“Hodie Legimus in Libro experientiae”. a apropriação Heideggeriana da FórmuLa de bernardo de CLaravaL[1]
RESUMO: O artigo examina a apropriação heideggeriana de Bernardo de Claraval na nota “Zu den Sermones Bernardi in Canticum canticorum (Serm. III)” (HEIDEGGER, 1995, p. 334-337),que faz parte de outras notas e esboços de uma Vorlesung não proferida, intitulada “Os fundamentos filosóficos da mística medieval (1918-1919)” (HEIDEGGER,1995). Ao longo de minha análise, destaco três aspectos com base na fórmula inicial: “Hoje lemos no livro da experiência” –, que é parafraseada por Heidegger da seguinte maneira: “Hoje queremos mover-nos no campo da experiência pessoal de maneira compreensiva. Retorno à esfera da vivência própria e ausculta da revelação da própria consciência”. Portanto, primeiramente, enfatizo a fórmula inicial como campo experiencial que o livro faz abrir: ler (legere) não é mais decifrar, mas mover-se a si mesmo, recolher, até mesmo ser afetado. Em segundo lugar, a partir da apropriação da cristologia de Bernardo de Claraval, mostro como Heidegger aponta para uma “experiência fundamental”, no sentido de que, mesmo considerando que a experiência religiosa do místico cisterciense esteja centrada na figura de Cristo celebrado na liturgia monástica, a religiosidade cristã descortinada é uma vida fundamentalmente mais intensa e mais rica em vivências e em fenômenos vividos. Por fim, em terceiro lugar, destaco certa “inviolabilidade” da experiência religiosa em Bernardo de Claraval,concernente à autonomia e independência absolutas, de modo que nenhuma autoridade exterior, nem mesmo a eclesiástica, poderá determinar o sentido fundamentado em corpo doutrinal estranho às vivências mesmas. Para iluminar as notas da Vorlesung cancelada, as minhas análises recorrem às outras preleções de Heidegger ministradas na Universidade de Freiburg (1919-1923).
PALAVRAS-CHAVE: Idade Média. Experiência. Mística. Fenomenologia. Religiosidade.
Uma vez concluído o processo de habilitação, aos 27 de julho de 1915, com a conferência inaugural “O conceito de tempo na ciência histórica” (HEIDEGGER, 1978, p. 415-433) em vista da “venia legendi für Philosophie” (KISIEL, 1995, p. 461), Heidegger inicia no semestre de inverno de 1915-1916 sua promissora carreira como Privatdozent em Freiburg, com cursos e seminários de filosofia que eram frequentados especialmente pelos teólogos. É durante o período que vai do semestre de verão de 1917 até o final de 1918 que Heidegger começa a redigir um manuscrito sobre a mística medieval, o qual será registrado em 1918, na Universidade de Freiburg, com o título Os Fundamentos Filosóficos da Mística Medieval, para ser ministrado como uma Vorlesung acadêmica, no semestre de inverno de 1919-1920 (HEIDEGGER, 1995, p. 303-337[3]; FISCHER, 2013, p. 102-111). Mas essa Vorlesung formalmente anunciada foi cancelada, e Heidegger então propõe ao decano da Faculdade de Freiburg outro curso, intitulado Problemas fundamentais da fenomenologia (HEIDEGGER,1993a). A explicação do cancelamento do curso sobre a mística medieval é entendida ora no sentido de que Heidegger não teria tido tempo suficiente para redigir o curso e apresentálo sob a forma de uma verdadeira preleção, ora em razão de Heidegger ter já se afastado da fenomenologia da religião tradicional, para buscar mais clara e incondicionalmente uma filosofia fenomenológica não-religiosa, ora, enfim, por causa das fortes ênfases luteranas (SURACE, 2014): Heidegger teria, então, receado a recepção do eventual curso na Freiburg arquicatólica (KISIEL, 1995, p. 76,111). Seja como for, o fato de que Heidegger tenha continuado a redigir notas para o esboço dessa Vorlesung, até agosto de 1919, aponta para a permanência do religioso como paradigma único, no caminhar de Heidegger, ao menos até 1924, um paradigma maior e absolutamente único[4][5]. É plausível pensar que, caso contrário, ou seja, se as notas dessa Vorlesung abortada não representassem uma dimensão independente da filosofia do jovem Heidegger, este poderia ter queimado seus manuscritos de fenomenologia da religião. Essa atitude, se tivesse ocorrido, evocaria certamente a célebre lenda, segundo a qual Platão teria queimado suas peças de teatro depois de ter encontrado Sócrates. Se Heidegger, porém, não abandonou seu projeto de uma fenomenologia da religião, isso permite entrever que algumas questões que ele mesmo se colocava, em seu caminhar, poderiam ser iluminadas somente no quadro de uma fenomenologia da religião, cujo paradigma histórico é o Cristianismo das origens (CAMILLERI, 2008, p. 74-76, 10-12; FISCHER, 2013, p. 338-340).
A fenomenologia de Heidegger toma esse paradigma como uma verdadeira revolução, no sentido de que o Cristianismo das origens, tal como é entendido nesse período dos cursos de Freiburg, coloca-se contra o ideal antigo da ciência. Na medida em que a experiência cristã dos primórdios exibe um movimento originário da vida fática,por suas expressões mais próprias, Heidegger põe a descoberto o fato de que a vida aí não se expressa e não se compreende senão com base em uma situação concreta a partir do mundo do si-mesmo (Selbstwelt). É a mobilidade constante, mas sempre “situada” do si, que determina o mundo da vida, em seus diversos modos de manifestação (expressivos e significativos)[6].A revolução inaugurada pelo Cristianismo das origens se prolonga de certo modo nos místicos medievais, enquanto expressão da vida religiosa autêntica: os modos de vida práticos dos místicos testemunham o fato de que a experiência do Cristianismo implica uma nova posição do si em seu mundo (ARRIEN, 2014, p. 171). O surgimento da mística, para Heidegger, corresponderia a uma reação contra a tendência teorizante e dogmatizante da teologia escolástica: “Como um contramovimento elementar (Als elementare Gegenbewegung) dirigido contra essas tendências pode-se conceber uma manifestação como a mística” (HEIDEGGER, 1995, p. 314). Amparada nessa afirmação, a mística reabilitaria a esfera do sujeito e o domínio da experiência religiosa vivida. Essa esfera é “ateórica” (atheoretische Sphäre), escapa à dominação do racional e sublinha a imediaticidade, a intensificação da vida interior e a irracionalidade específica da mística. É justamente aqui que se justifica a minha escolha do místico Bernardo de Claraval e sua apropriação fenomenológica, por parte do jovem Heidegger, nas notas da Vorlesung cancelada sobre “Os Fundamentos Filosóficos da Mística Medieval”.
A nota “Zuden Sermones Bernardi in Canticum canticorum (Serm. III)” (HEIDEGGER, 1995, p. 334-337) abre-se com uma citação do terceiro sermão de Bernardo de Claraval, parafraseada por Heidegger com verniz fenomenológico: “1) ‘Hodie legimus in libro experientiae’ [hoje lemos no livro da experiência]. Hoje queremos mover-nos no campo da experiência pessoal de maneira compreensiva” (HEIDEGGER, 1995, p. 334: “Heute wollen wir uns im Felde persönlicher Erfahrung auffassend (beschreibend) bewegen”. Por que Heidegger copia o Sermão 3 sobre o “Cântico dos Cânticos”, do místico cisterciense do século XII? Muito provavelmente, porque Heidegger encontrou em Bernardo de Claraval um conceito de experiência (Erfahrung) que, longe de restringir-se à única acumulação empírica de savoir-faire (ter experiência), “[...] determina esta vezcomo própria a ‘travessia desi-mesmo’ (‘fazer uma ex-periência’ [eine Er-fahrung machen])”. Segundo o trocadilho entre Er-fahrung (“experiência”) e Fahrt (“marcha”, “percurso”) da vida, Heidegger entendeu (em Problemas fundamentais da fenomenologia) a “experiência”, em suas distintas modificações, da seguinte maneira: “[...] alcançar, encontrar nas provas da vida, o que nos vem de encontro, nos ‘acontece’, nos impressiona, nos transtorna.” [...]“Aquilo de que tive experiência em tal ocasião, o experienciado de tal ou tal maneira, entrou de algum modo em minha vida do si-mesmo.” (HEIDEGGER, 1993a, p. 67)[7]. Como observou Emmanuel Falque,
[...] a experiência permanecida na pura empiricidade de uma atitude natural até qualificar tradicionalmente de “empírica” na filosofia a postura segundo a qual “o conhecimento humano deriva inteiramente da sensibilidade”, teria se tornado, portanto, da mística bernardiniana à fenomenologia husserliana, o ato pelo qual a “relação com o mundo” (Erfahrung, fahren, marchar ou conduzir) atesta e reenvia, primeiramente, para uma “experienciação de si (épreuve de soi)” e de “sua própria vida” (Erlebnis, leben, viver). (FALQUE, 2005, p. 658-659).
Ainda que não tematizada aqui nas notas sobre a mística, essa “experienciação de si” aponta para uma vivência vivida, à luz da fenomenologia heideggeriana dos anos 1920. Nesse sentido, poderíamos pensar em um SichSelbst-Haben, isto é,“ter-a-si-mesmo”, como se fosse uma autêntica “posse de si”, tal como aparece no exame fenomenológico do Livro X, 36-39 das Confissões de Agostinho, a propósito terceira forma de tentação, a saber, a “ambitio saeculi” (HEIDEGGER, 1995, p. 227-237): “A significatividade própria (Eigenbedeutsamkeit) converte-se em finis delectationis.” (HEIDEGGER, 1995, p. 228). A partir dessa concepção heideggeriana sobre a “posse de si mesmo”, com base na confrontação com as figuras de sentido que emergem do próprio experienciar, chega-se a um tipo de conhecimento pré-teórico que interessa à fenomenologia: a confrontação com um processo de autoconhecimento vivido, tal como experienciamos no mundo da vida, possui o traço distintivo da não-reflexividade, e vem a ser a expressão imediata da vida mesma (HEIDEGGER, 1993a, p. 159, 165, 257-258).
Tendo em vista o contexto histórico e religioso do século XII, em Bernardo de Claraval se encontra evidentemente uma experiência monástica que, embora determinada historicamente pela separação entre o mundo claustral (religiosi) e o mundo secular (seculares),é também uma experiência religiosa com o mundo da vida que lhe é próprio.Nesse mundo da vida, a experiência religiosa nasce, cresce e se fortalece. O desejo religioso da vida corresponderia ao retorno fenomenológico às vivências da consciência.Descortinar uma proximidade necessária com a vivência, através da fenomenologia, significa atingir o sujeito histórico que existe, interpretando o seu mundo, que é igualmente a morada de Deus (CAPELLE-DUMONT, 2013, p. 534-535).
Após a fórmula inicial (“Hodie legimus in libro experientiae”), Heidegger prossegue imediatamente sua nota assim: “Retorno à esfera da vivência própria [isto é, da experiência vivida] e ausculta da revelação da própria consciência. Consciência marcada, encontrando sua formulação própria pelo exclusivo valor e direito principal da experiência religiosa particular” (HEIDEGGER, 1995, p. 334). Essa passagem deixa entrever a especificidade da mística espiritual e, portanto, não especulativa, de Bernardo de Claraval em virtude da associação estreita entre experiência de si e experiência de Deus: “[...] o místico fez da descoberta de si o pressuposto necessário da descoberta de Deus e das manifestações de Deus à consciência.” (CAMILLERI, 2008, p. 577). Por conseguinte, não há especulação sobre o ser e a essência, mas exploração do mundo religioso do si. Por exemplo, no modo com que as tentações vêm ao nosso encontro, nesse explorar [examinar] é possível entrever “[...] uma possibilidade própria de atuação [Vollzug] da experiência [religiosa] [...], uma possibilidade de ver o fato de ser-livre, o fato de superar e de ter superado, a possibilidade de compreender quem eu ‘sou’, o que eu ‘posso’.” (HEIDEGGER, 1995, p. 266-267).
Há ainda,na nota heideggeriana, uma ênfase dada ao próprio, à experiência religiosa pessoal, ao chamado Selbstwelt (mundo do si-mesmo). Esse mundo do si-mesmo não é um sujeito psíquico, nem um “Eu” fundador:
[...] não se trata nem de uma consciência ideal generalizada (o eidos ego husserliano), nem de uma consciência em geral (a Bewusstsein überhaupt de Rickert), nem de uma ‘vivência’ íntima cuja plenitude obscura deve ser referida a uma subjetividade originária (como na psicologia reconstrutivista de Natorp). (ARRIEN, 2014, p. 165).
Com base nas intuições heideggerianas sobre o caráter mundo da vida, a nota poderia ser compreendida assim: retornar à esfera vivencial e particular da experiência vivida, tal como se descortina em Bernardo de Claraval, implica a vida mesma, una e múltipla, que se expressa e se manifesta sempre como mundo a partir de um dado “acontecimental” e fático, quer isso seja sob o modo da quotidianidade ou sob um modo mais específico: “Tudo o que nós reencontramos na vida vivente se manifesta em um nexo de acontecimentos. Suas tendências e seus preenchimentos se expressam sempre de uma certa maneira”; “[...] estrutura particular da vida em si, segundo a qual tudo nela se expressa de alguma maneira.” (HEIDEGGER, 1993a, p. 45-46).
É justamente por isso que Heidegger atribuiu um papel eminente ao Cristianismo das origens, isto é, por causa da descoberta e da exploração do Selbstwelt: o Cristianismo [das origens] é “[...] o mais profundo paradigma histórico do peculiar processo de deslocamento do centro de gravidade da vida fática para o mundo dosi-mesmo (Selbstwelt), o mundo das experiências interiores (innere Erfahrung).” (HEIDEGGER, 1993a, p. 61; FISCHER, 2013, p. 338-340). A razão de tal privilégio reside no fato de que a experiência específica do Cristianismo das origens “[...] revela o próprio do mundo do si-mesmo, este núcleo de ipseidade onde se recolhem as possibilidades históricas, expressivas e compreensivas do mundo vivido”. Na figura histórica do Cristianismo originário, “[...] o fenômeno do aguçamento, da acentuação efetiva do mundo do si-mesmo[aí]‘saltou à vista’ por assim dizer.” (HEIDEGGER, 1993a, p. 60, 206). Nas notas sobre a mística medieval, é problematizada pela primeira vez a questão, essencial no jovem Heidegger, do sentido histórico da experiência vivida religiosa que, originando-se com o Cristianismo das origens, prossegue nos místicos medievais como, por exemplo, em Bernardo de Claraval, Boaventura, Mestre Eckhart, Lutero e Tauler. Excetuando-se Agostinho, Bernardo de Claraval é o primeiro místico que inaugurou esse paradigma do mundo do simesmo, conferindo-lhe uma coloração exclusivamente religiosa.
No caso da religiosidade cristã associada explicitamente aos místicos medievais e não aos teólogos escolásticos, deveríamos falar, antes de tudo, de uma “experiência filosófica”, que, diferentemente da filosofia da religião, propõe uma “[...] outra abordagem filosófica da experiência religiosa na qual o parâmetro da crença pessoal é explicitamente levado em conta.” (FALQUE, 2008, p. 39). Essa “[...] experiência filosófica coincidiria, em certo sentido, com a experiência monástica, cujos protagonistas são Anselmo de Aosta, Bernardo de Claraval, Hugo e Ricardo de Saint-Victor”, afirma Emmanuel Falque, no final de sua obra Dieu, lachair et l’autre: aí, no alvorecer do renascimento monástico (séculos XI-XII), a vida primava ainda sobre a obra, e a comunidade sobre a emergência das individualidades. O ato de um retorno às coisas mesmas abrese no ato de um remontar à experiência mesma (FALQUE, 2008, p. 478), que, por exemplo, em Bernardo de Claraval, significa “[...] retorno à esfera da vivência própriae ausculta da revelação da própria consciência. Consciência marcada, encontrando sua formulação própria pelo exclusivo valor e direito principal da experiência religiosa particular.” (HEIDEGGER, 1995, p. 334). Sem que haja evidentemente, nas notas de Heidegger, uma associação entre experiência filosófica e experiência monástica, é plausível afirmar, porém, que a compreensibilidade da religiosidade cristã dos místicos se distanciava radicalmente da racionalização e da dissolução de uma vivência em seus componentes lógicos. A partir das notas sobre dois místicos medievais – Mestre Eckhart e Bernardo de Claraval–, Heidegger critica a tendência especulativa da filosofia da religião de sua época e assim caminha para uma concepção da religião – ou, mais precisamente, da vivência religiosa – que provenha principalmente da esfera interior e subjetiva, ou seja, da experiência íntima e pessoal da consciência. Assim procedendo, descortina-se a única “fenomenologia” (da religião) possível, a qual permite captar adequadamente – isto é, fora da dualidade objetivo-subjetivo – e, portanto, compreender (verstehen), a experiência religiosa em sua singularidade e vivacidade.
A nota prossegue mencionando a cristologia de Bernardo de Claraval e a origem de toda vivência religiosa autêntica: a “[...] experiência fundamental[Grunderfahrung]”: “A aspiração religiosa para viver da presença de Jesus e o esforço para viver desta presença não são possíveis de maneira autêntica senão quando estão enraizadas em uma experiência fundamental.” (HEIDEGGER,1995, p. 334).
Em Bernardo de Claraval, a experiência fundamental passa necessariamente pela experiência da graça, mediante a participação na paixão e cruz de Cristo. O esforço de presentificar Jesus na consciência acontece na liturgia monástica, através da representação dos “[...] diversos momentos da vida do Cristo à maneira de mostração e atualização”. Verdade é que só apreendemos na vivência religiosa formas mediatizadas da graça, ao passo que a origem primeira [Deus] escapa a toda experiência, no sentido próprio do termo. Mas, em Bernardo de Claraval, a graça é dada em sua experiência pessoal de encontro com Cristo na fé: essa experiência se fundamenta no fato de que Deus se tornou homem pro nobis, por nós, pessoalmente: “Veio [Cristo] por nossa causa [...] Ele fez-se homem, para que o amássemos [...]. Deu-se para ser nosso mérito, reserva-se como nosso prêmio.” (BERNARDO DE CLARAVAL, 2001, p. 180-181). Nossa experiência da presentificação de Jesus é a fonte exclusiva de nossa vivência religiosa.
Para Heidegger, a experiência fundamental é a condição absoluta do desejo de vivência religiosa e do esforço de presentificar Jesus. Com base na afirmação de que a experiência vivida é histórica e que a doação de sentido especificamente religiosa já está contida na experiência vivida, podemos dizer que “[...] a significação da experiência vivida é histórica e, inversamente, a significação da vivência histórica é inicialmente religiosa.” (CAMILLERI, 2011, p. 137-138). Mesmo que, em outras ocasiões, Heidegger descreva Jesus como uma “figura histórica”, é difícil acreditar que ele considerava sua historicidade como banal. A compreensão histórica proveniente do evento histórico fundador do Cristianismo pressupõe de certo modo uma arquissignificação inscrita em uma pessoa que é, ela mesma, um evento integral. Nesse sentido, a figura de Jesus é ponto de encontro último da interseção entre a história, a Geschichte, e a história da salvação, a Heilsgeschichte (HEIDEGGER, 1978, p. 432). Dessa forma, “[...] a historicidade santa ou sagrada resultante disso torna-se então uma noção que permite qualificar a vida fática religiosa de autêntica.” (CAMILLERI, 2011, p. 139). Portanto, compreende-se dessa maneira o que Heidegger afirmou na nota “Fenomenologia da vivência religiosa e da religião” (1917) da Vorlesung não proferida: “O mundo vivido religioso em sua originariedade – e não em uma abstração teorético-teológica – tem por centro uma grande figura histórica singular (dotada de uma plenitude de vida que age pessoalmente).” (HEIDEGGER, 1995, p 323). É assim que Bernardo de Claraval apresenta, aos olhos da fenomenologia da religião do jovem Heidegger, uma vivência absolutamente originária e autêntica. Na medida em que a tradição permite a historicização do kerigma, ao longo do tempo (este último “[...] libertado de sua concepção espacial e linear”) (HEIDEGGER, 1995, p.307), a repetição dessa tradição, por sua experiência religiosa intramuros monasterii é uma reatualização complexa da facticidade religiosa herdada do Cristianismo das origens. A vida religiosa, tal como é experienciada por Bernardo de Claraval, mesmo centrada na figura de Cristo, é uma vida fundamentalmente mais intensa e mais rica em vivências e em fenômenos vividos.
Ora, se na gênese do pensamento heideggeriano se encontra inequivocamente a referência ao Cristianismo das origens, a gestação de uma fenomenologia religiosa exige uma necessária Destruktion enquanto resultado de uma forma vivenciada, explicitada, em um como (Wie) apto a descobrir a situação originária onde se exibe, fundada no horizonte pré-teórico, a experiência filosófica fundamental[8]. Segundo Heidegger, a destruição fenomenológica
[...] conduz à situação na qual se torna possível explorar os prédelineamentos, a atuação da concepção prévia (Vorgriff) e, portanto, a experiência fundamental. Assim emerge com clareza que toda destruição crítico-fenomenológica está vinculada à concepção prévia. Portanto, tal destruição não é originária e decisiva de modo definitivo, mas pressupõe uma experiência filosófica fundamental que não é nem última nem definitiva mas filosófica. (HEIDEGGER, 1993b, p. 35; HEIDEGGER, 2012a, p. 35).
A “experiência fundamental” à qual reenvia, em última análise, a destruição fenomenológica na preleção do semestre de inverno de 1919-1920, é uma experiência filosófica, ou seja, experiência que não é nem mística, nem teórica – e, nesse sentido, nem definitiva, nem última – na qual justamente pode ser retraçado o ato de nascimento pré-teórico dos conceitos (ARRIEN, 2014, p. 217-218). É evidente que tal processo de “destruição” não está em ato de maneira explícita nas notas da Vorlesung cancelada, contudo,a apropriação da mística espiritual de Bernardo de Claraval é realizada em vista de apreender, com base no esforço de presentificar Jesus na consciência, uma experiência própria e originária da vida mesma: “A vida enquanto religiosa já está aí presente [no eu histórico]. Não é como se analisássemos a consciência neutra de uma coisa, mas em tudo isso, é preciso auscultar a determinidade específica de sentido.” (HEIDEGGER, 1995, p. 336). Se toda vivência religiosa cristã autêntica passa por certa forma de imitatio Christi que, fenomenologicamente falando, se aplica à experiência fundamental da participação no mistério de Cristo atualizado na liturgia monástica, então é possível dizer que a releitura heideggeriana da mística medieval visa a “[...] uma potência de modificação no coração do ‘conceito’ conferindo a este último a possibilidade de ser captado como uma expressão própria e privilegiada da facticidade mesma da vida.” (ARRIEN, 2011, p. 159).
Com base na autonomia de um “lugar experiencial” absoluto, Heidegger afirma o seguinte, sobre a vivência religiosa autêntica: “Não se pode dispor livre e arbitrariamente de tais vivências, respeitando simplesmente as prescrições da lei eclesiástica.” (HEIDEGGER, 1995, p. 334). Se aqui certamente transparece já a relação complexa de Heidegger com o clima antimodernista de seu tempo, por meio da crítica à autoridade da Igreja Católica (a nota sobre Bernardo de Claraval remonta a setembro de 1918) e, portanto, o sinal de sua ruptura com o “sistema do catolicismo”[10], que ocorrerá em 1919[11], em Bernardo de Claraval evidentemente não há indício de semelhante posicionamento. No entanto, se é verdade que o caráter pessoal da experiência religiosa de Bernardo de Claraval se situa entre o “individualismo moderno” e a “submissão à autoridade”, e considerando que não há traços de lamentações do Santo quando foi conselheiro do Papa Eugênio III, é plausível a seguinte hipótese: Bernardo de Claraval não teve problemas com a autoridade, nem tampouco com a censura papal, e isso em virtude fundamentalmente de seu sentido aguçado de obediência: “[...] não a obediência à Igreja como tal, mas a obediência a si mesmo, a submissão ou a conformação ao seu próprio ‘fluxo de vivência’.” (CAMILLERI, 2008, p. 584-585). Uma vez que Bernardo de Claraval viveu radialmente a experiência da graça, compreende-se a continuação da nota de Heidegger a respeito do “saber” dessa vivência religiosa autêntica:
O “saber” a seu respeito e a respeito de sua essência surge apenas do ter feito realmente experiência. Este gênero de vivência não é verdadeiramente efetivo senão em uma conexão fechada de vivências (fluxo de vivências), que não pode ser transmitida ou despertada por uma simples descrição (“Est fons signatus, cui non communicat alienus” [“É uma fonte selada onde o estrangeiro não tem acesso”]). (HEIDEGGER, 1995, p. 334).
Heidegger associa uma modalidade de “saber” não teórico à experiência fundamental enquanto origem da vivência religiosa autêntica, delimitando, assim, a especificidade religiosa em uma espécie de “coesão de vivência hermética”. O que significa este “saber” da vivência que decorre de sua experiência mesma? Embora não seja mencionada aqui, trata-se certamente da fé enquanto “saber” vivido e pré-teórico.No contexto da situação própria ao Cristianismo das origens e, por extensão, aos místicos medievais enquanto expressão da religiosidade cristã, a fé preenche “[...] o conjunto das características da indicação formal em vista da realização autêntica do sentido da existência cristã: abertura em seu conteúdo, mas dirigida para uma realização vivida do sentido de modo concreto e renovada.” (ARRIEN, 2011, p. 161). Do ponto de vista fenomenológico, Cristo presentificado na consciência,através da liturgia,é o horizonte e o conteúdo de sentido simultaneamente absolutos, infinitos e indefinidos. O modo próprio de realização dessa relação é o amor, ao passo que a esperança corresponde ao sentido de referência(Bezugssinn)da experiência fática da vida religiosa originária: “[...] servir [ao Deus vivo] e esperar [do céu seu Filho Jesus] [1Ts 1,19-10] delimitam a coesão de relações fundamentais da vida fática segundo as quais a fé cristã tende para seu sentido de realização [Vollzugssinn].” (ARRIEN, 2011, p. 162). Para entrar no complexo fundamental do mundo dosi-mesmo de Paulo, Heidegger se vê forçado, pois, a regressar pelos fenômenos ao originário, aos fenômenos mesmos:
[...] douleuein [servir] e anaménein [esperar] determinam, como direções fundamentais, as demais referências. A expectativa da parousía do Senhor é decisiva. Não num sentido humano, os tessalonicenses são para ele esperança, porém o sentido da experiência da parousía. O experienciar é uma tribulação absoluta (thlípsis), a qual pertence à própria vida dos cristãos. A aceitação (déchesthai) é um colocar-se dentro da necessidade. A tribulação é uma característica fundamental, é uma preocupação absoluta dentro do horizonte da parousía, da vinda no final dos tempos. Com isto introduzimonos no mundo próprio de Paulo. (HEIDEGGER, 1995, p. 97-98).
No caso específico de Bernardo de Claraval, é possível encontrar a “estrutura intencional” da vida fática com base no conceito ternário que representam os sentidos de conteúdo (Gehaltssinn), de referência (Bezugssinn) e de realização (Vollzugssinn), e, para o jovem Heidegger, essas três direções de sentido constituem a noção mesma de fenômeno(cf. HEIDEGGER, 1995, p. 63): “Fenômeno é uma totalidade de sentido segundo essas três direções”). Todo fenômeno é em si mesmo parte integrante do comportar-se próprio à vida, enquanto coisa experienciada e como um experienciar. Na medida em que constituem a estrutura originária do ser-situado da vida, os três modos de comportar-se apontam para as direções seguidas pelo fluxo da vida em vista dela mesma.
Do ponto de vista fenomenológico, o sentido de referência caracteriza o comportar-se do fenômeno vivido, à medida que implica sempre uma relação com alguma coisa (zu etwas). Esse sentido de referência não significa uma relação entre dois objetos, mas o dar-se de uma multiplicidade de sentido, da mesma maneira que a percepção se dá como multiplicidade de perfis físicos da coisa. Em conformidade com a fenomenologia da percepção, há vários perfis que se esboçam. O sentido referencial constitui, portanto, o sentido do comportar-se interrogado na direção de sua relação com alguma coisa e como se relaciona com alguma coisa. O sentido de conteúdo, por sua vez, representa o “aquilo-em-relação-a-quê” (Woraufhin)e o“para-quê” (Wozu) da relação, correspondendo ao conteúdo real originário experimentado no fenômeno[12].
O correlato do conteúdo é a atitude (Einstellung) que tenho na vida fática e que determina minha compreensão indeterminada disso ao qual eu me refiro; dessa maneira, esse horizonte de sentido que serve de fundo de projeção e de princípio de compreensão (“aquilo-em-relação-a-quê” [Woraufhin] e o “paraquê”[Wozu]) não é jamais tomado como objeto, como referente ou como ato, no entanto,isso a que a minha atitude se refere é simplesmente indicado em uma significação vaga, permitindo “[...] a abertura de uma situação em torno de um conceito fundamental que se dá diretamente na vida fática em seu relevo e como dominante.” (QUESNE, 2003, p. 135). O sentido de realização é o modo do comportar-se pelo qual o sentido de referência e o conteúdo de sentido experimentados são retomados como realização e efetividade concreta do sentido, tornando possível o fenômeno mesmo enquanto totalidade de sentido experimentada ou apropriada segundo essas três direções.
Em sua coesão interna, esses três “elementos de sentido” podem ser vislumbrados, mutatis mutandis, no terceiro Sermão sobre o Cântico dos Cânticos, objeto da releitura heideggeriana. Todavia, como esses “elementos de sentido” exibem o que autossuficiência da vida religiosa autêntica significa? O livro mesmo do Cântico dos Cânticos, comentado por Bernardo de Claraval em 86 sermões, é um poema que expressa a sua união com Deus, sem considerálo como objeto de uma especulação teórica: “[Com o Cântico dos Cânticos] não é um som proferido pela boca, mas um júbilo coração; não uma inflexão dos lábios, mas uma cascata de gozos, não uma harmonia resultante das vozes, mas das vontades.” (BERNARDO DE CLARAVAL, 1996, p. 77). Se esse “canto nupcial” canta “a unidade de vidas”, a comunhão da vontade humana com a divina, toda atividade de conhecimento teórico cessa para fazer passar de uma “[...] experiência pura e, por assim dizer, muda”, “[...] à expressão pura de seu próprio sentido no coração do Cântico dos Cânticos, e não unicamente a multiplicidade de seus sentidos (histórico, tropológico, alegórico e anagógico)”. Comparado aos salmos que são cantados na liturgia, o Cântico dos Cânticos não somente produz “[...] um júbilo do coração” ao qual a liturgia procura igualmente reenviar, entretanto,possui como próprio o fato de que “[...] não se escuta fora, nem ressoa em público”. Desse modo,é preciso “colocar entre parêntesis” a exterioridade do mundo para voltar à interioridade exigida por Agostinho: “Noli fora ire, in te redi, in interiore homine habitat veritas.” (De vera religione, 39,72). Por conseguinte,para
prévio (Vorhabe), pela maneira prévia de ver (Vorsich) e pela concepção prévia de entender (Vorgriff), horizonte a partir de que algo se faz compreensível como algo.” (HEIDEGGER, 2012b, § 32, p. 429).
consumar esse processo da união de vontades, o “canto nupcial” convida também a uma experiência afetiva mais profunda, justamente porque está mais próxima do si e, por essa razão, ela é mais difícil para dizer: o “júbilo do coração”, a “cascata de gozos” e a “união das vontades” (BERNARDO DE CLARAVAL, 2001, p.152-153). O caráter pessoal da experiência religiosa em Bernardo de Claraval é reforçado com a sua expressão “experto crede”, em uma Carta endereçada ao seu amigo, mestre Henrique Murdach: “Crê em minha própria experiência, aprenderás mais nos bosques que nos livros. As árvores e as pedras ensinar-te-ão o que não podes ouvir dos mestres.” (BERNARDO DE CLARAVAL, 2001, p. 152-153). Longe de renunciar aos livros, em uma espécie de anti-intelectualismo, a fórmula de Bernardo de Claraval – “experto crede” – não significa negar o ato de filosofar, mas exige que, ao contrário, no conhecimento de si (noverim me) seja descoberta a presença de um Outro em si mesmo (noverim te). Essa experiência monástica, litúrgica e mística é a comunidade de vontades, onde a vida mesma de Bernardo de Claraval expressa uma referência a alguma coisa que, na linguagem teológica, identifica-se com Deus.Todavia, poderíamos aplicar a Bernardo de Claraval a citação feita por Heidegger, quando se refere explicitamente a Santa Teresa de Jesus: “‘O que eu gostaria de vos explicar é muito difícil para captar, quando não há experiência disso’.” (HEIDEGGER, 1995, p. 337). Com razão, Jean-Yves Lacoste alude à existência litúrgica como instância crítica da experiência: mutatis mutandis, de Bernardo de Claraval, enquanto monge que vive centrado na celebração da liturgia monástica, poderíamos dizer que seu “[...] existir liturgicamente na forma da existência orante, significa existir ao mesmo tempo na certeza da presença não-desvelada de Deus, e na presença desse desvelamento (parusia)” [...] “A existência litúrgica habita paradoxalmente um não-lugar definido pela recusa do esse-in da existência humana no Mundo, na Terra ou na História.” (LACOSTE, 1994, p. 54, 56,18-22).
A forma como Bernardo de Claraval realiza a experiência mesma da vida religiosa pode ser vista em seu modo pessoal de encarar a gradação mística com base na “[...] irrupção dos modos litúrgicos do existir.” (LACOSTE, 1994, p. 26-27). O referido Sermão é dividido em três partes, cada uma das quais apresentando os três célebres beijos espirituais: o beijo dos pés; o beijo das mãos; o beijo da boca.Esses beijos correspondem aos três degraus de verdade presentes na obra bernardiana “Os degraus da humildade e do orgulho”: respectivamente, os degraus são a humildade, a caridade e a contemplação. A cada etapa dessa mística realizada por etapas – humildade, caridade, contemplação – há uma verdade imanente à gradação. Bernardo de Claraval favorece a compreensão autêntica dessa vivência, à medida que se esforça por pensar o todo da etapa no interior do caminho que conduz da etapa ao Todo: “Não quero atingir o cume de repente; eu quero progredir paulatinamente.” (BERNARDO DE CLARAVAL, 1996, p. 106-107). Nessa gradação in crescendo da experiência mística reside o sentido de realização, que surge justamente da espontaneidade do si-mesmo vivo, do qual podemos extrair o sentido fundamental de “existência” (HEIDEGGER, 1993a, p. 260). É assim que Heidegger compreende fenomenologicamente o desejo da progressão de um caminho místico, em Bernardo de Claraval:
As conexões essenciais imanentes da gradação: Nolo repente fieri summus; paulatim proficere volo[eu não quero chegar repentinamente ao cume; quero progredir paulatinamente]. Citius placas eum [Deum], si mensuram tuam servaveris, et alterioria te non quaesieris [Tu o agradarás mais facilmente [a Deus] se tu preservares tua medida e se tu não te colocares em busca do que é mais alto do que ti]. (O “o que te é superior”, o que nos é superior, não deve ser reconduzido forçosamente a si mesmo, nem tampouco ser excl. [...*][13] de maneira rígida. Ao contrário, as realidades vividas pelo sujeito religioso devem continuamente surgir dele; devem deixar agir nele mesmo as conexões imanentes). (HEIDEGGER, 1995, p. 335-336).
Há ainda o aspecto fundamental acerca da experiência religiosa autêntica a ser destacado, nas notas sobre a mística medieval: seu caráter de inviolabilidade. Como entender essa conexão fechada de vivências? A hermeticidade da vivência religiosa implica uma autonomia e uma independência absolutas; portanto, nenhuma autoridade exterior, nem mesmo eclesiástica, poderá mesclar-se com essa experiência vivida religiosa: enquanto paradigma do fenômeno “vida”, enquanto complexo de sentido vivido, mutatis mutandis, a vida praticada pelos místicos medievais possui “[...] autossuficiência, caráter expressivo, significatividade.” (HEIDEGGER, 1993a, p. 137). A unidade específica das vivências e da vida, tal como é exemplificada no modo de ser dos místicos medievais, deve ser apreendida unicamente a partir de um movimento, de uma realização vivida do si que vem (eventualmente) a ter-se (sich haben) e assim aparecer, e este ter-se a si mesmo acarreta certa intimidade da vida com ela mesma[14]. O mundo do si-mesmo, explorado paradigmaticamente pelo modo de vida dos místicos medievais, se constitui em e por vivências que não são “[...] nem coisas, nem entidades isoladas, mas formas expressivas de tendências pertencentes às situações concretas da vida.” (HEIDEGGER, 1993a, p. 233). Só uma concepção de hermeticidade como forma da coesão da vivência possibilita não somente a abertura às diversas possibilidades de doações de fenômeno religioso, como também seu caráter de originariedade, isto é, seu caráter não derivado e, portanto, sem influências externas provenientes do espaço secular. Em consequência, na medida em que não é determinada pelas “prescrições da lei eclesiástica”, essa hermeticidade condiciona a possibilidade mística de abrir-se ao interior, ou seja, à veracidade mesma da experiência religiosa. Se as “prescrições da lei eclesiástica” determinarem eventualmente a vida religiosa, então a inviolabilidade desse “lugar experiencial” será profanada, se assim podemos dizer, visto que se prioriza uma concepção desvitalizante e esclerosada da vida religiosa, compreendida como uma única e absoluta direção de sentido: a obediência servil ao corpo doutrinal e dogmático da Igreja. Cancela-se a mobilidade originária da vida mesma, da qual o Cristianismo praticado pelos místicos é um paradigma, e instaura-se uma “metafísica da presença” a ser contemplada como critério de originariedade da religiosidade cristã. Daí a razão última dessa hermeticidade da experiência religiosa: “É uma fonte selada onde o estrangeiro não tem acesso” (“Est fons signatus, cui non communicat alienus”). (HEIDEGGER, 1995, p. 334).
Nas reflexões anteriores, comentei algumas notas consagradas ao místico Bernardo de Claraval, com base na fenomenologia da religião de Heidegger, esboçada nas notas da Vorlesung não proferida (“Os fundamentos filosóficos da mística medieval”)e nos cursos universitários do período de Freiburg (1919-1923). Em seus primeiros cursos sobre o Cristianismo das origens (reunidos na GA 60), Heidegger elabora e estrutura sua análise fenomenológica da religiosidade cristã como uma confrontação entre o pensamento objetivante grego e a atitude cristã primitiva, centrada na interioridade (Innerlickkeit) ou na vida e na experiência interior (em sentido fenomenológico) ou fática (Erlebnis, innere Erfahrung), da qual ele cita as principais testemunhas através da tradição ocidental: Paulo, Agostinho, a mística medieval (especialmente Bernardo de Claraval, Mestre Eckhart, Teresa d’Ávila), Lutero, Kierkegaard etc. A fenomenologia visada pelo jovem Heidegger, cujo objetivo é dar conta do movimento originário da vida fática, a partir de suas expressões mais próprias, se insere na esteira da revolução contra o ideal antigo da ciência inaugurada pelo Cristianismo das origens.
Nas notas da Vorlesung não proferida “Os fundamentos filosóficos da mística medieval”,Heidegger insiste em compreender o “aspecto autêntico da consciência” religiosa para evidenciar seu sentido profundo, sua doação originária, sua facticidade. Escolhendo uma lógica da vida contra uma lógica da validade, Heidegger rejeita a dominação do “teórico” sobre a “vivência”, a qual teria sua origem na escolástica medieval. Nas notas do curso não proferido, Heidegger afirma que as concepções aristotélico-escolásticas e platônicas induzem a análise fenomenológica ao erro, precisamente porque não permitem “ver” o “aspecto autêntico da consciência”. Ora, se elas não mostram o aspecto autêntico da consciência, isso significa que tais concepções deixam entrever seu lado inautêntico ou, em outras palavras, sua face teorética: é como se alguém se aventurasse no estudo das noções místicas, não vendo em tal estudo senão o invólucro grego de certos termos herdados, por exemplo, do platonismo.É, porém, nos pensadores religiosos da Idade Média, como Mestre Eckhart, Bernardo de Claraval, Teresa d’Ávila, que Heidegger procura a luz autêntica sobre o fenômeno religioso. Esse projeto já fora descortinado por Heidegger, em 1916, quando desejava examinar a “correlatividade” vital entre Deus e a consciência (HEIDEGGER, 1978, p. 351). Optar pela mística medieval e não pelos teólogos escolásticos significa que, para Heidegger, os místicos, diferentemente dos teólogos da Idade Média, consideram o poder da graça menos em uma doutrina da virtude do que em uma pura doutrina da fé e, portanto, na perspectiva da Heilsgeschichte (CAMILLERI, 2008): a graça determina a representação da salvação, na mística medieval. O “efeito-vivido” da graça – do ponto de vista da Heilsgeschichte – impõe-se à atenção de Heidegger, no sentido de que instaura uma relação dialógica entre Deus e o homem (particularmente realçada na mística medieval) e que recoloca a vontade de salvação deste último na história, e não em um horizonte intemporal (CAMILLERI, 2010, p. 330-333; CAMILLERI, 2011, p. 136-141). Essa dupla atitude, ora em relação ao mesmo processo, ora com respeito ao pensamento medieval há pouco aludido, já anuncia o que Heidegger chamará logo de “destruição” do pensamento histórico. A filosofia constata que a mesma tradição aparentemente homogênea, ou seja, a tradição católica, engloba duas tendências opostas: a escolástica e a mística (HEIDEGGER,1978, p. 410): “Os dois pares antitéticos: racionalismo e irracionalismo, escolástica e mística, não coincidem”; cf. também Moran (2010, p. 352-358). É, portanto, no seio de um mesmo sistema que se trata ao mesmo tempo de procurar a vivência originária do fenômeno e de constatar sua sufocação por diversas interpretações contemporâneas acerca dessa mesma vivência.
ABSTRACT: This article examines Heidegger’s appropriation of ideas of Bernard of Clairvaux in the note “Zu den Sermons Bernardi in Canticum Canticorum (Serm III.)” (Heidegger, 1995, p. 334-337), which is part of other notes and sketches in a never presented Vorlesung entitled “Philosophical foundations of medieval mysticism (1918-1919)” (Heidegger, 1995). Throughout my analysis I highlight three points, based on the initial formula “Today we read in the book of experience”. This formula is paraphrased by Heidegger as follows: “Today we want to move ourselves in the field of personal experience in a comprehensive way, return to the sphere of living itself and perceive the revelation of conscience itself.” Therefore, first I emphasize the initial formula as an experiential field that the book opens: to read (legere) is no longer to decipher, but moving oneself, collecting, and even being affected. Second, based on the appropriation of the Christology of Bernard of Clairvaux, I show how Heidegger points to a “fundamental experience” in the sense that, even considering that the religious experience of the Cistercian mystic is centered on the figure of Christ celebrated in the monastic liturgy, the unveiled Christian religion is a life that is fundamentally more intense and richer in living experiences and lived phenomena. Finally, and in third place, I highlight a certain “inviolability” of religious experience in Bernard of Clairvaux in the sense of absolute autonomy and independence, so that no external authority, not even ecclesiastic authority, can determine meaning based on a body of doctrine foreign to lived experience. To illuminate the notes on the cancelled Vorlesung, my analysis turns to other lectures Heidegger gave at the University of Freiburg (1919-1923).
KEYWORDS: Middle Ages, experience, mysticism, phenomenology, religiosity.
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Recebido em 13/02/2016
Aceito em 29/05/2016
[1] http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732016000300007
[2] Professor permanente do programa de Pós-Graduação em Filosofia (Mestrado) da UFES, bolsista de Produtividade em Pesquisa, Nível 02, do CNPq e atual presidente da Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval (http://www.sbfm.net.br). Última publicação relevante: Fenomenologia e Idade Média. Curitiba: CRV, 2013, 221p. Obra resenhada por João A. Mac Dowell, S.J. – FAJE/BH, em Síntese.
Revista de Filosofia, v. 41, n.131, p. 453-458, 2014. E-mail: benedictus1983@gmail.com
[3] Há uma tradução brasileira desse curso e de outros do mesmo período, reunidos no volume 60 da Gesamtausgabe (= GA) de Martin Heidegger: “Fenomenologia da Vida Religiosa” (HEIDEGGER, 2010 = 2014). Neste artigo, citarei o original alemão (= HEIDEGGER,1995).
[4] É a partir de 1924 que Heidegger tem a intenção de escrever Ser e Tempo (e efetivamente põe-se a escrevê-lo) com base em seus cursos ministrados em Freiburg (1919-1923) e em Marburg (1923-1928). O Denkweg de Heidegger será marcado sobretudo pela apropriação mais intensa de Aristóteles, de
[5] a 1922 e pelo consequente distanciamento progressivo do Cristianismo em geral (CAMILLERI, 2014; SOMMER, 2006).
[6] “O mundo da vida se manifesta de tal ou de tal modo em e para uma situação dada do mundo do simesmo. Este ser-situado (Zuständlichkeit) instável e fluído do mundo do si-mesmo determina sempre enquanto caráter situacional o ‘de algum modo’ do mundo da vida.” (HEIDEGGER, 1993, p. 62).
[7] Sobre a noção de “experiência” no pensamento de Heidegger, ver Fischer (2013, p. 264-274).
[8] No limiar das notas da Vorlesung não proferida sobre a mística medieval, Heidegger examina a concepção prévia [Vorbegriff] da mística como guia para clarificar a sua “[...] multiplicidade das direções de significação” (HEIDEGGER, 1995, p. 303-304): “A concepção prévia (Vorbegriff) da mística pode ser esclarecida já agora no princípio, na medida em que as diferenças se dividem em diversas regionalidades: I Vivência (‘vida’), II. Teoria do que vivenciado (teologia mística) e sua valoração teórica, metafísica (visão de mundo religiosa, mística), III. Teoria da própria vivência, IV”. À medida que a concepção prévia da mística visa à posse do objeto, atinente à explicação construtiva e produtiva – portanto, fora de uma esfera pré-teórica originária da vida, na qual se dá a experiência mística–, Heidegger propõe outra concepção prévia que indique formalmente as experiências religiosas e místicas,apropriando-se do objeto no sentido da união compreensiva.
[9] Essa expressão é utilizada por Heidegger, em uma carta endereçada a Elisabeth Husserl, datada de 24 de abril de 1919 (KISIEL, 1995, p. 112.525).
[10] Mesmo considerando que o sintoma imediato de insatisfação de Heidegger para com o catolicismo de sua época surja aos 29 de junho de 1914, com a determinação da Congregação romana de fixar a filosofia católica em termos estritamente tomistas, a atitude de ruptura com “o sistema do catolicismo” só pode ser compreendida com objetividade à luz da discussão em torno da relação entre catolicismo e modernismo, nos inícios do século XX, com base na Encíclica papal Pascendi dominici gregis, de 8 de setembro de 1907. A propósito desse período no caminho de pensamento de Heidegger, cf. Fischer (2013, p. 39-44).
[11] Cf. “Brief an Engelbert Krebs” (9.01.1919), carta reproduzida em Casper (1980, p. 541): “[...] conhecimento de teoria do conhecimento, passando para a teoria do conhecimento histórico, tornaram o sistema do catolicismo problemático e inaceitável para mim, mas não o Cristianismo, nem a metafísica (esta última em um novo sentido)”; cf. também a tradução bras.: Safranski (2000, p. 143).
[12] Evitando o uso de conceitos herdados da tradição filosófica – tais como “sujeito”, “objeto”, “causa”, “finalidade”, “substância”, “matéria” etc. –, Heidegger manifesta interesse por alguns advérbios, substantivos e partículas adverbiais como indicadores formais da facticidade. Enquanto indicadores formais, essas expressões “[...] guardariam na linguagem cotidiana aspectos da direcionalidade, do movimento e da instrumentalidade original da vivência do sentido do ser”, por exemplo, Um-zu (serpara), Umsicht (circunvisão), Wozu (para-quê), Woraufhin (aquilo-em-relação-a-quê), Wobei (estar junto), Womit (estar com), Worin (no contexto em que), Wohin (destino) – (RESENDE, 2013, p. 219-220). Com base nisso, Heidegger mostra que as coisas não se dão isoladamente na subjetividade da consciência, mas que sempre já vêm ao nosso encontro no âmbito aberto do mundo, no “aí” do Dasein. Portanto, coloca-se agora a questão transcendental de como é possível o “dar-se” em geral. Trata-se doravante da problemática da doação/dadidade (Gegebenheit), não no sentido de um “serdado” posto por mim, ou seja, onde eu me “dou” alguma coisa, mas “doação”, como o pré-dado (Vorgabe) a mim (do exterior) – (QUESNE, 2003, p. 95). Por conseguinte, não se põe mais a pergunta pelos diferentes modos em que as coisas se dão na consciência. Em Ser e Tempo, § 32, Heidegger define assim o Woraufhin: “Sentido é aquilo-em-relação-a-quê [horizonte] do projeto, estruturado pelo ter-
[13] * [“ausgeschl”: duas sílabas ilegíveis aqui.].
[14] Heidegger, 1993, p. 247: “Quando ‘considero’ minha vida, quando me recordo de uma vivência, então vivo naquilo que vivenciei e, tenho a mim mesmo no caráter vivencial que vivenciei – e isto, ademais, de modo muito mais concreto ‘me’ tenho a mim mesmo quanto estou (artificialmente) disposto para meu ‘eu’ vazio.”
[15] O volume contém uma disposição não cronológica: 1. Einleitung in die Phänomenologie der Religion (WS 1920-1921, p. 1-156); 2. Augustin und der Neuplatonismus (SS 1921) (159-298); 3. Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik (1918-1919, p. 303-337).