substituição numa obra literária que pretende tratar questões éticas autenticamente. Sobretudo através da inclusão de Opiniões Fortes no livro total, a técnica literária específica usada por Coetzee nesse romance permitelhe mostrar como é difícil para um texto literário que quer discutir questões éticas e veicular pensamento ético escapar à heresia moral do pensamento ético de substituição – algo que parece acontecer assim que um volume de ensaios de opinião sobre temas éticos contemporâneos ganha corpo. JC sucumbiu à heresia do pensamento ético de substituição e é “um eminente escritor sulafricano”, nas palavras do próprio Coetzee. Que garantias temos nós de que J. M. Coetzee não caia na mesma armadilha, ou que não tenha já caído?

Todo o trabalho de Coetzee – desde o primeiro romance, publicado em 1974, Dusklands[7] – incorpora uma componente autorremissiva pesada. Nos seus livros mais recentes, essa componente é flagrante: para além da presente escolha, vemo-la em Verão (COETZEE, 2010), onde o escritor lança mão de uma outra técnica para substituir o pensamento ético de substituição. Se a técnica de despistagem de formas de pensamento ético de substituição em Diário é a tripartição das vozes narrativas – com os matizes e gradações de formalidade que temos vindo a explorar –, em Verão, o escritor serve-se de uma reportagem post-mortem sobre si próprio. O escritor John Coetzee morreu recentemente e todo o livro, que parte dessa informação, é um conjunto de relatos pessoais sobre porções da sua vida, feitos por figuras tão díspares como uma ex-amante, uma vizinha ou a mãe de uma ex-aluna na Cidade do Cabo.

Na medida em que técnicas literárias autorremissivas (potencialmente perigosas), amplamente utilizadas por Coetzee, na sua obra novelística como um todo, parecem constituir, de facto, um dos seus trunfos na desconstrução de pensamento ético de substituição, e na medida em que essa desconstrução e subsequente eliminação são tão importantes para nós, como encontrar formas viáveis de as efectivar – em Filosofia como em Literatura – teremos de concentrar a nossa própria análise em alguns dos detalhes dessas técnicas, aplicando-as posteriormente aos resultados dessa investigação filosófica. Tendo já explorado uma manobra característica da técnica desmistificadora em Diário – a sobreposição complexa das identidades literárias de Coetzee e JC –, focaremos de seguida uma outra técnica ético-literária presente na obra: a apresentação de JC como um intelectual comprometido com determinados pontos de vista sociais e políticos facilmente atribuíveis ao próprio Coetzee.

5 a dialéCtiCa da Responsabilidade

Existe, no “spectacle of embedding” que é Diário de um Mau Ano, uma opinião forte intitulada “Sobre a Vergonha Nacional” – uma secção do livro Opiniões Fortes, de JC. Nessa secção, JC escreveu o seguinte:

Um artigo numa New Yorker recente torna claro como água que a Administração americana, com Richard Cheney à cabeça, não só sanciona a tortura dos prisioneiros feitos na chamada guerra ao terrorismo, como se empenha de todas as maneiras em subverter as leis e convenções que interditam a tortura. […] A sua falta de vergonha é absolutamente extraordinária. Os seus desmentidos são menos que tíbios. A distinção que os seus advogados contratados estabelecem entre a tortura e a coerção é patentemente insincera, uma simples formalidade. No novo ordenamento que criámos, dizem eles implicitamente, os velhos poderes da vergonha foram abolidos. A aversão que vocês possam sentir não conta para nada. Vocês não nos podem tocar; somos demasiado poderosos.

Demóstenes: Enquanto o escravo apenas teme a dor, aquilo que o homem livre mais teme é a vergonha. Se aceitarmos a verdade daquilo que a New Yorker sustenta, a questão para os americanos individuais torna-se uma questão moral: como, perante esta vergonha a que estou sujeito, hei-de comportar-me? Como salvo eu a minha honra? […] A desonra não respeita distinções precisas. A desonra abate-se sobre os ombros da pessoa e, uma vez que se abate, não há argumentação inteligente capaz de a dissipar. (COETZEE, 2008, p. 49).

O objectivo desta reflexão – tanto a nossa reflexão aqui, como a de JC, na passagem citada – é encontrar a forma de articular o problema ético em questão nesse excerto, através daquilo a que, seguindo Jonathan Lear, chamámos uma “dialéctica da responsabilidade”. Dentro do próprio livro de crónicas, Opiniões Fortes, encontramos uma “divisão do processo explicativo” entre uma posição teórica mais geral (uma opinião forte sobre “a Vergonha Nacional”) e uma ilustração dessa posição (exemplos concretos de tortura na chamada Guerra ao Terror, inaugurada na era Bush e ainda em curso) na opinião forte sob análise. Para além desse aspecto, e na medida em que estamos familiarizados com o trabalho de Coetzee (na ficção como no registo ensaístico e em entrevistas) e, bem assim, com algumas das suas posições públicas sobre Política Internacional, podemos, com bastante segurança, atribuir a posição acima citada sobre decretos governamentais americanos na chamada Guerra ao Terror, aqui aparentemente atribuída a JC, ao próprio escritor de Diário. Na quarta rubrica, em Opiniões Fortes, JC analisara uma posição políticomoral de Maquiavel, defendida no Príncipe, a que chamou ‘Necessità’:

A necessidade, Necessità, é o princípio orientador de Maquiavel. A posição pré-maquiavélica era a da supremacia da lei moral. Se acontecesse a lei moral ser por vezes infringida, era uma infelicidade, mas no fim de contas os governantes eram apenas humanos. A nova posição, a maquiavélica, é que a infracção à lei se justifica quando é necessária. Assim se inaugura o dualismo da cultura política moderna, que defende simultaneamente padrões de valores absolutos e relativos. O Estado moderno apela à moralidade, à religião e à lei natural como fundamentos ideológicos da sua existência. Ao mesmo tempo está pronto a infringir qualquer delas ou todas no interesse da sua própria conservação. Maquiavel não nega que as exigências que a moralidade nos coloca sejam absolutas. Ao mesmo tempo afirma que no interesse do Estado o governante “não raro se vê constrangido [necessitato] a agir contra a sua palavra, contra a caridade, a humanidade e a religião”. (COETZEE, 2008, p. 26).

Uma leitura plausível da ideia de Maquiavel aqui exposta dá-nos, por conseguinte, a noção de que não existe tal coisa como “a vergonha nacional” (menos ainda uma vergonha assimilada pela mera cidadania), ao contrário do que JC contende – ainda que a citação do Príncipe, nessa secção, seja aparentemente atribuída por Coetzee a JC – porque há que fazer aquilo que for necessário no interesse da protecção e preservação do Estado. Ora, acontece que uma franja social importante, a qual JC denomina “intelectuais liberais”, pretende rejeitar, quer a Necessità de Maquiavel, quer a assimilação da vergonha por cidadania, defendida por JC nessa opinião forte. JC refere-se aqui à administração Bush e ao desempenho dessa franja na sociedade norteamericana pós-2001, mas, computando os aspectos estruturais da sua crítica e o apoio contrastante nas ideias de Maquiavel, essa casuística deixa-se facilmente converter num modelo social abstracto em que a responsabilidade pessoal é negada e a culpa dos crimes de guerra (ou outros), atribuída exclusivamente aos núcleos de decisão dos altos órgãos de um Estado. Os intelectuais liberais pretendem demarcar-se de ambas as posições, por uma argumentação racional e um mecanismo de autojustificação racionalizante.

O processo a que chamámos “dialéctica da responsabilidade” visa à desconstrução dessa postura específica para o leitor de livro e pseudolivro (ou seja, Diário e Opiniões Fortes) e vai estar operante na nossa própria interpretação do argumento de JC sobre a Vergonha Nacional. Uma vez que esse argumento é facilmente atribuível ao próprio Coetzee, a análise subsequente explora a função dramática primitiva do próprio JC (uma criação literária do escritor real) em relação ao primeiro.

JC descreve o mecanismo de autojustificação racionalizante usado por esse grupo anónimo de intelectuais liberais, dividindo-o em três momentos: 1) uma adscrição de culpa vergonhosa aos líderes políticos do país, no momento em que JC afirma haver “vergonha nacional”; 2) uma demarcação em bloco das posições adoptadas e acções praticadas pelos mesmos e 3) e uma rejeição do dualismo moral e da cisão teoria/prática, inerentes à Necessità de Maquiavel.

O grupo social a que JC chama intelectuais liberais quer activamente demarcar-se, tanto da ideia estruturante da Necessità como da imputação de Vergonha Nacional, precisamente porque ambas as posições o implicam. Há algo, porém, que os indivíduos que compõem esse grupo não veem – mormente porque não podem ver –, e é o facto de que a culpa vergonhosa desce como uma maldição (a curse) e não pode ser extraída por um argumento. Os intelectuais liberais não podem ver esse fenómeno, porque querem descartar o seu envolvimento na vergonha nacional por mecanismos lógicos de justificação.

Nesse ponto da argumentação de JC, na opinião forte supracitada, “Sobre a Vergonha Nacional”, o leitor arguto de Diário de um Mau Ano vaise paulatinamente apercebendo que é sobre si próprio e para si próprio que JC está a falar, ao falar de intelectuais liberais, descrevendo o seu comportamento e a estrutura da sua tomada de posição face a esse problema político e moral concreto. E, ao mesmo tempo que essa manobra é reconhecida, no segundo movimento de distanciação, o leitor também reconhece que JC é apenas um títere da imaginação de Coetzee. Ainda que Coetzee nos tenha dado mais do que Opiniões Fortes, também escreveu Opiniões Fortes, e só pode ser responsabilizado por qualquer “posição política forte” que aí seja exposta – ainda que, por vezes, evidentemente, Coetzee se queixe, nas secções inferiores da página de Diário, da decrepitude, misoginia e possível iminente senilidade de JC, sem nunca se identificar com o velho escritor sul-africano (diluindo a sua própria voz na justaposição da identidade literária partilhada com JC e deixando tudo mais simples para si próprio e mais difícil para nós, leitores). No entanto, e apesar dessa inevitável frustração causada pelo efeito terapêutico da dialéctica da responsabilidade, no seu cume de revelação, o leitor tem de assumir igualmente que foi ele que decidiu abrir o romance e lê-lo. (E filósofos como Ray Gaita (2014) continuam a insistir, em entrevistas públicas recentes, que “confiam absolutamente em Coetzee”!)

A dialéctica da responsabilidade actua sobre o leitor de Diário, portanto, através de um mecanismo de identificação. No ponto do livro de onde a citação acima é extraída, é novamente Coetzee que pretende fazer-nos ver que há algo extraordinariamente inconsistente na posição desses intelectuais liberais. Concretamente: como podem “eles” opor-se tanto à Necessità de Maquiavel, enquanto tese, como à assimilação da vergonha por mera cidadania, quando as duas posições representam ideias contraditórias, mas complementares, as quais exaurem um domínio de posições inteligíveis? A inconsistência autojustificante desses intelectuais liberais ganha visibilidade, porque se torna paulatinamente óbvio que é necessário escolher uma de duas opções:

Ou (1) não existe tal coisa como a vergonha nacional, porque há que fazer aquilo que for necessário em nome dos interesses do Estado (esta é a Necessità de Maquiavel); ou (2) a vergonha nacional existe em virtude da mera cidadania, e não pertence exclusivamente aos líderes políticos actuais, na medida em que desce sobre o indivíduo por mecanismos não-racionais, a remoção da mesma, não sendo adquirida por mecanismos racionais, tão pouco é extraível por argumentos autojustificativos, e porque esses líderes foram eleitos por voto público. Acusar esses líderes políticos de “comportamento vergonhoso” é já experimentar “a maldição dessa vergonha” – para usar os termos de Coetzee (2008, p. 48).

Todavia, tal inconsistência é uma inconsistência minha, leitor inteligente e bem informado de Diário de um Mau Ano. Somos perfeitamente capazes de entender os meandros estruturais dessa inconsistência e inclusive detectar o cinismo desresponsabilizante que lhe é inerente, conquanto contemos com o bode expiatório da terceira pessoa. Os alvos da crítica de JC são “eles”, esses intelectuais liberais.

Só mediante a estratégia formal do uso da terceira pessoa para falar dessa franja social que JC apelida de “intelectuais liberais” é que Coetzee consegue transmitir o conteúdo que quer transmitir de forma eficaz, removendo o véu de cegueira que cobria os olhos do intelectual liberal que está a ler Diário. A dialéctica da responsabilidade é, então, o processo de leitura pelo qual chegamos a essa remoção. E é mais do que plausível que, no final da leitura de Diário, estejamos mais dispostos a chamar a essa estratégia formal um “subterfúgio formal”, porque nos sentimos intelectualmente nus e duplamente ludibriados – porque não gostamos da posição dos intelectuais liberais, que não é “deles”, porque é nossa, e não gostamos do modo como a forma do texto de Coetzee nos levou a crer que estava a falar-nos de um grupo abstracto de pessoas, o qual só pode defender posições fortes a partir de uma cegueira ao seu próprio ponto de vista, quando estava a falar de mim, leitor.

A dialéctica da responsabilidade – a totalidade desse complexo processo de desmistificação – funciona como uma ponte entre o estranho método de escrita adoptado por Coetzee, nesse livro, e o acto de veiculação de pensamento ético (enquanto tese positiva sobre a forma de vida ética e estratégia para a leitura desse livro). É só através desse complexo mecanismo dialéctico que o leitor de Diário chega a entender, quer o seu espaço no plano de razões que o livro encarna – apercebendo-se de que é parte integral desse espaço e não um mero leitor-espectador –, quer a forma coezteeana de substituir o pensamento ético de substituição (único “anti modelo” disponível para qualquer leitor que seja mero espectador) por uma atitude ética directa, mas difícil: o compromisso de decidir como devo viver e comportar-me, dada essa vergonha nacional que é minha ab initio.

A esta altura, porém, pode surgir um contra-argumento forte: por que razão Coetzee se terá sentido “obrigado” a usar JC para educar moralmente os seus leitores, recusando sistematicamente esclarecer a sua relação com esse personagem e com as posições por ele defendidas? Não é isso, no fim de contas, um puro abuso dos truques retóricos sofísticos contra os quais Platão nos pôs de sobreaviso, há quase dois mil e quinhentos anos? Por outras palavras, não será Coetzee tão pouco escrupuloso como qualquer intelectual liberal que o seu livro queira denegrir?

6 metodologia Revelada

O mais provável é que, depois desta extensa exposição, os leitores deste ensaio não estejam dispostos a aceitar a presente leitura de Diário de um Mau Ano; para todos os efeitos, esta é apenas mais uma leitura filosófica do trabalho literário de Coetzee, susceptível a críticas de reducionismo ou esquematização teórica empobrecedora. Dito isso, duas características estilísticas da proza coetzeana merecem ser enfatizadas na presente leitura, as quais, dado o respectivo teor meramente descritivo, não comprometem o leitor do presente ensaio com a interpretação aqui apresentada. Quer nas secções “teóricas” ou políticas do livro, que Coetzee quer atribuir a JC, quer nas secções inferiores da página de Diário, que não se importa de assumir como suas, o estilo literário de J.M. Coetzee é extremamente claro, descritivo – desapaixonado. De facto, tendo nessa obra optado pela tripartição da página do livro e atestando as dificuldades de leitura que esse efeito gráfico provoca, a sua prosa tem de ser simples e descritiva – sob pena de perder ou, no mínimo, dispersar a atenção do leitor, ver-se incapaz de fazer a narrativa progredir e estabelecer importantes interpenetrações (as quais, sugerimos, o escritor quer mesmo estabelecer, pelas razões aduzidas) entre as diferentes secções da página.

Por outro lado, a táctica narrativa da página subdividida e a correspondente adscrição de cada secção a diferentes vozes literárias parecem indicar uma plurivocidade na identidade literária do autor, assumida desde a primeira frase. A estrutura triádica da página é totalmente não-convencional e o puzzle sobre as diferenças e sobreposições entre a identidade artística e pessoal de John Coetzee e JC é algo a que somos expostos no próprio gesto de abertura desse romance.

Os filósofos actualmente a trabalhar sobre a obra de Coetzee (veja-se nota 1) são sistematicamente atraídos pela sua prosa e as suas histórias, na medida em que estas contêm puzzles identitários e uma incrível complexidade mascarada por um estilo seco e compacto que a filosofia gosta de desmontar. A presente leitura desse romance de Coetzee, seja ou não em última instância fecunda, pode também ser vista como uma resposta à miríade de puzzles retóricos que analisámos anteriormente. A complexidade dessa leitura interpretativa, portanto, reflecte (directa ou obliquamente) a complexidade da estrutura do próprio livro – um estratagema formal com o qual Coetzee habitualmente provoca respostas filosóficas.

Stephen Mulhall (2009, 2013) descreve a obra coetzeana como “realista modernista”, quer devido à complexa estrutura formal que temos vindo a analisar, quer por uma detalhada metarreflexão sobre a história e a evolução do realismo formal no romance moderno até ao advento modernista, que alguns dos textos de Coetzee explicitamente desenvolvem. Mulhall vai ainda mais longe nas respectivas análises dessa transição (entre projectos realistas e modernistas) na História da Literatura, alegando que um diálogo e conflito paralelos – entre realismo e modernismo, seja na técnica formal, seja nas temáticas tratadas – são intrínsecos tanto à História do Romance Moderno como à (historicamente paralela) história da História da Filosofia Moderna e Contemporânea. Em The Wounded Animal, encontramos a seguinte reflexão:

A história do romance desde Defoe, Richardson e Sterne pode ser inteiramente escrita em termos das formas como os novelistas repetidamente submeteram a herança das convenções realistas a um questionamento crítico, por forma a recrear uma nova impressão de realidade nos respectivos leitores (em grande medida encorajando esses leitores a verem anteriores usos convencionais para representar o real como meramente convencionais, em contraste com os seus próprios, bem mais convincentes). […] Não é apenas o caso de que o romance tenha uma relação de canibalismo com outros géneros literários; desde o início, os seus praticantes desenvolveram uma relação edipiana com exemplos prévios na própria tradição do romance, e bem assim com as convenções prévias dentro das quais necessariamente operam. (MULHALL, 2009, p. 145).

O livro de Mulhall explora o mesmo tipo de “luta edipiana” que podemos encontrar nos projectos pioneiros da Filosofia Moderna – de Bacon, Descartes, Locke, Berkeley, Hume e Kant –, na sua espectacular luta contra argumentos de autoridade e as forças da tradição, religiosa e filosófica.

Seguindo esse fio condutor e tendo exposto anteriormente o complexo processo da dialéctica da responsabilidade em Diário de um Mau Ano, lado a lado com um modelo interpretativo para a complicada estrutura tripartida da página do livro, teremos agora de aplicar os resultados da nossa própria investigação aos modelos filosóficos de onde a mesma emergiu – para que o nosso próprio esforço interpretativo não colapse no terreno árido de mais uma tentativa de imposição (violenta) de um modelo filosófico sobre o texto de um autor importante da Literatura Contemporânea, destituindo o original da sua vitalidade primordial. A questão fundamental, neste ponto da presente análise, poderá colocar-se da seguinte forma: projectos filosóficos recentes debruçaram-se sobre projectos literários como o de Coetzee e, reflectindo sobre estes, notaram que podiam comentá-los de diversas formas, sem invocar prejuízos de tipo platónico. Mas quem examina esses esforços filosóficos que pretendem reestabelecer os escritores na cidadela filosófica? Escritores como Coetzee tendem a ser extremamente críticos e mordazes ao fazê-lo – como o tratamento de JC em Diário provou. Não haverá, talvez, uma abordagem mais congenial que possamos seguir?

7 uma teRCeiRa voz

Um terceiro conversante nesse diálogo reassumido entre escritores e filósofos contemporâneos, até aqui negligenciado, é o crítico literário[8]. É preciso corrigir essa omissão. No seu livro de 2005 – The English Novel: An Introduction –, Terry Eagleton (2005), numa abordagem marcadamente marxista, insiste na importância da ascensão flagrante da classe média ao longo do século XVIII europeu como factor de impacto no romance moderno. Eagleton defende que é o processo dialéctico da classe média numa Europa definida por estratificações sociais rígidas que serve de motivo real para a elaboração da intriga no romance moderno europeu. E justifica o eixo da sua leitura crítica do cânone do romance moderno em língua Inglesa, desde Defoe até Virginia Woolf (o livro não se limita a defender um modelo histórico-dialéctico para a interpretação da evolução do género literário sob análise, mas também segue a evolução histórica do romance moderno inglês), com um modelo essencialmente sociológico. A lógica interna desse modelo (que não temos que aceitar, obviamente) é simples: a emergência e a ascensão social da classe média caracterizam-se por um protagonismo dos valores liberais da autodeterminação e prosperidade material do indivíduo, um agente social impaciente com mitos românticos e abstracções teóricas, e os mais distintos representantes literários dessa classe projectaram na estrutura dos seus romances os valores essenciais da classe de onde provêm. Isto é historicamente comprovável em simples notas biográficas dos escritores modernos cuja obra Eagleton discute. Para Terry Eagleton, a prosa realista da grande maioria dos romancistas de língua inglesa a escreverem (e viverem) no século XVIII é uma projecção escrita dos valores pragmáticos de uma nova ordem social. Se aceitarmos que o propósito cimeiro do romance realista moderno é fazer justiça a um conjunto de factores sociais, e à forma de vida em que uma nova ordem social encontra expressão, deveríamos também aceitar que essa projecção literária de um conjunto de valores – exercida num meio expressivo fundamentalmente convencional, uma língua natural – é o verdadeiro propósito da prosa realista (do século XVIII até Coetzee). O veículo linguístico que possibilita a narrativa realista deve, pois, ser entendido como um meio fenomenológico de mostração de um conjunto de factos e valores sociais na sua dinâmica real.

Quer na introdução ao seu estudo sobre o romance moderno inglês, quer na discussão crítica e historicamente articulada do cânone, Eagleton usa um modelo sociodialéctico para explicar a técnica do realismo formal. De acordo com Terry Eagleton, o estilo realista, isento de barroquismos e malabarismos linguísticos, que encontramos no romance do século XVIII, é tanto um produto de uma reorganização social essencialmente marcada pelos valores liberais da classe média como os mais difíceis experimentos modernistas do princípio do século XX são um produto de um conjunto de colapsos sociais e políticos que conduzirão ao Holocausto. Eagleton acredita que, se o romance moderno tem, efectivamente, esse potencial representativo, o mesmo poderá se afirmar da ordem social cuja dialéctica evolutiva se pode traçar num instrumento linguístico essencialmente convencional.

Por contraste, Stephen Mulhall – em dois ensaios no seu livro mais recente, The Self and Its Shadows (MULHALL, 2013) e num longo capítulo em The Wounded Animal (MULHALL, 2009) – considera a tensão entre realismo e modernismo na obra de Coetzee, detectando na articulação entre ambas formas expressivas tal como analisada anteriormente uma espécie de dinâmica “convencionalista” de autossuperação de estilos literários herdados da tradição. Correndo o risco de simplificar demasiado o modelo que Mulhall oferece para explicar a tensão realismo-modernismo, no romance de J.M. Coetzee – algo que vai servir aos propósitos da conclusão que queremos extrair dele –, esquematizaríamos esse modelo da seguinte forma. Mulhall insiste na importância de uma luta contínua (e falhada) dentro da própria prosa literária do romance moderno, desde a sua origem, defendendo que o “motor evolutivo” da história do romance é uma dinâmica de oposição a estruturas literárias convencionais herdadas em nome de uma fidelidade aos “factos”. Mas como esses supostos factos são, eles próprios, um produto da imaginação literária (e, enquanto criações linguísticas, são especialmente convencionais), o romance realista estaria logicamente condenado a infligir nos seus epígonos o mesmo tipo de tensão edipiana (que referimos anteriormente) que herda dos seus antecessores – este é o ponto material da citação de The Wounded Animal acima.

Essa dialéctica de autossuperação se tornaria mais e mais visível com a paulatina “descoberta”, operada pelos escritores da tradição modernista, de que a prosa literária pode (e talvez deva) reflectir sobre si própria em vários níveis de metarreferencialidade e, inclusive, que o estilo aparentemente transparente da técnica realista só pôde ganhar corpo num meio expressivo eminentemente não-natural, o qual deve ser reconhecido como tal. De acordo com essa proposta, o trabalho literário de Coetzee – mais ainda pelo facto de que o escritor é também um reconhecido crítico literário – herdaria de forma substancial esse design de autossuperação.

O potencial de reflexão exposto pela inultrapassável barreira que separa a marca escrita deixada pelo escritor realista do suposto conjunto de factos sociais que a última deveria poder reflectir como num espelho fornece ao escritor na tradição modernista uma via de autoconsciencialização literária do facto da própria prosa que herda da tradição literária que o precede, e essa via pode ser literariamente apropriada como um instrumento crítico sobre o potencial e os limites representativos da própria prosa literária. Esse movimento, por sua vez, requere uma “dobra de reflexão” da prosa literária sobre si mesma, relativamente às suas próprias condições de possibilidade enquanto instrumento expressivo convencional – uma posição abstracta que analisámos com mais concretude, no enquadramento modernista que o Coetzee de Diário de um Mau Ano projecta na obra como um todo, ao reflectir sobre as condições de produção de Opiniões Fortes dentro do primeiro.

 8 modelos autossubveRsivos e suspensão inConClusiva 

A que conclusões nos trouxe a presente leitura de Coetzee até este ponto? Começámos esta exposição mencionando uma longa conversa, actualmente em curso, entre filósofos e escritores literários (especialmente romancistas e, muito especificamente, com John Coetzee), a qual parece finalmente resgatar os últimos do exílio platónico. (É também importante mencionar que esta é sobretudo uma preocupação filosófica, uma vez que os escritores e poetas idólatras nunca se importaram grandemente com a sua condição de exilados de uma república particularmente despótica). Num segundo momento, analisámos um exemplo muito concreto, na discussão contemporânea, de dois obstáculos colocados por Platão contra a inclusão dos poetas na República filosófica: o primeiro é um temor de que a Poesia, dado o seu carácter idólatra, nos afaste da virtude (aqui temos de recordar que, nos dias de Platão, não havia em Atenas um “novelista” tão capaz como ele próprio, pelo que as suas críticas tinham que ser desviadas). O segundo problema era uma oposição ao excesso de imagens (eidola) usadas pelo Poeta, as quais, dirigidas exclusivamente à parte apetitiva da alma, deixariam a nossa faculdade racional faminta de argumentos.

Acontece que Coetzee decidiu inverter esses dois obstáculos (e não apenas em Diário de um Mau Ano[9]), virando as duas objecções filosóficas contra o próprio filósofo da sua história e inventando um complicado caminho de retorno do mecanismo racionalizante dos argumentos defendidos por JC, através de uma atenção minuciosa à inconsistência estrutural dos mesmos. O truque literário de criar um alter-ego filosófico que só publica “opiniões fortes” e impor-se como o autor de um livro mais amplo em que, no final, o próprio JC é resgatado do isolamento das suas opiniões, permite a Coetzee jogar o papel de um terapeuta com um grande campo de visão que nos expõe às limitações de uma estrutura argumentativa, simulando aceitá-la.

Todavia, uma última questão subsiste. Quem lê e manuseia os próprios poderes terapêuticos de Coetzee, provando que foi assim curado da cegueira argumentativa do diagnóstico? Noutras palavras: será concebível que as acusações que Coetzee lança aos filósofos sejam, não apenas respondidas – por quem sente que se deve defender delas – mas também incorporadas numa nova forma de fazer (e escrever) Filosofia? Nos pontos anteriores, deixámos implícito que a resposta é “sim”; porém, ainda não explicámos exactamente de que forma. Mais uma vez teremos de insistir no facto de que o próprio Coetzee escreve os seus romances – incorporando neles as suas críticas e sátiras filosóficas – de uma determinada maneira: o seu estilo é sóbrio, compacto, autocontido. Para além das conotações do seu próprio estilo literário, o autor ainda reflecte sobre as mesmas, nos seus romances, de forma bastante insistente – o que levou um filósofo como Mulhall a descrever esse projecto como “realista modernista”. E como podemos nós justificar essa terminologia filosófica que assim descreve o projecto de Coetzee?

No ponto anterior desta reflexão, apresentámos esquematicamente dois modelos explicativos para a evolução do realismo formal até à implosão modernista de todas as formas conhecidas da linearidade representativa da prosa, criando uma metaficção teórica sobre o tipo de registo literário usado para “representar” histórias de personagens não-existentes, o qual ainda aspira a fazer justiça a um conjunto de factos sociais e políticos observáveis. Nomenclaturas foram adscritas aos dois modelos que exploram a dialéctica realismo/modernismo na história do romance, e insistiu-se que o modelo proposto por Eagleton é essencialmente sociodialéctico, enquanto o de Mulhall enfatiza uma autossuperação consciente dos constrangimentos ou convenções formais herdados na história de um género literário[10]. E agora queremos enfatizar que, na verdade, nenhum dos dois modelos pode funcionar com exclusividade enquanto tentativa de apreciar mutações no desenvolvimento do realismo formal até ao entusiasmo modernista dos mais destacados projectos literários da primeira metade do século XX – da mesma maneira que nenhum dos dois pode, isoladamente, esgotar uma apreciação crítica do tipo de enquadramento modernista de um “romance realista de opiniões fortes” dentro de um livro como Diário de um Mau Ano.

Mesmo se, com Eagleton, aceitarmos o ponto de vista históricodialéctico da emergência e ascensão da classe média europeia, ao longo do século XVIII, lado a lado com a emergência de uma impressionante geração de grandes mestres da técnica realista, os acontecimentos calamitosos do século XX – sem excluir o apartheid sul-africano da lista de horrores – são tão desconcertantes, que os desenvolvimentos listados num modelo explicativo de tipo socioeconómico (ou de luta de classes) terminam por ser eles próprios subsumidos numa luta contra as convenções literárias herdadas que o modelo “convencionalista” acentua. Superar a estagnação social significa denunciar as convenções inerentes a esse imobilismo. Por tudo isso, e pela incompreensibilidade do processo histórico real para qualquer cabeça menos lógico-dialéctica do que a de Hegel, a reflexão sobre as mais-valias explicativas de um modelo não é dissociável de uma reflexão paralela sobre as mais-valias (e incompletudes) do outro.

Portanto, nenhum modelo sociológico pode, por si só, explicar a aventura modernista do romance europeu, desde a última década do século XIX até ao final da Segunda Guerra Mundial (também em termos de datação, os especialistas divergem enormemente), dispensando o tipo de oposição edipiana com e contra um conjunto de convenções literárias herdadas da tradição, as quais se tornaram incompletas ou totalmente obsoletas enquanto veículos expressivos da realidade tal como a conhecemos. À medida que os desenvolvimentos sociais relevantes são mais e mais caracterizados por termos como “desestruturação”, “quebra de unidade” e de valor, a representação (ou apresentação) literária dos mesmos torna-se inseparável de uma desmontagem

pós-modernista em literatura, da dinâmica de inovação e questionamento violento de verdades estabelecidas que constitui o principal motor do empreendimento modernista. Quando aplicam o segundo termo da dicotomia a um projecto filosófico, Singer e Leist tendem a focar exclusivamente uma espécie de perspectivismo relativista que, sugerem, se deixaria facilmente autorrefutar, quando confrontado com a questão do lugar metafisico ou discursivo a partir do qual a premissa relativista generalizante é enunciada.

de convenções literárias inadequadas – algo que a estranha estrutura triádica da página de Diário e a presença de dois escritores no teatro da mesma atesta.

À análise prévia do significado e relevância da “página partida” de Diário devemos ainda acrescentar as substanciais diferenças metodológicas que separam o trabalho de JC do de John Coetzee, as quais servem ao escritor real como formas de indução terapêutica dos leitores do seu livro. As citações extraídas de Opiniões Fortes e da narrativa na base da página do livro revelam a diferença abismal que separa as várias vozes literárias em jogo – Coetzee, o testamento público de JC e o seu diário privado. A voz pública de JC é tão informativa e criticamente-opinativa como se esperaria da de qualquer escritor de crónicas jornalísticas e, nessa voz, JC nunca se permite fugas a um modelo argumentativo claro. É por isso que Opiniões Fortes seria adequadamente descrito como um ensaio realista sobre problemas éticos e políticos contemporâneos. Nas secções inferiores da página, porém – onde também podemos ler como o livro de opiniões foi produzido –, Coetzee afasta-se das formas de argumento expectáveis num ensaio que compila colunas de opinião social, servindo-se de suspensões, onomatopeias e uma linguagem marcadamente emotiva. Parecenos claro que Coetzee quer que os seus leitores entendam que (e entendam como) um trabalho literário maximamente compreensivo não pode meramente viver da prosa politicamente realista de JC. E a forma que o escritor real encontra de nos mostrar isso, nessa obra, como vimos, é através da incrustação de Opiniões Fortes “no topo” do seu livro como um todo.

Mas, se essa incrustação é um dos requisitos fundamentais para que esse projecto realista-modernista, nessa fase da sua evolução (sabemos como evolui depois de Diário e referimos alguns exemplos), possa comunicar aquilo que quer comunicar aos seus leitores, e se um dos resultados práticos dessa manobra modernista é a dialéctica da responsabilidade e a descoberta permitida pela mesma do verdadeiro lugar do leitor de Diário, por meio da recusa de o saciar com um mero ensaio de opiniões como Opiniões Fortes – justamente porque esse ensaio não consegue, por si só, cumprir a promessa comunicativa que se propôs – como poderá um ensaio explicativo sobre Diário de um Mau Ano e as subtilezas modernistas a encontrar, nesse romance, escapar à heresia do pensamento ético de substituição? Ou seja: como pode uma teoria plausível sobre a noção de pensamento ético de substituição não ser ela própria uma instância desse tipo de simulação ética, sobretudo se uma das falhas típicas dessa simulação é a respectiva plausibilidade e força de persuasão? Ao fim e ao cabo, aquilo que a descoberta de um bom modelo explicativo – para qualquer fenómeno – primeiramente nos oferece é uma desculpa bem fundamentada para parar de pensar no fenómeno explicado. Assumimos que já sabemos do que se trata e avançamos para indagações incorporadoras dessa informação.

Todavia, para Coetzee, como vimos, tanto a teoria como a nossa aceitação da mesma são, inevitavelmente, formas de pensamento ético de substituição. Podemos, por conseguinte, suspeitar que talvez este nosso texto devesse ter sido escrito em três camadas, instanciando diferentes vozes, se queria prevenir a intrusão da simulação de pensamento ético. Mas, então, para que teria servido escrevê-lo – a não ser para, num exercício borgiano, reescrever o original, talvez denegrindo a sua reputação?

De todo em todo, há algo que possamos fazer, quando o alvo da nossa investigação recai sobre a mesma, bloqueando-a? Talvez devamos focar com mais detalhe o que dizem os filósofos com quem temos vindo a dialogar sobre as armadilhas deixadas por escritores que, como Coetzee, não querem expulsar da cidadela uma segunda vez.

Mulhall é um bom exemplo. Tanto em The Wounded Animal – especialmente naqueles capítulos do livro onde explora em detalhe a sobreposição perigosa das identidades de Costello e Coetzee, no romance Elizabeth Costello – e no mais recente artigo “Countering the Ballad of Co-dependency”, Mulhall (2013) explora várias possibilidades para encenar (ou produzir, em sentido fílmico) o encontro literário entre realismo e modernismo na história da (também novelista) Elizabeth Costello, relatado no romance com o mesmo nome (e é agora evidente que o mesmo pode ser feito para Diário de um Mau Ano). Mas essa encenação não é meramente teórica, sobretudo porque a prosa filosófica de Mulhall incorpora aquilo que defende, constituindo-se assim como um novo candidato para uma superação de formas de pensamento ético de substituição. Na medida em que não duplica o texto (ou a forma dos textos) de Coetzee, a leitura filosófica de Mulhall sobre a ficção de Coetzee pode, pelo menos aparentemente, evitar a acusação de um inconsistente – ou desesperado – apelo à autoridade do escritor-romancista, algo que o teria tornado irresponsável na linha do intelectual liberal introduzido na trama de Diário.

Entretanto, Mulhall escolheu focar a sua leitura em Elizabeth Costello. Os leitores desse romance são confrontados com eventos que ocorrem, quer na vida académica da protagonista, quer na sua vida familiar. A romancista Elizabeth Costello, obviamente, tal como JC, Diário de um Mau Ano ou Opiniões Fortes, é mais um produto da imaginação literária de John Coetzee.

Lendo Elizabeth Costello (o romance) ficamos a conhecer descrições da decrepitude física da protagonista, radicalmente contrastadas com o testemunho do prodígio da sua imaginação literária, a sua inventiva recreação da própria história do romance moderno, supostamente aduzida num romance de Costello intitulado The House on Eccles Street (uma peça literária, a que não temos qualquer acesso, sobre Molly Bloom), num conjunto de palestras que Coetzee lhe atribui (as Gates Lectures) e em conversas privadas de Elizabeth com John, o seu filho. No próprio conjunto de palestras que Coetzee lhe atribui, esta outra novelista inventada discute uma história de Kafka (Report to an Academy), cujo estanho ponto de partida – um macaco a falar para uma audiência de humanos –, assume, talvez se pareça à sua situação actual.

O conjunto de episódios sobre a vida de Elizabeth Costello, que Coetzee reuniu num livro depois de vários anos da primeira apresentação pública dos mesmos, nas Tanner Lectures, de 1997 (COETZEE, 1999), não constituem uma teoria sobre a evolução realista do realismo formal como modelo literário até à aventura modernista do Ulisses de Joyce, por exemplo. Da mesma maneira, a estranha performance modernista da inclusão de um livro de crónicas dentro de um livro maior e o jogo literário em torno da identidade dos autores de ambos não nos oferecem nenhuma teoria sobre a evolução das respectivas técnicas literárias, nem sequer sobre a evolução de livro e pseudolivro (i.e., Diário de um Mau Ano e Opiniões Fortes) enquanto instâncias de cada uma das técnicas formais.

Ao invés, Elizabeth Costello (o romance) encena essa evolução dentro da sua própria trama, em grande medida pela inclusão de estranhas discussões teóricas que acontecem durante a visita de Costello à família de John e à universidade que patrocina as palestras. O que acontece nessa visita (tanto as palestras como os encontros que as mesmas proporcionam) é o material de um romance escrito num registo extremamente realista que, num gesto modernista, reflecte sobre as suas próprias condições de produção e sobre o desenvolvimento do género que ainda instancia.

Elizabeth Costello é precisamente esse romance, e Mulhall, na sua leitura filosófica do mesmo, escolheu não apresentar a sua história e os puzzles sobre a identidade literária de autor e narrador, num modelo ensaístico filosoficamente reconhecido. Pelo contrário, escolheu desmontar os standards analíticos da sua própria tradição de formação académica e dar a voz directamente aos puzzles literários e filosóficos colocados pela história que Coetzee conta, em Elizabeth Costello. Este é também um exercício academicamente perigoso, possibilitado apenas no âmbito de uma conversa interdisciplinar que só o esbatimento das tradicionais fronteiras metodológicas entre dois ou mais campos de inquérito humano autoriza.

Dessa forma – e ecoando bastante os esforços do próprio Coetzee, mas na direcção da Filosofia – o trabalho filosófico de Mulhall representa uma resposta crítica a formas tradicionais de investigação e produção filosófica e, bem assim, uma desobediência edipiana a uma herança metodológica vastamente estabelecida. Entretanto, ao contrário do trabalho de John Coetzee como novelista, esse modo de fazer Filosofia é polémico e encontra-se sistematicamente com criticismos de tipo platónico. Mas pelo menos responde às provocações que Coetzee deixa aos filósofos, sem duplicar os seus meios – algo que vimos ser fundamental para substituir formas de pensamento ético de substituição.

Feita a importante salvaguarda sobre essa espécie de diálogo entre as duas tradições, o que esta conversa reaberta parece ainda requerer é uma leitura terapêutica da voz do crítico literário – e talvez da minha própria voz.[11]

ABSTRACT: Dispassionate and sober, J. M. Coetzee’s prose is a space in which literary identities are continually unsettled, methodological subtleties both revealed and explored. Given these features, philosophers have described Coetzee’s style as “modernist realist”. In this paper, I discuss the relevance of Coetzee’s use of the split page in Diary of a Bad Year, focusing on its role in undermining “ersatz ethical thought”. In the second part of the paper, I develop a model for explaining Coetzee’s modernist realism. This model is situated within a broader, self-critical project that traces the significance of my analysis for the form of philosophical discourse.

KEYWORDS: J.M.Coetzee. Substitution ethical thought. Diary of a Bad Year. Realist Modernism.

ReFeRênCias

CAVALIERI, P. The death of the animal: a dialogue. New York: Columbia University Press, 2009.

CAVELL, S. Companionable thinking. In: CRARY, A. (Ed.).  Wittgenstein and the moral life: essays in Honor of Cora Diamond. Boston: MIT Press, 2007. P. 281-298.

COETZEE, J. M. The Lives of animals. Edited and with an introduction by Amy Gutmann. Princeton: Princeton University Press, 1999.

______. Elizabeth Costello: eight lessons. London: Secker and Warburg, 2003.

______. Diário de um mau ano. Lisboa: Dom Quixote, 2008.

______. Verão. Lisboa: Dom Quixote, 2010.

______. A infância de Jesus. Lisboa: Dom Quixote, 2013.

CRARY, A.  J. M. Coetzee, moral thinker. In: SINGER, P.; LEIST, A. (Ed.). J. M. Coetzee and ethics. New York: Columbia University Press, 2010. P. 249-268.

DIAMOND, C. Realism and the realistic spirit. In: ______. The realistic spirit: Wittgenstein, philosophy and the mind. Cambridge MA: MIT Press, 1991. p. 39-70.

_______. Having a rough story about what moral philosophy is. In: GIBSON, J.; HUEMER, W. (Ed.).  The literary Wittgenstein. London: Routledge, 2004. p. 133-145.

______. The difficulty of reality and the difficulty of philosophy. In: CRARY, A.; SHIEH, S. Reading Cavell. London: Routledge, 2006. P. 98-118.

EAGLETON, T. The english novel: an introduction. Oxford: Blackwell, 2005.

GAITA, R. Entrevista:The childhood of Jesus. Entrevistador  Ramona Koval. 14 out.2014. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_IxafrxZDHI >. Acesso em: 15 maio 2016.

GEERTSEMA, J. Diary of a bad year (2007). In: MEHIGAN, T. (Ed.).  A companion to the works of J.M.Coetzee. Rochester, New York: Camden House, 2011. p. 208-221.

LEAR, J. Ethical thought and the problem of communication: a strategy for reading diary of a bad year. In: SINGER, P.; LEIST, A. (Ed.). J. M. Coetzee and ethics: philosophical perspectives on literature. New York: Columbia University Press, 2010. p. 65-88.

______. A case for irony: the tanner lectures on human values. Cambridge, Mass.; London: Harvard University Press, 2011.

MULHALL, S. The wounded animal: J. M. Coetzee and the difficulty of reality in literature and philosophy. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2009.

______. Countering the ballad of co-dependency. In: ______. The self and Its shadows.

Oxford: Oxford University Press, 2013. p. 202-222.

______. The self and Its shadows: a book of essays on individuality as negation in philosophy and the arts. Oxford: Oxford University Press, 2013.

NUSSBAUM, M. Love’s knowledge. Oxford: OUP, 1990.

SINGER, P. Reflections. In: COETZEE, J. M. et al. The lives of animals. Edited by Amy Gutmann. Princeton; New Jersey: Princeton University Press, 1999. p. 85-93.

______.; LEIST, A. (Ed.). Introduction to J. M. Coetzee and ethics. New York: Columbia

University Press, 2010.12

Recebido em 18/02/2016

Aceito em 05/06/2016



[1] Este artigo resulta de um projecto de investigação de pós-doutoramento financiado pela Fundação Alexander von Humboldt, na Universidade de Mainz, entre 2013 e 2015; Título do Projecto: The Transmission of Ethical Thought in Literature.

[2] http://dx.doi.org/10.1590/S0101-317320160004000011

[3] Doutora em Filosofia, Universidade Nova de Lisboa, Portugal. Investigadora Humboldt da Universidade de Mainz e do IFILNOVA da Universidade Nova de Lisboa. E-mail: aniusca@hotmail.com

[4] Para a meditação aqui apresentada, foi determinante a leitura dos seguintes textos: CAVALIERI, P. The death of the animal: a dialogue with commentaries. New York: Columbia University Press, 2009; CAVELL, S. Companionable thinking. In: Wittgenstein and the moral life: essays in Honor of Cora Diamond. Boston: MIT Press, 2007; COETZEE, J. M. Elizabeth Costello: eight lessons. London: Secker and Warburg, 2003; Diário de um Mau Ano. Lisboa: Dom Quixote, 2008; CRARY, A. J. M. Coetzee, moral thinker. In: SINGER, P.; LEIST, A. (Ed.). J. M. Coetzee and ethics. New York: Columbia University Press, 2010; DIAMOND, C. Realism and the realistic spirit. In: The realistic spirit: Wittgenstein, philosophy and the mind. Cambridge MA: MIT Press, 1991; The Difficulty of reality and the difficulty of literature. In: Reading Cavell. London: Routledge, 2006; Having a rough story about what moral philosophy Is. In: The Literary Wittgenstein. London: Routledge, 2004;

[5] Doravante, as referências a esse romance de Coetzee seguirão a seguinte edição: COETZEE, J. M.

Diário de um Mau Ano. Lisboa: Dom Quixote, 2008.

[6] Num artigo extremamente interessante e bem informado sobre a evolução do projecto novelístico coetzeano, a partir do respectivo projecto ensaístico, Johan Geertsema (2011) propõe uma leitura diferente desse modelo formal ensaiado em Diário. Geertsema defende que Coetzee joga com o paradoxo da não-posicionalidade do autor face às polémicas encenadas pelas suas figuras literárias como uma forma de defender a sua seriedade artística, sobrepondo o ético à vacuidade do político. Essa leitura alternativa do livro de J.M.Coetzee não está em conflito com a que aqui se expõe.

[7] Dusklands é constituído por duas novelas curtas, “The Vietnam Project” e “The Narrative of Jacobus Coetzee”. A segunda história narra a expedição, no final do século XVIII, de um caçador branco, Jacobus Coetzee, pelo interior virgem da África do Sul. O protagonista é apresentado como um racista explorador que, após ser apoiado num processo de convalescença pela tribo dos Namaquas e perder o seu escravo pessoal, embarca numa segunda expedição com o propósito de exterminar os escravos da tribo hóspede.

[8] O próprio Coetzee é um crítico literário de prestígio, de fato. Aqui restringimos a nossa análise ao seu projecto novelístico.

[9] Vejam-se, a esse propósito, os comentários mordazes que Coetzee faz ao diálogo filosófico em estilo platónico, encenado no primeiro capítulo de The Death of the Animal, de Paola Cavalieri (2009, p. 8586): “Let us reflect on Alexandra and Theodore, the two interlocutors in this dialogue, and on the form of their exchange. A and T are children of Socrates, not only in the way in which they speak but also in the relationship they have with each other. Whatever may go off the page, on the page they exhibit an amicability of a rather bloodless and certainly sexless nature. They speak fluently, at times eloquently, but never with heat. […] To whom is the lifestyle, and perhaps even the life, of A and T available? Is it available to a horse? – No, not as far as we know”.

[10] Na Introdução ao volume de ensaios J.M.Coetzee and Ethics, Singer e Leist propõem uma leitura das tensões estilísticas na prosa de Coetzee que não se deixa reduzir a nenhum dos dois modelos de leitura aqui apresentados. Partindo de uma análise histórica das tensões naturalizantes inerentes ao projecto filosófico moderno, Singer e Leist não equacionam o projecto novelístico coetzeano em termos do binómio realismo/modernismo, mas sim da dicotomia modernismo/pós-modernismo, cujos principais vectores de análise divergem numa aplicação à tradição filosófica e à tradição literária. No momento de cruzar as duas tradições, os autores destacam a continuação (porventura radicalizada), num projecto

[11] Este ensaio, construído em torno do núcleo problemático fundamental da reabertura, historicamente responsável, do diálogo entre literatura, filosofia e um tipo de crítica literária com uma clara inflexão filosófica, tem como principal aspiração possibilitar que o diálogo, uma vez reinstaurado, possa ser continuado. A sua dinâmica de abertura interdisciplinar é, a radice, incompatível com uma conclusão determinante.