O EmpirismO COnstrutivO, a DistinçãO EntrE Observar E Observar Que E a intEnCiOnaliDaDE[1]
RESUMO: No âmbito do empirismo construtivo, a célebre posição acerca dos objetivos da ciência de Bas van Fraassen, o ato de observar desempenha um papel crucial. Segundo Buekens e Muller defendem, em um artigo de 2012, o filósofo holandês deveria caracterizá-lo como um ato intencional, porque, na ciência, as observações são realizadas com um propósito. Nesta análise, que abordará também a distinção entre observar e observar que, introduzida por Hanson e Dretske, será mostrado que, ao contrário, considerações ligadas à intencionalidade do ato de observar são supérfluas para traçar a distinção entre entidades observáveis e inobserváveis da qual o empirismo construtivo depende.
PALAVRAS-CHAVE: Van Fraassen. Observação. Observabilidade. Empirismo construtivo. Intencionalidade.
O empirismo construtivo, a posição antirrealista proposta em 1980 por Bas van Fraassen, em seu livro A Imagem Científica, está notoriamente fundamentado na distinção entre entidades observáveis e inobserváveis. O fim da atividade científica seria, com efeito, segundo ele, prover-nos de teorias empiricamente adequadas, ou seja, que “salvem os fenômenos”, no sentido das partes observáveis do mundo, conforme o antigo ditado (VAN FRAASSEN, 2007, p. 22, 2008, p. 286). Dez anos atrás, o filósofo holandês chegou até a afirmar que aquilo que as ciências falam acerca das partes observáveis do mundo é verdadeiro, enquanto o resto não interessa (VAN FRAASSEN, 2005, p. 111). Assim, para explicar a sua visão do que é a ciência e, especificamente, qual é seu objetivo, van Fraassen precisa “[...] de uma viável distinção entre o que é observável e o que não é” (VAN FRAASSEN, 2004, p. 1, tradução nossa), como ele mesmo escreveu no prefácio à edição grega do referido livro, de dezembro de 2004.
A relevância dessa vertente filosófica, considerada por muitos autores como a principal referência do empirismo contemporâneo, e a maneira pela qual van Fraassen trata a questão da observabilidade desencadearam uma ampla discussão a respeito desse assunto, que, há mais de trinta anos de distância da publicação do livro que marcou o surgimento do empirismo construtivo, continua encontrando espaço e motivos de discussão em livros e revistas de filosofia.
O debate atual sobre a observabilidade, em filosofia da ciência, é fortemente influenciado pelo peso que van Fraassen atribui a essa questão e, particularmente, pelos posicionamentos às vezes contraintuitivos e polêmicos desse autor, como no caso de sua célebre recusa de considerar como instâncias de observações as detecções realizadas por meio de um microscópio. Com a publicação de A Imagem Científica, van Fraassen ofereceu novos horizontes e despertou um grande interesse para um assunto que começou a ser tratado algumas décadas antes pelos neoempiristas – com um viés, porém, bastante diferente – e que, em seguida, se inseriu no debate entre realismo e antirrealismo, sendo um de seus tópicos centrais.
Com efeito, na primeira metade do século XX o panorama da filosofia da ciência foi dominado pelo positivismo lógico, o qual propugnava uma reconstrução lógica da linguagem científica, com base na suposta possibilidade de subdividir o vocabulário da ciência em uma parte teórica e uma parte observacional.[3] Essa divisão no plano linguístico espelharia uma dicotomia existente no plano empírico, entre entidades observáveis e entidades inobserváveis.[4]
Carnap, Hempel e os outros filósofos neoempiristas, todavia, dedicaram-se ao estudo da formação e da estrutura das teorias científicas como se a separação da linguagem delas nos conjuntos LO e LT fosse um dado adquirido ou um fato óbvio. Talvez por achar que, se, no plano empírico, é sempre possível distinguir entre entidades observáveis e entidades inobserváveis, apesar da arbitrariedade na escolha de onde traçar a linha de separação, isso certamente se refletiria na possibilidade de uma correspondente distinção, no plano linguístico, entre vocabulário observacional e vocabulário teórico. Seja qual for o motivo, o resultado dessa atitude é que nenhum autor neopositivista levou a cabo uma análise satisfatória dessa questão, tanto em seu lado linguístico quanto, particularmente, em seu aspecto empírico.
Essa falta de clareza acerca de um assunto que, diversamente, representava o fundamento do positivismo lógico5 constituiu provavelmente o principal ponto fraco dessa posição filosófica (SPECTOR, 1966; BYERLY, 1968; LUNTLEY, 1982), entre outros, tanto que “a virada realista”, para usar uma feliz expressão de Michael Luntley (LUNTLEY, 1982, p. 245), aconteceu nos dois planos, seja naquele linguístico – particularmente com o artigo “What theories are not” (1962), de Hilary Putnam – seja naquele empírico – com o clássico “The ontological status of theoretical entities”, de Grover Maxwell, também de 1962.
Putnam mostrou a impossibilidade de se isolar um subvocabulário observacional no âmbito da linguagem, pois toda ela é “impregnada teoricamente”.6 Maxwell, ao invés, concentrou suas críticas sobre a distinção observável/teórico, afirmando tanto a impossibilidade de que ela possa ser realizada quanto a irrelevância que ela teria, mesmo que admitíssemos sua viabilidade, porque desprovida de qualquer significado ontológico.
Em uma passagem muito citada, a qual lembra de perto a admissão de Carnap, em An introduction to the Philosophy of Science (1974), de que há um
todavia, a diferença é normalmente grande o suficiente para que não haja dúvidas” (CARNAP, 1974, p. 228, tradução nossa). Essa vagueza não parece constituir um problema, tanto que Carl Gustav Hempel, outro eminente representante do empirismo lógico, chegou a afirmar que, para o estudo da estrutura das teorias, não importa saber onde tal linha divisória cai (HEMPEL, 1976, p. 105).
5 A importância dessa distinção para o neopositivismo é salientada por Mauro Murzi: “A distinção entre termos teóricos e termos observacionais é um princípio fundamental do positivismo lógico, e a visão de Carnap sobre as teorias científicas depende desta distinção.” (MURZI, 2001, p. 3).
6 Essa posição é compartilhada até pelo antirrealista van Fraassen e afirmada em A Imagem Científica (FRAASSEN, 2007, p. 37).
continuum que vai de observações sensoriais diretas até “observações” indiretas e muito complexas e que, como consequência, não há como traçar uma linha divisória inequívoca (CARNAP, 1974, p. 225), Maxwell (1962, p. 7 apud VAN FRAASSEN, 2007, p. 39) afirma que:
[...] há, em princípio, uma série contínua, começando com olhar através de nada, e contendo os seguintes elementos: olhar através de uma vidraça, olhar através de óculos, de binóculos, de um microscópio de baixa potência, um microscópio de alta potência etc., nessa ordem. A conseqüência importante é que, até aqui, estamos sem critérios que nos permitam traçar uma linha não-arbitrária entre “teoria” e “observação”.
E acrescenta que, dependendo do contexto, no mais das vezes, acontece de traçar uma linha onde for mais conveniente, exatamente como Carnap sustenta (cf. nota 4).
Realistas científicos e empiristas lógicos aludem à observação em termos similares, como se vê, nos anos 60. Ao que parece, esse é um ponto compartilhado, e a divergência entre as duas posições somente surge em uma fase seguinte, quando se passa a tratar, por exemplo, do “peso epistêmico” da observação, de sorte que, entre os autores, sejam eles realistas, sejam antirrealistas, ninguém parece ter sentido necessidade de aprofundar o significado do verbo observar. Essa, aliás, segundo outro filósofo holandês, Filip Buekens, era a situação ainda em 1999 (BUEKENS 1999, p. 4-6).[5]
Na discussão sobre a observação nos anos 60, uma importante contribuição foi oferecida por Norwood Russell Hanson, o qual propôs um ponto de partida diferente daquele compartilhado por realistas e antirrealistas. Em Patterns of discovery (1958), Hanson nega a existência de uma observação pura, asseverando que não somente a linguagem, como também o próprio ato de observar, é “carregado de teoria”. Lendo o primeiro capítulo, “Observation”, do qual se depreende que Hanson traz inspiração para suas afirmações da psicologia da Gestalt, além das obras de Duhem e de Wittgenstein, pode-se porém perceber que tal negação deve ser qualificada, para não ser interpretada de maneira errada. De acordo com Hanson, o sentido filosoficamente interessante de “ver” é aquele no qual a observação já traz consigo uma interpretação daquilo que é visto – e tal interpretação não é necessariamente o resultado de uma deliberação consciente, ou seja, de um raciocínio. Mas há um sentido “básico”, apesar de não interessante, segundo o qual aquilo que é visto é o mesmo para qualquer observador. O ponto é que, segundo Hanson, existe um outro sentido em que “ver” é impregnado teoricamente e é esse que acarreta conhecimento na visão.
Hanson, em outras palavras, introduz no debate sobre a observação e seu papel epistêmico a distinção entre observar e observar que, afirmando a relevância do segundo conceito para termos observações significativas, pois não há observações “imaculadas” a não ser no caso daquelas realizadas por idiotas ou por crianças muito pequenas (HANSON, 1969, p. 74).
Algo não muito distante das posições de Hanson é afirmado no seminal livro de Fred Dretske, de 1969, Seeing and knowing, no qual o filósofo norteamericano distingue entre dois sentidos do verbo “ver”. Existiriam, a saber, um “ver não-epistêmico”, que, como diz a própria locução utilizada por Dretske, não acarreta conhecimento[6], e um “ver epistêmico”, que praticamente coincide com o ver que de Hanson – tanto que o próprio Dretske se utiliza da expressão “ver que”. Na opinião de Dretske, é o “ver que” algo é o caso, segundo quatro condições que ele dita, que fornece razões conclusivas para crenças acerca daquele estado de coisas (DRETSKE, 1969, p. 120-124) e isso justifica o uso da locução ver epistêmico, que atrela a ação de ver à aquisição de conhecimento.
Vou expor e discutir quatro condições, que vou numerar para referência futura. Primeiramente, então, S vê que b é P, de um modo epistemicamente primário, somente se:
(i) B é P.
[...] (ii) S vê (não-epistemicamente) b.
[...] (iii) As condições sob as quais S vê (não-epistemicamente) b são tais que b não pareceria, para S, da maneira que parece ser, se ele não fosse P.
[...] (iv) S, acreditando que as coisas estejam assim como descritas em (iii), acredita que b seja P. (DRETSKE 1969, 79-88, tradução nossa).
É somente quando essas quatro condições estão preenchidas que S satisfaz tanto o requisito visual quanto aquele epistêmico exigidos quando dizemos que ele sabe que b é P porque pode ver que b é P. (DRETSKE, 1969, p. 121, tradução nossa).
Tanto Hanson quanto Dretske consideram que é o ver que que constitui a base adequada para descrever as observações científicas (HANSON, 1958, p. 12; DRETSKE, 1969, p. 205-207), e essa mesma opinião encontrou o favor de outros autores, até em época recente, como David Mitsuo Nixon, segundo o qual é o fato de observar que algo é o caso que é relevante para determinar se somos ou não justificados em acreditar em algo com base na observação (MITSUO NIXON 2004, nota 5, p. 8), e Filip Buekens e F.A. Muller, os quais consideram que nada de cientificamente interessante pode resultar de um ato que poderia ser descrito como o “ver não-epistêmico” dretskiano e que, pelo fato de o propósito da observação na ciência ser aquele de adquirir crenças relevantes para os interesses e os objetivos científicos do observador, somente algo próximo do “ver que” algo é o caso pode dar conta (make sense) da atividade científica (BUEKENS; MULLER, 2012, p. 96-98).
Contudo, existe uma maneira de ver mais básica, não-epistêmica, que impede que cada sujeito veja algo diferente, quando olha para a mesma entidade. O mundo é, portanto, objetivo e publicamente acessível, porque todos nós podemos, independentemente de nossa bagagem conceitual, ver (de maneira não-epistêmica) os mesmos objetos e eventos. A relatividade da percepção reside somente naquelas maneiras de ver que nos fornecem informação (DRETSKE, 1969, p. 76-77).
A assunção da existência de uma realidade externa à nossa mente, objetiva e publicamente acessível, parece ser uma condição necessária para que se possa “fazer ciência”, de sorte que constitui uma base compartilhada por várias posições filosóficas acerca dessa atividade humana – além de representar uma “barreira” contra o ceticismo. As percepções são vistas como uma resposta causal de nosso aparelho sensorial aos estímulos externos, fruto de nossa interação com o mundo ao nosso redor. Eventuais divergências aparecem alhures, a propósito de seu aspecto cognitivo.
Uma teoria causal da percepção já estava presente na obra de John Locke, e os vários trabalhos sobre a relação entre causação e percepção dos séculos XX[7] testemunham a larga aceitação dessa análise da percepção entre filósofos da ciência e epistemólogos, pelo menos nas duas décadas que antecederam a publicação de A Imagem Científica. Essa ideia de fundo encontra-se reafirmada na chamada “teoria pragmática da observação”, proposta por Paul Feyerabend no final da década de 1950 e retomada em seguida por Wilfrid Sellars, segundo a qual o discurso sobre o que significa observar se reduziria a um relato causal de uma interação entre observador e ambiente, na forma estímuloresposta (por condicionamento). Na observação, escreve o filósofo austríaco, o comportamento do organismo humano seria comparável àquele de um instrumento: “O que uma situação observacional determina (causalmente) é a aceitação ou a rejeição de uma sentença, ou seja, um evento físico. Enquanto essa cadeia causal envolve nosso próprio organismo, encontramo-nos no mesmo patamar que os instrumentos físicos.” (FEYERABEND, 1958, p. 19, tradução nossa).
Essa abordagem é totalmente compatível com aquelas de Hanson e Dretske, para os quais a observação como mera reação a um estímulo externo representa o sentido “mais básico” e desinteressante do verbo ver, no caso de Hanson, e do “ver não-epistêmico”, no caso de Dretkse. Aquilo que esses autores contestam é que as percepções “puras” possam ter um papel significativo na aquisição de conhecimento e somente as consideram em seu aspecto cognitivo,[8] o qual, para eles, está intimamente ligado ao fato de “observar que” algo é o caso, desconsiderando o aspecto causal que somente diz respeito à produção das observações.
Conforme será mostrado a seguir, todavia, até observações que poderiam ser tomadas como o resultado de um “ver não-epistêmico” (e o mesmo vale, obviamente, para as outras modalidades sensoriais) desempenham um papel significativo na ciência, contrariamente à opinião de Hanson e Dretske, de Buekens e Muller e de outros. É esse o caso, quando se julga a adequação empírica de uma teoria, por exemplo, o que constitui, na perspectiva do empirismo construtivo de van Fraassen, um momento central da prática científica. Assim, as propostas dos autores acima mencionados, de se levar em conta ulteriores aspectos da observação, que vão além de um relato da mesma como mera reação a um estímulo externo, podem, na verdade, ser desconsideradas.
Quando, em 1980, van Fraassen publica A Imagem Científica e propõe uma nova versão de empirismo, em uma época em que o realismo científico parecia dominar o panorama da filosofia da ciência mundial, ele não está indiferente ao pano de fundo conceitual delineado nas seções anteriores e escolhe endossar a teoria pragmática da observação de Feyerabend e Sellars (VAN FRAASSEN, 1992, p. 14), acatando, assim, conforme afirma, uma doutrina central dos realistas e confirmando que essa abordagem da questão do ato de observar é, na verdade, compatível com uma posição antirrealista. Ela constitui, desse modo, um ponto de partida neutro e compartilhado por posições filosóficas divergentes acerca da ciência.
No livro, o filósofo holandês assevera que o organismo humano é um certo tipo de aparato de mensuração (VAN FRAASSEN, 2007, p. 42) e que o processo de observação é uma subespécie do processo de medição (cf. também VAN FRAASSEN, 1985, p. 304). Em 1992, também escreveu que, “[...] se podemos ou não observar algo é mais ou menos a mesma questão de se uma pessoa pode funcionar como um detector (aparato de medição) da presença de tal tipo de coisa (no sentido da medição em física).” (VAN FRAASSEN 1992, 14, tradução nossa).
Em mais de um ponto de A Imagem Científica, van Fraassen se mostra preocupado em afirmar a independência das observações em relação às teorias, para evitar que se pense que a sua versão do empirismo sofra do mesmo problema da vertente anterior, neopositivista, a qual queria reconstruir a linguagem da ciência a partir de um vocabulário observacional neutro, quando, ao invés, toda linguagem é impregnada de teoria. No plano empírico, a situação é diferente, de acordo com o filósofo holandês, apesar de a distinção entre observáveis e inobserváveis ser estabelecida no interior da própria ciência.[9] Tal distinção somente depende de fatores físico-biológicos, como a constituição fisiológica dos seres humanos e aquela do mundo,[10] pelo fato de a observação ser uma mera “detecção humana”, e pode certamente ser realizada, constituindo a base sobre a qual van Fraassen construiu o próprio edifício filosófico.
O mesmo tipo de preocupação, segundo André Kukla, está por trás da polêmica escolha de van Fraassen de aceitar como observações somente aquelas realizadas sem utilizar-se de instrumentos, que foi objeto de muitas críticas desde que essa tomada de posição foi expressa, em A Imagem Científica (VAN FRAASSEN, 2007, p. 38-42), mas que, não obstante, van Fraassen defendeu em vários textos, ao longo dos anos, até mesmo em seu livro mais recente, Scientific Representation: Paradoxes of Perspective, de 2008.[11] Kukla salienta que van Fraassen restringe o observável àquilo que é detectável sem instrumentos, a fim de evitar que a distinção entre observáveis e inobserváveis, crucial para o empirismo construtivo, seja dependente do contexto,[12] com todos os problemas que isso acarretaria (KUKLA, 1996, p. 205).
Ciente do estado da arte do debate na época em que escreveu o seu livro mais famoso e preocupado para com a intersubjetividade e a objetividade da observação, que por isso não pode ser dependente do contexto ou de teorias, van Fraassen (2007, p. 38-39) deteve-se brevemente sobre a distinção entre observar e observar que, no segundo capítulo de A Imagem Científica.
O nível de consciência que a observação requer,[13] conforme o filósofo holandês, não tem nada a ver com uma eventual necessidade de o sujeito estar conceitualmente ciente de um determinado estado de coisas, para que ele possa observar. Até uma pessoa que não sabe o que é o jogo de tênis, por exemplo, pode observar uma bola de tênis, mesmo que não possa observar que aquele objeto é uma bola de tênis, porque teria primeiro que aprender muito. Van Fraassen está, muito provavelmente, fazendo referência à distinção entre ver e ver que proposta por Dretske,[14] o qual, como foi visto, chama o primeiro conceito de “não-epistêmico”, pelo fato de a posse de uma crença ou de um sistema de crenças não constituir uma condição logicamente indispensável para que um sujeito veja algo (DRETSKE, 1969, p. 13), enquanto o segundo seria “epistêmico”, porque leva a uma crença acerca daquilo que é visto, mas pode também ser influenciado pelos fatores capazes de influir em nossas crenças, como as experiências anteriores, os hábitos classificatórios etc. (DRETSKE, 1969, p. 76-77). Mas o filósofo holandês não aceita que seja esse segundo o conceito-base para termos observações úteis na ciência.
Van Fraassen adota o verbo “observar” em sua acepção mais básica, desvinculando o ato de seu aspecto cognitivo, ou melhor, achando que uma descrição em termos meramente físico-biológicos (causais) como aquela fornecida pela abordagem pragmática de Feyerabend, mas qualificada,[15] poderia servir para os propósitos dele.
Considerando a maneira como van Fraassen concebe as teorias científicas e seus objetivos, parece lícito dizer que, de fato, a exigência de se tomar como observações somente aquelas que decorrem de uma ação que permite uma descrição em termos de observar que é demasiado forte. Com efeito, mantendo-se na esteira da tradição empirista, van Fraassen afirma que a principal virtude que as teorias podem apresentar é a capacidade de “salvar os fenômenos” e, como foi frisado na abertura deste trabalho, gerar teorias que sejam capazes de inserir nossas observações em uma armação conceitual coerente e informativa, de maneira a representar fielmente a parte observável do mundo, constituiria o próprio objetivo da ciência (VAN FRAASSEN, 2007, p. 33-34). Quando se diz que uma entidade é observável, se a mesma pode ser observada – é simplesmente isso que, em outras palavras, o adjetivo significa –, a possibilidade diz respeito apenas às limitações físico-biológicas da comunidade epistêmica e à constituição do mundo (cf. nota 12) e não a eventuais outras limitações decorrentes da bagagem conceitual de quem observa – mesmo a observação de uma bola de tênis, por parte de uma pessoa conceitualmente não ciente desse esporte, deve ser salva, portanto.
É por isso que até mesmo um famoso adversário de van Fraassen, o realista Stathis Psillos (2000, p. 62) enfatizou que observável é aquilo que as leis da natureza permitem que seres com uma certa bagagem biológica observem, não levando em conta eventuais limitações de natureza cognitiva. A crucial distinção entre entidades observáveis e inobserváveis pode, pois, ser realizada desconsiderando-se aquela entre ver e ver que, que Hanson e Dretske introduziram.[16]
Em 1999, como já foi aqui destacado, Filip Buekens afirmou a necessidade de se aprofundar o significado do verbo observar, que realistas e antirrealistas estariam dando por óbvio e que não pode ser “naturalizado” como, diversamente, van Fraassen faz. Como outras ações humanas, o ato da observação somente poderia ser caracterizado de maneira satisfatória, se compreendido como interação intencional com o próprio ambiente natural (BUEKENS, 1999, p. 5) e não descrito (apenas) em termos físico-biológicos. Essa ideia foi retomada em 2012, quando Buekens publicou, em parceria com o também holandês F.A. Muller, o artigo “Intentionality Versus Constructive Empiricism”. No artigo, os dois autores, inspirados pela obra de Dretske e no trabalho anterior de Buekens, o qual introduziu a questão da intencionalidade no debate sobre a observação, identificam vários níveis no processo de observação, os mais baixos dos quais seriam a observação concebida como mero registro (algo que pode ser feito até por aparelhos fotográficos) e a observação como registro, porém, “com consciência” do evento (realizável pelos seres humanos e por outros animais), enquanto os mais altos seriam a observação “doxasticamente orientada” e a observação “doxástica” (a qual coincidiria com o observar que, de van Fraassen e Mitsuo Nixon). Somente os dois últimos níveis seriam classificáveis como atividades intencionais e, por essa razão, capazes de “dar conta” (make sense) da ciência, segundo os dois autores, já que, na ciência, a observação se efetiva com um objetivo. É a observação concebida como ação intencional, portanto, que, segundo eles, deveria constituir a base para o empirismo construtivo, porque este se propõe como posição capaz de compreender e explicar a atividade científica (BUEKENS; MULLER, 2012, p. 94-98).
Isso já mostra, mas não é o único argumento, que não é somente o observar que algo é o caso que deveria servir para produzir observações úteis para a ciência. Observar com a intenção de adquirir uma crença, que estaria um degrau abaixo em relação ao “observar que”, também descreve ocorrências de observações comumente realizadas na prática científica. Mas não basta.
O fato de que, apesar de não ser necessário endossar o observar que como base para termos observações significativas na atividade científica,[17] a observação na ciência deveria ser caracterizada levando-se em conta o aspecto intencional da ação, parece igualmente ser uma exigência demasiado forte ou, pelo menos, desnecessária. Com isso não se quer negar que aquilo que um indivíduo faz, particularmente quando se trata de uma ação levada a cabo após deliberação, pode ser descrito e compreendido de maneira bem mais eficaz se a intencionalidade é levada em conta na análise. Existem, porém, motivos para se resistir a uma leitura intencional da observação, particularmente quando se fala dela no âmbito científico. A ciência é um empreendimento coletivo, da comunidade epistêmica (que, segundo van Fraassen, coincide com a raça humana) como um todo, e as motivações de um indivíduo, tomado singularmente, para dedicar-se a essa atividade, não ajudam em nada a entender o objetivo de um experimento que ele está fazendo, por exemplo.[18] Quando, vinte anos atrás, eu era um estudante de física, uma vez realizei uma série de observações em laboratório para medir o índice de refração relativo entre água e ar. O objetivo do experimento era justamente esse: obter um valor numérico para o índice de refração, e o fato de que minha motivação pessoal fosse passar na disciplina de Laboratório nada acrescentaria à descrição da atividade que executei, no interior do departamento de física da universidade onde estudei. O mesmo ponto é expresso por van Fraassen, em A Imagem Científica, quando assinala que o objetivo da ciência não deve ser identificado com as motivações de cada cientista, considerado individualmente, porque a situação é a mesma que no jogo de xadrez, cujo objetivo é dar xequemate ao adversário, mesmo que a motivação do jogador possa ser tornar-se famoso e ganhar dinheiro (VAN FRAASSEN, 2007, p. 28). Como distinguir entre objetivos, em uma descrição intencional? Como separar o “interesse coletivo” das motivações pessoais do agente e desconsiderar essas últimas? E, acima de tudo, qual a utilidade disso para sabermos se uma certa observação é significativa para a atividade científica?
Buekens faz uma analogia entre a observação e o ato de provar um teorema matemático: para ele, o fato de que essa atividade possa ser descrita em termos meramente físicos não significa que a física tenha algo de interessante a dizer sobre a natureza das provas matemáticas. Por isso, pensa que o ato de observação não pode ser naturalizado, ou seja, descrito utilizando-se apenas uma linguagem fisicalista, sob pena de perder boa parte de seu sentido e de seu conteúdo.21 E acrescenta:
[...] nenhuma descrição física das interações de uma criatura com seu ambiente pode estabelecer quais delas foram realizadas com o objetivo de testar a adequação empírica de uma teoria, quais delas foram justificadas por crenças acerca daquilo que pode ser observado, e quais interações
a seguir que, seja qual o for o sentido que se queira atribuir ao conceito, ele parece ser supérfluo para os propósitos de van Fraassen. Vale ainda salientar que, porém, a interpretação de Buekens e Muller é legítima, conquanto incomum. Com efeito, como explica em um recente artigo, Katalin Farkas: “[...] a intencionalidade é comumente caracterizada como a propensão da mente em direção aos seus objetos. Essa caracterização deixa espaço para uma variedade de concepções diferentes da intencionalidade [...]. Concepções diferentes da intencionalidade podem resultar em classificar a experiência sensorial como intencional ou não-intencional de maneiras diferentes.” (FARKAS, 2010, p. 149, tradução nossa). 21 Segundo alguns defensores da visão fisicalista do mundo, todavia, até propriedades que não figuram no âmbito de análise da física (a qual é imprescindível para a definição do fisicalismo), como é o caso dos estados mentais, podem ser reduzidas a propriedades físicas – segundo a posição conhecida como reducionismo – ou podem ser determinadas por propriedades físicas – conforme a tese da superveniência (ZILIO, 2010). Por conseguinte, a afirmação de Buekens não é tão pacífica.almejam adquirir crenças acerca de como o mundo é. (BUEKENS, 1999, p. 21, tradução nossa).
Por essa razão, ele escreve, não é possível estabelecer, a partir da maneira como os seres humanos interagem fisicamente com o ambiente, quais interações contam como observações genuínas de objetos ou eventos distais. Parece que, de acordo com Buekens, uma percepção somente pode ser tomada como uma observação “genuína”, se for o resultado de uma ação proposital – e a mesma impressão deixa o artigo de 2012, escrito em parceria com Muller.
Entretanto, no artigo de 2012, é admitido que, na ciência, frequentemente acontecem “descobertas” que nos surpreendem, resultado de observações realizadas de forma inesperada. Isso significa que observar que algo é o caso nem sempre representa uma ação intencional (BUEKENS; MULLER, 2012, p. 96). Essa mesma ideia já se encontra expressa no artigo de Buekens (1999), onde se lê que observar não necessariamente constitui uma ação intencional, porque pode acontecer de maneira acidental, mas que, igualmente, no contexto da pesquisa empírica, a observação é mais bem descrita e compreendida como uma atividade intencional (BUEKENS, 1999, p. 15).[19]
O que fazer, pois, dessas observações que acontecem inesperadamente e que, no entanto, se mostram úteis ou até cruciais para o desenvolvimento científico, uma vez que não são o resultado de uma ação proposital? Se a finalidade de uma análise sob a perspectiva da intencionalidade fosse somente aquela de determinar se o ato de observar foi feito com um propósito “cientificamente respeitável”, então se trataria de uma busca de uma informação inútil para determinar se a observação que resulta daquele ato serve para a ciência ou não. Observações significativas podem ser o resultado de uma percepção casual, sem uma “disposição para a crença” inicial.
A intencionalidade, na verdade, não é identificável com o propósito (consciente) do agente, quando se aborda isso em filosofia.[20] No entanto, nada é acrescentado a uma ação, quando ela é descrita como intencional, conforme ressalta Elizabeth Anscombe (BUEKENS, 1999, p. 11), e por isso Buekens acha que pode ser interessante adicionar uma descrição intencional à observação, além daquela “mecânica”. Contudo, como foi frisado, a ciência é um fenômeno coletivo, e cada aspecto diretamente ligado a ela deve ser avaliado nessa perspectiva. É o caso da observabilidade, por exemplo, onde aquilo que conta são os limites perceptivos da raça humana e não aqueles de um indivíduo considerado em sua singularidade (BOURGEOIS, 1987, p. 307). Similarmente, no caso da observação, aquilo que interessa é saber se uma determinada percepção vale como observação ou não, e para esse tipo de avaliação não parece ser necessário levar em conta a intencionalidade da ação que a produziu.
Outros fatores, ligados à necessidade de se achar critérios compartilhados pela comunidade epistêmica como um todo, são importantes para tal apreciação e evidenciam a insuficiência de uma caracterização baseada unicamente na abordagem pragmática feyerabendiana; decidir se valem como observações aquelas realizadas utilizando-se de um microscópio, entender quanto de um objeto deve ser visto para poder dizer que ele foi observado e outras considerações similares (ALSPECTOR-KELLY, 2004; CHANG, 2004, etc.), por exemplo, parecem necessárias para poder estabelecer quando temos de fato uma observação à disposição. Para o teste da adequação empírica de uma teoria, ou seja, para o contexto da prática científica, uma análise desse tipo parece imprescindível. Eventuais outras considerações, ligadas à intencionalidade do ato de observar, ao invés, somente dizem respeito ao agente e não à observação em si (entendida como “produto final” e não como ação) e parecem supérfluas. Se nada acrescentam, portanto, melhor deixá-las fora da discussão, à la Occam.
Com efeito, Buekens e Muller consideram que existem (dois) níveis intermediários entre o mero ver concebido de maneira não-epistêmica, ato realizável até por um artefato capaz de registrar imagens, e o ver que algo é o caso, o qual somente pode ser levado a cabo por um ser humano dotado de uma certa bagagem conceitual. O terceiro nível, como se destacou, seria constituído pela ação de ver “com um propósito em mente”; esse, por sua vez, se dividiria em dois subníveis: o primeiro deles seria “observar com a intenção de agir”, algo que ainda alguns animais são capazes de realizar, e o segundo seria “observar com a intenção de adquirir uma crença”. É a partir desse “nível 3b” que teríamos um tipo de ação que somente os seres humanos podem executar, pois o domínio de uma linguagem constitui uma condição necessária para que alguém possa encontrar-se no estado mental a que chamamos de crença. Conforme os dois autores, as ações que correspondem aos dois últimos níveis são instâncias de um comportamento humano com um propósito, e isso torna esses conceitos intencionais (BUEKENS; MULLER, 2012, p. 98). Somente a partir do terceiro nível, por conseguinte, Buekens e Muller empregam o verbo observar.
O segundo nível que eles identificam, porém, chama atenção. A capacidade de tornar-se conscientes de um determinado objeto, por tê-lo visto, pressupõe a posse de uma mente e, por isso, somente pode ser compartilhada por (alguns) seres vivos. Ademais, ainda segundo os dois filósofos holandeses, ver um objeto dessa maneira resulta em um estado mental intencional (BUEKENS; MULLER, 2012, p. 95). Com efeito, meros movimentos reflexos, que são não-intencionais, podem causar crenças, como qualquer outro fenômeno físico. Por exemplo, se tomo um choque e meu braço se levanta, esse mero movimento corporal pode resultar em uma crença de que meu braço se levantou.[21] Buekens e Muller, cientes dessa possibilidade, admitem que nem todo ver que algo é o caso é o resultado de uma observação doxasticamente orientada. Contudo, será que toda crença que decorre de um ato não-intencional somente pode ser descrita como sendo uma instância de ver que algo é o caso, assim confirmando a opinião segundo a qual somente os dois últimos níveis descritos no artigo de 2012 podem resultar em observações “genuínas”, conforme os autores deixam entender? Retomando o exemplo proposto por van Fraassen, em A Imagem Científica, o que deveríamos então dizer a propósito daquela pessoa “do povo da Idade da Pedra”? Imaginando que tenha se deparado acidentalmente com uma bola de tênis, enquanto estava caminhando na floresta “pensando na vida”, deveríamos por acaso concluir que ele não observou a bola ou que a observação dele não é genuína, porque o sujeito não estava com a intenção de adquirir uma crença, além de não conhecer esse esporte? Ou podemos atribuir “dignidade” à percepção visual dele e chamá-la de observação, mas somente reconhecendo que, afinal, se tratou de uma instância acidental de ver que algo é o caso? No primeiro caso, negar que o sujeito tenha observado a bola de tênis “é simplesmente tolo”, para usar as palavras de van Fraassen (VAN FRAASSEN, 2007, p. 38). No segundo, não podendo tampouco negar ser verdade que o protagonista do exemplo “não viu que é uma bola de tênis” (VAN FRAASSEN, 2007, p. 38), a única saída seria admitir que existem níveis diferentes de observar que algo é o caso.[22]
De fato, provavelmente o conceito de ver epistêmico admite graus e seria até estranho se não fosse assim. Em 29 de maio de 1919, uma equipe de astrônomos ingleses estava em Sobral, no interior do Ceará, para observar e fotografar um eclipse total do Sol. Os resultados das observações deles serviram para verificar a previsão de Albert Einstein para o desvio da luz de uma estrela, ao passar perto do Sol. Nada nos impede imaginar que os astrônomos ingleses nada soubessem acerca do real objetivo da expedição e que tenham observado e registrado a posição das estrelas durante o eclipse, sem se dar conta do “desvio de posição” de algumas delas (podemos até imaginar que os ingleses, passando mal por causa do sol e do calor do interior cearense, tivessem pedido para o guia local fazer esses “registros” para eles). Supondo que os “registros” deles (ou do guia cearense) devam ser considerados como observações26 (como aconteceu), qual seria o nível de “consciência conceitual” embutido nelas, nesse caso? Os membros da equipe observaram que as estrelas aparentemente se deslocaram? Observaram que o Sol desvia a luz de uma estrela, quando o raio passa perto dele? Observaram que objetos massivos deformam a geometria do espaço próximo deles? Ou observaram que a previsão de Einstein estava correta? E nos outros casos? Ou deveríamos concluir que somente Einstein, se estivesse presente, poderia ter observado o desvio das estrelas, pelo fato de somente ele ter o nível de consciência conceitual necessário para que a detecção constituísse uma observação útil para confirmar a teoria da relatividade geral? Se uma percepção somente gozasse do estatuto de observação se fosse uma instância de observar que algo é o caso, então seria necessário admitir que a observação é totalmente dependente do contexto, dos interesses e da bagagem conceitual de cada um.27 Seria a “catástrofe lógica” temida por van Fraassen (2007, p. 117).
que o objeto é uma bola de tênis, porém, observa que é redondo, amarelo etc. Senão, tendo em vista a complexidade do processo causal que resulta na observação, não haveria motivo de dizer que aquilo que foi observado foi a bola e não, por exemplo, a radiação eletromagnética ou uma mudança nos olhos do observador (CREATH, 1988, p. 150).
26 O fato de que, nesse caso, as observações tenham acontecido como resultado de uma ação proposital não afeta o argumento proposto. Seria fácil imaginar outra situação na qual somente mudasse esse aspecto do ato realizado: todas as outras considerações e as conclusões permaneceriam inalteradas.
27 Essa é a opinião de Richard Creath, que decorre da ideia segundo a qual o mero observar (aquele que seria distinto de observar que) já envolve conceitos. Se algo é corretamente classificado como uma observação ou não depende do contexto de pesquisa, de acordo com o filósofo norte-americano (CREATH 1988, p. 151). Contudo, Jerry Fodor, filósofo e cientista cognitivo norte-americano, afirma que, apesar de em psicologia cognitiva haver teorias que tratam de uma continuidade entre percepção e cognição, não é lícito inferir uma não-neutralidade da observação, porque a reação de dois organismos diferentes frente ao mesmo estímulo sempre dá lugar à mesma observação (FODOR, 1984). Como ressalta Valerie Gray-Hardcastle, ademais, vários experimentos de psicologia e de outras ciências mostram que nós possuímos uma estrutura “prototeórica” que nos força a ver o mundo de
Não parece, enfim, que o conceito de observar que possa ser proposto como base para um discurso acerca do empreendimento científico, a despeito de certamente desempenhar um papel importante na ciência – graças às observações realizadas no Ceará e em outros lugares do planeta, por exemplo, astrônomos puderam observar que as previsões de Einstein estavam corretas.
Melhor, provavelmente, é pensar que percepções acidentais de pessoas28 desprovidas de qualquer informação sobre o objeto que provocou o estímulo visual (e o mesmo vale para qualquer outra modalidade sensorial) já podem ser consideradas como observações, como van Fraassen faz. O homem da Idade da Pedra do exemplo dele observou, de fato, a bola de tênis, e esse tipo de observação é genuíno e cientificamente respeitável.29 Não é uma descrição de uma percepção como sendo uma instância de observar que algo é o caso que vai nos dizer se ela resultou em uma observação ou não. Mas tampouco uma análise da mesma sob a ótica da teoria da intencionalidade serve para saber quando, a partir de um estímulo externo, o que se obtém é uma observação “digna desse nome”, como esse exemplo acabou de demonstrar.
Quando van Fraassen nos convida a imaginar o caso do homem da Idade da Pedra, entretanto, ele o faz em um contexto no qual, em A Imagem Científica, está discutindo a viabilidade da distinção observável-inobservável, respondendo ao argumento de Maxwell, citado anteriormente, e esclarecendo o que ele entende por observável. Para tal distinção, como se sublinhou, nem a teoria pragmática da observação, apesar das qualificações que o filósofo holandês acrescenta, é suficiente. Entretanto, observar não serve somente para poder caracterizar aquilo que é observável. A observação, quando realizada no mundo real, acompanha a construção e o teste de teorias (VAN FRAASSEN,
uma determinada maneira – um pouco como Kant assinalara. Mas a resposta do organismo humano aos estímulos é sempre a mesma, e temos teorias que nos explicam como o mundo deve ser, para que a resposta do nosso aparato perceptivo seja aquela que é (GRAY-HARDCASTLE 1994), portanto, o “relativismo” vislumbrado por Creath a partir do fato que o mero observar já envolve conceitos “básicos” não parece ser uma consequência inevitável.
28 É possível sustentar que, para van Fraassen, observar coincide (ou começa) com o segundo nível de ver identificado por Buekens e Muller, mas que, diferentemente deles, isso somente pode ser realizado por um ser humano – porque “[...] observadores são acreditadores em potência”, como escreveu William Seager (1988, p. 181, tradução nossa).
29 Quando menos porque, como foi explicitado no final da seção 6, na ótica do empirismo construtivo, as teorias científicas devem “salvar” todas as observações, até aquelas realizadas por pessoas não conceitualmente cientes daquilo que detectaram – como nesse caso. No entanto, principalmente, porque o “registro” do homem da Idade da Pedra pode servir para outra pessoa fazer algum tipo de inferência, como aconteceu no caso das observações realizadas no Ceará, em 1919, conforme será explicado a seguir.
2007, cap. 4) e, a despeito de van Fraassen não comentar nada a propósito,[23] esse tipo de atividade provavelmente requer uma seletividade em relação às percepções que, na determinação do alcance do adjetivo observável, não é necessária – na prática científica, nem toda percepção é normalmente tida como evidência, por exemplo. Contudo, isso não significa que a única maneira de complementar (ou substituir) uma descrição do ato de observar em termos físico-biológicos seja aquela de introduzir uma análise da ação na perspectiva da teoria da intencionalidade, como proposto por Buekens e Muller. Eles evocam o antirreducionismo, que vale para as ações intencionais, para o ato de observar. Mas o fato de que este não possa ser naturalizado, quando considerado em um contexto real, não significa que então deveria ser analisado intencionalmente. Aquilo que é preciso, quando se trata de avaliar a percepção no contexto da prática cotidiana, é uma análise que permita estabelecer se o produto dela é uma observação “genuína”, como diria Buekens, porém, sem lançar mão da teoria da intencionalidade, a qual não parece útil e nem necessária para esse fim.
Uma outra questão que pode confirmar essa opinião está ligada ao conceito de comunidade epistêmica, onde, assim como foi antecipado, vale o lema “Observabilidade para um é observabilidade para todos”, cunhado por Warren Bourgeois, em 1987 (BOURGEOIS, 1987, p. 307). A atribuição da propriedade de “ser observável” a um dado fenômeno não é fruto de um consenso entre os membros da comunidade ou resultado de um debate para decidir acerca dessa atribuição. Basta que pelo menos um membro tenha observado (ou seja capaz de observar) tal fenômeno, mesmo não-intencionalmente, para que ele seja tomado como observável para a comunidade como um todo. Isso pode ser depreendido de uma atenta leitura de A Imagem Científica (VAN FRAASSEN, 2007, p. 42-45) e foi atestado em 1992, quando van Fraassen asseverou que “[...] computadores laptop são portáteis e copos de vinho frágeis, mesmo que algumas pessoas sejam demasiado fracas para carregá-los ou até quebrá-los” (VAN FRAASSEN, 1992, p. 18-19, tradução nossa).
A mesma linha de raciocínio pode ser estendida à distinção entre observar e observar que.
No Estado do Acre, em 2008, foi “descoberta uma nova tribo de índios”, desconhecidos até então, que viviam isolados e nunca tiveram contato com o homem branco. Se, dias antes, um deles tivesse dito a Roger Federer que viu um objeto esférico, de aproximadamente 6,7 centímetros de diâmetro, de borracha, mas revestido por feltro, de cor amarela e que pesava aproximadamente 58 gramas, mas que não sabia o que era, o suíço teria certamente concluído que o índio tinha observado uma bola de tênis. Poderia até ter inferido mais informações sobre o suposto isolamento da tribo, a partir da observação relatada – que, novamente, podemos imaginar ter sido acidental.
Análoga é a situação da equipe de astrônomos que, em 1919, estava em Sobral para observar e fotografar um eclipse total do Sol, à qual nos referimos. Os resultados de suas observações serviram para verificar a previsão da teoria da relatividade geral para o desvio da luz de uma estrela, ao passar perto do Sol. Nesse caso, podemos perceber que Einstein se utilizou das observações de outrem para realizar inferências. E isso é muito comum na ciência e na prática científica (BUEKENS, 1999, p. 12-13, 15; BUEKENS; MULLER 2012, p. 98). E não somente.[24]
Toda “gravação humana”, enfim, pode servir para observar que algo é o caso, se consideramos que a ciência é um produto da comunidade epistêmica e não de indivíduos singulares e que aquilo que vale para o adjetivo observável (observabilidade para um é observabilidade para todos) pode valer igualmente para o verbo observar.[25] A distinção entre observar e observar que, enfim, não parece poder ser traçada de uma maneira viável para quem propõe empregar o segundo como base para um discurso a respeito da ciência, de suas práticas e de seus objetivos. A posição de van Fraassen a esse respeito parece apropriada. Analogamente, parece oportuno deixar de lado também discursos acerca da intencionalidade do ato, os quais não parecem fornecer nenhuma contribuição realmente útil, o que não significa que o uso acrítico que o filósofo holandês faz do verbo observar não seja discutível.
A ideia da “impregnação teórica” da observação remete particularmente aos trabalhos de Hanson e Dretske da década de 1960 e ainda influencia, conquanto marginalmente, o debate sobre a observação em filosofia da ciência – como os recentes trabalhos de Ioannis Votsis (2015), entre outros, atestam. Como foi visto, os dois autores propuseram uma distinção entre uma maneira meramente mecânica, supostamente não-epistêmica, de observar, e uma que seria genuinamente epistêmica, na qual a bagagem conceitual do observador desempenha um papel crucial. Chamaram essa segunda de observar que (algo é o caso) e sustentaram que, na ciência, somente esse conceito é “respeitável”, pois seria o ver que a base adequada para descrever as observações científicas.[26]
Van Fraassen, pelo contrário, julga que o objetivo das teorias científicas é “salvar” todas as observações, até aquelas que decorrem de ações que Dretske classificaria como não-epistêmicas. Por isso, não aceita a distinção dretskiana e, em seus textos, alude genericamente a observar sem contrapor essa ação ao observar que.[27]
Neste trabalho, foram propostos argumentos para evidenciar que van Fraassen está correto em desconsiderar a distinção introduzida por Hanson e Dretske. Com efeito, mesmo que ela fosse de fato realizável, o que não é tão pacífico, conforme foi vislumbrado no texto, o observar que é um conceito demasiado escorregadio para constituir um ponto de partida válido (firme) para qualquer tipo de discussão. Para não dizer que, se alguém se baseasse nele para realizar a distinção entre observável e inobservável, crucial para o empirismo construtivo, esta se tornaria teoricamente dependente, provocando a “catástrofe lógica” temida por van Fraassen. Como se não bastasse, afirmar que existe um “ver não-epistêmico” não parece correto, pois qualquer observação resulta em uma crença, mesmo aquelas executadas por sujeitos não cientes (conceitualmente) daquilo que estavam vendo. E, na ciência, é comum utilizar-se de observações desse tipo para realizar inferências – e observar que algo é o caso. A ciência, com efeito, como também já se destacou, é um empreendimento coletivo, onde normalmente há uma divisão de tarefas – já há cem anos, por exemplo, Einstein pôde corroborar a teoria da relatividade geral, graças às observações de outras pessoas (as quais podem muito bem ter sido não cientes – conceitualmente – daquilo que estavam vendo).
Correto, então, é utilizar-se do verbo observar em seu sentido mais amplo, como faz van Fraassen, atendo-se a seu aspecto mecânico de interação de tipo causal entre sujeito e ambiente. Esse é o cerne da “teoria pragmática da observação”, da qual van Fraassen diz ter lançado mão, quando escreveu A Imagem Científica[28] – mas que, de fato, não endossa de forma completa e que até complementa.[29] Igualmente, a distinção entre observável e inobservável pode ser realizada com base nela.
Ainda assim, outras considerações podem até ser tecidas e revelar-se necessárias para “decidir” se uma certa detecção é ou não uma observação, como no controverso caso das detecções instrumentais, todavia, entre essas certamente não encontra abrigo a questão da intencionalide da ação realizada. A recente proposta de Buekens e Muller, por conseguinte, que justamente recomendam se levar em conta a intencionalidade da ação, quando se remete à observação no âmbito do empirismo construtivo – pois toda observação, na ciência, aconteceria com um propósito –, pode ser desconsiderada. Neste trabalho foram propostos argumentos para mostrar por que van Fraassen pode ignorar inclusive esse alvitre.
A própria noção de intencionalidade é escorregadia, a ponto de Buekens e Muller utilizar-se de uma acepção de “intencional” diferente do modo em que esse adjetivo é normalmente empregado, em filosofia da mente e, caso uma observação somente fosse julgada “digna desse nome” se fosse classificável como intencional, isso tornaria impossível qualquer julgamento acerca da adequação empírica de uma teoria. Com efeito, como foi visto, “[...] concepções diferentes da intencionalidade podem resultar em classificar a experiência sensorial como intencional ou não-intencional de maneiras diferentes” (FARKAS 2010, p. 149, tradução nossa), e seria, portanto, impossível dizer quando uma certa observação é ou não intencional. Novamente, ademais, o fato de a ciência ser um empreendimento coletivo já constitui um motivo suficiente para rejeitar a proposta de Buekens e Muller, pois, como foi destacado, eventuais considerações ligadas à intencionalidade do ato de observar somente concernem ao agente e não à observação em si (entendida como “produto final” e não como ação)[30] e são, assim, supérfluas.
Considerações análogas, como se vê, levam a concluir que tanto o conceito de “observar que” quanto aquele de intencionalidade não têm nenhuma utilidade para o empirismo construtivo de van Fraassen. Aliás, tornariam até inviável traçar a linha divisória entre entidades observáveis e entidades inobserváveis, da qual a vertente antirrealista do filósofo holandês depende.
Não é por acaso que isso acontece, já que, pelo menos na recente proposta de Buekens e Muller, as duas questões estão entrelaçadas. Ainda que as considerássemos de modo independente, porém, como foi feito neste trabalho, a teoria pragmática da observação endossada por van Fraassen deveria sem dúvida ser privilegiada, em detrimento delas. O “-ável” em “observável” faz referência apenas às limitações (humanas) de ordem fisiológica, ou seja, à habilidade dos seres humanos de observar algo (VAN FRAASSEN, 2007, p. 42; MULLER, 2005, p. 63). Consequentemente, para delimitar o observável, conceber a observação como uma mera interação de tipo causal entre agente e ambiente externo parece o mais adequado.
ABSTRACT. The act of observing is crucial for constructive empiricism, Bas van Fraassen’s celebrated position on the aim of science. As Buekens and Muller noted in 2012, the Dutch philosopher should have characterized observation as an intentional act, because observation in science has a purpose. In the present article, which will also address the distinction between observing and observing that, introduced by Hanson and Dretske, it will be shown that considerations about the intentionality of the act of observing are, on the contrary, unnecessary for drawing the distinction between observable and unobservable entities on which constructive empiricism depends.
KEYWORDS: van Fraassen, observation, observability, constructive empiricism, intentionality.
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Recebido em 10/01/2016
Aceito em 20/05/2016
[1] http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732016000300009
[2] Mestre e Doutor em Lógica e Filosofia da Ciência pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Professor da Universidade Estadual do Paraná - campus Apucarana. E-mail: alessiogava@yahoo.it
[3] No clássico artigo de 1956, “The methodological character of theoretical concepts”, Rudolf Carnap escreveu que, no interior da linguagem da ciência, é possível realizar uma distinção entre linguagem observacional ( LO ) e linguagem teórica ( LT ). LO é constituída por termos que designam
propriedades e relações observáveis, utilizadas para descrever objetos e eventos observáveis. LT contém termos que podem fazer referência a objetos e eventos inobserváveis ou aspectos deles.
[4] Segundo Carnap ressaltou, em 1974, o termo observável “[...] tem um significado bem restrito. Ele se aplica a propriedades como ‘azul’, ‘duro’, ‘quente’. Trata-se de propriedades diretamente percebidas pelos sentidos” (CARNAP, 1974, p. 225, tradução nossa). Contudo, a linha de separação entre observáveis e não-observáveis é altamente arbitrária e pode ser traçada onde for mais conveniente, dependendo do uso (CARNAP, 1974, p. 225-226). Com efeito, “[...] os conceitos observável e nãoobservável não podem ser definidos com precisão, porque repousam sobre um continuum. Na prática,
[5] Após a publicação de A Imagem Científica, contudo, apareceram trabalhos importantes acerca do que significa observar, como aqueles de Shapere (1982), Luntley (1982), Kosso (1988), Menuge (1995), até chegar a Buekens (1999). Depois disso, Vollmer (2000), Alspector-Kelly (2004), Chang (2004), Bueno (2011), Buekens e Muller (2012), para citar somente alguns.
[6] Essa maneira de ver é chamada por Dretske (1969, p. 15) também de gravar (visualmente) e a capacidade de fazê-lo é uma habilidade que partilhamos com nossos animais de estimação.
[7] O mais famoso, provavelmente, é o artigo de Paul Grice, de 1961, “The causal theory of perception”, depois do qual não houve grandes avanços na tentativa de uma análise filosófica da percepção, segundo escreveu Alva Noë (2003, p. 93). Mas, já em 1944, Roy Wood Sellars, pai do célebre Wilfrid, tinha publicado o artigo “Causation and Perception”, no qual escreveu que, na percepção, o sujeito responde (causalmente) de maneira consciente às coisas ao redor dele.
[8] Essa face interpretativa da observação não constitui necessariamente uma fase sucessiva àquela da reação de tipo causal a um estímulo externo: conforme Hanson, por exemplo, a interpretação já “está lá”, quando olhamos para algo, como no caso das figuras utilizadas nos livros de psicologia da Gestalt. Mas é possível, em uma análise do ato de observação, separar o aspecto puramente “mecânico” daquele cognitivo. Isso é o que van Fraassen faz, em sua análise da observação, quando distingue o lado causal daquele interpretativo (separando a observação como interação sujeito-ambiente da produção de um relato observacional), com base na ideia segundo a qual a experiência tem duas faces, “[...] aquilo que está acontecendo a alguém e do qual ele está ciente, e o juízo que expressa aquilo que, segundo ele, é o caso.” (VAN FRAASSEN, 2008, p. 108, tradução nossa).
[9] Esse fato não acarreta nenhuma “catástrofe lógica”, diz ele, porque o que a ciência faz é simplesmente revelar aquilo que pode ser observado, e não estabelecer ou postular o que é observável (VAN FRAASSEN 2007, p. 111).
[10] São os chamados limites especias e limites gerais da observabilidade, os quais são abordados no artigo “Empiricism in the Philosophy of Science.” (VAN FRAASSEN, 1985, p. 253).
[11] “Observação é percepção, e a percepção é algo que somos capazes de realizar sem instrumentos.” (VAN FRAASSEN, 2008, p. 93, tradução nossa).
[12] Em 2004, Paul Humphreys escreveu que utilizar-se de um instrumento para observar algo torna, sim, a observação dependente da teoria, mas esse tipo de dependência é positivo e não algo que deve ser evitado, porque, sabendo como o instrumento funciona, temos um controle explícito sobre as partes do processo de observação governadas por aquela teoria (HUMPHREYS, 2004, p. 39).
[13] A experiência, segundo van Fraassen (2001, p. 158, 2008, p. 108 e 364, nota 20), é tudo aquilo que acontece a um sujeito, do qual esse está ciente. Observar algo certamente é ter uma experiência e, por conseguinte, se trata de uma atividade consciente (cf. também VAN FRAASSEN, 2007, p. 38).
[14] Van Fraassen, porém, não cita Dretske e nem Hanson, simplesmente afirma que sustentar que um “homem primitivo” não poderia ver uma bola de tênis por não ver que é uma bola de tênis é um nonsense. Em seus textos, de qualquer modo, o filósofo holandês se utiliza de uma acepção do verbo observar que parece estar um nível acima do “ver não-epistêmico” de Dretske, cuja distinção é “oito ou oitenta” e poderia, ao invés, admitir graus intermediários, como será proposto em 2012 por Buekens e Muller.
[15] À “teoria pragmática” de Feyerabend, o autor de A Imagem Científica acrescenta uma caracterização pessoal, como na afirmação de que observação é percepção e, por conseguinte, algo que pode ser levado a cabo sem uso de instrumentos, nas condições apropriadas (VAN FRAASSEN, 2007).
[16] Como foi visto na seção 3, com efeito, segundo os dois autores é o ver que que constitui a base adequada para descrever as observações científicas, mas van Fraassen considera que, pelo contrário, as teorias científicas devem “salvar” todas as observações, até aquelas realizadas por pessoas não conceitualmente cientes daquilo que observaram. A posição do filósofo holandês parece correta, como será mostrado a seguir, até à luz daquilo que de fato acontece na prática científica comum.
[17] Buekens (1999, p. 10-13), por exemplo, afirma que van Fraassen está certo em distinguir observar de observar que e não considerar que somente é possível observar algo, se se observa que um determinado estado de coisas é o caso.
[18] Estamos aqui apenas tecendo considerações acerca da proposta de Buekens e Muller de se levar em conta a intencionalidade da observação, quando se fala dessa, no âmbito do empirismo construtivo, e o sentido que os dois autores atribuem ao conceito faz coincidir “intencional” com “proposital”, como se a intencionalidade dissesse respeito às motivações (pessoais) do sujeito da ação. Evidentemente, esse é somente um modo – e nem tão comum – de se interpretar a intencionalidade. Contudo, será evidenciado
[19] Conquanto, no artigo de 1999, Buekens fale genericamente de “observar” e não mencione a possibilidade de distinguir entre “observar” e “observar que” (algo é o caso).
[20] Como explica John Searle, “[...] o tencionar, no sentido comum, não tem um papel espe cial na teoria da intencionalidade. Tencionar fazer alguma coisa é apenas um tipo de intencionalidade juntamente com querer, desejar, esperar, temer e assim por diante.” (SEARLE, 1984, p. 74).
[21] Agradeço ao colega Daniel De Luca, do Departamento de Filosofia da UFMG, pelo exemplo e pelos esclarecimentos acerca da questão da intencionalidade.
[22] A propósito desse exemplo, em 1988, Richard Creath escreveu que, mesmo que fosse possível diferenciar “observar” de “observar que”, os dois conceitos estão entrelaçados e que, acima de tudo, o mero observar já envolve conceitos. O homem da Idade da Pedra, com efeito, pode até não observar
[23] Isso pode somente significar que, para ele, o que conta como observação naquilo que poderia ser chamado de contexto da prática é o mesmo que no contexto teórico. Em outras palavras, a caracterização do ato de observar que serve para traçar a linha de separação entre observável e inobservável deveria servir também para determinar quais percepções contam como observações, quando se testa a adequação empírica de uma teoria.
[24] Uma vez, em Curitiba, vi duas mulheres sentadas em um cruzamento, com papel, caneta e um aparelhinho para contar o número de carros que passavam (apertando com o polegar a cada passagem de um carro, o aparelho registrava o número total). Tenho sérias dúvidas de que essas senhoras pudessem ter ideia “daquilo que estavam fazendo”, querendo dizer com isso que acredito que elas não soubessem qual tipo de inferências os engenheiros de trânsito teriam realizado, a partir dos “registros” delas e em qual quadro conceitual/teórico tais “registros” teriam sido inseridos. Tenho certeza, porém, de que aos engenheiros em questão nem passou pela cabeça de não tomar como válidos os “registros” das duas criteriosas senhoras e que teriam considerado que elas realizaram observações, se questionados a esse respeito.
[25] Similarmente, o já citado William Seager afirma que “[...] os membros de uma comunidade epistêmica devem cada um respeitar as capacidades epistêmicas do outro” e que “[...] as crenças de um outro membro da mesma comunidade garantem a crença [...] de cada membro. Tais crenças representam uma parte da imagem do mundo que nós almejamos desenhar, mas que, graças ao esforço de outros, não precisamos desenhar sozinhos” (1998, p. 181, tradução nossa). Em 2004, Jody Azzouni escreveu que aquilo que ele chama de “acesso epistêmico robusto” a uma entidade pode envolver uma rede social de indivíduos interagindo (como grupo) com algo, onde há uma divisão de tarefas entre os membros desse grupo (AZZOUNI, 2004, p. 129).
[26] Hanson (1958, p. 12) afirma que os aspectos lógicos do conceito de ver são inextrincáveis e indispensáveis para a observação em física. Dretske (1969, p. 205-207), similarmente, acha que, na ciência, somente o “ver epistêmico” pode resultar em uma observação, pelo fato de a observação ser tudo aquilo que um sujeito S vê que é o caso, que é relevante, ou que é considerado relevante, para a pesquisa dele.
[27] À noção de observar que van Fraassen dedica um único parágrafo, no segundo capítulo de A Imagem Científica, frisando que é importante não confundir observar (uma entidade) com observar que (algo é o caso) e apresentando o exemplo do “homem da Idade da Pedra”, que foi exposto anteriormente. Em nenhum outro texto do filósofo holandês se faz menção ao conceito introduzido por Hanson e Dretske – que, vale a pena repetir, não são citados nem quando se aborda o conceito de observar que.
[28] Fez isso, disse, como foi visto, por ela ser uma doutrina central do realismo científico, que quis compartilhar com seus adversários. Mas dela, conforme foi explicado, endossou somente o ponto segundo o qual observar algo é, para uma pessoa, funcionar como um detector da presença de tal coisa e não entrou no mérito da questão das chamadas “sentenças observacionais” – que, ao invés, também faz parte da referida teoria (VAN FRAASSEN, 1992, p. 14).
[29] Van Fraassen notoriamente se recusa a classificar como observações as detecções realizadas por meio de um microscópio, por exemplo, e essa tomada de posição não encontra respaldo na referida teoria de Feyerabend e Sellars.
[30] Em filosofia da mente, o predicado intencional constitui um termo técnico e a intencionalidade coincide com a característica dos estados mentais de serem “acerca de” algo. Nessa perspectiva, a estrutura de um estado intencional consistiria em um modo psicológico relacionado a um conteúdo proposicional/representacional. Em outras palavras, a intencionalidade diz respeito somente ao agente.