A irredutibilidAde dAs pAixões em descArtes

Érico Andrade[1]

resumo: O presente artigo tem como objetivo central apresentar uma visão alternativa para o debate sobre o dualismo cartesiano mente e corpo. Nessa perspectiva, vou sustentar a tese de que o dualismo de substâncias cartesiano está presente apenas na metafísica cartesiana e não serve para explicar a condição humana, marcada, notadamente, pelo composto mente e corpo. Desse modo, vou procurar mostrar que as paixões ou emoções, responsáveis por nossos estados mentais, são decorrentes da interação entre a mente e o corpo e, de modo nenhum, podem ser reduzidas à mente ou ao corpo, tomados separadamente. Elas são propriedades que emergem, no sentido heterodoxo do termo emergência, da relação da mente com o corpo. pAlAvrAs-chAve: Descartes. Dualismo. Propriedades. Mente. Corpo.

De resto, para suprimir aqui em poucas palavras tudo quanto se poderia acrescentar no tocante aos diversos efeitos ou às diversas causas das paixões, contentar-me-ei em repetir o princípio em que se apoia tudo que escrevi, a saber,

que há tal ligação entre a nossa alma e o nosso corpo. (DESCARTES, Tratado das paixões, art. 136).

introdução

A partir da publicação de The concept of mind (Oxford, 1950), o dualismo de substância passou a ser a expressão mais usada, entre os que fazem filosofia da mente, para referir-se ao pensamento cartesiano. Nessa perspectiva, as Meditações seriam o protótipo da posição que cinde o ser humano em duas substâncias distintas e irreconciliáveis. Os seres humanos seriam fantasmas cuja estrutura imaterial não guardaria relação com o corpo (matéria). Seríamos fantasmas numa máquina (RYLE, 1950, cap. I) que comandamos, sem sequer nos envolvermos com ela. Apenas apertamos os dispositivos que a movimentam, como os marinheiros que mudam o rumo do navio somente mexendo no seu prumo. Essa imagem da filosofia cartesiana foi repetida várias vezes e se dilatou, durante um bom tempo, na maior parte dos manuais de filosofia da mente. Contudo, a partir da década de 1990, essa imagem começou a ser desfeita por textos que reposicionaram o debate para uma análise menos parcial da filosofia cartesiana [ver, por exemplo, (BAKER; MORRIS, 1996)] e fizeram os manuais de filosofia da mente contar uma nova história do clássico problema da relação entre mente e corpo, em que Descartes deixava de ser uma espécie de espantalho responsável por sustentar a completa impossibilidade da conciliação da mente com o corpo [ver, por exemplo, (LOWE, (2000) e (GILBERT; LENNON, 2005)]. Se, durante muito tempo, a filosofia cartesiana foi a representação mais apropriada para expressar a posição heterodoxa em filosofia da mente contemporânea conhecida como dualismo de substância, a cuja adesão hoje em dia se resigna um gueto de poucos filósofos, é verdade que agora notamos que essa posição vem sendo revisada, mas acredito que alguns esclarecimentos são ainda necessários.

Penso que Descartes não propõe, nas Meditações, que uma investigação acerca da natureza humana deveria resumir-se a provar a distinção entre duas estruturas ontológicas distintas. Embora, na maior parte do texto, Descartes identifique o eu ao sujeito pensante, que é realmente separável do corpo e que pode prescindir, pelo menos parcialmente, dos sentidos, na tarefa de fundamentar o seu autoconhecimento como substância pensante, o uso do dêitico eu em todas as Meditações não traduz apenas um processo de introspecção da mente, sem qualquer tipo de relação com os sentidos. Meu ponto é que o sujeito das Meditações, compreendido como o ser humano, só é estabelecido no registro da união do corpo com a alma, isto é, na sexta meditação.[2] Embora o sujeito possa chegar a algumas verdades, como, por exemplo, o cogito sem recorrer aos sentidos, a matiz idealista do modelo de reflexão das Meditações não autoriza a redução do ser humano à mente, nem financia a tese de que a presença do corpo no ser humano seria apenas acidental (AT, III, p.508 ; AT, V, p.134-135), o que caracterizaria a posição cartesiana, ainda segundo Ethel Rocha, equivocadamente como uma posição platônica. Vou sustentar, neste artigo, que o ser humano é o resultado da união (que, para Descartes, implica interação) da alma com o corpo.

Nesse sentido, vou defender que a imagem de Descartes como um dualista de substância incide num grave erro que consiste na confusão entre um plano de análise epistemológico ou metafísico, para o qual o corpo não é necessariamente requerido, e uma análise antropológica, entendida como análise da condição humana, que é irrealizável sem a compreensão do corpo e da mente conjuntamente. No interior de uma análise metafísica, é possível separar corpo e mente, mas isso não se admite, no horizonte antropológico. Existem, portanto, dois níveis de abordagem da relação do corpo com a mente. No plano antropológico, sobre o qual se debruça a filosofia da mente e para o qual se volta o presente artigo, Descartes nunca pensou o ser humano em função do dualismo substancial, ao passo que, no plano metafísico, Descartes se enquadra na tradição idealista, para a qual o conhecimento pode ser fundamentado apenas por uma investigação da razão; portanto, sem a ingerência dos sentidos.

Para convencer o leitor da plausibilidade da minha tese, farei um breve percurso sobre algumas posições dos intérpretes sobre o tema. Meu objetivo é apontar que eles erram o foco do objetivo cartesiano, quando insistem em conciliar o dualismo de substâncias com a antropologia. Em seguida, farei algumas considerações sobre a argumentação cartesiana em favor de campo próprio de análise das paixões, no intuito de mostrar como Descartes conduz a sua reflexão em direção à compreensão de que as paixões são irredutíveis,

lidade de difundir-se pelos corredores escolásticos, constituindo-se num refúgio seguro para ele dizer que o seu propósito com aquele texto não é teológico, mas epistemológico, de fundamentação da física. Nesses termos, Descartes confidencia a Mersenne: “Eu diria, cá entre nós, que essas meditações contêm todos os fundamentos da minha física” (MERSENNE, 28/janeiro/1641 // AT, II, p. 297-298). Com a tese de que é possível reduzir toda predicação das qualidades dos corpos aos predicados da geometria, Descartes, de fato, desaloja o resíduo aristotélico da física, pois não há mais espaço para corpos animados ou que detêm autonomia de movimento. Portanto, para despojar a natureza de todas as propriedades e inviabilizar qualquer estudo que opere com o pressuposto de que os corpos têm uma vontade própria ou autonomia para se movimentarem, foi preciso separar a alma do corpo, para, enfim, tratar a matéria como uma pura extensão.

do ponto de vista de sua intencionalidade, às propriedades do corpo e da alma, tomados separadamente. Com isso, vou indicar que do dualismo de substâncias, que é igualmente um dualismo de propriedades, segue-se, na filosofia cartesiana, um terceiro nível de propriedades que resultam ou surgem da interação entre duas substâncias diferentes. Ou seja, as paixões decorrem da relação problemática entre as substâncias, mas não podem ser reduzidas conceitualmente às abordagens da metafísica e da fisiologia. A explicação das paixões terá um terreno próprio, que é a vida prática do ser humano, a moral.

No final do artigo, espero que fique claro um ponto. Na antropologia cartesiana, não há fantasma na máquina, porque não há nem fantasma (a mente), nem máquina (o corpo), compreendidas separadamente, mas um composto único, cuja singularidade caracteriza a condição humana ou a antropologia cartesiana. Meu texto terá conseguido atingir o seu objetivo, se comprovar que Ryle, quando tece uma leitura pouco caridosa da obra cartesiana, comete a falácia mereológica, uma vez que toma a parte (a mente) como se ela fosse o todo (o composto), isto é, ele confunde as propriedades que surgem da união com propriedades que pertenceriam apenas à mente. As propriedades que Ryle acha que são do fantasma, na verdade, surgem do composto, da união da mente com o corpo, o que desfaz a ideia do fantasma na máquina. os limites dA metAfísicA: em defesA de umA explicAção AntropológicA do problemA dA união substAnciAl

A separabilidade do corpo da mente, demonstrada nas Meditações, certamente teve um alto preço,o qual foi inflacionado pelas questões que vários leitores puseram, quanto à relação que as duas substâncias distintas guardavam no ser humano. Assim, as questões atinentes aos problemas levantados pela distinção entre a mente e o corpo permearam o debate de Descartes com seus contemporâneos. Notadamente, a posição de Descartes ganhava nuances, de acordo com seu interlocutor. Para alguns interlocutores, ele atribuía à união da mente com o corpo um estatuto muito próximo à ideia de substância, sugerindo, por conseguinte, uma terceira substância. Quando Descartes, por exemplo, dá a seguinte resposta a Regius, concernente à natureza humana, o unitarismo (termo que se refere aqui à tese de que o ser humano é uma substância composta pela união da mente com o corpo) parece ganhar contornos de uma tese mais forte: “A união, que junta o corpo do homem e a sua alma não é um acidente, mas a sua essência posto que sem essa união o homem não poderia ser um homem.” (AT, III, p. 508 ; AT, V, p. 134-135/sobre a alma informando o corpo ver: AT, X, p. 411 e AT, VII, p. 315). Notadamente, as cartas em que Descartes sustenta a união substancial ou recorre a um vocabulário próximo ao aristotélico são, em geral, dirigidas a interlocutores mais afinados com a escolástica. Ver, por exemplo, as cartas a Regius (AT, III, p. 460, AT, V, p. 86, AT, V, p. 112-113) e a Mesland (AT, IV, p. 261, AT, IV, p. 166-169). A ênfase dada à união substancial pode ser vista também na sua resposta às quartas objeções feitas por um teólogo, Arnauld. Por outro lado, a tese da distinção está presente nos textos cartesianos que contêm reflexões metafísicas, especialmente seus principais livros sobre o assunto, nos quais Descartes afirma, entre outras coisas, que “há uma grande diferença entre espírito e corpo” (sexta meditação) ou que “o espírito ou a alma é inteiramente diferente do corpo” (sexta meditação), visto que eles “podem existir uma sem a ajuda da outra” (Pr. I, art. 52 / AT, IX, p. 47). Ademais, nos textos nos quais Descartes reafirma a separação, ele também defende sistematicamente a união, sem nenhum constrangimento, como, por exemplo, na sexta meditação e nos Princípios.

A variação de respostas que Descartes ofereceu para os seus leitores supracitados só pôde ser identificada posteriormente. Os seus contemporâneos não tinham acesso às respostas que Descartes dispensava a cada interlocutor(a), e o único ponto em comum era o texto das Meditações e dos Princípios. Hoje, no entanto, podemos avaliar as diferentes respostas e ponderar melhor a posição cartesiana em face da inquietante questão proposta. Além de termos todos os textos cartesianos, especialmente o Tratado das paixões, que circulou na época apenas na mão de, no máximo, três pessoas – a rainha Cristina e a princesa Elisabeth, e Clerselier (Carta a Clerselier, 23 de abril 1649/AT, V, p. 353-354), temos também acesso às respostas oferecidas por Descartes aos seus mais diferentes interlocutores. Parte da tarefa dos intérpretes atuais consiste em recuperar uma posição uniforme de Descartes, para resolver aquilo que Gilson chamou de paradoxo cartesiano (GILSON, 1984, p. 245), inscrito no desejo de Descartes de tentar justificar a união de duas substâncias distintas. Nos últimos vintes anos, essa questão ainda permanece viva e suscita bons debates.

Inicialmente, dois caminhos de interpretação abrem-se imediatamente para tentar solucionar o paradoxo cartesiano. Primeiro, sustenta-se que Descartes teria abandonado a distinção real entre o corpo e a alma ou mente, sugerida nas Meditações, e argumentado em favor de uma espécie de terceira substância. Nesse sentido, ele teria simplesmente deixado de lado a distinção real, para defender uma única substância, assumindo uma posição próxima do hilemorfismo aristotélico (HOFFMAN, 2009, p. 51); ver Hoffman (2008, 2011, p. 381-382); a crítica a essa posição pode ser vista no artigo muito bem argumentado de Ethel Rocha (2006). Outro caminho é sustentar que, na obra cartesiana, é possível perceber a existência de três substâncias, no que tange ao ser humano. Nesses termos, Cottingham advoga em favor da tese de que o ser humano compõe uma terceira substância, perfazendo um número de três substâncias: corpo, alma (mente), união substancial do corpo com a mente. Esses dois caminhos não são aceitos pela maior parte dos intérpretes, que procura insistir no dualismo. Para renovar a interpretação dualista, Chappel tenta matizar a união substancial por meio da defesa de que Descartes se refere ao ser humano como uma unidade no sentido fraco do termo, isto é, por ser uma unidade fraca, o ser humano não pode ser designado como uma substância (CHAPPEL, 1999,  p. 408).

Notadamente, Chappel estabelece duas possibilidades para o dualismo, quais sejam: ele pode ser duro (que designa um dualismo de substâncias) ou fraco (não se trataria propriamente de um dualismo de substâncias). Outras duas possibilidades são conferidas ao unitarismo, que pode ser igualmente duro (haveria apenas uma substância, para Descartes: o composto substancial) ou fraco (o composto substancial não designa uma uma substância) (CHAPPEL, 1994, P. 406). Seu objetivo é promover uma sintonia entre a tese da união e a tese da separabilidade da mente com o corpo. Seu ponto consiste na tentativa de harmonizar o dualismo duro, o qual ela considera ser a posição de Descartes, com a união. Ela prefere enfraquecer o unitarismo cartesiano, assumindo uma versão fraca, por meio da tese de que Descartes nunca pretendeu desfazer-se do dualismo duro, embora ele sempre tenha alimentado a ideia de que, no ser humano, existe, de fato, uma interação entre as duas substâncias distintas (CHAPPELL, 1994, p. 420, 424). Para a autora, há uma continuidade entre as Meditações (em que Descartes apresenta, de maneira contundente, seu dualismo) e os demais textos (nos quais ele trata do ser humano), caso a leitura dessas obras esteja direcionada pelo que ela chama de um unitarismo fraco, que, de modo nenhum, segundo ela, contradiz o dualismo duro. Ademais, o unitarismo fraco permite demarcar a clara oposição que Descartes mantém em relação à tese aristotélica conforme a qual os seres humanos seriam formas substanciais (CHAPPEL, 1994, p. 408, 420) e, portanto, uma terceira substância. Um dos seus argumentos é que Descartes nunca empreendeu o predicado substância para referir-se à relação da mente com o corpo (CHAPPEL, 1994, p. 409, 424). A união é substancial (expressão raramente usada por Descartes para referir-se à união), mas isso não implica, segundo ela, que a mente e o corpo formem uma única substância. Descartes seria um dualista que nunca esteve disposto a negar a interação do corpo com a mente; nem nas Meditações, nem em nenhuma outra obra, ainda que não pudesse explicar como duas substâncias distintas poderiam interagir.

Independentemente de estar de acordo com Chappel, reconheço que ela apresenta um conjunto de possibilidades que mapeia bem as diferentes interpretações da posição cartesiana. Chappel tem igualmente esperança de que seu unitarismo fraco possa harmonizar-se com o dualismo de substância duro cartesiano, visto que, para ela, Descartes nunca teria abandonado a distinção entre mente e corpo na mesma medida em que nunca teria explicitamente negado algum nível de interação entre eles. Meu ponto é que, embora essa abordagem seja boa, sobretudo para fazer uma topografia das diferentes posições dos estudiosos e estudiosas de Descartes, ela se centra no debate dualismo x unitarismo, que acredito estar na raiz do problema da interpretação da posição cartesiana a respeito da natureza e da função das paixões que caracterizam o ser humano. Afinal, só os seres humanos têm paixões, visto que, diferentemente de Deus (que não tem corpo e, por isso, não tem paixão) e dos animais (que não têm mente) (ver: AT, III, p. 85), apenas os seres humanos possuem mente e corpo. Descartes constrói uma posição que não põe em dúvida a interação. Na sexta meditação, por exemplo, ele afirma, no mesmo texto, tanto a diferença (o corpo é totalmente diverso da alma) (AT, VII, p. 86) quanto o fato de o corpo com a alma formarem um composto (a natureza do homem como composto de mente e corpo) (AT, VII, p. 88). O desafio é entender por quê.

A minha hipótese é que o sucesso na explicação das paixões que caracterizam o ser humano não depende do conhecimento claro e distinto da interação do corpo com a mente, mas, pelo contrário, depende do entendimento das paixões. Embora possa parecer surpreendente, a minha hipótese acentua que Descartes pensa a união a partir das propriedades que dependem dela, porque existem apenas por causa das paixões, e para cuja explicação o conhecimento claro e distinto do cogito não contribui de modo absoluto. Ou seja, ainda que não seja possível explicar em termos metafísicos como duas substâncias distintas podem interagir em função, do conhecimento dessas duas substâncias, isoladamente, é possível explicar, a partir das paixões, como essa interação ocorre em outro nível de abordagem. Com efeito, essa explicação nem pode ser redutível a uma investigação metafísica, nem a uma abordagem fisiológica, tomadas isoladamente. Ela terá um domínio próprio, qual seja, o da moral, desenvolvida no Tratado das paixões, como mostrei em outro texto (ANDRADE, 2015). O problema das paixões, cuja existência pressupõe a interação entre a mente e o corpo, deve ser desviado da metafísica, a qual é incapaz de oferecer uma resposta a ele, para habitar um novo domínio, a saber, o da moral, que é um âmbito prático (circunscrito à ação humana), porque envolve diretamente a ação humana no sentido da procura pela vida boa.

novos horizontes pArA A explicAção dA interAção dA AlmA com o corpo

Descartes mantém uma preocupação constante em dividir os horizontes de abordagem para os quais a filosofia (entendida como uma disciplina que, no século XVII, vai da geologia à metafísica) pode colaborar. Não é preciso discutir acerca da unidade metodológica – se Descartes se mantém fiel ao seu método, em toda a sua obra – para reconhecer que os diferentes conhecimentos humanos guardam determinadas especificidades (pressuponho aqui o que tratei em outros trabalhos) (ANDRADE, 2006a, 2006b). No interior das ciências, existem aquelas que são mais certas do que outras. A matemática é, por exemplo, mais certa do que a física e, por isso, não se pode exigir da física que ela tenha todas as suas verdades análogas às verdades da matemática (ANDRADE, 2006a, 2006b). Isso ocorre também no interior de um domínio específico do conhecimento humano. O conhecimento do corpo e da mente, separadamente, não está necessariamente no mesmo patamar de análise do conhecimento da relação da união da mente com o corpo, no que concerne, pelo menos, ao seu grau de certeza. Descartes afirma, nas Meditações, que o conhecimento do cogito (primeira verdade demonstrada na segunda meditação) é mais simples do que o da união e, por isso, na ordem do texto, ele é anterior ao conhecimento da união, que se dá na sexta meditação. Embora se trate de uma mesma investigação metafísica, as Meditações consideram que as certezas têm diferentes graus e, por isso, ocupam lugares diferentes no texto, de acordo com as dificuldades por ele elencadas. A demonstração segue uma ordem das dificuldades, que, de maneira nenhuma, exclui uma ordem das razões. Nesses termos, é mais fácil provar o cogito do que a união.

No entanto, parte das questões dos interlocutores de Descartes não considerou o modo como ele conduz o texto, em função da complexidade dos problemas metafísicos e antropológicos expostos. Há verdades que não podem ser objeto de uma intuição clara e distinta. Muitas vezes, é preciso recorrer ao sentidos para que o conhecimento de algumas verdades, especialmente ligadas à condição humana, possa ser demonstrado ou pelo menos apresentado como um conhecimento com um grau de certeza importante. A princesa Elisabeth, por exemplo, não se furta a pôr em questão o estatuto da relação entre a alma e o corpo, que não pode ser compreendido por uma intuição intelectual na forma de um juízo claro e distinto próprio das noções primitivas que são objeto do entendimento puro. Descartes, contudo, transforma a pergunta da princesa numa oportunidade de insistir sobre o ponto em que a união do corpo com a mente deve ser pensada num horizonte próprio, não necessariamente metafísico. Isso significa que a tentativa de recuperar a raiz da interação, com base em uma compreensão calcada apenas numa análise do entendimento puro, não ajuda a compreender as propriedades decorrentes da união. Ele alerta para o fato de que as noções primitivas da alma, do corpo e da união devem ser estudadas separadamente:

Considero também que toda a ciência dos homens consiste tão somente em distinguir essas noções, e não atribuir cada qual senão às coisas a que pertencem. Pois, ao querer explicar alguma dificuldade por uma noção que não lhe pertence, não podemos deixar de nos equivocar. Como também quando queremos explicar uma dessas noções por uma outra, pois sendo primitivas, cada uma delas só pode ser entendida por ela mesma. (Carta a Elisabeth, 21 maio de 1643/ AT, III p. 665).

O texto fornece indícios de que as noções primitivas não devem ser explicadas uma em função da outra. Conforme Descartes, parte importante da sua tarefa é promover um critério (ciência) que permita distinguir as noções e promover o conhecimento de cada uma delas, de acordo com as suas propriedades específicas. A investigação deve centrar-se na particularidade de cada noção primitiva. Por isso, Descartes continua, na mesma carta, após tratar do conhecimento da alma e do corpo: “A primeira coisa que devo explicar em seguida é o modo de explicar aquelas (propriedades) que pertencem à união da alma com o corpo sem aquelas que pertencem ao corpo só ou à alma só.” (AT, III, p. 666). Enquanto uma crença metafísica passa pelo teste das dúvidas mais radicais, as quais colocam em suspensão as nossas crenças mais estruturais, uma crença relativa à constituição humana carrega um caráter antropológico, porque se refere diretamente à nossa vida que acontece graças à referida interação. Ao contrário das demais noções, a noção primitiva da união substancial não pode ser objeto de uma análise estruturada pelo estudo do corpo e da mente, separadamente, nem pode ser conhecida por um processo de dedução feito a partir do conhecimento das propriedades do corpo e da alma que são dadas e invariáveis. O conhecimento da união requer não apenas o entendimento, o qual é capaz de organizar dedutivamente as verdades metafísicas, mas a própria natureza humana como um todo (todas as suas faculdades). Por isso, a prova da união só poderia vir depois do reconhecimento de que a natureza humana, embora possa falhar, não se engana, quando toma algo como certo. Ou seja, não se pode abdicar das nossas faculdades (natureza) cuja falsidade ou a capacidade congênita de nos enganar foi afastada pela rejeição da hipótese do gênio maligno. Uma vez que a nossa natureza não falha estruturalmente e de modo congênito, não há motivos para não confiar nela, quando esta assere algo como verdadeiro. É precisamente esse ponto que governa a seguinte passagem da sexta meditação:

Ora, nada há que esta natureza me ensine mais expressamente, nem mais sensivelmente do que o fato de que tenho um corpo que está mal disposto quando sinto dor, que tem necessidades de comer ou de beber, quando nutro o sentimento de fome ou de sede, etc. E, portanto, não devo, de modo algum, duvidar que haja nisso alguma verdade. (SEXTA MEDITAÇÃO/AT, IX, p. 89).

Notadamente, o termo natureza não designa nessa passagem apenas o entendimento puro. Um pouco antes (parágrafo 22 da sexta meditação), Descartes afirmara que a nossa natureza era o complexo composto. Um pouco depois dessa passagem (agora, no parágrafo 27/AT, VII, p. 101), ele restringe o conceito de natureza humana às coisas “que Deus me deu como composto humano.” (AT, VII, p.104). Assim, a natureza humana é definida pela composição do corpo com a mente. O próprio fato de o ser humano ser composto de mente e corpo o leva a perceber como vários dos seus, permitam-me a expressão, estados mentais se referem à sua própria natureza composta ou só existem graças a ela. O que a natureza pode nos ensinar, que ficará mais claro no Tratado das paixões, é como viver bem com as paixões, que passa pelo reconhecimento da união, mas não do por que Deus concebeu a interação de duas substâncias distintas, que é, aliás, inacessível ao entendimento humano (não é possível saber os propósitos de Deus).[3]

Nesses termos, não apenas o entendimento, mas todas as faculdades compõem a nossa natureza. Os sentidos têm uma função importante para Descartes, porque as nossas sensações não são produções da mente independentes dos sentidos e elas nos dirigem para tomar atitudes, como, por exemplo, saciar a sede, as quais são fundamentais para a manutenção da vida. Por isso, a suposição, na primeira meditação, de que os sentidos podem enganar não pode ser confundida com a certeza de que eles enganam sempre. Uma das funções da sexta meditação é provar que a nossa natureza, composta por todas as faculdades, não é infalível, contudo, tão pouco está condenada a falhar sempre que se apoia no testemunho de faculdades como os sentidos. A sexta meditação como um todo indica que Descartes não está desatento quanto ao conhecimento legado pelos sentidos que compõem, com as demais faculdades, o que podemos chamar de natureza humana, ainda que eles não possam servir para fundamentar todas as nossas crenças, especialmente as crenças metafísicas como, por exemplo, o cogito.

Uma reflexão tecida apenas pelo entendimento puro pode homologar a certeza de que o corpo e a mente são separáveis, entretanto, isso não significa que o ser humano possa ser definido somente pelo entendimento. O ser humano é o composto. A dúvida posta na primeira meditação quanto à existência do corpo humano, ou mais precisamente, à sua relação com a mente, é completamente esvaziada de sentido, na sexta meditação, porque não podemos viver a experiência da separabilidade, que seria viver a morte. Não se vive a morte, diria Wittgenstein, mais tarde. “A morte não é um fenômeno da vida.” (WITTGENSTEIN, TLP, 6.4311). Nesses termos, a crença na interação do corpo com a alma é asserida por um viés próprio e se trata, pontua Descartes, “de uma das coisas que são conhecidas por si mesma.”

Por conseguinte, não é necessário o conhecimento metafísico de como a interação é possível para explicar seus efeitos na vida humana, que serão objeto da moral. É nesses termos que Descartes tenciona explicar, sobretudo na segunda parte do Tratado das paixões, as paixões pelos seus efeitos e não por suas causas materiais Aliás, a procura por um conhecimento claro e distinto da interação, calcado apenas no entendimento puro, pode torná-la ainda mais obscura (carta a Arnauld de 29 de junho de 1648/AT, V, p. 192-193). Assim, se do ponto de vista da metafísica é possível demonstrar que o corpo e a mente são substâncias distintas, recorrendo exclusivamente ao entendimento puro, do ponto de vista da condição humana (o que chamo de antropologia cartesiana), sobre o qual se debruça a análise da interação, não é possível recorrer apenas ao entendimento puro, visto que o que está em jogo é a nossa condição ontológica atual em que a mente e o corpo estão interagindo e não estão, portanto, separados por um abismo de substâncias incomunicáveis.

Embora não seja possível explicar perfeitamente como essa interação se dá, em termos metafísicos ou por uma análise exclusiva do entendimento puro, não há um obstáculo, por assim dizer, epistêmico, que tornaria inviável uma explicação razoável da interação, principalmente uma explicação com vistas ao uso das paixões na promoção de uma boa vida. Uma explicação que ganha sentido e relevância, por conseguinte, em nossas práticas, no modo como vivenciamos as paixões.

É compreensível que os contemporâneos de Descartes exigissem uma posição definitiva que decidisse entre o dualismo e o unitarismo, os quais pareciam as únicas possibilidades, naquele momento. Com efeito, para os intérpretes atuais, não acho uma boa estratégia continuar nesse dilema, quando a obra cartesiana revela fortes indícios de que a reflexão sobre a união está em outro nível epistemológico ou de validação de nossas crenças, conforme demonstra todo o esforço de Descartes em transformar as questões sobre a interação da mente com o corpo em oportunidade para ratificar a existência de outro plano de abordagem, a fim de  lidar com a condição humana.

Se as nossas intuições ou a nossa natureza, balizadas por Deus, cujo propósito não pode ser o de nos enganar (SEXTA Meditação/AT, VII, p. 90), confirmam e garantem que o corpo e a mente formam um único composto, denominado por mim como ser humano, por que pensar que eles são separados, na existência humana? Das Regras (que apresentam uma interação dos sentidos com o entendimento, especialmente na Regra XII) ao Tratado das paixões (o qual trabalha substancialmente no registro da união da mente com o corpo), Descartes nunca vacilou quanto à convicção de que há uma interação entre a mente e o corpo, ainda que, no plano da análise do entendimento puro, tratem-se de duas substâncias distintas. Para levar a sério essa posição cartesiana e não dizer que Descartes simplesmente subestimou o problema, posição que parece ser a de Garber (2004, p. 213), vou defender que ela pretende sustentar que as paixões não podem ser reduzidas, no que diz respeito à sua causa final ou à sua intenção, às propriedades do corpo e da alma separadamente. Meu ponto é que a explicação das paixões só pode ser bem-sucedida, caso se considere que elas expressam estados mentais subjetivismo distintos, cuja existência só é possível graças à interação do corpo com a mente.

As pAixões como decorrênciA dA união

É importante notar que as paixões podem ser percebidas empiricamente, em razão dos seus efeitos psicossomáticos, no que concerne, pelo menos, aos efeitos que elas causam no corpo, como, por exemplo, a aceleração da circulação dos espíritos animais e, nesse sentido preciso, elas não se caracterizam como um epifenômeno. Por meio do estudo do comportamento do corpo e do efeito psicossomático das paixões, é possível perceber empiricamente se uma pessoa está sob o efeito de uma paixão, embora nem sempre seja possível, sobretudo sem o relato da primeira pessoa, saber exatamente qual é a paixão, uma vez que as paixões “não são completamente parecidas em todos os homens.” (Carta a Elisabeth, maio de 1646/AT, V, p. 409). O ponto é que as paixões causam efeito no corpo, todavia, elas não são explicadas pelas substâncias, separadamente. Nessa perspectiva, vou argumentar agora que o fato de as paixões surgirem da união se coloca como oposição a uma postura reducionista, seja ela metafísica, seja materialista, que impede, por conseguinte, uma explicação exaustiva da experiência subjetiva das paixões.

Expresso em latim, o verbo orior, iris, ortus sum, oriturus significa, entre outras coisas, aquilo do qual se nasce, do qual se provém (AT, VII, p. 585).[4] Nessa perspectiva, o uso do termo surge designa propriedades que não se reduzem, quanto ao nível explicativo, às suas partes, tomadas separadamente. Assim, quando Descartes usa o verbo surgir é com a intenção de designar que as paixões resultam da união da mente com o corpo ou apenas existem em função dessa união, independentemente de termos uma explicação metafísica para a interação entre entidades ontologicamente separáveis. O termo surge indica que as paixões, enquanto sentimentos subjetivamente diferentes uns dos outros, são propriedades irredutíveis a alguma instância específica, porque elas surgem apenas da união que não existiria, por exemplo,  caso um anjo incorporasse um corpo humano.

As paixões não existem antes da união, nem sem a união, mas só a partir dela, e, segundo Descartes afirma, não é suficiente saber que elas, de alguma maneira, são causadas pelo movimentos dos espíritos animais, mas é fundamental saber que “todas as paixões podem também ser excitadas pelos objetos que movem os sentidos e que esses objetos são a sua causa mais ordinária e principal; de onde se segue que para as achar, todas, é suficiente considerar seus efeitos.” (art. 51//AT, XI, p. 372). Isto é, a explicação da natureza das paixões não pode ser reduzida aos seus elementos físicos, ao movimento dos espíritos animais, que foi explicado na primeira parte do Tratado das paixões e que não nos permitiria traçar uma distinção entre as paixões. O exame do movimento dos espíritos animais explica como as paixões se mantêm e como são causadas materialmente, porém, não diz nada a respeito da variação e distinção das paixões, subjetivamente.  A experiência subjetiva e fenomenológica de cada paixão não é explicada por sua causa material, física. Esse caráter intencional das paixões, o modo específico por meio do qual nos relacionamos subjetivamente com as diferentes paixões, não pode ser explicado apenas pela variação do movimento e grandeza das partículas dos espíritos animais.

Fundamentalmente Descartes traça uma distinção, no artigo 51 do Tratado das paixões, entre duas modalidades de causa. O filósofo evidentemente não se expressou em termos aristotélicos, entretanto, parece-me que se trata de dois níveis diferentes de causalidade. Essa distinção não é encontrada com frequência na obra cartesiana e parece ter sido concebida especialmente para explicar o fato de que, para causar as paixões, no sentido geral, é suficiente compreender o que Descartes chama de causa última e, parece-me, primeira das paixões, isto é, a sua causa material, para usar os termos de Aristóteles. No entanto, a causalidade material ou última não é suficiente, segundo Descartes, para explicar uma aspecto essencial das paixões, que é o fato de elas serem distintas e apontarem para experiências subjetivas diferentes umas das outras, isto é, não é possível, ainda para usar a linguagem de Aristóteles, saber a causa final, as intenções, das paixões, só levando em conta  sua causa material. Descartes afirma claramente que “os objetos que movem os sentidos não nos excitam diversas paixões” (art. 52 TP/AT, XI, p. 372), visto que eles não conseguem explicar ou ainda não versam sobre o que é essencial no estudos das paixões, conforme as palavras de Descartes: “Dispor a alma a querer as coisas que a natureza nos diz que são úteis.” (art. 52 TP/AT, XI, p. 372).

A natureza, que envolve todas as faculdades humanas, indica que a alma deve seguir o que é útil para a existência humana e, para isso, não é requerido compreender a causa material ou última das paixões, o movimento do espíritos animais, mas o seu caráter intencional ou as indicações dos caminhos que devemos trilhar, para uma vida boa. O nível da análise não é mais estritamente material, todavia, tem uma dimensão intencional, porque envolve a nossa relação com os objetos que despertam paixão. O elemento subjetivo de, como experimentamos fenomenologicamente as paixões não é reduzido à causa material das paixões. Nesse nível de abordagem, apenas a compreensão da interação do corpo com a alma é que importa e, por isso, Descartes dedica o Tratado das paixões, a partir de segunda parte, ao exame das paixões e não das suas causas, por assim dizer, materiais. A investigação que Descartes propõe é sobre os efeitos subjetivos das paixões, sobre o modo como elas nos afetam na constituição de nossa vida prática, no mundo com as outras pessoas.

Assim, independentemente de Descartes ser mais ou menos enfático quanto à união substancial, em seus escritos, seu ponto é que o estudo do ser humano requer que a união seja conceitualmente abordada num horizonte próprio, no qual a interação não é um acidente, mas a condição mesma para a compreensão das paixões, quanto à especificidade de cada paixão. É possível recuperar essa posição cartesiana, rara na história da filosofia, numa carta ao padre Dinet, na qual Descartes tenta esclarecer a sua posição, quanto à irredutibilidade das paixões, quando mostra que a res cogitans e a res extensa não podem, cada uma isoladamente, servir como modelo de explicação da união da mente com o corpo, pois “essas duas substâncias são chamadas incompletas em relação ao composto que surge de sua união.” (AT, VII, p. 585). A incompletude se dá em relação às propriedades que surgem da união, que não podem ser entendidas, especialmente quanto à sua intencionalidade, quando reduzidas ao corpo ou à mente isoladamente, porque nem o corpo, nem a mente podem, isolados, produzir as paixões na sua diversidade subjetiva.

A mente e o corpo são independentes um do outro. Nesse contexto, a independência é um atributo da substância e revela a total autonomia das propriedades de uma substância em relação à outra. Nesse sentido, uma pode subsistir sem a outra, ainda que ambas dependam da existência de Deus. Contudo, o que Descartes tenciona expressar, na passagem citada, é que as referidas substâncias são incompletas, para explicar as propriedades que surgem da própria interação entre elas ou que só acontece porque o corpo e a alma do ser humano podem, ao contrário dos demais corpos e almas, interagir e, dessa interação, surgem propriedades que atuam tanto sobre um quanto sobre o outro.

O ponto é que as propriedades do todo não podem ser reduzidas às propriedades das partes. O termo incompleta não assume uma conotação ontológica que acarretaria necessariamente a existência de uma terceira substância. Ele designa que uma investigação do corpo e da alma, separadamente, não conseguiria lançar luz sobre a compreensão das paixões que governam o comportamento humano e tornam o ser humano singular, em relação aos demais seres, por causa de sua experiência subjetiva das paixões. É precisamente nesse sentido que o ser humano é concebido, em algumas cartas, como completo, cuja explicação comporta um horizonte próprio e autônomo de reflexão. Em carta a Regius, a qual retém uma coloração escolástica para manter um diálogo proveitoso com o seu leitor, Descartes não hesita em afirmar que, em certo sentido, o ser humano é um ente por si:

Nós asseguramos […] que o homem é composto de uma alma e de um corpo, não apenas pela presença dos dois ou por sua vizinhança imediata, mas por uma verdadeira união substancial […] Mas, enquanto se considera o homem nele mesmo como um todo, não podemos deixar de afirmar que há apenas um e que se trata de um ser existente por si e não por acidente. (Janeiro de 1642: AT, III, p. 508).

Nessa perspectiva, a incompletude entre as duas substâncias não é acidental – é nesse sentido que o ser humano não é acidental –, mas estrutural, pois, embora sejam completas do ponto de vista de suas propriedades específicas – o que garante o dualismo de substâncias cartesiano, no nível de uma análise do entendimento puro ou metafísica, visto que se trata de duas substâncias separáveis, como desejava provar Descartes (AT, VII, p. 222-223) –, elas são incompletas do ponto de vista da produção de propriedades que surgem apenas na interação entre as substâncias e que, por conseguinte, não podem ser reduzidas, no nível explicativo da condição humana, a nenhuma das substâncias separadamente. As paixões não têm autonomia ontológica para existir independentemente da interação da mente com o corpo, nem o corpo e a mente separadamente têm autonomia para produzir paixões que não incidem sobre o corpo e a mente, porque, no nível da explicação da natureza humana, só é possível entendê-las considerando a interação que corpo e mente guardam entre si, cuja crença não está no mesmo patamar de certeza, como se frisou, de outras crenças metafísicas como o cogito ou as verdades eternas. Analogamente, os fenômenos biológicos são dependentes dos fenômenos físicos, mas a sua explicação está em outro nível conceitual e com padrões de garantia e legitimidade não necessariamente coincidentes com aqueles dos demais níveis. Para explicar o ser humano, o recurso apenas à fisiologia e à metafísica separadamente é insuficiente, conceitualmente. Talvez essa convicção tenha alimentado a ideia de Descartes de construir uma obra cujo foco estivesse nas propriedades da união, nas paixões.

o TraTado das paixões e o cAráter intencionAl dAs pAixões

Diferentemente das Meditações, o foco da análise cartesiana empreendida no Tratado das paixões, não repousa na separação do corpo e da mente, mas na união. A passagem de um texto ao outro não deve ser retratada como uma mudança de compreensão da natureza humana, porém, como uma mudança de ênfase no estudo da condição humana. A tese da união já estava presente no momento da redação da sexta meditação. Contudo, ela não é desenvolvida, problematizada, porque Descartes tinha consciência de que o estudo da natureza humana precisava de uma investigação própria, cujo escopo englobasse a especificidade de um saber que não transita no horizonte da certeza absoluta ou, por assim dizer, metafísica.

A redação do Tratado das paixões serve, dessa forma, como uma resposta geral aos diferentes interlocutores das mais variadas colorações. Nessa obra, Descartes assume a tarefa de trabalhar no horizonte do que chamo de natureza humana e opera no registro apenas da união, para explicar as paixões como propriedades de uma ordem diferente das propriedades estritamente corpóreas e estritamente mentais. O epicentro do Tratado das paixões repousa na investigação da união. Para o estudo das paixões, Descartes acredita que é necessária uma disciplina específica que comporte um estudo das propriedades decorrentes da união. Ele declara tal especificidade, na seguinte passagem do Tratado das paixões:

De resto, para suprimir aqui em poucas palavras tudo quanto se poderia acrescentar no tocante aos diversos efeitos ou às diversas causas das paixões, contentar-me-ei em repetir o princípio em que se apoia tudo que escrevi, a saber, que há tal ligação entre a nossa alma e o nosso corpo. (Tratado das paixões, art. 136/AT, XI, p. 420-421).

Quando propõe uma disciplina – a moral –, a qual lida com propriedades que surgem de uma estrutura ontológica pré-definida, Descartes não está negando que disciplinas isoladas, como a metafísica e a fisiologia, auxiliem na compreensão da natureza humana. Nessa perspectiva, é fundamental estar atento ao epicentro da proposta cartesiana, pois as investigações fisiológicas, que marcam, sobretudo, o início do Tratado das paixões, podem desviar o leitor do propósito cartesiano, caso sejam lidas como espelho do Tratado do homem ou como o prenúncio de uma aula de anatomia. As paixões repercutem no corpo e na mente, quanto a isso não há dúvidas. O Tratado das paixões irá mostrar essa repercussão, sem atribuir a causa das paixões ao corpo ou à mente, separadamente.

Os primeiros artigos do Tratado das paixões são responsáveis por traçar uma topografia que mapeia o que é função da mente e o que é função do corpo, mesmo quando se trata de capacidades existentes igualmente no corpo e na mente, porque é possível fazer uma distinção entre essas capacidades, de acordo com os seus respectivos funcionamentos (ver art. 19-26). (os animais, por exemplo, têm algumas dessas capacidades, mas elas são corporais). Essa topografia possibilita homologar a distinção entre o que pertence à mente e o que pertence ao corpo e orienta, por conseguinte, o leitor na direção de uma discussão, a qual, por um lado, não se voltará nem para a metafísica, cujo campo de análise pode prestar-se somente à compreensão da imaginação e percepção do ponto de vista da mente ou que se volta apenas para a vontade humana, que, tomada isoladamente, é objeto apenas da metafísica (notadamente o termo metafísica não aparece no Tratado das paixões). Por outro lado, a referida discussão não se voltará para uma abordagem científica, cujo campo de atuação mais próprio é a anatomia e a fisiologia, as quais fazem um repertório do corpo humano, na medida em que traçam as suas funções vitais e autônomas, porque independentes da sua relação com a mente.

Por isso, apesar de conter algumas poucas observações metafísicas, ou melhor, pressupostos metafísicos e algum volume de reflexões sobre a fisiologia humana, o Tratado das paixões é o atestado cartesiano da rejeição do reducionismo. Nesses termos, é notável que a relação causal entre o estímulo (causa no sentido fraco) e a paixão não é tratada como uma correspondência estritamente biunívoca. O termo causa é usado para designar estímulos externos e estímulos internos e traduz, permitam-me usar a expressão quineana, o in put responsável pelo desencadeamento de um estado mental, cuja existência depende da existência do corpo e da mente, porém, cuja explicação requer a união, pois se trata de um out put com propriedades que não podem ser reduzidas ao estímulo que as desencadeou. Motivos psicológicos ou fisiológicos podem causar (no sentido de estimular ou, como costumava afirmar Descartes, excitar) as paixões, mas a existência das paixões expressa a união, porque só podem ser compreendidas no horizonte em que mente e corpo estão integrados.[5]

Com efeito, a união da mente com o corpo não explica o funcionamento mecânico do corpo humano – a espontaneidade do funcionamento dos órgãos, a qual é estudada no Tratado do homem –, nem o poder da mente, presente na sua faculdade do entendimento, de conhecer a verdade. As propriedades da res extensa e da res cogitans estão dadas e não dependem do ser humano. Todavia, as paixões explicam as razões que levam a mente a mover o corpo em direção a determinados propósitos e as razões pelas quais o corpo influencia a mente a tomar certas decisões como, por exemplo, mover o corpo em direção ao consumo de certos alimentos. O ponto é que a intenção das ações humanas, o que faz que a nossa atenção se dirija para certos fenômenos, não é explicada em virtude das propriedades que marcam a configuração ontológica da mente e do corpo, separadamente. A disposição da mente (enquanto tomada de consciência de algo) para conformar-se, segundo Descartes, “a querer aquelas coisas que a natureza considera úteis” (TP, art. 52/AT IX p. 352) depende das paixões, cuja principal função é orientar a natureza humana a agir em sintonia com as suas próprias necessidades (TP, art. 40-41/AT, XI, p. 359). As paixões funcionam como um indicativo de como devemos nos comportar para uma boa vida, levando em conta o que a mente e o corpo devem fazer juntos, para preservar o bem. Em outras palavras, o aspecto intencional das paixões funciona como a seta que orienta as ações conjuntas do corpo e da mente. A intencionalidade das paixões difere da intencionalidade da consciência, que, em Descartes, é sempre consciência de algo, porque as paixões são indicações práticas de como o corpo deve agir. Elas compõem, do ponto de vista da consciência, estados mentais, realidades objetivas que se constituem enquanto tal, na relação com o corpo e com vistas ao aperfeiçoamento do próprio corpo.

Descartes guarda a convicção de que a mistura da mente com o corpo é intensa e homogênea, porque, mesmo que haja uma sede da atuação da mente sobre o corpo, a saber, na glândula pineal (TP art. 31-32/AT, XI, p. 351-352), a mente se encontra “verdadeiramente unida a todo corpo” (TP, art. 30/AT, XI, p. 351), de sorte que o corpo humano é uma matéria cuja totalidade, confirma Descartes, “está harmoniosamente unida à alma desse homem” (Carta a Mesland, 9 de fevereiro de 1645/AT, IV, p. 166). Nessa perspectiva, há uma simetria entre os nervos que interconectam toda a estrutura orgânica do corpo humano e a mente, a qual está igualmente presente em todo corpo, na forma de um emergentismo sincrônico. Nesse contexto, as paixões indicam uma intencionalidade por meio da qual é trilhado o caminho do melhor funcionamento do corpo e da alma, no que diz respeito à união. Isto é, as paixões comportam um caráter intencional, capaz de nos veicular a determinados comportamentos morais, cujo propósito é tornar a vida humana melhor, por meio da compreensão do modo como a união influencia a saúde do corpo e da alma (TP, art. 137/AT, XI, p. 193).

O estudo das paixões demonstra que o ponto central da análise cartesiana incide sobre a maneira como a relação da mente com o corpo contribui para a condição humana e não sobre por que as referidas substâncias interagem. Com a ênfase na intencionalidade das paixões, Descartes pretende alertar o seu leitor para o fato de que a sua investigação não se concentra sobre o que causa a interação da alma com o corpo, mas sobre como devemos entender essa interação, no sentido de tornar a vida humana melhor. Assim, para entender a natureza dessa interação, Descartes propõe que a alma e o corpo sejam compreendidos em função da capacidade de interação, cuja resultante, irredutível ao corpo e a alma separadamente, comporta a noção de identidade pessoal.

irredutibilidAde e identidAde pessoAl: A constituição dA pessoA

Tentei mostrar até esta altura que, do ponto de vista da explicação das paixões, a ideia da união da mente com o corpo é decisiva. Para apreender a intencionalidade das paixões, o foco não deve estar na compreensão separada de cada uma das partes da união (no presente caso, a mente e o corpo), pois isso pouco contribui para o entendimento das propriedades da união que viabilizam essa intencionalidade. Descartes tem consciência disso. Nesses termos, ele propõe que o corpo e a alma sejam entendidos, quanto ao caso do ser humano, de forma diferente em relação ao demais seres. Notadamente, o corpo e a alma, no nosso caso, têm a capacidade de interagir entre si. Dessa interação vimos que surgem as paixões, mas Descartes também pretende explicar a identidade pessoal, por meio do modo singular que a interação ocorre em cada pessoa. A sua estratégia é relativizar, por conseguinte, o uso dos termos alma e corpo, quando se refere à condição humana, isto é, à união, a fim de garantir que a noção de identidade pessoal esteja inscrita na própria natureza da união.

Essa provavelmente foi a razão que levou Descartes a sugerir o termo “alma corporal”, em carta a Arnauld, para denominar essa capacidade da alma de unir-se ao corpo. Com essa expressão, Descartes tenciona dizer que “a alma também pode ser dita corporal, na medida em que está apta a unir-se ao corpo” (Carta a Arnauld, 26 de julho de 1648, AT, V, p. 223). A capacidade ou propriedade absolutamente particular da alma do ser humano é poder unir-se ao corpo. Isso autoriza Descartes a postular a ideia de que a alma pode ser compreendida pela especificidade de relacionar-se com o corpo e, portanto, ser concebida como alma corporal. Além das propriedades conhecidas e enunciadas, na segunda meditação, a alma possui a propriedade de interagir com o corpo humano. Assim, mesmo que não seja possível explicar como a alma pode interagir com o corpo, é possível pensar o ser humano em função de propriedades que surgem dessa interação e reconhecer, na alma humana, propriedades dissonantes daquelas que a alma pode guardar em outros seres, como os anjos, os quais não têm corpo. Esse raciocínio cartesiano pode não estar isento de dificuldades, mas carrega consigo uma oposição ao materialismo eliminativista.

De sorte a garantir a união, Descartes também caracteriza de maneira particular o corpo humano, atribuindo-lhe uma propriedade que os demais corpos não têm: a capacidade de unir-se à alma. Nenhum outro corpo comporta essa união. Por isso, o próprio uso dos termos corpo e alma, conforme apontei acima, também tem mais de um significado na filosofia cartesiana, porque o seu uso, quando se refere ao corpo humano, não pode cumprir a mesma função semântica destinada ao seu uso quando se refere aos corpos físicos, cujas principais características são principalmente a extensão e o movimento. Nesses termos, Descartes promove uma distinção importante entre o corpo humano e os demais corpos:

Em primeiro lugar, considero o que é exatamente o corpo de um homem e vejo que essa palavra “corpo” é muita ambígua. Quando falamos de um corpo geral, queremos dizer uma determinada parte da matéria, uma parte da quantidade da qual o universo é composto. Nesse sentido, se a menor porção dessa quantidade fosse removida, julgaríamos sem problema que o corpo está menor e não mais completo; e se qualquer partícula da matéria mudasse, diríamos logo que o corpo não era mais exatamente o mesmo. Mas, quando falamos do corpo do homem, não queremos dizer uma parte particular da matéria, ou uma que tenha um determinado tamanho; queremos dizer simplesmente o todo da matéria que é unido à alma desse homem. (Carta a Mesland, 9 de fevereiro de 1645//AT, IV, p. 166).

Se, nas Meditações, o foco era fundamentar a física por meio da rejeição da proposta aristotélica das formas substanciais (ANDRADE, 2006), era natural que, naquele texto, a essência dos corpos em geral fosse reduzida às propriedades geométricas. No entanto, para pensar o ser humano, a redução do corpo às propriedades geométricas entra em colapso, porque o corpo humano tem uma propriedade que os demais corpos naturais não têm: a capacidade de ser unir à alma e,  consequentemente, de interagir com ela, formando propriedades como as paixões.

Nessa perspectiva, os fatores que individuam os objetos, movimento e extensão, não são variáveis responsáveis por explicar a identidade pessoal, o que individua cada ser humano, porque esta última se refere a uma propriedade da união. Ou seja, o reconhecimento de si mesmo como uma pessoa única está subordinado ao conhecimento da união, de sorte que as variáveis responsáveis por explicar a diferença entre os corpos naturais não têm relevância para explicar a identidade pessoal. Assim, as mudanças no corpo, as quais podem ser explicadas nos termos da física, não contribuem para esclarecer uma propriedade emergente da relação do corpo com a mente. Prossegue a carta citada: “E assim, apesar de essa matéria mudar, e sua quantidade aumentar ou diminuir, ainda assim acreditamos ser o mesmo corpo, numericamente o mesmo corpo, desde que permaneça conjugado e substancialmente unido à mesma alma.” (Carta a Mesland, 9 de fevereiro de 1645//AT, IV, p.166).

Embora o corpo humano possa ser considerado parcialmente como uma máquina, cujo funcionamento tem certa autonomia em relação à mente, a sua união com a mente confere ao ser humano algumas propriedades que não podem ser reduzidas aos mecanismos físicos da máquina ou à disposição dos seus órgão e nervos. Na carta supracitada, Descartes afirma que a identidade numérica, a qual implica uma indivisibilidade da condição humana, instanciada em cada pessoa, é uma propriedade decorrente da união do corpo com a mente. As variações às quais estão submetidos nossos corpos humanos não quebram a nossa identidade pessoal, porque ela não está subordinada à variação do tamanho do nosso corpo (a grandeza e a velocidade dos corpos são os principais elementos que caracterizam a física cartesiana), porem, está ligada à capacidade que ele tem de relacionar-se com a alma, instituindo uma unidade que somos nós mesmos, a qual se mantém ao longo de nossa vida.

Descartes argumenta que a identidade pessoal não é dada apenas no corpo humano, tomado como uma máquina que caracteriza a nossa espécie, mas é incapaz de caracterizar a singularidade de cada indivíduo. Portanto, a indivisibilidade do ser humano e a sua consequente compreensão como indivíduo (pessoa) é o resultado da união da mente com o corpo, pois apenas no registro dessa união é possível compreender a relação de mútua influência entre a mente e o corpo que molda o ser humano, ao longo de sua vida. É nessa relação que a singularidade da existência humana é efetivada. Portanto, os estados mentais responsáveis pela individuação do ser humano só podem ser compreendidos, quando se aceita a tese de que o corpo está “conjugado e substancialmente unido à alma” (Carta a Mesland, 9 de fevereiro de 1645/ AT, IV, p. 166). A identidade pessoal é uma propriedade da união. Ela somente existe no estado de interação entre corpo e mente. Como o ser humano, enquanto indivíduo, é o resultado da união, as variações que incidem sobre nosso corpo não impedem que nos reconheçamos como nós mesmos, ainda que o tempo tenha transcorrido, porque a união, e com ela a nossa identidade pessoal, se mantém intacta.

conclusão

Procurei mostrar, neste artigo, que a melhor estratégia para compreender as paixões é concebê-las como propriedades, quanto ao seu aspecto fenomenológico e quanto à sua causa final, decorrentes da interação entre a mente e o corpo, cuja compreensão só pode ocorrer quando pensamos o ser humano na sua unidade. Assim, sustentei a tese de que as paixões são propriedades da interação e não de cada substância individualmente. Por isso, elas não podem ser compreendidas nem por uma investigação estritamente fisiológica, nem por uma investigação unicamente metafísica. O Tratado das paixões cumpre a função de realizar esse estudo centrado na união e, por conseguinte, na condição humana, cuja compreensão é irredutível conceitualmente às investigações centradas no corpo e na mente, separadamente. Com isso, acredito que consegui explicar a ausência de constrangimento de Descartes em manter, durante a sua obra, as teses do dualismo substancial e da união substancial, pois, quando ele investiga o ser humano e seus estados mentais intencionais, seu foco não está na conciliação do dualismo com o unitarismo, mas na análise de propriedades que surgem da relação do corpo com a alma, dentre as quais, a própria noção de identidade pessoal. O estudo das paixões sempre se focou em como elas causam efeitos no corpo e na alma, e como elas contribuem, por seu aspecto intencional, para o aperfeiçoamento da vida humana. A fim de compreender esses fatores, a metafísica e a fisiologia não contribuem tanto quanto um campo próprio de investigação que se centra nas propriedades as quais asseguram que o ser humano não é um fantasma na máquina, mas uma máquina movida por sentimentos.

AbstrAct: This article presents an alternative vision of the debate on the Cartesian dualism of mind and body. It is argued that the Cartesian dualism of substances does not serve to explain the human condition, which is notably marked by the compound mind and body. In this way I will try to show that the passions or emotions responsible for our mental states are derived from the interaction between the mind and the body, and can in no way be reduced to the mind or body taken separately. They are properties that emerge, in the heterodox sense of the term emergence, from the relation of the mind to the body.

Keywords: Descartes, Dualism, Properties, Mind, Body.

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Recebido: 2016-08-03

Aceito: 2017-06-16



[1] Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE – Brasil. E-mail: ericoandrade@gmail.com

Membro do Núcleo de Estudos em Ética e Filosofia Política (NEFIPE), Sócio do Círculo Psicanalítico de Pernambuco. Autor de A ciência em Descartes: fábula e certeza (São Paulo: Loyola, 2017) e Sobre a generosidade: certeza, ação e paixão na ética cartesiana (São Paulo: Loyola, 2017).

[2] Agradeço ao CNPq, pelo financiamento da pesquisa 482877/2013-8. O propósito para a realização de tal separação é anunciado por Descartes, na segurança de uma carta, que estava longe da possibi-

[3] Ver carta a Mersenne, 6 de maio de 1630 (AT, I, p. 149-150); sobre esse ponto, ver Andrade (2006c).

[4] O termo surge parece estar próximo do termo emerge. Não é fácil tornar homogênea as diferentes posições na filosofia da mente do que seria uma propriedade emergente. Algumas variações e sutilezas logo aparecem, quando o leitor cruza as primeiras páginas de qualquer coletânea de artigos ou manual de filosofia da mente. O acirramento dessas diferentes posições pode instituir assimetrias teóricas tão agudas, as quais façam que uma das posições sobre a emergência possa ser considerada pelas demais como não sendo propriamente uma posição emergentista. Num posicionamento menos radical, é possível traçar pelo menos dois níveis de problemas quanto à caracterização de uma posição emergentista. No primeiro plano, temos problemas quanto à definição de emergência. No segundo plano, existem problemas quanto à melhor forma de testar e avaliar posições emergentistas [sigo aqui a divisão sugerida por Bedau e Humphreys (2008)]. O primeiro plano revela uma dificuldade em termos mais teóricos, que ressoa nas diferentes possibilidades de compreender o conceito de emergência como oposto à posição reducionista ou eliminativista. O segundo plano revela a preocupação em evitar que o termo emergência seja um forma nova e sofisticada de defender uma espécie de propriedade milagrosa ou oculta, portanto, impassível de qualquer teste empírico.

[5] Essa compreensão de que as paixões são estados mentais que emergem da união e que expressam, portanto, propriedades irredutíveis deve governar a interpretação do cartesianismo no que concerne, especialmente, à sua repulsa ao que chamamos hoje de materialismo eliminativista, cujas raízes podem ser encontradas em La Métrie, mas não em Descartes [sobre esse ponto, ver Donatelli (1999)]. Não há dúvida de que uma posição contrária àquela posição materialista não implica necessariamente uma posição emergentista. Contudo, quem assume, na filosofia da mente, uma posição emergentista certamente assume, numa razoável proporção, uma rejeição do reducionismo materialista. As razões para essa rejeição podem ter diferentes naturezas, as quais transitam, pelo menos, entre razões epistêmicas e ontológicas, mas todas elas convergem quanto ao fato de que o modelo neurocientífico, embora pujante, não consegue dar conta de alguns problemas da filosofia da mente, especialmente da experiência subjetiva, dos afetos e as suas intenções. Para compreender esses problemas, é preciso reconhecer – nisso acredito que concordam todos os emergentistas – propriedades cuja existência requer um estado material prévio, porém, que não podem ser explicadas por recorrência apenas a esse estado, ou ao modo pelo qual cada parte do corpo (cérebro) opera as suas funções, isoladamente.