«O PrimeirO BeijO»: sOBre a Origem da FilOsOFia nOs Fichte-Studien de nOvalis[1]
RESUMO: Fruto de longa maturação filosófica desde a sua estada em Jena, e instado a isso pelas influências de Karl L. Reinhold e Johann G. Fichte, o poeta Novalis produz, a partir do outono de 1795, um conjunto de anotações fragmentárias sobre a filosofia de Fichte, hoje conhecidas como Fichte-Studien. De entre os importantes temas aí abordados, um revela-se particularmente interessante: o tema do estatuto da Filosofia no seio do problema da autocompreensão do Eu –, e mais concretamente, o necessário pensar da filosofia sobre si própria, as alterações que no processo têm de sobrevir à própria filosofia e a repercussão disto na compreensão de si próprio do Eu. Nesta senda, o seguinte ensaio propõe-se mostrar como, para Novalis, a filosofia é o natural pensar do homem, e como para além disto é a própria filosofia, com o decorrer do seu pensamento sobre si própria, que molda o curso da compreensão de si próprio do Eu: quer tendo com o Eu uma origem comum, nascendo com ele, lançando-o para o mundo e cindindo a união originária em que ele de outro modo sempre estaria, quer, por fim, afirmando-se como carência deste, ou como algo por que o Eu e a própria filosofia têm de passar no seu curso, para que possam experienciar a perda, e almejar à recuperação dessa origem.
PALAVRAS-CHAVE: Novalis. Fichte. Beijo. Filosofia. Carência.
No início da sua produção filosófica, entre o outono de 1795 e o outono de 1796, o poeta Friedrich von Hardenberg-Novalis coligiu uma longa série de anotações fragmentárias sobre a Doutrina da Ciência de Fichte, hoje recolhidas sob a ampla designação Fichte-Studien. A obra, pelo seu cariz, pelos temas tratados e porventura até pela posição muito precoce no todo mais visível da obra de Novalis, parece ocupar um lugar subalterno para os leitores críticos do autor[3] – um lugar que, no fundo, resulta do menor enfoque que em geral é prestado à filosofia novaliana em relação à poesia, e é ainda mais acentuado por alguma aparente irrelevância, ou mera negligência dos anos de formação filosófica de Novalis (entre 1790 e 1795), em relação à sua posterior, mais consabida entre nós, e que nasce posteriormente.[4] Mas, afirmo, são muitos e muito importantes os temas que o jovem poeta aí versa, tanto para a inicial formação de uma sua filosofia, como para a influência que essa sua filosofia viria a ter sobre a época idealista.[5] Pois, como poucos outros, Novalis foi um Poeta tanto quanto um Filósofo; e, portanto, propõe-se este ensaio como objectivo de fundo voltar a chamar a atenção não só para a variada relevância filosófica desse contributo, como para o facto de que não é tardio o apelo das Graças em Novalis, antes, é quase tão precoce quanto o das Musas, tanto assim que a reverberância de ambos nunca deixaria de ressoar no espírito do jovem autor.
Assim, de entre os muitos, e não pouco importantes temas abordados nos Fichte-Studien, todos versando a filosofia fichteana, um parece ser de especial importância: o tratamento do tema da Filosofia no seio de um complexo problemático maior – o da autocompreensão do Eu, ou filosofia do Eu – e, mais especificamente, o uso da própria gadanha filosófica para o fazer, bem como as alterações a que a própria filosofia tem de se sujeitar no processo, a possível renovação da imagem da Filosofia e a repercussão que isto tem na compreensão de si próprio do Eu.
Com efeito, a filosofia de Novalis, tal como a filosofia de muitos outros leitores contemporâneos de Fichte, é antes de mais uma filosofia do Eu: no caso de Novalis, uma filosofia que parte do Eu como um ser de contrários (sentimento e reflexão),[6] que pensa a possível união e/ou desunião desses contrários no nascimento do Eu e que, por fim, procura ver o subsequente percurso do Eu entre esses opostos, até uma sua (possível) consumação, num absoluto longínquo. No fundo, Novalis propunha-se ver como, mediante o reflectir e o sentir, o Eu procede entre contrários, e se lhe é possível suprimi-los (alcançando o absoluto), ou se, ao contrário, ele tem de os conservar (negando o absoluto). Ora, esses mesmos reflectir e sentir, esse procedimento entre contrários, essa possibilidade (ou não) de alcançar o absoluto: tudo isso é para Novalis a filosofia ela própria, enquanto pensar do Eu no mundo; e, portanto, inquirir o Eu mediante a filosofia teria de significar inquirir também a filosofia, a saber, perguntando-lhe pois até que ponto ela pode – se é que pode de todo – assistir o Eu nesta tão íntima tarefa de nascer, e progredir pelos contrários até ao absoluto, enquanto linguagem de um Eu que procura a atenuação dos contrários, um fundamento último.
Contudo, como é óbvio, ao se deparar Novalis com uma tão grande intimidade entre Eu e filosofia, entre ser do pensar e pensar do ser, algo teria de mudar no cariz do próprio acto de questionar filosófico, não só com respeito a um e outro, ou à sua íntima ligação, mas com respeito à superior relação que ocorre entre estes no próprio acto desse questionar. Logo, para Novalis, como para Fichte, a filosofia é por certo o pensar natural do Eu, e por isso o pensar sobre os mais ínsitos traços do Eu que pensa e sente – pois isso mesmo é exigido pelo pensar dos contrários enquanto componentes essenciais de um Eu que justamente não vive senão sentindo e reflectindo. A filosofia, dir-seia até, expande-se até onde se expandir a compreensão de si próprio do Eu, e ela, tal como ele, é percurso entre contrários, desde a origem até ao fim; e, portanto, para Novalis, a compreensão do Eu tem de ser intimamente dependente da compreensão da vida, e vice-versa. Entretanto, porque, a fim de inquirir sobre essa íntima dependência, o Eu só o pode fazer justamente mediante o reflectir e o sentir, a saber, mediante a própria filosofia, enquanto pensar do Eu sobre si próprio, então, vê-se já, a filosofia é aqui forçada a pensar de um outro modo. Assim, subitamente, há não apenas que pensar, antes há que pensar esse mesmo pensar; há que tentar que a filosofia, a quem tanto apraz buscar unidade interior e totalidade, se deva como que cindir, fragmentar consigo própria e buscar interioridade na sua visão exterior de si, no seu próprio percurso exterior no mundo; isto é, numa palavra, há que tentar que a filosofia filosofe sobre si própria, e com isso possa contribuir para a aferição de uma compreensão de si próprio do Eu. E isto, ulteriormente, levaria Novalis a perceber que a questão da filosofia tinha de ser pensada não enquanto problema isolado, mas na sua dupla, mais peculiar faceta de instrumento de reflexão por excelência do Eu e ferramenta de investigação por excelência de si própria; que, portanto, a única solução era todo um outro modo e prisma do filosofar, um pensar que pensa o próprio pensar; e porque justamente um pensar sobre o acto de pensar, então também e sobretudo um pensar sobre a primeira origem, o essencial procedimento e o fim de toda a filosofia do Eu.
Por conseguinte, pode-se afirmar, são dois os objectivos de Novalis:
Por um lado, e porque o problema da filosofia tinha de ser abordado mediante a própria perspectiva da ferramenta natural do pensar do Eu, a filosofia, exigia-se uma filosofia sobre o próprio acto filosófico do Eu, cujas conclusões têm de moldar a filosofia que assim filosofa no próprio momento do filosofar, e o homem em que se opera esse mesmo olhar introspectivo da filosofia no próprio momento desse olhar. A filosofia, dir-se-ia pois, tinha de se tomar como problema dentro do problema; e nesse círculo vivo entre origem e fim, entre pensar e pensar-se a si própria, obteria a filosofia uma oportunidade única de pensar não o que nela é propriamente filosófico, mas o que nela é propriamente e inevitavelmente humano.
Por outro lado, e porque lhe compete pensar o seu proceder em si própria, isso obriga-a a perseverar, mediante si própria, até à origem desse mesmo pensar; a sair de si para se adentrar em si própria, em busca de algo que, em si, na sua origem, possa explicar um tão singular curso da compreensão do Eu. E por isso, diria Novalis, a filosofia tem por certo de se pensar; porém, para o fazer, ela tem de visar aquele que é o primeiro acto do pensar, a primeira reflexão do Eu, e aí averiguar sobre aquilo que conduz ao primeiro frémito da subjectividade e da humanidade do Eu, o primeiro acto de filosofia do Eu – o seu próprio primeiro acto! –, e a partir daí, tentar perceber o que faz dela própria filosofia, o seu próprio alcance em relação ao absoluto e a sua própria destinação.
O objectivo concreto deste ensaio é, pois, triplo, e pode ser exposto nos seguintes três pontos: 1) num respeito mais superficial – e que já iniciámos –, vincar essa mesma intimidade entre Eu e filosofia, enquanto parâmetro fundamental da pesquisa novaliana ao tópico da filosofia em geral; assim, para Novalis, a compreensão do Eu depende da compreensão da filosofia, e a compreensão da filosofia depende da compreensão do Eu, e isso sempre, desde o mais originário até ao derradeiro acto destes; 2) num respeito menos superficial, procurar ver os contornos dessa intimidade na conjunção das origens de Eu e filosofia (na consciência) e, sobretudo, na necessidade dessa mesma origem conjunta; e 3) ver até que ponto os dados destes extraídos nos não dirão que a origem de Filosofia e Eu não é também já a carência do seu fim, disto emergindo uma nova imagem de filosofia para Novalis.
Passo ao tema propriamente dito do ensaio: o da origem da filosofia.
Sobre este, e antes mesmo de me debruçar sobre o problema nos FichteStudien, destacaria uma imagem que Novalis evoca no fragmento 74 dos Vorarbeiten[7]: a do início da filosofia como um primeiro beijo:
«O primeiro beijo é, neste respeito, o princípio de toda a filosofia – a origem de um novo mundo – [...] o cumprimento de um infinitamente crescente pacto consigo próprio» (NS, II: 329)[8], imagem posteriormente reiterada no fragmento 81 da mesma obra, com as palavras: «[...] o início da filosofia [é] um primeiro beijo.» (NS, II: 331)[9].
Essas palavras, nas quais está o cerne da questão da filosofia para Novalis, evocam antes de mais várias imagens caras ao poeta, e que poderiam ser acolhidas sob os conceitos de amor e do próprio: por um lado, a filosofia como «abraço» («abraço a si próprio» («Selbstumarmung»), (NS, II: 329)), «prazer» («Lust», (NS, II: 314)), «carícia amorosa» («Liebkosen» (NS, II: 314)) ou ainda «matrimónio» («Ehe» (NS, II: 329)), pois a filosofia é o doce contacto do homem consigo mesmo, e é-lhe igualmente fiel enquanto sua irmã de sangue (ou, no dizer mais próprio de Novalis, sua noiva); por outro, como «o acto da manumissão – o embate contra nós próprios» («der Act der Manumission – der Stoss auf uns selbst zu» (NS, II: 313)), a «auto-penetração do espírito» («Selbstdurchdringung des Geistes» (NS, II: 316)), um «solilóquio de superior espécie» («Selbstbesprechung obiger Art» (NS, II: 320)), uma «auto-revelação» («Selbstoffenbarung» (ibid.: 320)), um «pacto consigo próprio» («Selbstbund» (NS, II: 329)) – porque a filosofia é sempre Eu, e o Eu é sempre filosofia. Numa palavra apenas, porém, a filosofia é o primeiríssimo, mas também o derradeiro acto de amor próprio [«Selbstliebe»] do Eu [...] – ou não tendesse ela, ou não existisse ela senão para o Ser, e apenas para o Ser[10], não respondendo senão ao que lhe é perguntado, nada produzindo[11], antes apenas tratando de um objecto que não pode ser aprendido[12], pois ela é aqui objecto da aprendizagem e aprendiz, e, portanto, está numa íntima relação de autocontemplação consigo e com o Eu[13].
Isso, aliás, apenas reitera a intimidade de Eu e filosofia, pois aqui, segundo Novalis, o beijo da filosofia é o pensamento da realidade do próprio indivíduo; isto é, pensar a filosofia é pensar todos os actos, todas as possibilidades (e impossibilidades) que o mundo oferece ou não ao Eu, aquando do ganho de consciência deste. Desse modo, tal como o Eu, a filosofia nasce igualmente do real para tender para o ideal e, com ela, também o Eu, ao sair de si próprio, sente o apelo externo do ideal (lançado pelo polo ideal da sua consumação), e conhece o seu rumo, mas em si, no Ser. E, numa palavra, o beijo da filosofia é o pensamento de uma vida na eterna transição, no eterno diálogo entre um mundo físico e um mundo espiritual, um diálogo que é a própria filosofia na sua ductilidade de discurso humano simultaneamente real e ideal, e que dá ao Eu o seu tão individual, tão humano carácter.
Por outro lado – diz Novalis –, o beijo da filosofia abre ainda para «[...] a origem de um novo mundo» (NS, II: 329), a saber, um novo mundo para além daquele que ela própria presencia no Eu, e de que, como se viu, é tão íntima; o que leva a pensar que, apesar da sua próxima intimidade com o Eu e, assim, apesar de ser imagem do amor próprio do Eu, a filosofia não se restringe apenas a sempre acompanhar o Eu no mundo, a estar com ele, a ser o que ele é, e este a ser o que ela é, físicamente. Bem pelo contrário, o beijo da filosofia abre também o Eu para todo um mundo outro, toda uma sua nova exterioridade (algo que, diria Novalis, nem o Eu nem a filosofia conheceram com Fichte). O objecto da filosofia, sugere Novalis, não é apenas um pacto consigo próprio, e não é apenas nascer da realidade do Eu para si próprio; ele é igualmente «[...] um infinitamente crescente pacto consigo próprio» (NS, II: 329), o que significa que, para Novalis, a filosofia não é apenas o Eu interior e subjectivo, o Eu real para si mesmo, mas também o Eu no seu percurso idealizante entre nascer e consumação (porque ela abre para um «universo espiritual infinitamente modelado» («unendlich gestalteten geistigen Universo» (NS, II: 316)). A filosofia, diria pois Novalis, não é apenas os olhos reais do Eu, antes, dir-se-ia, ela é já também idealmente o mundo para o qual ela própria se abre, e abre os olhos do Eu. Ou, dito por outras palavras, se realmente a filosofia está restringida ao Eu, e forja aí com ele um inquebrável e muito importante elo, já idealmente, ela apenas parece honrar esse elo, e é todo o Eu fora do Eu – e nisso está no mundo; e, assim, se pensar a filosofia na sua mera realidade implicaria, para Novalis, que nunca se passasse além desta perspectiva fichteana da filosofia enquanto mera filosofia do Eu, já pensar a filosofia também idealmente, no seu subsequente percurso até à idealidade, implica pensar não apenas aquilo que o Eu vale para a filosofia, mas também e sobretudo aquilo que a filosofia ela própria apela ao homem, isto é, aquilo que, no questionamento a si própria, ela pode dar ao homem aquando do apelo externo que o motiva a sair de si, a ganhar toda uma vida espiritual e a saber nela a sua destinação.
Assim, e para resumir a questão a uma palavra: por um lado, realmente – na acção originária, no beijo – o Eu pensa-se mediante a filosofia; ele é ela, ela é ele, num pacto consigo próprio. Todavia, idealmente – na construção do mundo de contrários, a caminho da ideal consumação –, o Eu pensa-se mediante a filosofia apenas na medida em que se vê pensado pela filosofia, que é ainda sua exterioridade ideal – e isso não tem outro nome que não a filosofia a pensar-se a si própria (daí que diga Novalis, nos «Logologische Fragmente»: «A anterior história da filosofia nada é a não ser uma história dos tentames de descoberta do filosofar» por si próprio (NS, II: 312)[14]).
Isto é, realmente, o Eu pensa o Eu – e isso é a filosofia; no entanto, idealmente, a filosofia pensa a filosofia, e isso é o Eu – e aqui, em particular, a filosofia pensa o Eu e nisto influi singularmente sobre ele, e torna-se um problema do Eu em si próprio, e porventura até o mais importante, mais fundamental dos problemas deste. E, portanto, a filosofia é, com efeito, e antes de mais, individualidade; se o não fosse, ela nada diria sobre a humanidade do Eu. Mas nessa relação tão íntima entre Eu e filosofia, diria Novalis, nem o Eu é apenas Eu, nem a filosofia é apenas filosofia; o Eu é o ser que pensa, que sai de si para si, e que, ao fazer isso, filosofa – e, ao filosofar, deixa de ser um mero Eu, antes pensa sobre si, aplica-se em si e ao Outro, e universaliza-se; e a filosofia é o pensar que sai de si em si, e que ao fazer isto é Eu – e ao ser Eu, ela deixa de ser mera filosofia, antes reflecte sobre si própria, aplica-se em si e à sua generalidade, humaniza-se e torna-se universal. Por conseguinte, mais do que mera individualidade, a filosofia que assim pensa sobre si própria – sobre a sua individualidade, isto é, a sua origem, os seus mais ínsitos procedimentos ou o seu fim – é, antes, todas as individualidades, toda a humanidade do Eu de uma só vez, e algo como uma «[...] ideia mística, superiormente actuante, penetrante – que nos impele irresistivelmente em todas as direcções» (NS, II:: 313)[15]; e portanto, só aí ela se funda como o mais individual – mas também universal – veículo de transição entre o espiritual e o físico, o real e o ideal no Eu (porque aí, e só aí, ela procura por aquilo que é comum a todos os homens – a destinação destes –, e é ela própria veículo dessa destinação). E sim, certamente que fora dessa filosofia dita universal – a «filosofia da filosofia» - «[...] há porém ainda filosofias – a que se poderia chamar filosofias individuais» (NS, II: 313)[16]; e por certo que, para Novalis, «[a] exposição da fil[osofia] da fil[osofia] terá sempre algo de uma filosofia individual.» (NS, II: 313)[17]. Todavia, para Novalis, a filosofia que pensa sobre a filosofia, a tal que, como o Eu, assume a sua realidade e a sua idealidade: essa deixa para trás todas as circunstâncias, todas as ocorrências singulares, todos os detalhes específicos, enfim, toda a individualidade do indivíduo, e concentra-se apenas no plano universal do ser, que é igualmente o seu plano universal; a saber, ela visa à «[...] exposição completa da genuína vida elevada à consciência mediante esta acção» (NS, II:: 316) – e por isso, diria Novalis, é o beijo eterno pacto consigo próprio, e a filosofia também já «Philosophie kat exochin» (NS, II: 316 (ou a «[...] verdadeira auto-penetração do espírito que nunca acaba.» (NS, II: 316)[18].
Assim – e posta a questão neste duplo prisma, que é mutuamente elucidativo e inter-dependente –, diria que, para Novalis, o beijo, a origem da filosofia permite divisar um primeiro, mas muito importante plano de compreensão da mesma, a saber: a filosofia não pode ser entendida senão na sua realidade e na sua idealidade. Pois realmente tomada, a filosofia entende-se como o pensar do indivíduo e, portanto, até certo ponto, como ele próprio; o que para nós significa que, tal como o Eu, a filosofia nasce da união/desunião dos contrários, e que a sua vida, como a dele, lhes impõe que estes sempre progridam entre os contrários, a saber, procurando a paulatina, mas certa atenuação (ou união) destes, até que, no fim da existência de homem e filosofia, os contrários não sejam senão uma só e indivisível unidade. A vida do homem – aduz Novalis sobre esse percurso – é «filosofia real» («reale Philosophie» (NS, II: 318)), porque a filosofia acompanha na realidade do Eu – na realidade do Ser fora do Ser – todos os movimentos da figura deste, qual sua sombra.
No entanto, idealmente – isto é, no pensar que a filosofia faz sobre si própria, mediante o Eu –, a filosofia tem de alcançar não só, mas também para além desta sua realidade; pois o que está aqui em causa é um despertar do Eu real pelo Eu ideal («[...] uma genuína auto-revelação – excitação do Eu real pelo Eu ideal» (NS, II: 320))[19]. E, dessa forma, a filosofia que se pensa a si própria pensa o Eu real e o Eu ideal: ela pensa o tudo do Eu, e pensar o tudo do Eu implica por certo pensar aquilo que aqui nos interessa: um outro motivo para além do motivo real, isto é, um motivo ideal para todas as fases do Eu e, portanto, todas as fases da filosofia: um outro estrato, menos óbvio, mas infinitamente mais iluminante da compreensão da filosofia por si própria, e subsequentemente uma outra dimensão da figura do homem que se vê a si mesmo: visto que aqui, e apenas aqui, diz Novalis, é não só a vida «filosofia real» do Eu, mas também a filosofia é «vida ideal» («ideales Leben» (NS, II: 318))[20] deste – e é esse motivo ideal que, para Novalis, virá a explicar o procedimento real da filosofia e do Eu reais. Antes, porém, vejamos melhor a nova ligação vidafilosofia, ou a necessidade da filosofia em Novalis.
A referida ideal e real relação entre Eu e filosofia ocorre, pois, na origem, no beijo, de onde resulta a já anunciada dimensão superior da compreensão destas. Pensando essa relação, e visando desde já a esse mesmo fim, proponhome comprovar até que ponto a realidade da filosofia é a sua necessidade, e a sua idealidade e sua carência, e de que singular modo estes se distinguem e complementam.
Para isso, reato a imagem do beijo da filosofia.
Assim, o que é o beijo da filosofia? O beijo, diz Novalis, é um primeiro beijo; e não um qualquer primeiro beijo, mas o primeiro contacto mediante o qual, por um gesto de afecto, se é trazido a um ganhar de consciência do Eu; ou não fosse para Novalis o ganhar de consciência – a liberdade, a reflexão – o supremo acto do amor próprio do Eu. É o beijo que forja o eterno pacto do Eu consigo próprio, a exteriorização do Eu no mundo, a abertura de um novo mundo espiritual, como a vimos atrás.
O beijo, dir-se-ia, é um eixo, um muito importante eixo no círculo da autocompreensão do Eu; pois, como beijo que é, ele une e cinde, faz contactar e separa, estreita e aparta contrários – os mesmos contrários que vimos aflorando, sentimento e reflexão, ideal e real; e, portanto, para trás dele, queda-se a actividade originária; para além dele, a vida reflexiva do Eu; para trás dele, por certo, uma união do Eu consigo próprio, na interioridade de uma vida de si próprio – uma vida inconsciente de si, em perena actividade, mas não acção –, e para além dele, a desunião do Eu consigo próprio, na exteriorização de uma vida fora de si próprio, no novo mundo, na filosofia – uma vida em consciência, de acção, e não mera actividade. Logo, dir-se-ia, à luz disso, o supremo acto de afecto do Eu consigo próprio, a suprema e última comunhão em que o Eu se vê consigo próprio, desfruta-o ele por certo aquando do beijo da filosofia, uma vez que, antes deste, o Eu é uno consigo próprio, e nada pressente ou conhece de entraves, da resistência que lhe será movida na vida reflexiva, e sem a qual ele não poderia ser Eu, não seria livre, não pensaria, nem seria um ser de filosofia; e depois dele, o Eu é justamente tudo isto, enquanto Eu – enquanto ser que ou vivia em união consigo próprio, na inconsciência de si, ou era o que realmente vem a ser: um ser consciente, activo e pensante. E isso, por sua vez, faz com que o primeiro beijo da filosofia seja a própria acção originária do Eu[21], pois, com o beijo da filosofia, o Eu tem a sua origem enquanto tal; e, antes disso, envolto na ilusão do seu próprio espírito, desconhecendo que é por essência um ser de contrários, ele vive na ignorância da sua destinação, em livre união com o mundo.
Assim – e para resumir o que acabei de dizer –, a origem do Eu dá-se na acção originária, entre a inconsciente actividade originária e a consciente reflexão de si; esta, dir-se-ia, divide dois mundos opostos, o do Eu puro e o do Eu empírico, o de idealidade e realidade, e se, por um lado, é ela que inaugura a resistência na vida do Eu (a necessidade dos contrários, a necessidade da filosofia), por outro, ela é também o último resquício de um plano que nada sabe de si, que não conhece, não reflecte, antes apenas sente. Isto, aliás, é antes de mais o perfeito correspondente do que é para Novalis, nos Fichte-Studien, a própria consciência do Eu, a saber, um «Ser fora do Ser no Ser»[22]. Na verdade, antes de ser Eu, diz Novalis, ele é Ser; e só fora do Ser, só rompendo com a união do Ser consigo próprio, em que o Eu está como que em germen, o Eu vem a ser Eu – e isso, vem a sê-lo com o primeiro, e porém último acto de amor-próprio: com o beijo, com que sela esse pacto com o Ser, e ao qual sempre tem de retornar, enquanto «Ser fora do Ser no Ser» (it. meus) que é. Ora, por que tem ele de retornar a si? Porque, enquanto tal, a história da existência do Eu, assim vista, é apenas parte, um plano do círculo da sua compreensão; um plano que, como em qualquer círculo, tem ligação, vem de e volta a ir, para sempre, para um outro ponto do hemisfério: o seu antípoda ideal – pois assim o determina o campo circular da autocompreensão do Eu. Nessa perspectiva, vê-se já, o que o Eu perdeu ao se cindir consigo próprio, com o primeiro acto de filosofia, não foi apenas a sua união consigo próprio, em detrimento de uma vida real de contrários; ele perdeu, para Novalis como para outros seus contemporâneos leitores de Fichte, uma sua unidade originária, uma idade áurea, a idade de ouro do Eu; o que, diga-se, faz da filosofia, para Novalis e não só, a causa da perda de uma unidade originária do Eu, a quebra do Ser, o fim da unidade áurea do ser humano; mas porque justamente ele tinha de a perder – e daí, desde logo, toda a necessidade da filosofia –, então cabe-lhe a ele encetar, também mediante a própria filosofia, um caminho para a recuperar, e o que o espera nesse antípoda ideal, no fim desse percurso, não pode senão ser, uma vez mais, a sua união originária com o mundo, na sua consumação.
Por tudo isto, pode-se afirmar por certo: na sua realidade, a acção originária, esse sentimento último e reflexão primeira, corta com um estado por certo inconsciente, mas uno consigo próprio, contrário, pois, àquele que nasce com a sua disrupção, e de onde nasce a filosofia; porque, com essa cisão, nasce a filosofia do homem, no beijo, e essa filosofia do homem é ela própria, na sua realidade, uma filosofia de contrários. Entretanto, ao mesmo tempo, se, como Novalis, virmos no referido antípoda ideal da questão apenas um de dois pontos extremos de uma questão que é circular – o que temos de fazer –, então é de pensar que, para Novalis, a própria realidade da filosofia não abre senão outra vez para... a sua idealidade, que está por todo o lado em que a realidade não está, mas ainda nela, que por certo lhe concede a sua realidade, contudo, que desde logo tem de a orientar no seu percurso, justamente instando dela que recupere o que por si perdeu, a dita idade áurea do Eu. E aqui se funda, para Novalis, não só a necessidade da origem da filosofia, como a necessidade de a filosofia reconstituir essa mesma origem, como seu fim essencial. Para Novalis, realmente tomada, a reflexão abre para todo um novo mundo de realidade; ao fazê-lo, a reflexão fá-lo apenas para tender para o antípoda do seu nascer – pois este é o seu único horizonte, o mais que natural, o necessário desfecho do seu curso. Isto é, a filosofia abre para «um novo mundo» (NS, II: 329); porém, obedecendo à circularidade, este tem já de tender para o polo ideal da união/desunião entre sentimento e reflexão, o polo da sua consumação e da consumação do Eu – no fundo, e passo a expressão de Novalis, para um mundo antigo. E, portanto, para Novalis, é necessário que a acção originária cinda, mas é também necessário que ele volte a unir; isto é, a filosofia abre para um novo mundo de contrários, mas igualmente e ao mesmo tempo para a necessidade de ter de reunir esses contrários, de recuperar um mundo prévio e, nesse sentido, de readquirir o polo ideal da união entre estes, e de um estado prévio à acção originária; assim sendo, se pensarmos que, devido à sua já íntima união, tudo o que dizemos da filosofia se aplica também ao Eu, e é ele próprio, e que, portanto, a filosofia não só é parte integrante do mesmo, como é interveniente directa no possível alcance do Eu dos dois pólos principais do mesmo; – então o que isso significa é que, por um lado, tem de se notar desde já que a acção originária não é apenas e só a origem real do Eu, antes, parece acarretar já outras responsabilidades menos subjectivas e mais referentes ao seu fim, ou à sua destinação; e, por outro, que o próprio beijo da filosofia terá de assumir não só nessa mesma origem, mas em todo o percurso, um papel no mínimo influente em relação ao Eu – isto, se é que não é ele próprio a impor ao homem esta mesma determinação.
Por fim, e tomando em consideração o que se disse, pergunta-se, pois:
o que significa para Novalis essa identificação do primeiro beijo com a acção originária, e de que modo pode essa identificação, acima como o que dela releva, ser considerada necessária?
Por certo, ela é antes de mais a prova consumada de uma ligação real entre filosofia e Eu, porque ela é uma finíssima oscilação, um efémero piscar de olhos entre a imensurável actividade originária do Eu, em que o Eu nada sabe de si, em que não tem consciência de si, numa palavra, em que não é ainda Eu, e todo o seu percurso de reflexão, que ele faz enquanto um ser de contrários; e o mesmo sucede com a filosofia.
Todavia, mais do que isso, ela é também, como o próprio beijo, instantânea ligação entre princípio e fim, possibilidade e necessidade, realidade e idealidade da filosofia. Porque o beijo é um instante; e, portanto, a filosofia, enquanto instante e enquanto acção originária, é tanto o primeiro do Eu, como um último: o primeiro, porque realmente visto, ele ocorre apenas para que, logo após os lábios do Eu se cindirem consigo mesmo, o sentimento dê preponderância à reflexão, o Eu sinta o apelo do ideal e se reconheça como um ser de contrários, destinado a suprimi-los da melhor forma que possa, mediante a filosofia; e o último, porque também idealmente visto, esse instante é o último da união áurea do Eu consigo próprio, a mesma que sempre voltará a lançar ao Eu e à filosofia o referido apelo, e que os fará procurar a reunião perdida dos contrários. Com efeito, o último momento do sentimento tem de ceder lugar à primeira reflexão, com a filosofia; e aqui está toda a necessidade do beijo da filosofia; pois, último que é último, tem de dar lugar a um primeiro, e é por certo necessário que, se é que os dois componentes essenciais do Eu haviam de contactar, se é que o Eu havia de vir a ser não apenas ideal, mas também real, sentimento e reflexão tivessem de dar origem ao Eu, e à filosofia – tão certo, aliás, como esses primeiros terem de dar eles azo ainda a nova sequência, até um outro último, no ideal, e é justamente isso que faz com que a filosofia nasça realmente em direcção ao ideal. Dessa maneira, se a reflexão é a realidade da filosofia (tal como o é a do Eu), e o sentimento sua idealidade, então, quando o primeiro beijo se dá, quando se dá o primeiro contacto, o primeiro afecto do Eu consigo próprio, esse é em si próprio o instante da possibilidade da filosofia e do Eu23, e esse instante, realmente visto, é a primeira possibilitação da necessária realidade de si própria e da do Eu. Numa palavra, dir-se-ia com Novalis – e até aqui, não sem um tom fichteano –, a possibilidade da filosofia é também já a sua necessidade24 e, por isso, o instante do beijo da filosofia, o jogo dos contrários, é tão necessário para o Eu, quanto sem ele, o Eu não seria Eu. E é essa a razão por que, na sua mais íntima origem – na sua possibilidade –, a filosofia é t para Novalis um sentimento, e com esse sentimento nasce o Eu para a reflexão, após o que também ela nasce, se realiza e humaniza, e tem de assumir as rédeas da busca pela unidade perdida.[23]
23 «<A possibilidade de toda a filosofia repousa em que – a inteligência, mediante autocomoção, se dê um movimento autoconforme à lei – isto é, uma forma própria da actividade [...].» («<Die Möglichkeit aller Philosophie beruht darauf – dass sich die Intelligenz durch Selbstberührung eine Selbstgesetzmäβige Bewegung – d. i. eine eigne Form der Thätigkeit, giebt [...].» (NS, II: 320)).
24 Exemplos dessa mesma dupla necessidade da filosofia, e de como esta é já a sua possibilidade, não são exclusivos de Novalis. Algo similar, por exemplo, diria o jovem Hölderlin, quando, crê-se, já em 1795, entre os trabalhos para o seu Hyperion, e também influenciado pela filosofia de Fichte, diz, num fragmento intitulado «Die Vorletzte Fassung» que «[a] unidade ditosa, o Ser, no sentido único da palavra, está para nós perdida [...]», atalhando, porém, logo após: «[...] mas tínhamos de o perder, se é que devemos aspirar a ele, ou alcançá-lo.» (SW, 2: 82) Essa concepção de uma (duplamente necessária) perda da unidade originária do Ser, aliás, encontra fundamento num outro fragmento de Hölderlin simultâneo a este, a saber, «Seyn. Urtheil», de 1795, onde ressalta que «Ser – exprime a ligação do sujeito e do objecto. Onde sujeito e objecto estiverem simplesmente, não apenas parcialmente unidos, isto é, unidos de tal modo que nenhuma divisão possa ser empreendida sem ferir a essência daquele que deve vir a ser separado, aí e em nenhum outro lugar se pode falar simplesmente de um Ser, como é o caso na intuição intelectual.» (SW, 2: 364), mas que, ao contrário, o juízo, isto é, o primeiro pensar, a filosofia, opera uma cisão nesta unidade, e a perde para sempre: «Juízo é, no seu sentido mais elevado e rigoroso, a separação original do objecto e do sujeito intimamente unidos na intuição intelectual, aquela separação que primeiro torna possíveis objecto e sujeito, a divisão original.» (SW, 2: 364) A «acção originária» («Urhandlung») de Novalis muito se assemelha, por isso, à «divisão/juízo originários» («Urtheilung») de Hölderlin; e sobre isso frisa Novalis: «Seyn überhaupt ist nichts als [...] – Schweben zwischen Extremen, die nothwendig zu vereinigen und nothwendig zu trennen sind. Aus diesem Lichtpunct des Schwebens strömt alle Realität aus – in ihm ist alles enthalten – Obj[ect] und Subject sind durch ihn, nicht er d[urch] sie.» (NS, II: 177)
As anteriores palavras sobre a real necessidade da filosofia – que, segundo Novalis, Fichte fundou26 –, bastariam já para se compreender a importância desta para Novalis. Assim, a origem da filosofia é um beijo entre a possibilidade (ou idealidade) da filosofia, o sentimento de si próprio do Eu, e a necessidade (ou realidade) deste – aquela onde recaem a consciência do Eu, a liberdade, a sua linguagem, isto é, a sua filosofia individual propriamente dita – a reflexão de si próprio do Eu. E, portanto, por aqui se deixa adivinhar, por um lado, o disruptor, mas também promotor papel que a filosofia desempenha no nascer do Eu, enquanto acção originária, na primeira reflexão de si (isso, num enfoque ideal-real), e, por outro, o promotor, mas também disruptor papel que ela desempenha na tarefa de reunião entre sentimento e reflexão, contrários no Eu e seus constituintes essenciais (isso, num enfoque real-ideal).
Creio, porém – como o venho reiterando –, que isso pode explicar um certo nível de compreensão da ligação entre filosofia e Eu que muito une Novalis aos jovens idealistas do seu tempo; para além deste, Novalis reconhece ainda um último, mais profundo nível de compreensão do problema, que de certo modo o distingue dos demais, segundo o qual o beijo, a origem da filosofia represente aqui algo mais do que mera necessidade para o Eu e para o percurso da sua autocompreensão.
Para designar essa ulterior importância da filosofia para o Eu, Novalis designa esse singular carácter do beijo da filosofia como uma carência – por certo, contrapondo-a à ideia de filosofia como necessidade, em Fichte. A ocorrência surge nos Fichte-Studien, e é expressa mediante as seguintes palavras: «A reflexão descobre a carência de uma filosofia, ou de uma conexão
contradição com o mundo exterior [...], dá-se o primeiro passo para a filosofia. Com esta separação começa pela primeira vez a especulação; de agora em diante, ele separa aquilo que a natureza unira para sempre, separa o objecto da intuição, o conceito da imagem, por fim (na medida em que se torna o seu próprio objecto), separa-se a si mesmo de si mesmo.» (AS, I: 251). E, por sua parte, também Hegel diz isto mesmo no seu Differenzschrift, de 1801, e logo num capítulo muito corroborativo da tese de Novalis, intitulado «A carência da filosofia». Profundamente influenciado por Hölderlin, Hegel referese aí a uma «harmonia dilacerada» (HeW, II: 20), uma «cisão [...] da qual surge o sistema» (HeW, II: 22), de uma «suprema separação» (HeW, II: 22) entre «[...] contrários tornados fixos» (HeW, II: 21), «a subjectividade e a objectividade tornadas fixas» (HeW, II: 22).
26 «Kant fundou a possibilidade, Reinhold a realidade, Fichte a necessidade da filosofia.» («Kant hat die Möglichkeit, Reinhold die Wircklichkeit, Fichte die Nothwendigkeit der Filosofie begründet» (NS, II: 49)).
pensada e sistemática entre pensar e sentir – pois ela está no sentimento.» it meus (NS, II: 20)[24]
Isto é, assevera Novalis, há por certo uma necessidade da filosofia; mas para além disso, há ainda uma carência da (origem da) filosofia e, portanto, para além de necessidade, tem de ser também carência que a filosofia nasça e intervenha, aja, influa, mediante a reflexão, sobre a autocompreensão do Eu.
Ora, necessidade e carência são por certo sentimentos análogos; por isso, diria com Novalis, a carência da filosofia tem por certo ainda um fundamento real, e este é o seu fundamento de necessidade. Contudo, sendo análogas, carência e necessidade têm porém diferentes intensidades, diferentes fundamentos; e, por conseguinte, a carência da filosofia tem ainda um fundamento ideal, mais profundo e forte do que o anterior, que mais nos interessa, a nós e a Novalis, e no qual se discerne um sentido mais oculto dessa sua origem, e o efeito desse sentido secreto sobre a reflexão do Eu.
Assim, a filosofia testemunha com efeito sentimento e reflexão, porque, vista por um prisma real, ao cumprir a sua destinação, a filosofia arranca o Eu à inactividade de si próprio, ao sentimento, lançando-o para todo um novo mundo de reflexão – e tem aí o seu fundamento de necesssidade. Sim, pois é por certo necessidade da filosofia que ela interrompa a vida harmoniosa e pacata do ser consigo próprio; e que, dir-se-ia, não sem um tom kantiano, ela seja o aguilhão da vida do Eu, incentivando-o à actividade e impedindo que ele viva como os Arcádios, eternamente apascentando os seus rebanhos. É, aliás, isso o que marca a individualidade do homem, o seu percurso futuro, já que isso é um natural efeito do impulso para o Eu, e é destinação do Eu ser um ser de filosofia, um ser que pensa – e tudo isto é necessidade da origem da filosofia.
Todavia, ainda idealmente vista a questão – isto é, vista não só pelo prisma da acção originária, mas também pelo do polo de consumação ideal –, ao nascer, e ao quebrar necessariamente com a sua unidade originária do Eu, a filosofia desde logo sente um irresistível e, por certo, não menos necessário apelo ideal que a dirige para o ponto antípoda da acção originária, o da sua consumação, e que, por isso, é contrário ao da sua primeira acção. Logo, se esta consistiu na primeira reflexão do Eu, e no surgimento deste – e, portanto, na necessidade da origem deste, na quebra da unidade –, já esse apelo consiste numa necessidade de outra índole, a saber, a de atenuar os contrários que ela própria criou, a de, dir-se-ia, inverter o percurso que ela própria encetou, tendendo para a sua consumação e, assim, tentar recuperar a origem perdida, corrigindo, retractando-se pelo seu próprio acto.
Ora, o que isso significa é que, à necessidade de a filosofia nascer com o Eu, sobrepõe-se já como que uma contranecessidade, ou uma necessidade mais necessária do que a própria necessidade[25], que insta da filosofia que esta anule toda a ocorrência, a saber, a carência de inverter o nascimento do Eu e, se não anular, pelo menos abarcar a necessidade disso mesmo. Isto é, o Eu nasce por certo necessariamente com a filosofia; mas esse nascimento do Eu mediante a filosofia não é de todo sem dolo para ambos, e isso está em que, na filosofia, o homem, para ser Eu, age, reflecte – e quando o faz, perde para sempre a união que era a sua, e que agora faz dele o ser de contrários que é – o que faz com que a tarefa da filosofia seja justamente procurar inverter a perda dessa unidade áurea, procurar reconstituí-la, mediante si própria, mediante a reflexão, e nisso tentando ressarcir o Eu pela perda que ela própria lhe causou – e tudo isto só é assim, porque, sendo necessidade o Eu nascer cindindo-se, é contranecessidade que ele viva tentando reunir-se.
Assim, dito isto numa palavra, a filosofia rompe com a união áurea do homem consigo próprio – e, com esse beijo, ela sela com ele um pacto, mediante o qual ele troca a pacífica união em que vive consigo mesmo por uma existência subjectiva, e rompe com uma fase ou época do espírito humano em que ele é uno com o mundo, em detrimento da reflexão. No entanto, nesse momento, também a própria filosofia trava com o Eu um pacto: e, movida pelo apelo ideal, pela referida contranecessidade, ela tem de trocar a sua inexistência pela sua existência, e pugnar por conduzir a reflexão do Eu até um ponto em que esta volte a ser unidade do Ser e, portanto, desapareça e se torne mera memória do curso do Eu.[26] Nesse sentido, conclui-se: se realmente tomada, essa cisão é já a sua própria origem, ou a transição entre a sua possibilidade e a sua realidade (e aqui não parece haver carência que não a anterior necessidade, a saber, de ser a filosofia a testemunhar os contrários e, de seguida, a cindi-los), já idealmente tomada – isto é, na perspectiva de uma filosofia individual que se eleve à mais universal e ideal condição de filosofia da filosofia, esse rompimento, ou duplo pacto, não pode ser tido apenas por uma disrupção.
Por isso, dessa forma vista a questão, mais do que uma disrupção, o que o nascimento da filosofia assim engendra é uma imediata experiência de falta, um sentimento de perda ou, mais do que isso, o sentimento de uma unidade perdida, muito para além da mera necessidade de ter de romper com a unidade, antes já focada na carência de a reaver. E, por conseguinte, ao ser realmente considerada, a filosofia é sempre, e não pode deixar de ser, uma necessidade na reflexão; pois, se o último sentimento tem de dar lugar à primeira reflexão, e se a filosofia nasce justamente para dividir esses dois, então é necessário que ela nasça na reflexão, e que tenha de se inverter, de cumprir a sua destinação na reflexão. Mas também idealmente considerada, isto é, tomada na perspectiva do apelo ideal que é lançado à filosofia, é sobretudo carência que a filosofia acate esse chamamento – e, se ela o discerne, é justamente porque ela nasce da falta, da ausência, da fragmentação consigo própria e, logo, tem de acatar isto como um mais que necessário complemento, como a sua verdadeira destinação[27]. Ao assim sentir a perda, e saber-se a causa de tudo isso, e perceber que tem de o corrigir, a filosofia divisa a sua culpa no processo, e pugna por a expiar – e essa mistura de sentimentos mais próprios, essa singular conjugação de experiências mais íntimas do Eu consigo próprio, no seu conhecimento de si próprio, isso é para Novalis a própria humanidade do Eu, a própria humanização da filosofia e último elo na ligação entre estes, e é isto que, para Novalis, faz com que a reflexão «[...] descubra a carência de uma filosofia» (NS, II: 20) - agora no sentimento.
Por fim, conclui-se, para Novalis, a carência da filosofia não se esgota na sua posição preponderante entre sentimento e reflexão, nem sequer na sua acção divisória entre ambos (na necessidade) e, portanto, ela tão-pouco está apenas em ser ela própria que aparta o Eu real – o de si próprio, propriamente filosófico, reflexivo – e o Eu ideal, ou, numa palavra, em ser ela que cinde o Eu consigo próprio. Bem pelo contrário, a carência da filosofia está em que ela cinde o Eu consigo próprio para, no apelo, o fazer sentir singularmente essa perda, e ele pugnar por recuperá-la: ela cinde o Ser para que, fora do Ser, o Eu possa voltar ao Ser pela sua própria aspiração a este, ele próprio mudado pela quebra do Ser e pela luta em prol da reunião deste, e também o Ser diferente em razão destas. Isto é, a filosofia, sabendo-se em posse do mérito, mas igualmente da culpa, do ganho, mas também da perda trazida pela sua acção, cria o Eu (necessidade) apenas para conduzir a compreensão de si próprio deste para a inevitabilidade de uma sua consumação ideal, mediante a própria filosofia, e isso pela reconquista da origem perdida. Com efeito, a necessidade é da ordem do ter de ser, contudo, a carência é da ordem do dever ser[28], de sorte que, mais do que a filosofia cindir o Eu, e depois conduzi-lo a recuperar a união perdida – o que é necessário –, diria com Novalis que a filosofia cinde o Eu justamente e apenas para que o Eu possa tentar reaver a unidade perdida, e sentir que isso mesmo é o que nele é propriamente humano. E, por isso, a verdadeira carência da filosofia está em que, mediante ela, o Eu se perca da unidade do ser, e tudo isso apenas para que ele possa, de uma maneira aparentemente paradoxal, mas intimamente humana, aspirar à sua reunião com esta; no fundo, para que, fazendo-o passar pela perda, ela o possa também acompanhar na suplantação desta, ou para que, privando o Eu de algo, ela possa fazer da restituição disso um novo, nunca antes percorrido trilho da subjectividade.[29]
ABSTRACT: Fruit of a long philosophical maturation that began with his stay in Jena, and encouraged by the influence of Karl L. Reinhold and Johann G. Fichte, the poet Novalis produced, from autumn 1795 on, a set of fragmentary notes on the philosophy of Fichte. These are now known as FichteStudien. Among the important issues treated in the notes, one appears particularly interesting: the treatment of the theme of philosophy within the problem of the self-understanding of the “I” – and, more specifically, the need for philosophy to think about itself, about the changes that must come upon philosophy during this process, and about the impact of these on the self-understanding of the “I”. The present article aims to show how, for Novalis, philosophy is the natural thought of man. Furthermore, it aims to show how philosophy, in the course of its thought on itself, shapes the course of the selfunderstanding of the “I”, having with the “I” a common origin, being born with it, launching it into the world, cleaving the original union in which it otherwise would always be, and finally asserting itself as a lack of this union, something through which the “I” and philosophy itself must pass in their course so they can experience this loss and aim to recover its source .
KEYWORDS: Novalis, Fichte, kiss, philosophy, lack.
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Recebido em 12/11/2015
Aceito em 10/03/2016
[1] http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732016000200009
[2] Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. E-mail: frndsilva@portugalmail.pt
[3] Por certo, aqui se inscrevem importantes obras sobre Novalis enquanto grande poeta, a influente roda motriz na complexa e engenhosa maquinaria literária do período romântico, o místico vate dos «Hinos à Noite», o romancista do Ofterdingen ou o filósofo consumado do Allgemeine Brouillon, à volta dos quais se agregam núcleos analíticos como Novalis e a teoria do romance, do fragmento ou do conto, a ideia de uma poética mágica, o misticismo, a religião, o amor, a história, a antropologia e até a medicina e a matemática. Todos esses temas, a par dos da cosmogonia, da física, da matemática, da mecânica (numa palavra, da enciclopedística), são justamente associados com um Novalis mais tardio e, por certo, dão-nos uma imagem real, porque visível, da importância teórica do jovem poeta – mas, não obstante, continuam ainda hoje a omitir a influência dos Fichte-Studien, bem como da longa época de maturação que imediatamente os antecede e, por assim dizer, os prepara.
[4] Refiro-me ao período de estudo filosófico de Novalis em Jena (entre outubro de 1790 e meados de 1791), onde este teria por companheiros os jovens filósofos Friedrich I. Niethammer, Johann B. Erhard, Johann P. A. Feuerbach ou Friedrich K. Forberg, e por professores Carl C. E. Schmid, Friedrich Schiller e aquela que para si, viria a revelar-se a sua maior influência, o kantiano Karl L. Reinhold. É desse período, do conflito espiritual entre filosofia e poesia que nele se dá, e da posterior influência de Fichte, que decorrem directamente os Fichte-Studien, os quais devem ser tidos como o primeiro real tentame filosófico de Novalis e, por isso, como o nascer expresso de um interesse filosófico no poeta – e, por conseguinte, é a essa época primeira de estudo filosófico de Novalis que sempre deveriam atender os estudos críticos sobre as posteriores, e também sobre outros temas afins no autor.
[5] Entre as excepções ao que acabo de dizer, salientaria as obras, e respectivas análises aos Fichte-Studien de Novalis: FRANK, M. Unendliche Annäherung: Die Anfänge der philosophischen Frühromantik. 2. Auflage. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1998 (Suhrkamp-Taschenbuch Wissenschaft, Bd. 1328); HAERING, T. Novalis als philosoph. Stuttgart: W. Kohlhammer, 1954; LOHEIDE, B. Fichte Und novalis: Transzendentalphilosophisches Denken Im Romantisierenden Diskurs. Amsterdam–Atlanta, 2000 (Fichte-Studien-Supplementa 13), ou MOLNÁR, G. von. Novalis’Fichte Studies. The Foundations of his Aesthetics. Paris: The Hague, 1970 (Stanford Studies in Germanics and Slavics, Bd. 7). Outras excepções existem, que, porém, a economia de espaço não permite mencionar.
[6] Sobre a teoria dos contrários em Novalis, uma das primeiras pedras do que viria a ser o edifício do seu pensamento, nada diremos aqui, pois não é esta a melhor ocasião para isso; a não ser, porventura, que a exposição desta se encontra, nos Fichte-Studien, a partir do fragmento 15 do «Primeiro grupo de manuscritos», e que se estende mais ou menos continuamente ao longo de todo o mesmo (NS, II: 18ff.) Doravante, recorrerei à sigla «NS» (NOVALIS, Schriften. Werke, Tagebücher und Briefe Friedrich von Hardenbergs, hrsg. von Hans-Joachim Mähl u. Richard Samuel, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, 1999) para citar a palavra de Novalis; sempre que necessário, o original dos passos citados será incluído em nota de rodapé.
[7] Vorarbeiten zu verschiedenen Fragmentsammlungen, 1798.
[8] «Der erste Kuβ in diesem Verständnisse ist das Princip aller Philosophie – der Ursprung einer neuen Welt – [...] die Vollziehung eines unendlich wachsenden Selbstbundes.» Doravante e até ao fim deste ensaio, as citações de Novalis, salvo poucas excepções, são incluídas no corpo do texto em língua portuguesa, e em rodapé no original alemão, excepto nos casos em que, sob a forma de referência, uno ambas em rodapé. As de outros autores, que apresento apenas em língua portuguesa, faço-as constar sempre que possível em rodapé. A tradução de todas as citações é da minha autoria e, por conseguinte, da minha responsabilidade.
[9] «[...] der Anfang der Philosophie [ist] ein erster Kuβ».
[10] «Nur aufs Seyn kann alle Filosofie gehen.» (NS, II: 11).
[11] «D[ie] Filosofie soll nicht mehr antworten, als sie gefragt wird. Hervorbringen kann sie nichts.» (NS, II: 17).
[12] «Sie handelt von einem Gegenstande, der nicht gelernt wird.» (NS, II: 17).
[13] «Die Filosofie ist aber selbst im Lernenden. Nun da wird sie Selbstbetrachtung seyn.» (NS, II: 18).
[14] «Die bisherige Geschichte der Philosophie ist nichts, als eine Geschichte der Entdeckungsversuche des Philosophirens.»
[15] «Sie [Philosophie] ist eine mystische, höchstwircksame, durchdringende Idee – die uns unaufhaltsam nach allen Richtungen hineintreibt.»
[16] «Auβer der Philosophie der Philosophie giebt es allerdings noch Philosophieen – die man Individualphilosophieen nennen könnte».
[17] «Die Darstellung der Phil[osophie] der Phil[osophie] wird immer etwas von einer Individualphilosophie haben.»
[18] «Die vollständige Darstellung des durch diese Handlung zum Bewuβtseyn erhobenen ächt geistigen Lebens ist die Philosophie kat exochin. Hier entsteht jene lebendige Reflexion, die sich bey sorgfältige[r] Pflege nachher zu einem unendlich gestalteten Universo von selbst ausdehnt – der Kern oder Keim einer alles befassenden Organisation – Es ist der Anfang einer wahrhaften Selbstdurchdringung des Geistes die nie endigt.»
[19] «Philosophie ist eine Selbstbesprechung obiger Art – eine eigentliche Selbstoffenbarung – Erregung des wircklichen Ich durch das Idealische Ich.»
[20] Em suma, diria, urge que se pense a filosofia real como vida do homem, e a filosofia deste como sua vida ideal («Tal como a sua vida é filosofia real, a sua filosofia é vida ideal – teoria viva da vida» («So wie sein Leben reale Philosophie ist, so ist seine Philosophie ideales Leben – lebendige Theorie des Lebens.» (NS, II: 318)).
[21] «A decisão de filosofar é uma exigência ao Eu real, para que ele venha a si, desperte e se torne espírito.» («Der Entschluβ zu philosophiren ist eine Aufforderung an das wirckliche Ich, daβ es sich besinnen, erwachen und Geist seyn solle.» (NS, II: 320)).
[22] «Das Bewuβtseyn ist ein Seyn auβer dem Seyn im Seyn.» (NS, II: 10).
[23] Outras versões disso mesmo surgem não só em Novalis e Hölderlin, mas ainda em Schelling e Hegel. Assim, diz Schelling, em «Einleitung zu: Ideen zu einer Philosophie der Natur», de 1797: «Previamente [à filosofia], os homens viviam num estado de natureza [...]. Então, o homem era ainda uno consigo mesmo e com o mundo que o rodeava.» (AS, I: 250), e, por isso, acrescenta, «[...] como é possível um mundo fora de nós, uma natureza e com ela experiência, essa questão devemo-la à filosofia, ou antes, com esta pergunta nasceu a filosofia» (AS, I: 250). E, logo após, aduz: «Mal o homem se põe em
[24] «Die Reflexion findet das Bedürfniβ einer Filosofie, oder eines gedachten, systematischen
Zusammenhangs zwischen Denken und Fühlen – denn es ist im Gefühl.»
[25] Com essa expressão, pretende-se tanto dar a entender o inescapável suplemento sensitivo aportado pela carência à necessidade, como e sobretudo focar esse mesmo suplemento, assim procurando distinguir dois termos que a língua portuguesa por certo une, mas a alemã cinde. De facto, necessidade [«Notwendigkeit»] é tanto oposição ao contingente, como ela própria experiência de falta ou ausência; mas carência [«Bedürfniβ»], no sentido em que a usa Novalis, é não apenas a experiência da falta, mas também e já o saber-se a caminho da satisfação desta, mediante essa mesma satisfação. A carência é, por conseguinte, o ir suprindo a ausência, no próprio momento em que mais se sente essa ausência, de tal modo que essa supressão é, porém, máximo sentimento de perda, e o máximo sentimento de perda é já saciação; no fundo, e quase paradoxalmente, como se na carência ambos os sentimentos, satisfação e insatisfação, se regenerassem infinitamente aquando do seu contacto – sempre mais, e portanto numa necessidade mais do que necessária.
[26] Por outras palavras, dir-se-ia que a filosofia já nasce marcada com a destinação de inverter o evento do seu próprio nascimento. Salienta Schelling: «Ela parte daquela separação originária para, mediante liberdade, unir de novo aquilo que no espírito humano estava originaria e necessariamente unido, isto é, para suprimir aquela separação para sempre» (AS, I: 252); ou, no dizer de Hegel: «Suprimir tais opostos tornados fixos é o único interesse da razão. [...] [A] totalidade só é possível, na forma suprema da vida, através do restabelecimento a partir da suprema perfeição.» (38)
[27] Vejam-se, a esse respeito, palavras de Schelling, uma vez mais extraídas de «Einleitung zu: Ideen zu einer Philosophie der Natur», de 1797: «A filosofia tem de pressupor aquela separação originária, pois sem ela não teríamos nenhuma carência de filosofar.» (AS, I: 252); e de Hegel, também no Differenschrift, de 1801: «Quando o poder de unificação desaparece da vida dos homens, e os contrários perderam a sua referência viva e reciprocidade e ganham autonomia, nasce a carência da filosofia.» (HeW, II: 22).
[28] Poder-se-ia dizer, pois – e para usar a classificação de Novalis, presente na nossa nota 24 –, que, se Fichte funda a necessidade da filosofia, então Novalis funda a carência da filosofia.
[29] De outro modo, enfatizaria Hölderlin: «Não teríamos [...] qualquer pressentimento daquela paz infinita, daquele Ser, no sentido único da palavra; não aspiraríamos a unir-nos à natureza; não pensaríamos e não agiríamos, não existiria rigorosamente nada (para nós), nós próprios não seríamos (para nós) nada, se aquela união infinita, aquele Ser, no sentido único da palavra, não nos fosse presente». (SW, 2: 83).