O Transanimal nO HOmem: sObre a QuesTãO da animalidade em Hans JOnas[1]
RESUMO: Ao procurar promover a reconciliação do homem com a natureza, ensejando recompor a ordem da criação fraturada com o advento da modernidade, o movimento dominante do pensamento de Hans Jonas consiste em buscar restaurar a dignidade da natureza animal, nela reconhecendo atributos humanos, como o âmbito da interioridade. Embora louvável, a visão joniana da animalidade insiste em definir claramente o próprio do homem, o que termina por comprometer o efetivo acolhimento de direitos morais específicos à natureza animal. Além disso, sua obra falha em reconhecer com a necessária radicalidade a participação, no sentido contrário, do homem na animalidade, que ela mesma advoga. São faltas que julgamos preciso acusar nesse pensamento: 1) não deslindar o outro natural/ animal como o esquecido por excelência na insistente afirmação da diferença específica do homem; 2) não privilegiar uma experiência de teor estético-moral capaz de propiciar a abertura à alteridade natural/animal, que o homem expurga de si mesmo na afirmação de seu caráter transanimal.
PALAVRAS-CHAVE: Hans Jonas. Transcendência. Animalidade. Relação homem-animal. Direitos da natureza animal.
E imagina ser pensado pela erva que pensas.Imagina um elo, uma afeição surda, um passado Articulando os bichos e suas visões.
(Carlos Drummond de Andrade)
Quando assevera que o âmbito das emoções é apanágio da vida animal como um todo, e não exclusivo do ser humano, Hans Jonas desenvolve um tema que lhe é caro, o do reconhecimento da interioridade dotada de intencionalidade como a característica mais importante da realidade orgânica. Seu expresso propósito, com isso, é fazer com que o ser humano deixe de se considerar um ser metafisicamente isolado. Tendências e finalidades presidem as mais elementares manifestações da vida orgânica e instituem um “horizonte de transcendência” em cada uma das formas de vida em que se desenvolve a escala ascendente de liberdade e risco que culmina no ser humano. Sob três aspectos, escreve ele, a vida animal se distingue da vida vegetal: mobilidade, sensibilidade e sentimento. O que é comum a esses três aspectos é a conquista de um progressivo distanciamento entre sujeito e objeto, que estabelece um caráter mediato na relação do animal com seu meio ambiente[3]. Assim, a partir da lacuna aberta entre o desejo e sua satisfação, irrompe o âmbito das emoções na vida animal. Quanto maior a distância aberta por essa lacuna e a capacidade de suportá-la, tanto mais desenvolvido o domínio das emoções. Segundo nosso autor, portanto, as emoções não são um apanágio exclusivamente humano: “[...] o ser animal é essencialmente um ser apaixonado.” (JONAS, 2004, p. 130).
Em diversas passagens de sua obra, Hans Jonas exprime com toda ênfase e clareza seu repúdio à tese, de matriz cartesiana, que concebe a natureza, no seu todo, desprovida de finalidade própria, reles mecanismo autômato. Sua obra repudia, assim, toda tradição que faz da natureza mero meio para o ser humano – criatura que se concebe distinta por ser a única dotada de um fim em si mesmo[4]. Desse modo, é intentando desbaratar o antropocentrismo vigente na tecnociência moderna que Hans Jonas procura, acertadamente, reconhecer um âmbito da interioridade dotado de intencionalidade como próprio da natureza orgânica no seu todo e, por isso mesmo, não subsumido, a princípio, aos propósitos e interesses humanos.
No entanto, a obra de Hans Jonas não deixa de procurar discernir com clareza aquilo que distingue o homem de todas as demais formas de animalidade, que ele denomina como sendo seu caráter transanimal, o que pode soar desconcertante. Afinal, todo o finalismo relativo à atuação de uma pulsão autônoma e vital, o qual nosso autor enseja justamente restituir à natureza, parece ser-lhe subtraído no momento em que a transcendência própria do homem é proclamada como sua diferença específica. Com a proclamação dessa distinção, a natureza parece voltar a ocupar um lugar subalterno: o de uma entidade agraciada pela existência pura e simples de um ser superior que, por obra e graça de sua alegada transcendência, oferece a ela a custódia de suas causas finais como uma oportunidade única, embora esse ser tenha até hoje pensado mormente em causa própria e cuidado, até hoje, sobretudo do interesse próprio... Esta é uma questão que merece ser investigada com cuidado. Seria preciso indagar se a participação da natureza humana na animal, tão justamente advogada por Hans Jonas, vem a se cumprir satisfatoriamente em sua obra. Ao despertar enlevo, ao invés de causar incômodo, angústia ou nostalgia, a afirmação enfática de um “fosso metafísico” existente entre o espírito humano e a natureza animal pode terminar por contribuir não para a reconciliação, mas para a segregação da natureza. Ou não? Investiguemos a questão com mais atenção.
Lemos, em O Princípio Responsabilidade: “[...] o reducionismo antropocêntrico, que nos destaca e nos diferencia de toda a natureza, significa apenas reduzir e desumanizar o homem” (JONAS, 2006, p. 229), porque nossa essência, quando justamente entendida, abrange toda natureza restante; afirmar o contrário significaria sustentar uma concepção atrofiada de nossa essência – ou desfigurar a “imagem do homem”, para empregar uma expressão cara a Jonas. Assim é que a afirmação da dignidade de nosso Ser contém em si mesma a afirmação da dignidade da natureza. Participando de nossa essência, a natureza nos concerne inapelavelmente: “Na medida em que a natureza nos gerou, devemos fidelidade à totalidade da criação. A fidelidade ao nosso Ser é apenas o ápice. Entendido corretamente, este ápice abrange todo o restante.” (JONAS, 2006, p. 229).
O reconhecimento de uma essência comum entre homens e animais não impede, contudo, Hans Jonas de discernir no homem o que ele designa por seu caráter transanimal, isto é, sua essência própria, sem com isso negar o que há nele de animal: “Esse reconhecimento de um fundo comum [entre homens e animais] nunca impediu, porém, de diferenciar o homem de toda forma de animalidade pura, de nele distinguir assim o transanimal, nele deslindando precisamente sua essência própria.” (JONAS, 2000, p. 59). Mas qual seria o próprio do homem, sua diferença específica relativamente a todas as demais formas de animalidade?[5]
Muito embora a liberdade seja, para Hans Jonas, o fio condutor do fenômeno da vida em geral, a liberdade transcendente do espírito desponta como prerrogativa única e exclusiva do homem. Sob três formas distintas manifesta-se a liberdade própria do espírito humano: como liberdade de pensamento (concernente à faculdade do entendimento), como liberdade de imaginação (relativa à faculdade artística) e como liberdade moral (vinculada ao dom da responsabilidade, marca distintiva suprema do ser humano, ponto culminante de sua diferença específica). Na história da cultura humana, a emergência dessas três formas de liberdade pode ser testemunhada de modo concreto e inconteste, segundo Jonas, por três tipos de objetos: a ferramenta, a imagem e o túmulo, objetos estes precursores, nessa ordem, das futuras esferas de atividade humana em ciência, arte e metafísica (esta última englobando a religião)[6]. Aquilo que fundamentalmente distingue o ser humano seria, portanto, essa “liberdade transanimal”, cuja manifestação pode ser atestada, já nos primórdios da história humana sobre a Terra, pela capacidade de produção de imagens pictóricas (rupestres), nas quais a faculdade da razão, que se desenvolveria posteriormente, já se encontra presente em germe.
No ensaio “Homo pictor: Da liberdade da imagem”[7], Hans Jonas nos propõe um experimento heurístico com o fito de corroborar essa sua apreciação e evidenciar o que, desde o princípio, mais propriamente distingue os homens dos animais. Sugere ele ali que imaginemos espaçonautas extraterrestres chegando à Terra. De todos os feitos realizados pelas criaturas de nosso planeta com que se deparariam, escreve ele, seriam seguramente as imagens deixadas sobre um substrato qualquer que mais se destacariam como algo próprio e exclusivamente humano. Desse modo, Hans Jonas faz deslocar o distinguo do homem da posse do logos discursivo e racional para um nível mais elementar, o da capacidade da produção de imagens, da qual a própria razão poderia ser vista como um desenvolvimento ulterior específico. Contudo, ressalva ele, tal deslocamento para baixo ou para trás na história da cultura não nos aproxima dos animais de forma alguma:
Enxergar sua característica no mais tosco desenho de animais, assim como na figura do teorema de Pitágoras, não significa rebaixar sua natureza. Pois o fosso entre a relação do animal com o mundo e a mais primitiva tentativa de uma representação é infinitamente mais profundo do que entre esta última e qualquer construção geométrica. É um fosso metafísico, em comparação com o qual o outro não passa de uma diferença de grau. (JONAS, 2004, p. 197, o último grifo é nosso)[8].
Convenhamos, desde logo, que o distanciamento almejado pela observação pretensamente imparcial de espaçonautas trai, antes, uma incapacidade de se libertar do antropocentrismo. Ou não? É certo que a figura de um ser extraterrestre intenta estar para além de homens e animais, mas essa “transcendência” proposta longe está de ser isenta e imparcial; afinal, os espaçonautas que conhecemos são humanos, e não animais. Com seu experimento heurístico, o que Hans Jonas nos propõe é uma contemplação do homem a partir do alto, de seu ponto de vista transcendente; não lhe ocorre procurar contemplar o próprio do homem refletido nos olhos dos animais, mergulhando na natureza de que nossa natureza tomou distância e se alheou.
Além do mais, não se evidencia, na passagem supracitada, um certo júbilo em salientar a diferença específica do homem? Caberia então perguntar: até que ponto Hans Jonas deixa de se alinhar com toda tradição da metafísica ocidental empenhada em reconhecer o próprio do homem como dispositivo de exclusão? Encontramos em sua obra, com efeito, afirmações rebarbativas, de clara ressonância teológica, relativas ao distinguo do homem, à sua “transcendência problemática” que preserva a imagem e semelhança de Deus[9]. A recusa dessa “transcendência problemática” aos animais não segue, em sua obra, lado a lado com o enaltecimento do homem? Não seria o caso de se perguntar se a incapacidade de produzir imagens (assim como a ausência de razão) imputada ao animal contribui, também aqui, para corroborar a dignidade do homem?
Hans Jonas atesta, é verdade, a presença de uma finalidade atuante já nas formas mais elementares de vida orgânica (e mesmo antes dessas formas mais elementares), uma aspiração por fins constitutiva de um âmbito de subjetividade que se estende ao longo de todo reino das criaturas vivas e que institui, como já observamos, um “horizonte de transcendência”. Todavia, tal constatação resultante de um testemunho fenomenológico irrecusável da vida, como ele mesmo afirma, em nada diminui o abismo aberto entre o homem e o animal, pois esse abismo não resulta de um mero distanciamento gradual, mas de uma diferença essencial que separa radicalmente o homem de toda manifestação de vida pré-humana, isto é, de todo reino da vida vegetal e animal. O âmbito do transanimal é exclusivo do ser humano e só se oferece efetivamente ao espírito humano, o qual se põe para além de toda natureza animal, assertiva que nosso autor corrobora pela observação de que só o espírito humano se encontra dotado de três graus de liberdade, aos quais já nos referimos. Assim, embora reconheça a liberdade que se manifesta em todos os seres animados, porquanto dotados do sentir, do desejo e da percepção sensorial, liberdade que lhes confere uma verdadeira dimensão subjetiva constitutiva do âmbito da interioridade, tal liberdade não se põe, para Jonas, no mesmo plano da liberdade reflexiva do espírito, própria do homem[10]. Com efeito, sublinha Hans Jonas que a capacidade de voltar-se sobre si mesmo é apanágio exclusivamente humano; com ela, ocorre um salto qualitativo que nos alça a um plano transcendente em relação ao da animalidade: “Mas no homem tudo isso é mais uma vez ultrapassado por um salto qualitativo, e a liberdade de reflexão representa um modo eminente desse tipo de ‘transcendência imanente’. Aquilo a que visa a reflexão é algo totalmente invisível: o próprio sujeito da subjetividade.” (JONAS, 2000, p. 218).
O continuum da evolução ata indissoluvelmente o homem à sua origem animal. Segundo Jonas, o evolucionismo solapa, mais eficazmente que qualquer crítica metafísica, toda forma de dualismo homem-animal ou matéria-espírito. O espírito humano se encontra em linha de continuidade com toda história de vida pré-humana. No entanto, para não recair no extremo oposto ao dualismo, isto é, no monismo materialista, o qual levaria a uma compreensão empobrecida da essência propriamente humana, Jonas julga necessário considerar que houve, em algum momento preciso desse processo infinitamente gradativo, a irrupção de um princípio ontologicamente estranho ao continuum da evolução: o espírito humano. Ora, com a afirmação desse salto ontológico, sua obra não terminaria por justificar aquilo que ela mesma assevera não ser mais possível depois do evolucionismo, a saber: “[...] recusar proporcionalmente espírito às formas ancestrais mais próximas ou distantes e, consequentemente, a um nível qualquer de animalidade”? (JONAS, 2000, p. 33, do estudo Evolution et liberté).
Assim, no processo evolutivo, o homem desponta como “[...] o ponto supremo de perfectibilidade ontológica concreta que nos é dado conhecer.” (JONAS, 2000, p. 32). Desse ponto extremo para baixo, todas as demais classes de Ser são determinadas de forma privativa. Uma passagem do estudo “Matéria, espírito e criação”, que nos soa até mesmo chocante, bem denota essa arrogância antrópica eivada de teologia própria de Hans Jonas. Embora uma pouco longa, vale citá-la por inteiro:
Antes de tudo uma palavra – visto que estamos a ponto de mobilizar o testemunho antrópico – sobre a velha objeção de “antropomorfismo”; ligado a ela existe a censura de vaidade bem humana. Será que não inventamos uma divindade à nossa imagem (sendo ela uma imagem não corporal) quando falamos de um pensamento, de um querer e de um julgamento divinos? Mas a partir do que devemos nós extrapolar? A partir do gado e de corujas, de serpentes e de macacos? Tudo isso já foi feito, como é sabido, mas o Deus de Israel, que confessa sua semelhança com o homem dizendo que ele deseja criar este à sua própria imagem, representa uma concepção superior. Evidentemente, é preciso que partamos do mais elevado que se mostra no Ser para forjarmos um conceito do divino, e o espírito em nós é, de fato, o mais elevado que nos é dado conhecer no universo. (JONAS, 2000, p. 231).
Acusemos o ponto cego na argumentação que pretende levantar a objeção de presunção antropocêntrica. Não parece haver aí uma incapacidade crônica de admitir a elevação espiritual como humana, demasiado humana, que legitima a si mesma pela hipóstase de uma divindade superior? Afinal, a possibilidade de Deus ser uma entidade inventada à nossa imagem e semelhança (uma imagem enfim humana, demasiado humana) mal é aventada, para ser logo em seguida refugada. Mal sua existência é posta em questão, o Deus de Israel ressurge imediatamente em cena, verdadeiro deus ex machina, como se fosse inadmissível (até mesmo um interdito inviolável) negar sua onipresença, atestada pela evidência irrefutável do mais elevado em nós. Na defesa intransigente do princípio antrópico, patente nessa e noutras passagens da obra, falta a Hans Jonas a capacidade de acatar a suspeita – tão bem instilada por Nietzsche – de que o homem talvez não seja a finalidade secreta da criação, como tanto lhe apraz acreditar[11].
Sobre esse ponto, é oportuno fazer referência aqui ao belo estudo de Florence Burgat, Liberté et inquiétude de la vie animale, para assinalar que a dinâmica que preside o pensamento de Hans Jonas é, em certa medida, assemelhada à dinâmica do pensamento bergsoniano com respeito às manifestações do élan vital. Assim como Bergson, também Jonas acusa um salto qualitativo abissal entre natureza humana e animal, no desenrolar da evolução criadora; em ambos, o distinguo metafísico se consuma pela perfectibilidade incomparável conferida à natureza humana, coroamento da criação atestada pela superioridade espiritual (BURGAT, 2006, p. 151-155). Ora, segundo Burgat – e esta é a tese-mor defendida no estudo a que nos referimos –, o salto ontológico fundamental entre os seres vivos deve ser situado entre os seres vegetais e os animais – e não entre os animais e os humanos, como faz Jonas[12].
A partir do que foi exposto, poderíamos precisar melhor os termos da recriminação que, a nosso ver, deve ser feita à obra joniana, no que diz respeito à afirmação do caráter transanimal do homem. A questão crucial está em que, ao afirmar a existência desse “salto qualitativo”, nosso autor não vem a reconhecer, no mesmo movimento, a violência graças à qual a natureza humana se destaca da natureza animal e conquista sua alegada transcendência própria. Seria preciso que, assim fazendo, não deixasse consequentemente de considerar que a transcendência que nos distingue de modo tão eminente deve igualmente se caracterizar pela capacidade de superar o esquecimento dessa violência que lhe é constitutiva. Seria preciso que a liberdade reflexiva conquistada com esse salto qualitativo fosse distinguida como a capacidade da subjetividade transcendente de voltar-se não só sobre si mesma, mas também sobre o âmbito da subjetividade imanente de que ela se destacou, isto é, sobre o âmbito das pulsões orgânicas. Seria preciso reconhecer que o aspecto propriamente transcendente do espírito humano estaria não em sua autoproclamada elevação, mas sim na efetiva capacidade de acolher a natureza por ele segregada para sua elevação – natureza esta não só externa como também interna ao homem. Ora, a questão é que, com a consecução desse movimento de acolhimento da natureza segregada, tornam-se inevitavelmente turvos aqueles limites que se pretendiam claramente definidos entre a natureza humana e a animal. Em lugar do fosso abissal e intransponível entre duas vertentes, reiteradamente enfatizado por Jonas, uma zona fronteiriça difusa passa a ser contemplada entre o animal humano e o não humano.
Nesse sentido, o breve e percuciente comentário feito por Elisabeth de Fontenay sobre a obra de Hans Jonas, em seu extraordinário estudo Le silence des bêtes, mostra-se deveras acertado. Nele, afirma Fontenay (1998, p. 659) que a abordagem de nosso autor permanece fenomenológica, tanto por seu projeto como por seu método. Da mesma forma que para MerleauPonty, também para Hans Jonas o logos está em linha de continuidade com a physis. Com efeito, Jonas professa uma metafísica da continuidade, já o salientamos, e a ruptura dos laços que atam homem e natureza é vista, por ele, como obra condenável do mecanicismo moderno, o qual, por sua vez, deita raízes longínquas no antigo movimento gnóstico. Contudo, encontramos em Merleau-Ponty, escreve Fontenay – e essa sua observação também se aplica a Hans Jonas –, pouca singularidade concreta, poucas histórias de animais e de exemplos extraídos das coisas da vida, talvez por pudor fenomenológico, ou por receio de fazer passar uma empiria contingente por ontologia. Não manifestam ambos os pensadores uma mesma fé racional no sensível e no contínuo, um mesmo júbilo em produzir diferenças? A suspeita de Fontenay me parece muito bem fundada: “Se a dor e a injustiça de que sofrem os animais não entram jamais em consideração [...] é porque os pensamentos da consciência e os do ser sofrem todos de um constitutivo esquecimento do mal” (FONTENAY, 1998, p. 659-60, grifo nosso)[13].
Em outra passagem pouco mais adiante, uma observação de Fontenay nos parece atingir em cheio a transcendência própria do homem advogada por Hans Jonas. Escreve a autora:
A compaixão apresentar-se-ia desde então como o movimento de um ser tanto mais transcendente quanto mais ele se mostrasse capaz de conferir a transcendência a seres comumente tidos por insignificantes. Não há piedade sem consideração e reconhecimento do abismo transcendente que é a angústia do infans, desse inocente que não possuirá jamais a linguagem. (FONTENAY, 1998, p. 726-727).
Na transcendência humana advogada por nosso autor não parece haver, com efeito, o menor traço de compaixão quando sublinha nossa distinção.
Ao mesmo tempo, porém, essa crítica à afirmação de uma transcendência distintiva vinculada ao caráter transanimal do homem, que aqui delineamos, não deixa de cometer alguma injustiça para com a obra de Hans Jonas. Para reparar essa injustiça, seria preciso ponderar que o “próprio do homem”, em Hans Jonas, se nos distingue com uma prerrogativa superior, não se reveste de nenhuma soberba ou presunção. Muito pelo contrário, esse seu “próprio” consiste também – e principalmente – na lucidez da consciência capaz de nos infundir receio e preocupação por todos os que correm perigo por nossa causa. A lucidez que nos distingue não é, definitivamente, a que nos eleva acima do bem e do mal, mas sim a que nos concede a consciência do mal. É, enfim, a que faz suscitar em nós a responsabilidade por todas as demais criaturas, as quais, em sua inconsciência moral, se encontram como que adormecidas. Enquanto os animais dormem, nós, os homens, estamos de vigília: a prerrogativa que nos distingue acarreta, no mesmo movimento, nossa responsabilidade indeclinável.
Assim é que a afirmação de nossa superioridade na forma de “coroamento da criação”, por parte de Hans Jonas, não pretende se revestir de vaidade e presunção: a dignidade com que ela nos distingue vai sempre acompanhada de um pesado fardo, qual seja, o fardo da indeclinável responsabilidade por todos os que são inferiores a nós, os quais, justamente por isso, dependem de nós[14].
Feita essa importante ressalva, a pergunta que caberia responder seria então mais apropriadamente a seguinte: até que ponto essa apregoada lucidez moral, propriamente humana, poderia mostrar-se efetivamente sensível ao sofrimento alheio, imposto aos animais não humanos? Ou, com outras palavras, até que ponto uma ética para a natureza poderia dispensar o contato sensível e acolhedor do mais próximo e fundar-se numa ontologia do ser? Aqui nos acercamos de uma questão crucial: a ontologia reclamada por Hans Jonas, em sua proposta de fundamentação de uma ética para a civilização tecnológica, poderia prescindir de uma componente estética de ressonância moral? Sua ontologia do corpo vivo levaria em consideração o estatuto misto da sensibilidade e do ser? Ou melhor: enquanto ontologia, poderia vir a contemplar o estatuto misto da sensibilidade e do ser?
A esse respeito, é interessante notar que não deixa de estar presente, na exposição de Jonas, um nível de fundamentação da ética mais propriamente fenomenológico-existencial do que ontológico, posto que faz apelo ao mais próximo e tangível. Nesse nível, o imperativo ético de responsabilidade encontra seu fundamento na mera existência frágil e perecível dos seres vivos, cujo paradigma exemplar é o do recém-nascido, de cuja visão pura e simples emana o indeclinável imperativo do seu dever-ser.
É certo que esse imperativo ético funda-se numa “visão” do ser que não é propriamente platônica, como adverte Jonas, posto que ela não almeja apreender sua essência eterna. Ela visa, ao contrário, a apreender o ser sub specie temporis, isto é, como existência precária e perecível, totalidade sujeita ao perecimento. Nisso ela supera a visão do cientista matemático, pois este percebe apenas sua “aparência mais externa” dos fluxos e intercâmbios moleculares, isto é, reconhece apenas as estruturas e as leis que regem os processos moleculares abstraídos de suas relações com a vida e a existência humanas[15].
No entanto, essa visão mais fidedigna ao ser em sua plenitude vital, que deve nos tocar pelo reconhecimento de sua existência frágil e efêmera, convocando nossa responsabilidade de maneira indeclinável, não continua sendo, apesar de tudo, algo platonizante? Certo, ela se mostra atenta ao deverser dessas criaturas débeis e perecíveis que compartilham conosco o mundo. Todavia, não falta a ela o efetivo acolhimento de um impulso corpóreo de identificação mimética, despertado pelo contato com a materialidade surda e corpórea desses seres sujeitos, como nós, ao sofrimento e ao perecimento? Ou melhor, não falta a ela o acolhimento dos impulsos corpóreos de prazer e dor no apelo emanado do puro existente, ou da mera existência, quando esta exige de nós cuidado e atenção?[16]
Voltemos a tratar do caráter transanimal do homem, definido por Jonas como sendo sua diferença específica cujo ponto culminante é a faculdade moral. A evolução da ordem da criação em escala ascendente rumo à transcendência humana, seu grau mais elevado, não assegura de antemão a salvação, é certo. Para Hans Jonas, como já salientamos, aquilo que desponta com a transcendência humana atinge seu ápice no sentimento de preocupação e responsabilidade não só pelos homens, mas por toda natureza extra-humana que depende de nós – e cujo destino final se encontra hoje mais do que nunca ameaçado. No entanto, não seria razoável supor que essa transcendência concebida na perspectiva de paulatinos saltos diferenciadores, em que não se acusa a violência da segregação, ao invés de despertar um legítimo sentimento de responsabilidade, faria antes perdurar a indiferença para com as diferentes esferas do ser de que o ser humano se alheou? O mito forjado por Hans Jonas a uma certa altura, o qual poderia ser denominado “mito do divino vir-a-ser da exuberância vital”[17], possui o expresso propósito de justamente restabelecer esses vínculos rompidos com uma ordem da criação que o crescente poderio tecnológico humano desagrega e ameaça destruir definitivamente – mas termina por se colocar num plano demasiado metafísico! Afinal, sua ontologia do corpo vivo resvala para uma reafirmação do distinguo do homem na ordem da criação.
Significativa, a esse respeito, é a crítica que Hans Jonas endereça à filosofia existencialista, em particular à filosofia de Heidegger, cujo pano de fundo se tece a partir da aproximação do pensamento heideggeriano com o desprezo ou desapreço gnóstico pela natureza: “Nunca uma filosofia preocupou-se tão pouco com a natureza quanto o existencialismo.” (JONAS, 2004, p. 250). Hans Jonas afirma textualmente que Heidegger, em seu escrito “Sobre o Humanismo”, recusa situar o ser humano na animalitas, o que significa que ele recusa reconhecer qualquer participação do ser humano na natureza animal – e isso, na medida em que atribuir à existência humana qualquer natureza definível (como a natureza animal) implica submeter a existência a uma essência pré-determinada.
No entanto, esse desejável reconhecimento de uma natureza determinada (animal) à natureza humana, ao qual Heidegger se furta, Hans Jonas o entende em termos que nos remetem ao platonismo. Para ele, esse reconhecimento consiste fundamentalmente no reconhecimento da participação do ser humano numa ordem objetiva de essências no todo da natureza: “O que não tem natureza não tem norma, só o que pertence a uma ordem das naturezas – por exemplo, a ordem da criação – é que possui natureza.” (JONAS, 2004, p. 247). Assim, quando nosso autor critica o nominalismo em que recai a filosofia existencialista, com sua ênfase incondicional nos “projetos existenciais da vontade”, ele o faz apelando ao realismo platônico. Ele contrapõe ao “dinamismo ofegante” dos projetos existenciais a serena contemplação da natureza, de ressonância expressamente platônica: “Quando não se descobrem valores na contemplação do ser (como, em Platão, o bom e o belo), mas eles são estabelecidos como projetos da vontade, a existência fica efetivamente condenada a um contínuo futuro, tendo a morte como meta.” (JONAS, 2004, p. 251).
A patologia em que sucumbe a filosofia existencialista é aquela mesma diagnosticada pela sentença nietzschiana que vaticina: “Quem perdeu o que tu perdeste não para em lugar algum”. Para Hans Jonas, no entanto, o remédio para essa patologia do dinamismo incessante (que também se aplica, notemos, à doentia compulsão tecnológica da ciência hodierna) é um só: a recuperação da ordem do Ser. A theoria capaz de suplantar a dicotomia que segrega o homem da natureza é aquela capaz de contemplar o ser humano como partícipe da totalidade do ser ou da ordem da criação. E, nessa contemplação do todo, como procuramos mostrar, difícil é evitar o olhar sobranceiro que reserva ao homem um lugar eminente e distinto. Difícil, sobretudo, deixar de arrogar a transcendência que eleva o homem acima da natureza animal e, no limite, recusa situar o ser humano no interior da animalitas[18].
No intento de superar o dualismo instaurado entre matéria e espírito, a linha evolutiva ascendente professada por sua metafísica da continuidade (das formas inferiores mais elementares de matéria orgânica às superiores mais elaboradas) termina por sancionar os saltos de descontinuidade que levam das formas mais imanentes às mais transcendentes. Com isso, ela acaba fazendo esquecer a violência que os promove. De fato, ao revestir de sentido as distinções efetivamente vigentes na realidade, ela assume um traço ideologicamente encobridor. Uma justa abordagem teria que, desbaratando o idealismo subjacente, desenvolver-se como uma dialética materialista capaz de ressaltar as tensões que presidem as distinções, na esperança de superá-las.
Uma investigação que não deve ser desdenhada, por mais discutível que se apresente, funda-se na tentativa de compreender em que medida a exacerbação do poder tecnocientífico, visto como compulsão de controle da natureza exterior (como quer Jonas, ao procurar remontá-lo ao movimento gnóstico dos primórdios do cristianismo), consiste na contrapartida de um processo de dominação imposto à natureza interna do sujeito do conhecimento.
O tema nietzschiano da genealogia da razão talvez seja, com efeito, a ausência maior da obra de Hans Jonas. Não conhecemos uma apreciação sua a respeito do desenvolvimento da razão a partir da violência cometida contra os instintos animais, ou a partir da denegação dos impulsos naturais. Recordemos as contundentes assertivas da obra Dialética do Esclarecimento, de autoria de Adorno e Horkheimer (1985), que devem muitíssimo a Nietzsche, segundo as quais toda fúria exploradora, toda ânsia fáustica de dominação da natureza poderia ser entendida como vingança da própria natureza, justamente porque esta lhe recorda a unidade orgânica originária perdida. A compulsão de reduzir toda natureza orgânica em matéria morta para manipulação e exploração poderia ser compreendida, destarte, como resultante de um processo traumático – e traumático porque violento – de domínio e controle dos impulsos corporais. Dessa perspectiva, o processo de constituição do espírito civilizador, esse processo de elevação espiritual que Jonas tanto enaltece em sua obra, é visto como um processo de recalcamento de instintos e paixões, de desfiguração da natureza animal. Seria preciso, assim, não ignorar esse rancor ancestral contra
2006, p. 344). Definição que não deixa de guardar semelhança com a eleição heideggeriana do homem como “clareira privilegiada do Ser”.
o corpo vivo, para poder bem compreender por que, hodiernamente, progride furiosa e implacavelmente o processo de exploração da natureza. Ao ignorálo, sua proposta de uma ontologia do corpo vivo, concebido como totalidade indissociável de matéria e espírito, passa a soar pouco convincente.
Corrobora esta apreciação o enaltecimento do decisionismo, por parte de Hans Jonas, isto é, da ação resoluta e firme em oposição à passividade do âmbito das paixões, dos afetos e dos sentimentos, tal como encontramos no estudo “Imortalidade e Existência Atual” (JONAS, 2004, p. 253 ss.). Não se sente aí o velho ranço metafísico de desprezo pelas paixões corpóreas e pela mortalidade física? Neste ponto, parece ficar bem evidente a distância que separa Jonas de Adorno. A reapreciação adorniana da componente somática de todo pensamento (a que conclama a dor a passar e o prazer a perdurar)[19] não encontra correspondência no pensamento de Jonas, para o qual os momentos efêmeros de dor e prazer devem ser suplantados pela ação imbuída de soberana determinação espiritual, só ela capaz de escrever nossa história individual e propugnar por nossa imortalidade.
Tomemos, por exemplo, o texto Macht oder Ohnmacht der Subjektivität (JONAS, 1987), um trabalho de Hans Jonas que se inscreve na sua proposta de elaboração de uma ontologia fundamentalmente crítica da dissociação dualista entre matéria e espírito, instaurada pela modernidade.
Seu propósito central é o de combater o determinismo materialista prevalecente em nossos dias, o qual ameaça de impotência o âmbito da espiritualidade – temática, vale lembrar, de matiz tipicamente romântico. Trata-se, assim, de restituir ao domínio da subjetividade o poder que lhe é subtraído de modo crescente pelo avanço da tecnociência hodierna, buscando para tanto reavivar a relação – cortada em razão do dualismo subjacente – entre o espiritual e o material. Contudo, o almejado reconhecimento de um intercâmbio existente entre o âmbito corporal e o espiritual soa em falso, ao que nos parece, na medida em que, para Hans Jonas, ele se perfaz fundamentalmente mediante o resgate de uma pretensa dignidade do espiritual, ou da soberania própria do espiritual.
Falta a Hans Jonas a compreensão de que a dinâmica de afirmação de uma espiritualidade pretensamente autônoma e soberana, em relação a todo o âmbito do material ou corporal, é a mesma dinâmica que preside o processo de autodomínio levado a termo mediante a contenção de impulsos e afetos corporais, o qual redunda na concepção dualística da substância sustentada pelo “gnosticismo tecnológico” de nossos dias – que justamente sua filosofia pretende combater. Segundo essa dialética, o ímpeto romântico de valorização da livre vontade espiritual termina por sancionar o seu contrário, isto é, o processo de dominação e controle da natureza levado a termo pela ciência moderna – e ainda mais fortemente pela tecnociência hodierna, incapaz de acolher outros valores além do valor de controle prevalecente.
O movimento que levaria o sujeito da ciência moderna a deixar de impor suas categorias identitárias ao objeto natural não deve se separar, nesse sentido, do movimento que permitiria a esse sujeito abandonar sua pretensa autonomia, renunciando à afirmação de sua autarquia espiritual. É a abertura do sujeito à sua alteridade animal – não a reafirmação de uma autonomia já tornada completamente ilusória, hoje em dia – que poderia laborar a favor da conquista de uma verdadeira soberania subjetiva.
Assim é que, pelo fato de insistir na figura da subjetividade como lócus de autonomia e identidade, a proposta joniana de reconhecimento do ser como corpo vivo, totalidade indissociável entre matéria e espírito, termina por não acatar com a necessária radicalidade a afirmação, que ela mesma gostaria de sustentar, segundo a qual “[...] o eu não é um reino primeiro nem separado, mas constituído por sua alteridade material e sensível.” (ALVES, 2005, p. 283). Isso também deve significar: constituído por sua animalidade.
Essa efetiva abertura à alteridade animal, que julgamos fazer falta na obra de Hans Jonas, é expressa com muita propriedade numa bela passagem de Le versant animal, de Christoph Bailly, a qual vale mencionar. Escreve Bailly (2007, p. 46):
O que está em questão aqui não é a imitação, pelos animais, de processos mentais humanos, mas é uma semelhança ostensiva da qual os olhares são precisamente o eco. Como se, para aquém das particularidades desenvolvidas pelas espécies e pelos indivíduos, existisse uma sorte de camada subterrânea do sensível, uma sorte de reserva longínqua e indivisa, indefinível, da qual cada um de nós se nutre, mas que a maior parte dos homens aprendeu a segregar completamente, tão completamente que sequer ainda imaginam que ela possa existir e não mais a reconhecem, mesmo quando ela lhes faz sinal. (Tradução nossa)[20].
Destarte, uma justa reapreciação da dignidade da natureza animal exige de nós, animais humanos, que sejamos capazes de nos deixar tocar, de nos deixar afetar, de modo a reconhecer, em presença de cada animal, a existência dessa camada primordial indistinta e indefinível, mas comum, compartilhada – e cujo valor não é inferior, muito menos desprezível. Tal reconhecimento é condição prévia indeclinável, ao que nos parece, para poder levar a bom termo a proposta joniana de uma nova ética que deixe efetivamente de ser antropocêntrica.
Para concluir, gostaríamos de indicar, ainda que brevemente, a perspectiva que se descortina a partir da crítica aqui endereçada ao conceito de animalidade joniano.
Em primeiro lugar, a acusação crítica do golpe de violência consumado pela afirmação do caráter transanimal do homem, que o destaca do reino da animalidade, aqui reiterada, deporia a favor de uma bioética da reciprocidade. Reciprocidade esta pensada nos termos propostos por Dominique Lestel, em seu estudo L’animal est l’avenir de l’homme, quando escreve que “[...] o ser humano contraiu uma dívida infinita para com o animal, sem que, contudo, ela se veja acompanhada pelo sentimento de culpa.” (LESTEL, 2010, p. 132, tradução nossa)21. Segundo Lestel, a relação de reciprocidade que o homem tem o dever de estabelecer com o animal é, com certeza, bem mais intrincada e complexa que a obrigação, propugnada por Hans Jonas, de salvaguardar a própria vida em si, ou “toda aventura mortal em si” (nas palavras de Jonas), ameaçada em escala planetária por nossa civilização tecnológica. Tal relação de reciprocidade ensejada abandona o plano geral e abstrato, posto que considera necessário tratar dos contextos concretos específicos de interação com a natureza, o que exige compreensão da interdependência que preside a interação homem-animal. Mais ainda, exige inventar formas de vida em comum e formas inéditas de engajamento em comunidades híbridas de partilha
portanto, de abertura para o Ser!) da qual os homens se encontram privados, justamente enquanto seres culturais civilizados. A civilização também deve ser vista como espaço de cerceamento e cristalização de formas de vida, que necessita ir ao encontro da natureza animal visando a abrir-se para novas formas de pensar a vida.
21 Dessa obra, ver em especial o capítulo 4, “Bioéthique de la réciprocité”.
de sentido, interesses e afetos. Num sentido forte, a relação de reciprocidade ensejada avaliza o intercâmbio que o homem desde sempre manteve com o reino da animalidade, buscando, porém, livrá-lo do caráter predatório que comumente assumiu. Em lugar da exploração impiedosa e indiscriminada, ela propõe o estabelecimento de uma comunidade partilhada, em que animais e a natureza no seu todo fossem considerados legítimos portadores de direitos morais. Em tal comunidade, podemos continuar a contar com os animais (por exemplo, para experimentação e pesquisa), podemos continuar até mesmo a nos servir dos animais (para alimentação), contanto que, em cada situação particular, em cada contexto específico, sejamos capazes (tanto quanto nos for possível) de nos colocar no lugar do animal, intentando compreender e respeitar seu mundo próprio de significação, reconhecendo o sofrimento que lhe impingimos, ou inadvertidamente lhe causamos, assim como o bemestar que podemos lhe proporcionar. Podemos, assim, continuar a tomar algo dos animais, desde que, em contrapartida, passemos a lhes ofertar algo em troca, algo que lhes seja precioso e lhes faça sentido. Como escreve Lestel (2010, p. 134), “[...] o homem é este animal que tem a obrigação de quitar incessantemente sua dívida para com os outros animais”.
Em segundo lugar, a insistência na relevância que possui a componente de identificação mimética, aqui também reiterada, na formulação de uma ética capaz de englobar o reino animal e também natural (uma ética do meioambiente) se encaminha na direção do reconhecimento de uma pluralidade de valores aplicável à diversidade de seres naturais. Ou melhor, na direção de uma teoria pluralista capaz de admitir uma multiplicidade de critérios de consideração, vale dizer, uma diversidade de teorias normativas – em detrimento de uma fundamentação ontológica para essa ética.
Afinal, a natureza que passa a ser admitida como sujeito de direitos não é uma entidade uniforme e abstrata. Jacques Derrida faz observações valiosas a esse respeito. Assinala ele que a questão do animal e do limite entre o animal e o homem, de tão persistente na história da filosofia, chega a parecer constitutiva da própria filosofia. Malgrado as inúmeras divergências entre os filósofos sobre a definição do limite que separa o homem em geral do animal em geral, todos os filósofos sempre “[...] julgaram que este limite era um indivisível; e que do outro lado deste limite havia um imenso grupo, um só conjunto fundamentalmente homogêneo que se tinha o direito, teórico ou filosófico, de distinguir ou de opor, qual seja, o do Animal em geral.” (DERRIDA, 2002, p. 76). Embora Hans Jonas estabeleça distinções e gradações no interior do reino animal, sobretudo de ordem evolutiva, ao insistir no caráter transanimal do homem, delimitando com clareza o próprio do homem, ele não deixa então de tratar o animal no singular genérico, como o Animal em geral, uma entidade homogênea e abstrata de que se exclui o homem[21]. Isso tende a comprometer o êxito de sua ambiciosa proposta.
É pernicioso o pressuposto monista que toma a natureza como entidade uniforme e abstrata. Como observa Hicham-Stéphane Afeissa, em seu estudo
La communauté dês êtres de nature,
[...] o fracasso parcial de algumas tentativas mais ambiciosas, empreendidas em nossos dias, no âmbito da ética do meio ambiente, parece ser devido, precisamente, à persistência deste tipo de pressuposto monista. [...] Contrariamente a tais propostas, uma teoria moral pluralista contesta a existência de uma teoria exclusiva capaz de fornecer uma única boa solução e sustenta, ao contrário, que evoluímos no seio de uma multiplicidade de contextos com os quais tecemos relações morais de tipos diferentes, exigindo, de nossa parte, que diversifiquemos os ângulos de ataque para analisar e procurar resolver as dificuldades morais com que nos deparamos. (AFEISSA, 2010, p. 89, tradução nossa).
Dessa perspectiva, é o confronto das mais diversas intuições morais dos agentes envolvidos que permitiria alcançar uma comunidade de percepção e sentimentos. Ora, um processo de tal natureza requer, é certo, a ingerência da faculdade de identificação mimética, somente ela capaz de fazer pressentir, na presença da singularidade concreta de cada ser natural em seu contexto ambiental próprio, a constelação de valores atinentes a suas finalidades e propósitos específicos[22].
Destarte, a cada vez e em cada situação particular, seremos solicitados a mobilizar de forma crítica nossas intuições morais em busca do juízo mais apropriado para fundamentar nossas decisões morais. Estar disposto a enfrentar reiteradamente a “provação do indecidível”, segundo expressão de Jacques Derrida, é o que caracteriza o autêntico agir moral responsável, e não o recurso cego a um prévio código de leis e regras de aplicação pretensamente universal. Na medida em que não nos é dado dispor de modelos decisórios preestabelecidos e infalíveis – sobretudo no contexto das relações entretecidas com animais não humanos, dotados que são eles de enorme diversidade – “[...] a reflexão deve necessariamente desembocar numa discussão pública e pluralista relativa aos princípios de moralidade, onde os diversos agentes possam confrontar suas diversas intuições morais.” (AFEISSA, 2010, p. 102).
Não seria ocioso observar, por fim, que a questão com que nos defrontamos aqui constitui uma das maiores dificuldades da nova ética proposta por Hans Jonas, a qual pretende contemplar um direito moral próprio à natureza.
A proposta de inclusão da natureza como objeto da ética é formulada em O Princípio Responsabilidade24. Buscando superar a limitação antropocêntrica da ética antiga, Jonas julga necessário ampliar o reconhecimento de “fins em si” para além da esfera do humano e admitir um direito moral próprio à natureza. Uma nova ética, cujos fundamentos seriam substancialmente diferentes da anterior, deve procurar contemplar “[...] não só o bem humano, mas também o bem das coisas extra-humanas.” (JONAS, 2006, p. 41). A natureza extrahumana, submetida quase que por inteiro ao nosso desmesurado poderio tecnológico, impõe a nós algo como uma exigência moral: “[...] não somente por nossa própria causa, mas também em causa própria e por seu próprio direito.” (JONAS, 2006, p. 41). Mais que mero sentimento nosso, com o qual poderíamos transigir, o apelo pela preservação da natureza é, escreve Jonas,
Assim entende esse autor a afirmação de Merleau-Ponty segundo a qual “[...] a animalidade é o logos do mundo sensível.” (BAILLY, 2013, p. 47). Entende-se por isso que cada animal institui seu logos próprio e original. É essa maneira original de pensar o mundo que devemos, em cada caso específico, almejar reconhecer e nos tornar capazes de respeitar.
24 Ver o item “Um direito moral próprio à natureza?”, que se encontra na secção III do capítulo I (JONAS, 2006, p.41).
“[...] um apelo mudo que parece escapar da própria plenitude ameaçada do mundo vital.” (JONAS, 2006, p. 42, grifo nosso).
Ora, a dificuldade inerente a essa sua proposta, que aqui procuramos acusar, reside justamente em conseguir fazer ouvir devidamente esse “apelo mudo que parece escapar da plenitude vital ameaçada” e reconhecer sua exigência como obrigatória. Não se permitindo conceber a natureza como um sujeito de direitos, como garantir que seus direitos sejam devidamente percebidos e respeitados, como quer Jonas, quando propõe que a natureza seja englobada como objeto de uma nova ética?
A questão é tratada por Lories e Depré, no estudo Vie et Liberté. Como acertadamente observam esses comentadores, Jonas procura fazer com que a natureza (o que inclui a natureza animal, evidentemente) seja devidamente considerada objeto da ética, sem, porém, admitir que a natureza possa ser reconhecida como um sujeito de direitos. Para Jonas, a natureza não pode ser alçada a sujeito de direitos, porque não é dotada de voz ativa que lhe permita enunciar suas reivindicações, além de não possuir qualquer tipo de obrigação para conosco, o que inviabilizaria qualquer arbitragem fundada na reciprocidade de direitos e deveres[23]. Contudo, se não nos é dado reconhecer a natureza como sujeito de direitos e, com Jonas, vemos o valor da natureza exclusivamente em sua propensão para alcançar a perfectibilidade suprema dos valores humanos, como assegurar que os deveres que temos para com a natureza – esses deveres sobre os quais tanto insiste a obra joniana – possam ser efetivamente contemplados? Eis a questão espinhosa que a obra de Hans Jonas, a nosso ver, deixa de responder satisfatoriamente.
Para que a natureza possa vir a ser concebida como um sujeito de direitos, é preciso admitir que sejamos capazes de estabelecer com os animais algum tipo de comunicação e mesmo algum tipo de relações de partilha e reciprocidade, certo que de formas diversas e em graus variáveis. Jacques Derrida recorre a Montaigne, a fim de nos fazer lembrar de uma tradição de enorme riqueza, mas relegada ao esquecimento desde que a forma moderna de pensar o animal (cartesiana e pós-cartesiana) se consolidou como hegemônica.
Essa tradição reconhece ao animal mais que um direito à comunicação, mais que um direito à linguagem como signo: concede um poder de responder. Citando Montaigne, escreve ele:
[...] esta faculdade que observamos neles [nos animais] de se queixar, de se contentar, de pedir socorro entre eles, de convidar ao amor, como eles o fazem pelo uso de suas vozes? Como eles não falariam entre eles? Eles falam a nós e nós a eles. De quantas maneiras falamos a nossos cães? E eles nos respondem. Outra linguagem, outros chamamentos partilhamos com eles e com os pássaros, com os porcos, os bois, os cavalos, e mudamos de idioma de acordo com a espécie. (MONTAIGNE apud DERRIDA, 2002, p. 19-20, grifo do autor).
Comentando a passagem bíblica em que Deus concede a Adão a incumbência privilegiada de nomear animais e coisas, Jonas (2004, p. 196) escreve:
O dar nome às coisas é visto aqui como o primeiro ato do ser humano recém-criado, e como ato eminentemente humano. É um passo para além da criação. Aquele que deu este passo, com ele prova sua superioridade sobre as outras criaturas e anuncia seu domínio futuro sobre a natureza. (Da secção “A universalidade do nome e da imagem” de Homo pictor).
Ora, falta ao movimento do pensamento joniano conceber criticamente o poder de nominação como associado ao poder de dominação. Sua obra se filia, em grande medida, à tradição segundo a qual a natureza parece triste, porque muda, isto é, porque incapaz de expressar seus sofrimentos pela linguagem. Falta à sua obra ousar levar em conta ou, ao menos, levantar a seguinte suspeição, que subverte essa tradição: a natureza é muda, porque triste, e triste em razão do sofrimento causado por ter recebido um nome. O que a deixa muda, o que a priva do poder de nomear e de responder em seu nome pode se dever precisamente a isto: ter recebido um nome determinado, ter sido determinada por um nome. Sua língua não poderia se ver tolhida pelo poder de nominação humano?[24] Eis o motivo crítico que escapa à obra de Hans Jonas. A incriminação que ele encerra não é o que nos faz, de fato, responsáveis?
ABSTRACT: Seeking to promote the reconciliation of man with nature and restore the order of creation fractured with the advent of modernity, the dominant movement of thought of Hans Jonas is to search for restore the dignity of animality, recognizing human attributes in animality, as the realm of inwardness. Although praiseworthy, the joniana vision of animality insists clearly define what is proper to man, which ends up hindering effective reception of moral rights specific to animal nature. In addition, it fails to recognize the participation in the opposite direction, the man in animality, which itself advocates. The faults we think is necessary to point out that thought are: 1) not unravel the other natural/animal as the forgotten for excellence in insistent affirmation of the specific difference of man; 2) does not favor an aesthetic-moral content of experience able to provide openness to otherness that the very man purges himself in affirmation of its transanimal character.
KEYWORDS: Hans Jonas. Transcendence. Animality. Human-animal relationship. Rights of the animal nature.
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LORIES, D.; DEPRÉ, O. Vie et liberté: phénoménologie, nature et éthique chez Hans
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Recebido em 19/01/2016
Aceito em 20/06/2016
[1] http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732016000400009
[2] Maurício Chiarello. Doutor pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, na Universidade Estadual de Campinas, Brasil. E-mail: chiarello@scientiaestudia.org.br
[3] Sobre a noção da alma animal em Hans Jonas, ver o capítulo “Movimento e sensação: Sobre a alma animal” da obra O Princípio Vida (JONAS, 2004, p. 122 ss.).
[4] Ver, por exemplo, a secção “A importância do cartesianismo para a teoria da vida” de O Princípio Vida (JONAS, 2004, p. 70 ss.).
[5] Ver, a propósito, o estudo “Ferramenta, Imagem e Túmulo: Do transanimal no humano” (JONAS, 2000, p. 59-63).
[6] Ver, a respeito, a secção “A liberdade transcendente do espírito” do ensaio “Matéria, espírito, criação” (JONAS, 2000).
[7] Este estudo integra O Princípio Vida (JONAS, 2004, p. 181 ss.).
[8] É bem possível que Hans Jonas não tivesse conhecimento de que alguns animais, como elefantes e chimpanzés, são capazes de atividades estéticas e plásticas, como nos relata Dominique Lestel, em L’animal est l’avernir de l’homme (LESTEL, 2010, p.66). Esta é uma constatação que reduziria em muito, certamente, a profundidade deste alegado fosso metafísico.
[9] Lemos, em O Princípio Responsabilidade: “O presente do homem [...] é sempre inteiramente pleno nessa presença problemática que ele é. Justamente este caráter problemático, que não está presente em nenhum outro Ser, essa condição permanentemente habitada pela transcendência [...] não pode ser ultrapassada na direção de uma claridade sem sombras, mas também não pode regredir até a característica não problemática da natureza animal.” (JONAS, 2006, p. 344; o último grifo é nosso).
[10] A propósito dessa comparação entre os domínios da interioridade em homens e animais, ver notadamente o estudo Matéria, Espírito e Criação (JONAS, 2010). Para uma melhor apreciação da proposta joniana de superação do dualismo espírito/matéria na distinção homem/animal, recomendamos ao leitor recorrer aos seguintes trabalhos, além do estudo mencionado acima: Ferramenta, imagem, túmulo: Do transanimal no humano (JONAS, 2000, p. 59 ss.); Homo pictor: Da liberdade da imagem (JONAS, 2004, p. 181 ss.).
[11] Para desenvolver a recriminação que fazemos a Jonas, em termos de uma recaída no antropocentrismo, ver o comentário feito por Olivier Depré e Danielle Lories, no estudo Vie et liberté, a propósito da crítica ao neofinalismo joniano e sua relação com o princípio antrópico (LORIES; DEPRÉ, 2003, p. 159).
[12] Também interessante, neste estudo, acompanhar o acertado reconhecimento, por parte da filosofia hegelinana, da liberdade e da inquietude que habita o reino animal; da voz animal como expressão de uma ipseidade precursora da linguagem e do pensamento (BURGAT, 2006, p. 194-205). Burgat observa ainda que Hans Jonas, cuja obra ela admira, em nenhum momento presta o devido reconhecimento à expositio hegeiliana sobre a animalidade, da qual sua obra bem poderia ser tributária.
Sobre a exposição da concepção de vida em Hans Jonas nessa obra, ver Burgat (2006, p. 143-156).
[13] A seguinte passagem da obra de Hans Jonas, em que pressentimos laivos de teodiceia, bem corrobora essa apreciação: “Suas criaturas, apenas na medida em que realizam a si próprias, justificam a ousadia
divina, mesmo seu sofrimento aprofunda ainda mais a plenitude harmônica da sinfonia. Dessa forma, aquém do bem e do mal, no jogo de azar da evolução [de que resulta uma exuberância notável], Deus não pode perder.” (JONAS, 2004, p. 266, grifo nosso). A passagem citada consta da secção “Imortalidade e existência atual” do capítulo 12 da obra O Princípio Vida.
[14] Segundo afirmam Olivier Depré e Danielle Lories (2003, p. 170-171), em seu estudo Vie et liberté, isso significa que a transcendência que nos distingue se perfaz, para Hans Jonas, mais propriamente no plano ético que no ontológico.
[15] Ver, a propósito, o estudo “Deus é um matemático? Sobre o sentido do metabolismo” que integra O Princípio Vida (JONAS, 2004, p. 98).
[16] Esta questão merece certamente um tratamento mais aprofundado, que o presente trabalho não comporta. O sentimento de responsabilidade moral, componente subjetivo-emotivo capaz de atender aos apelos do ser, é inegavelmente valorizado por Hans Jonas. As secções 8 e 9 do capítulo IV de O Princípio Responsabilidade são bastante eloquentes nesse sentido (JONAS, 2006, p. 156-164). No entanto, julgamos que esse sentimento de responsabilidade respalda-se, na obra joniana, apenas secundariamente na surda materialidade corpórea: falta a ela lastrear-se efetivamente no impulso de identificação mimética. Esse movimento de reconsideração do interior reprimido, do corporal renegado, não se põe em Hans Jonas, que preza em demasia o desenvolvimento das formas superiores, com seu consequente ganho de autonomia e autocontrole espiritual pelo aumento do poder de mediação e distanciamento.
[17] Esse mito fabulado por Jonas encontra-se na secção “Imortalidade e existência atual” do cap. 12 da obra O Princípio Vida (JONAS, 2004, p. 264).
[18] A título de provocação, poderíamos nos perguntar o quão distante se poria, de fato, o pensamento joniano do pensamento de Heidegger no que diz respeito à questão da animalidade. Afinal, encontramos em Hans Jonas a atribuição de uma “característica não problemática à natureza animal”, noção que faz lembrar a caracterização heideggeriana dos animais como seres “pobres de mundo”, meros viventes. Assim como nos deparamos com a definição do homem como “presença problemática”, que é fundamento de sua transcendência própria, algo único, ausente de qualquer outro ser (cf. JONAS,
[19] Ver, a este respeito, especialmente a obra Dialética Negativa (ADORNO, 2009).
[20] Nesse notável opúsculo, Bailly tece diversas variações sobre um mesmo tema central, que lhe é bastante caro, e que poderíamos resumir da seguinte maneira: mais do que abertura a uma distinta forma de vida, a presença de cada animal possui o condão de despertar em nós outra forma de pensar o mundo. Ao contrário do que afirma Heidegger, os animais são dotados de uma espécie de liberdade (e,
[21] De Jean-Christophe Bailly, há uma passagem preciosíssima a este respeito, que extraio de sua obra Le versant animal: “De um lado, pôr-se-ia o clã dominante, o clã daqueles que só permitem aos animais franquear o umbral [que separa homens de animais] sob formas convencionais que os mantém, apesar de tudo, a distância. De outro, pôr-se-iam aqueles que não sabem regulamentar esta distância, aqueles que se deixam perturbar com o menor alheamento ou com o menor vislumbre, aqueles para os quais a questão da partilha entre homem e animal não somente não se encontra regulamentada de forma definitiva, mas se recoloca a cada instante e a cada ocasião, desde que um animal se apresenta. Seria como uma encosta com duas vertentes. Numa delas, não se percebem animais; noutra, os animais estão presentes. A meu ver, somente esta é banhada pela luz do sol.” (BAILLY, 2013, p. 78-9). Por não assumir a asserção da natureza animal do homem com a necessária radicalidade, a obra de Hans Jonas termina por não se colocar, a nosso ver, na encosta mais ensolarada.
[22] Recorrendo uma vez mais aos instigantes estudos de Jean-Christophe Bailly, devemos admitir que cada animal constitui um mundo, precisamente o seu, na medida em que sua existência inaugura uma forma original (sem logos) de pensar o mundo, ou um modo de conhecimento do mundo.
[23] Cf. a respeito, (LORIES; DEPRÉ, 2003, p. 32-39). Extraio desta obra a seguinte declaração de Hans Jonas: “Com respeito à ideia de que a natureza deva ser considerada como parceira de uma relação de tipo contratual: a meu ver, isto não é consistente de um ponto de vista filosófico. [...] A natureza não é um sujeito de direitos. Só é um sujeito de direitos um sujeito capaz de dirigir a mim suas reivindicações e de reconhecer, por seu turno, que possuo direitos para com ele; direitos submetidos a uma arbitragem fundada na reciprocidade de direitos e deveres. Não possuindo obrigações para conosco, a natureza também não possui direitos no sentido de um sujeito de direitos” (JONAS apud LORIES; DEPRÉ, 2003, p. 32).
[24] No opúsculo O animal que logo sou, esse motivo de pensamento presente na obra de Walter Benjamin é magistralmente deslindado por Jacques Derrida (DERRIDA, 2002, p. 41-42).