AS CONCEPÇÕES DE LIBERDADE EM LOCKE E SIDNEY[1]

 

Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros[2]

 

 

RESUMO: O objetivo deste texto é cotejar as concepções de liberdade natural e de liberdade civil de John Locke e de Algernon Sidney. Se ambos escreveram seus tratados em resposta ao panfleto de Robert Filmer, Patriarcha, or the naturall power of kings defended against the unnatural liberty of the people, com críticas muito parecidas, as concepções de liberdade apresentadas, apesar das semelhanças, revelam nuanças significativas, com relevantes implicações em alguns casos, como na possibilidade de o governo deter a prerrogativa de agir em casos não previstos pelas leis civis ou de maneira contrária às leis civis, em situações de emergência. A intenção é mostrar que essas diferenças resultam em duas perspectivas distintas de pensar a relação entre governo e lei civil.

PALAVRAS-CHAVE: Locke. Sidney. Liberdade. Governo. Lei.

 

 

            Tanto Two treatises of government, de John Locke, quanto Discourses concerning government, de Algernon Sidney, tinham a mesma finalidade: refutar o panfleto publicado pelos realistas, em 1680, vinte e sete anos após a morte de seu autor, intitulado Patriarcha, or the naturall power of kings defended against the unnatural liberty of the people, de autoria de Robert Filmer. O momento no qual o panfleto de Filmer foi escrito tem sido objeto de longa discussão entre os seus intérpretes (WALLACE, 1980, p. 155-165; TUCK, 1986, p. 183-186). As últimas pesquisas têm mostrado que ele deve ter sido redigido entre 1628 e 1631, numa fase de intenso conflito entre o rei inglês e o Parlamento, no tocante à liberdade dos súditos e ao uso extensivo das prerrogativas reais (CUTTICA, 2007, p. 4-5).

            Ao assumir a coroa inglesa, em 1603, com o título de Jaime I, o experiente rei escocês Jaime Stuart encontrou um reino unificado e submetido à autoridade real, mas com sérios problemas financeiros. Além dos recursos normalmente concedidos pelo Parlamento, no início de cada reinado, ele recorreu a vários tributos extraordinários, baseado nas chamadas prerrogativas reais, alegando a sua responsabilidade em preservar o reino e o dever dos súditos em auxiliá-lo. Os Parlamentos convocados criticaram essa forma de tributação, denunciando-a como um atentado contra a liberdade dos súditos, e demandaram sua tradicional função no estabelecimento das políticas fiscais e comerciais do reino, com o argumento de que era costume o monarca inglês não impor medidas que interferissem com a propriedade dos súditos, sem o seu consentimento (HOLMES, 1995, p. 122-154).

Nesse período, já havia certo consenso de que a liberdade dos súditos dependia da propriedade sobre sua pessoa e sobre seus bens, assegurada pelo lugar ocupado na estrutura social. Essa maneira de compreender a liberdade estava relacionada com a linguagem jurídica do período medieval, quando um dos sentidos de liberdade remetia às imunidades e aos privilégios dos membros de determinadas coletividades reconhecidas legalmente como livres: abadias, universidades, entre outras. Assim, nesse sentido de um direito inviolável de propriedade sobre si mesmo e seus bens, a liberdade era considerada uma consequência do status social que todo súdito inglês possuía, por ser membro de um corpo político livre e independente (HARDING, 1980, p. 423-443).

Diante da resistência dos primeiros Parlamentos em aceitar uma tributação extraordinária, a qual atentava contra a liberdade dos súditos ingleses, Jaime I deixou de convocá-los, a partir de 1614, e passou a governar baseado unicamente em suas prerrogativas reais. A fim de custear as despesas da coroa, entre outras medidas arbitrárias, recorreu a empréstimos compulsórios, aprisionando os súditos que se recusassem a concedê-los (GRAY, 1995, p. 155-200).

Seguindo a opinião de juristas da common law, em particular de Edward Coke, Lorde Chefe da Justiça até 1616, alguns publicistas reagiram ao uso abusivo das prerrogativas reais, alegando que o seu exercício era regulado pelas leis do reino e não podia prejudicar a liberdade dos súditos. Eles argumentavam que essa liberdade era um direito fundamental, consagrado desde a Magna Carta, o qual não podia ser violado pelo rei. Não era apenas uma coleção de franquias e imunidades, concedidas pelo rei em ocasiões particulares, mas um direito originário que pertencia a cada súdito, de acordo com as leis do reino (BAKER, 1995, p. 178-202).

O debate sobre a liberdade dos súditos e as prerrogativas reais intensificou-se com a ascensão ao trono de Carlos I, em 1625. O primeiro Parlamento reunido não atendeu às suas demandas e ele o dissolveu após poucas semanas. Mas as dificuldades financeiras o obrigaram a convocar outro Parlamento, em fevereiro de 1626, igualmente logo dissolvido, por também não lhe conceder os recursos monetários solicitados. Assim como havia feito seu pai, baseado em suas prerrogativas, recorreu a outros expedientes, em particular empréstimos compulsórios, encarcerando os súditos que se recusavam a contribuir.  Em 1628, Carlos I teve de reunir um novo Parlamento, em razão dos gastos militares de uma guerra que ele havia declarado contra a França. Os comuns utilizaram as primeiras seções para denunciar que a liberdade dos súditos estava sendo violada pelo uso abusivo das prerrogativas reais. Após longos debates, no início de 1629, a maioria parlamentar impôs como condição de concessão às demandas do rei a aprovação real de um documento intitulado The petition of right. Inspirada pelas ideias de Edward Coke – em particular pelos princípios de que todo tributo deveria ser aprovado pelos súditos, representados no Parlamento, e de que todo súdito deveria ter o direito de ampla defesa, caso fosse acusado de algum crime –, a petição declarava ilegais a prisão arbitrária, a imposição de tributos sem o consentimento parlamentar e outras medidas que colocavam em risco a liberdade dos súditos, como a convocação forçada para o exército e o uso da lei marcial em crimes que podiam ser julgados pelas cortes de justiça (WOOTTON, 1986, p. 168-170).

Carlos I acatou The petition of right com a expectativa da aprovação de suas demandas, em especial de uma série de tributos comerciais, até o final de seu reinado. Todavia, os parlamentares se recusaram a aprová-los, alegando que os tributos só poderiam ser autorizados a cada circunstância em que eles se fizessem necessários. O rei ignorou então a petição, com o argumento de que ela havia sido publicada sem a sanção real, dissolveu o Parlamento, ordenou a prisão de seus principais opositores e governou por mais de onze anos, sem convocar outro Parlamento, baseado apenas em suas prerrogativas reais (REEVE, 1989, p. 9-57).

           

I

 

O Patriarcha, de Robert Filmer, vinha dar apoio à política real de Carlos I, ao sustentar a supremacia do rei sobre o Parlamento. O seu principal objetivo teórico era atacar a ideia, presente em autores como Berlarmino e Suarez, de que os homens eram naturalmente livres para escolher a forma de governo mais conveniente aos seus propósitos, e de que o poder político era uma concessão do povo, o qual delegava seu exercício a magistrados escolhidos; e a ideia ainda mais radical, defendida por alguns reformadores, como Calvino e Buchanan, de que o povo tinha a liberdade para punir ou depor seus magistrados, se eles infringissem as leis divinas e humanas. Tais ideias estariam na origem da defesa da soberania popular e do direito de rebelião dos súditos contra o governo civil (FILMER, 1996, p. 2-7).

A refutação à doutrina da liberdade natural era feita em duas frentes. A primeira estava sustentada na defesa da submissão natural dos homens à autoridade política constituída por Deus. A segunda frente estava amparada principalmente em três objeções: se os homens fossem naturalmente livres, eles deveriam, em algum momento da história, ter decidido estabelecer um governo – e não havia nenhum relato histórico nesse sentido; se cada homem fosse naturalmente livre para viver como desejasse, seria preciso conhecer a razão pela qual os homens consentiram em abandonar a liberdade natural, para se submeter a um governo, razão que não era apresentada de maneira convincente por nenhum autor; e se os homens deram seu consentimento para o estabelecimento do governo, eles também poderiam retirá-lo, quando lhes fosse conveniente, o que causaria a dissolução do governo, resultando na destruição da propriedade e da ordem pública. Além dessas objeções, Filmer argumentava que a ideia do consentimento pressupunha a existência de alguma forma de organização social prévia, como a família, com sua hierarquia naturalmente estabelecida. Desse modo, se houve algum consentimento, este teria sido de chefes de família, os quais juntaram seus domínios particulares e transferiram parte de sua autoridade para a constituição do governo civil.

Contra os teóricos da liberdade natural, Filmer sustentava que a autoridade política era uma extensão da autoridade paterna e que a obrigação política era decorrente do dever natural de obediência incondicional dos filhos. A sua principal referência era o relato bíblico de que Deus havia criado Adão, do qual foi gerado todo o gênero humano, e concedido a ele o domínio absoluto e ilimitado sobre sua família e sobre todas as coisas existentes no mundo. Esse domínio havia sido então transmitido ao seu primogênito por direito hereditário, que foi por sua vez transferido aos seus descendentes, passando de geração em geração, até chegar aos patriarcas e aos primeiros reis hebreus:

Não vejo como as crianças de Adão ou de qualquer outro homem podem estar livres da sujeição aos seus pais. Sendo esta sujeição das crianças a única fonte de toda autoridade real, pela ordenação do próprio Deus, segue-se que o poder civil não somente é uma instituição divina, mas também deve ser atribuído especificamente ao pai mais velho. (FILMER, 2000, p. 7).

 

Dessa maneira, as Escrituras revelavam que a autoridade política derivava da autoridade paterna, recebida inicialmente por Adão, na criação, e transmitida posteriormente às suas sucessivas gerações, e que Deus havia escolhido o governo monárquico como a forma de governo mais adequada ao gênero humano.

Para Filmer (2000, p. 12), a autoridade paterna não era meramente similar ou análoga à autoridade política, mas idêntica: “Se compararmos os direitos naturais de um pai com os de um rei, encontraremos que são uma mesma coisa, sem diferença entre eles senão na latitude e extensão.” Por isso, se a submissão dos filhos ao pai era natural, pois não havia igualdade entre pais e filhos, natural também seria a submissão dos súditos ao rei; e, como era contrário à natureza que os filhos desobedecessem aos pais, também seria contrário à lei natural julgar, castigar ou depor um rei. Afinal, como o pai exercia sua autoridade para o bem de seus filhos, os quais dependiam totalmente de sua vontade, o rei exerceria igualmente sua autoridade para o bem de seus súditos.

Nesse sentido, a liberdade, a propriedade e outros direitos dos súditos eram tão somente dádivas do rei, cujo poder era absoluto e ilimitado. O poder real era ainda arbitrário, na perspectiva de Filmer, no sentido de ser exercido de acordo com o arbítrio do rei, já que não havia superior neste mundo capaz de julgá-lo ou controlá-lo. Como o poder real procedia exclusivamente de Deus, não havendo qualquer lei humana que pudesse limitá-lo, o rei devia estar acima das leis civis, cuja origem residia exclusivamente em sua vontade (FILMER, 2000, p. 35, 41-42).

Segundo Filmer, a única forma natural de governo, compatível com a hierarquia natural e a jurisdição paterna, era a monarquia absoluta e hereditária. Ela era a única espécie de governo mencionada nas Escrituras, o que demonstrava que apenas ela tinha a aprovação divina: “Deus sempre governou seu povo apenas pela monarquia. Os patriarcas, juízes e reis eram todos monarcas. Não há em toda a Escritura menção e aprovação de qualquer outra forma de governo.” (FILMER, 2000, p. 23).

No Patriarcha, encontramos então duas estratégias de argumentação. A primeira consistia em buscar passagens das Escrituras e exemplos na história de Israel que permitissem concluir que a monarquia hereditária e absoluta havia sido instituída e aprovada por Deus. A segunda procurava dar uma interpretação político-teológica a conceitos encontrados nas Escrituras, a fim de fundamentar as teses pretendidas, em particular, a origem divina da realeza, a natureza patriarcal da autoridade política e o caráter absoluto e ilimitado do poder monárquico. É possível dizer que, se teorias sobre o direito divino dos reis e sobre o patriarcalismo eram comuns, em sua época, Filmer reunia os argumentos de ambas, com base nas Escrituras, na história dos povos antigos e nos princípios da lei natural.

 

II

Ao publicar o Patriarcha, em 1680, os realistas pretendiam conter a crescente oposição ao governo de Carlos II. O Parlamento, o qual havia sido bastante favorável às demandas reais, reunido desde 1661, após a restauração da monarquia, foi finalmente dissolvido em janeiro de 1679. No período das eleições para a Casa dos Comuns, intensificou-se o debate em torno da sucessão de Carlos II, cuja saúde estava cada vez mais fragilizada. O primeiro na linha de sucessão era seu irmão Jaime Stuart, duque de York, que sofria forte resistência dos súditos protestantes, por ser declaradamente católico. A imagem do catolicismo como um tipo de despotismo clerical, em razão da reivindicação papal de domínio universal, tanto temporal quanto espiritual sobre a cristandade, e como uma religião sanguinária, construída no reinado de Maria Tudor (1553-58), com a violenta perseguição aos protestantes, era constantemente evocada por panfletos que ressaltavam a insegurança para a vida, liberdade e propriedade dos súditos protestantes, com a coroação de um rei católico.

Em maio de 1679, logo após a instauração do novo Parlamento, foi apresentada na Casa dos Comuns a proposta de exclusão do duque de York da linha de sucessão. Mas essa proposta nem chegou a ser votada, porque o Parlamento foi dissolvido poucas semanas depois. Em outubro do mesmo ano, um novo Parlamento foi convocado, mas teve sua reunião prorrogada, apesar das inúmeras petições endereçadas ao rei. A mais significativa foi assinada por quase 16.000 súditos – entre os quais Sidney e Locke – e apresentada em janeiro de 1680 a Carlos II, que a considerou, a despeito do tom moderado, uma afronta ao seu poder soberano (KNIGHTS, 1993, p. 39-67). Quando finalmente se reuniu, em outubro de 1680, foi novamente apresentada na Casa dos Comuns a proposta de exclusão do duque de York, desta vez votada e aprovada em 11 de novembro de 1680, porém, imediatamente rejeitada na Casa dos Lordes, no mês seguinte. Poucas semanas depois, esse Parlamento foi dissolvido. Em março de 1681, um novo Parlamento foi reunido em Oxford, com a justificativa de fugir da efervescência política de Londres, mas também logo dissolvido pelo rei, por causa da forte oposição parlamentar.

Nesses três curtos Parlamentos sucessivos, os opositores à coroa defenderam o direito de excluir o duque de York do processo sucessório, escolher outro sucessor da família real e impor limites bem definidos ao exercício do poder real, reivindicando a superioridade do Parlamento sobre o rei inglês. A polarização cada vez mais intensa entre os realistas e os opositores à coroa contribui para o surgimento de dois grupos rivais, com a respectiva denominação de Tory e Whig: de um lado, Tories defendiam o poder absoluto do rei, a sucessão por direito hereditário e o uso extensivo das prerrogativas reais; de outro, Whigs alertavam para os riscos de um futuro governo católico e ainda mais arbitrário, o qual colocaria em risco a vida, a liberdade e a propriedade dos súditos (GREAVES, 1993, p. 605-618; HARRIS, 1990, p. 217-242).

Nesse contexto, Locke e Sidney escreveram seus tratados, visando a combater as ideias expostas no Patriarcha, em particular, a origem patriarcal da autoridade real, a submissão natural ao rei e a obrigação política incondicional dos súditos. Em geral, as suas críticas foram bastante semelhantes. Eles refutavam principalmente a exegese realizada por Filmer das Escrituras, em particular do Pentateuco. Ambos contestavam a interpretação de que Deus havia conferido a Adão um domínio supremo e irrestrito sobre todos os seres do mundo e que desse domínio privado seria derivada uma autoridade política absoluta, transferida aos seus descendentes por direito hereditário (SIDNEY, 1996, p. 57; LOCKE, 2000, p. 158-171, 199-202).

Locke refutava especialmente a suposta soberania de Adão, com base em três principais argumentos. Primeiro, ela não poderia estar fundada na criação, porque era impossível que Adão tivesse sido monarca do mundo, numa época em que não existiam ainda governos nem súditos (LOCKE, 2000, p. 151-155). Depois, ela não poderia estar sustentada na doação divina, porque as Escrituras descreviam claramente a concessão do domínio comum sobre todas as coisas criadas ao gênero humano e não de maneira exclusiva a Adão (LOCKE, 2000, p. 168-171). Finalmente, ela não poderia estar baseada na submissão natural de sua família, porque Adão detinha, como marido, apenas um poder conjugal sobre Eva, exercido no âmbito familiar e limitado às coisas que dizem respeito ao casal (LOCKE, 2000, p. 174-176); e, como pai, um poder paterno sobre seus filhos, exercido igualmente no âmbito privado, limitado ao período de menoridade e destinado somente a garantir a manutenção e a educação dos filhos (LOCKE, 2000, p. 191-194).

No caso de Sidney, a ênfase dada era de que não havia nas Escrituras qualquer menção explícita a respeito do domínio político de Adão ou dos patriarcas, nem da continuidade desse domínio em favor de seus primogênitos (SIDNEY, 1996, p. 24-30 e 33-38). Ao contrário, as Escrituras atestavam que todas as famílias descendiam de um tronco comum, sem hierarquia entre elas, o que impossibilitaria qualquer chefe de família reivindicar um domínio sobre outras famílias (SIDNEY, 1996, p. 58-69). Além disso, não havia qualquer sombra de direito paterno na instituição da monarquia entre os hebreus (SIDNEY, 1996, p. 44-46).

Para ambos, mesmo se Adão tivesse sido designado senhor supremo de toda a criação, com poder absoluto sobre todas as coisas e, como consequência desse poder, tivesse sido o primeiro monarca do mundo e tivesse transmitido aos seus descendentes esse poder absoluto, seria impossível identificar os seus verdadeiros herdeiros, uma vez que não havia lei de natureza ou lei positiva de Deus, determinando com exatidão a sua transmissão; e mesmo se os seus descendentes tivessem herdado esse poder, a linha de sucessão havia se perdido de tal modo, ao longo do tempo, que nenhuma pessoa ou família poderia reclamar esse poder como herança (LOCKE, 2000, p. 204-213; SIDNEY, 1996, p. 39-44).

            Locke e Sidney não reconheciam ainda qualquer vínculo de natureza política na relação entre pais e filhos, nem a existência de um poder arbitrário e ilimitado dos pais sobre os filhos. Se o poder paterno tinha seu fundamento na natureza, ele era limitado e restrito ao âmbito privado, sendo incomunicável e intransferível, inteiramente distinto do poder político, em sua origem, extensão e finalidade (LOCKE, 2000, p. 176-194; SIDNEY, 1996, p. 62-69, 88-90).

 

III

Já a defesa da liberdade natural, do estabelecimento da sociedade civil, por meio do consentimento de homens livres e iguais, e do direito do povo de instituir e destituir o governo, não era tão semelhante. Em The second treatise of government, a fim de compreender a origem, extensão e finalidade da autoridade política, Locke propõe descrever o estado no qual os homens se encontrariam naturalmente, antes do advento das sociedades civis. Essa condição é apresentada como um estado de perfeita liberdade e igualdade: os homens são naturalmente iguais, no sentido de uma jurisdição recíproca, ou seja, não há qualquer sujeição de um indivíduo em relação a outro; e são naturalmente livres, no sentido de dispor de liberdade, para regular suas ações e para dispor de sua pessoa e de tudo que lhes pertence, como julgarem mais adequado, sem ter de pedir permissão ou depender da vontade de seu semelhante (LOCKE, 2000, p. 269).

É possível perceber que há, assim, um vínculo estreito entre liberdade e igualdade, nessa descrição do estado de natureza, no sentido de que a liberdade só é compreensível por meio da referência à igualdade: por serem iguais, os homens são livres e não devem estar subordinados ou sujeitos à vontade ou à autoridade de outrem. Em outros termos, é necessário conceber os homens como iguais, sem relações naturais de sujeição, para vê-los como livres.

Se a liberdade natural consiste na independência do indivíduo em relação aos seus semelhantes, ela não é considerada ilimitada. Locke adverte que a condição natural não se caracteriza por um estado de licenciosidade ou de ausência total de restrições ou obrigações, uma vez que a liberdade natural deve ser exercida dentro dos limites da lei natural, a qual governa e obriga a todos igualmente (LOCKE, 2000, p. 270-271).

Embora não haja uma exposição sistemática sobre a lei natural, em The second treatise of government,[3] ela é comumente caracterizada como uma norma moral obrigatória, clara e inteligível à razão, imposta por Deus a todos os seres racionais, que fixa deveres e fundamenta direitos naturais (LOCKE, 2000, p. 274-275). De acordo com Locke, ela visa a guiar a ação dos indivíduos, tendo em vista o seu bem, não prescrevendo mais do que exige esse bem; e o seu principal preceito, para quem se disponha a consultá-la, é que não se deve prejudicar a si mesmo nem ao outro, no que diz respeito à vida, liberdade e propriedade.

Desse modo, no caso da liberdade, ela estaria assegurada pelo respeito à lei natural. O principal argumento é de que, se os indivíduos pudessem agir sem quaisquer limites, nenhum deles seria realmente livre. A lei natural não suprimiria então a liberdade, como sustentava Filmer, mas a garantiria:

O fim da lei não é abolir ou restringir, mas preservar e ampliar a liberdade, pois, em todas as condições de seres criados capazes de lei, onde não há lei, não há liberdade. A liberdade consiste em estar livre de restrição e de violência por parte de outros, o que não se pode dar se não há lei. (LOCKE, 2000, p. 306).

 

Apesar de a lei natural ser evidente e inteligível, os indivíduos nem sempre são capazes de respeitá-la, na opinião de Locke. Nos casos de transgressão, como a lei natural almeja a preservação da vida, liberdade e propriedade de todos os indivíduos, aquele que a infringe comete uma injúria não apenas contra seu semelhante, mas também contra a humanidade, pois ameaça a segurança de todos. Ao agir de maneira contrária aos preceitos da lei natural, o seu infrator assume seguir outra regra que não a da razão, deixa de fazer parte da comunidade de seres racionais e passa a ser um perigo para a espécie humana. Por isso, ele pode ser punido por qualquer indivíduo, sem que a própria lei natural seja violada, porque a sua punição objetiva restaurar a ordem racional e preservar a humanidade. Na condição natural, marcada pela jurisdição recíproca, todos são assim juízes e executores da lei natural, com igual direito de julgar e de punir os seus transgressores, em grau suficiente para impedir nova violação e com pena proporcional ao dano causado (LOCKE, 2000, p. 271-274).

Todavia, a parcialidade dos julgamentos, principalmente quando os interessados estão envolvidos nas contendas, e o possível exagero nas punições, fruto do descontrole das paixões, transformam o estado de natureza em estado de guerra, de acordo com Locke. A introdução da força, seja pela violação da lei natural, seja pela aplicação desproporcional das penas aos seus transgressores, desencadeia então uma condição bélica que coloca em risco o direito natural à vida, liberdade e propriedade dos indivíduos (LOCKE, 2000, p. 278-282).

A saída apontada pela razão, segundo Locke, para que todos tenham seu direito natural preservado, é que os indivíduos concordem reciprocamente em formar uma comunidade, renunciando ao poder natural de julgar e executar a lei natural em favor dessa comunidade; e, quando os indivíduos se reúnem e transferem mutuamente seu poder natural para essa comunidade e ela se torna árbitra por meio de leis fixas, conhecidas, indiferentes e iguais para todos, decidindo as controvérsias entre os seus membros com base nessas leis e punindo os seus transgressores com as penalidades previstas por essas leis, esses indivíduos formam um povo e estabelecem uma sociedade política ou civil (LOCKE, 2000, p. 323-325).

Ao ingressar na sociedade política, cada indivíduo assume a obrigação de submeter-se à vontade e à resolução da maioria, a qual é considerada a única maneira de essa comunidade agir: na vida política, o ato da maioria deve ser assumido como o ato de todos e, ao decidir, decide por todos (LOCKE, 2000, p. 330-333). Na descrição de Locke, o primeiro ato do povo, que decide e age sempre por consentimento majoritário, é a instituição do governo, a quem é concedido em confiança o poder legislativo, poder supremo da comunidade, que será responsável por fixar as leis civis e assegurar a justiça, por meio de juízes autorizados.

A forma de atribuição do poder legislativo determinará a forma de governo adotada pelo povo, já que esta depende do número de pessoas que vai exercer o poder supremo da comunidade: se uma só pessoa, o governo será monárquico; se algumas pessoas, oligárquico; se a maioria das pessoas, democrático. Porém, se o poder legislativo é considerado o poder supremo da comunidade, ele não deve ser discricionário: não pode, por exemplo, atentar contra a vida, liberdade e propriedade dos súditos, destruindo, escravizando ou propositadamente empobrecendo os súditos; não pode estabelecer decretos arbitrários improvisados; não pode confiscar ou taxar a propriedade dos súditos, sem o seu consentimento; não pode transferir o seu encargo ou colocá-lo em outro lugar que não o indicado pelo povo, entre outras restrições. (LOCKE, 2000, p. 354-363).

Locke argumenta que, se o poder legislativo não tem necessidade de estar continuamente reunido, pois a elaboração das leis exige um curto período de tempo, é indispensável a existência de um poder permanente que assegure a execução das leis civis. Mas esse poder executor não deve estar nas mesmas mãos daquele que detém o poder legislativo, já que seria temeroso que o responsável pela elaboração das leis também fosse responsável pela sua execução (LOCKE, 2000, p. 364-365).

Com o estabelecimento da sociedade civil e do governo, com a respectiva atribuição do poder legislativo e do poder executivo, a liberdade natural dá então lugar à liberdade civil, caracterizada desta maneira:

A liberdade do homem em sociedade é não estar submetido a nenhum outro poder legislativo senão ao que foi estabelecido na sociedade política mediante consentimento, nem sob o domínio de qualquer vontade ou restrição de qualquer lei a não ser aquela que este poder legislativo promulgar de acordo com a confiança depositada nele. (LOCKE, 2000, p. 283).

 

A liberdade civil reside, assim, na segurança de viver segundo leis consentidas, estáveis e comuns a todos, as quais garantam a ausência de submissão a um poder absoluto e arbitrário. Ela consiste principalmente na “liberdade de seguir minha própria vontade em todas as coisas não prescritas pela lei; e de não estar sujeito à vontade inconstante, incerta, desconhecida e arbitrária de outro homem.” (LOCKE, 2000, p. 284).

Segundo Locke, se o governo negligenciar ou abandonar o seu encargo, extrapolar os limites de sua atuação ou agir de maneira contrária ao encargo que recebeu, colocando em risco a vida, liberdade e propriedade dos súditos, o povo tem a liberdade de destituí-lo e retomar o poder que havia sido concedido de forma fiduciária (LOCKE, 2000, p. 367, 370-372, 412-414). A sua defesa do direito de resistência ao governo está fundamentada na conjunção de três argumentos, já utilizados pelos huguenotes franceses e reformadores calvinistas ingleses, amplamente empregados no decorrer das guerras civis, para sustentar o direito do exército parlamentar de enfrentar as tropas de Carlos I: o magistrado civil que não cumpre com as obrigações assumidas no momento de sua instituição libera os súditos da obediência política; o magistrado civil que extrapola os limites legais, no exercício de seu poder, prejudicando o bem público, perde sua autoridade política e retorna à condição de pessoa privada; ao fazer uso da força sem o direito, ele fica sujeito, como qualquer pessoa privada, ao revide também por meio da força. Com base nesses argumentos, Locke defende o direito do povo de destituir o governo, retomando o poder que havia sido atribuído em confiança, e de estabelecer um novo governo.

 

 

 

 

IV

Sidney (1996, p. 57) também considera que todos os homens são naturalmente livres, isto é, dispõem da mesma independência em relação aos seus semelhantes[4]: “É impossível que um direito de domínio sobre os outros possa ser dado a alguém; então tudo que é ou pode ser herdado por alguém é a isenção do domínio de outrem, que nós chamamos liberdade, e esta é uma dádiva de Deus e da natureza”; e como essa liberdade é comum a todos os homens, a igualdade também é característica inerente à condição humana:

Se todo homem é livre até ingressar numa sociedade que escolheu para alcançar seu próprio bem, e essas sociedades devem ser reguladas por elas mesmas como considerarem melhor, nada mais pode ser requisitado para provar a igualdade natural na qual todos os homens nasceram e continuam até o estabelecimento das sociedades para seu próprio bem. (SIDNEY, 1996, p. 35).

 

A consequência da plena igualdade, no que se refere à liberdade, é a mesma recusa de qualquer hierarquia natural entre os homens e, consequentemente, de qualquer dever natural de obediência ou de sujeição, já que não pode haver precedência fundamentada na natureza de uns sobre os outros (SIDNEY, 1996, p. 94).

Essa liberdade não implica, para Sidney, licenciosidade, uma vez que ela deve ser exercida segundo a lei natural, ou seja, de acordo com a natureza racional do homem. Muito próximo da perspectiva de Locke, a razão é configurada como a luz natural concedida por Deus, para a distinção entre o bem e o mal, uma espécie de guia de acesso às verdades morais com base nas quais os homens devem determinar sua conduta e examinar os motivos de suas ações (SIDNEY, 1996, p. 338). 

Entretanto, não há a mesma inferência da obrigação moral de obediência à lei natural. Na avaliação de Sidney, os homens permanecem livres, para perseguir o bem que lhes convêm, mesmo contrariando a lei natural, já que o gozo desse bem só tem sentido enquanto for efeito da liberdade, isto é, quando tiver sido livremente escolhido. A razão não deixa de alertar aos homens que um desejo de liberdade sem limites é um empecilho na efetivação de seu bem, esclarecendo que é necessário restringir mutuamente parte da liberdade, a fim de que todos possam desfrutar com segurança desse bem:

A verdade é que os homens são conduzidos pela razão, que é sua natureza; e todos percebem que eles não podem viver separadamente, nem conjuntamente, sem alguma regra à qual todos devem estar submetidos. Esta submissão é uma restrição à liberdade, mas pode ser sem efeito para alcançar o bem pretendido se não for geral; e não será geral se não for natural. Como todos nascem com a mesma liberdade, os homens não vão limitar sua própria liberdade se os demais também não o fizerem. Este consentimento geral de todos em restringir parte de sua liberdade, como parece ser para o bem de todos, é a voz da natureza e a ação de homens, conforme a razão natural, que buscam seu próprio bem. (SIDNEY, 1996, p. 191-192).

 

O motivo do surgimento das sociedades civis é atribuído ao desejo de homens naturalmente livres de continuar vivendo em liberdade. Para isso, eles precisam restringir parte de sua liberdade. Não se trata de abandoná-la, aliená-la ou transferi-la, mas apenas limitá-la reciprocamente ao necessário, de sorte que todos possam desfrutá-la com segurança (SIDNEY, 1996, p. 61).

Se, na origem das sociedades civis, se encontram homens livres e iguais, que ingressam na vida social voluntariamente, a consequência deduzida é de que nenhum deles pode ter precedência sobre os demais, a não ser ela seja firmada por um consentimento recíproco:

Entre todos aqueles que compuseram a sociedade, sendo igualmente livres para ingressar nela ou não, nenhum homem podia ter qualquer prerrogativa sobre os demais, a não ser que lhe fosse concedida pelo consentimento do todo; e nada lhes obrigou a ingressar nesta sociedade, mas apenas a consideração de seu próprio bem; este bem, ou a opinião sobre ele, deve ter sido a regra, motivo e fim de tudo que eles ordenaram. (SIDNEY, 1996, p. 99).

 

Sidney sustenta que, se Deus deixou muito claro nas Escrituras e gravou no coração dos homens – por meio da lei natural – que é melhor ser protegido pela força de uma multidão unida, a fim de desfrutar dos benefícios da vida em comum, não determinou uma forma específica de governo, deixando aos homens a liberdade de escolher aquela que considerarem a mais adequada aos seus propósitos (SIDNEY, 1996, p. 20).

Assim, a mesma liberdade que se encontra na origem da sociedade civil está na decisão da multidão reunida de estabelecer o governo que achar mais conveniente:

É lícito, portanto, que a multidão escolha um ou alguns homens para governá-la, ou até mesmo decida manter este poder para ela mesma; e os magistrados que foram estabelecidos, não tendo outro poder senão o que lhes foi conferido pela multidão, grande ou pequena, são o que eles são por meio da multidão; e pela lei de sua própria instituição, exercem poderes proporcionais a concessão e de acordo com os fins para os quais lhes foram conferidos. (SIDNEY, 1996, p. 99).

 

Diferentemente de Locke, não há uma descrição de um hipotético estado de natureza, nem de um suposto pacto ou contrato social entre indivíduos para a formação da sociedade civil. Não há igualmente uma clara diferenciação entre liberdade natural e liberdade civil. Existe apenas o reconhecimento de determinados direitos naturais – como o direito à vida e à propriedade, o direito de se defender das injúrias sofridas, o direito de julgar e dispor das coisas que lhe dizem respeito – que são colocados em comum sob um determinado governo, escolhido pelos membros da sociedade, para que esses direitos possam ser desfrutados com mais segurança (SIDNEY, 1996, p. 339, 402-403, 547-548).

Sidney distancia-se também daquelas descrições da instituição da sociedade civil e do governo articuladas em torno de conceitos jurídicos do direito privado, as quais apresentavam a liberdade como um bem que pode ser alienado ou transferido. Em sua análise, a liberdade não é um simples bem que pode ser transacionado, uma vez que ela define o homem em sua humanidade. Por isso, alienar ou transferir de maneira total e irrevogável a liberdade, como defendiam alguns de seus contemporâneos, significaria renunciar à natureza de seres racionais.

Nessa perspectiva, Sidney (1996, p. 531) argumenta que, se o estabelecimento da sociedade política e do governo exige a restrição de uma parte da liberdade, isso não significa que os homens abdiquem de sua liberdade de julgar, se os magistrados escolhidos para exercer o governo estão cumprindo com suas obrigações: “Se é verdade que aqueles que delegam poder, sempre retêm para eles mais do que concederam, aqueles que instituem esses homens (magistrados) não lhes concedem um poder absoluto de fazer o que eles desejam, mas retêm para si mesmos mais do que conferiram aos seus representantes.”

A intenção é claramente enfatizar que o governo não dispõe de outro poder, a não ser daquele conferido a ele pela multidão de homens livres, os quais, ao se reunir em sociedade política, formaram um povo; e esse poder delegado deve ser exercido conforme o objetivo para o qual o governo foi criado, que é a realização do bem comum (SIDNEY, 1996, p. 91). Desse modo, embora cada indivíduo deva submeter-se aos comandos do governo, desde que eles estejam de acordo com a lei estabelecida, o povo tem o direito de contestar as ações do governo. O princípio geral constantemente recapitulado, ao longo dos Discourses, é que, se todo governo é instituído pelo povo, cabe ao povo avaliar se o governo está cumprindo de maneira adequada com sua finalidade, repreendê-lo, se for o caso, e até mesmo destituí-lo (SIDNEY, 1996, p. 20-21, 61, 70, 309-310, 385-6, 459-460, 474-475, 537, 549-550). Afinal, seria contraditório pensar que um povo é livre para instituir o governo, mas não pode regulá-lo, modificá-lo ou aboli-lo, se considerar necessário ou conveniente (SIDNEY, 1996, p. 21, 32).

Sidney admite que, como nem todos os homens seguem a lei natural, a vida em sociedade exige a criação de regras capazes de impedir que eles façam um uso irracional e licencioso de sua liberdade: as leis civis, que devem instruir o povo e os magistrados, em suas ações. Elas devem sobretudo estabelecer os propósitos e os limites do poder político, para que este não seja exercido de maneira arbitrária ou discricionária, porque a presunção de que os magistrados escolhidos para o governo vão agir de maneira adequada, visando ao bem público, não é suficiente para a segurança do povo, que não pode estar fundada na vontade incerta dos homens. O único modo de assegurar a vida, liberdade e propriedade do povo é que todos, inclusive aqueles que exercem o governo, estejam submetidos ao império da lei. Por isso, nenhum magistrado, nem mesmo o magistrado supremo, pode estar isento da lei civil, porque não há justo poder fora de seu âmbito (SIDNEY, 1996, p. 219, 387, 542-546, 556-558).

Na visão de Sidney, como o povo só é verdadeiramente livre, se viver sob as leis civis às quais deu seu consentimento, o povo não pode se privar do direito de definir as leis que considerar mais convenientes aos seus propósitos (SIDNEY, 1996, p. 464). Neutralizar o poder político, por meio das leis civis, é a maneira mais segura para o povo manter sua liberdade: “Como a liberdade consiste em não estar sujeito à vontade de um homem e nada denota mais um escravo do que a dependência em relação à vontade de outrem, se não houver outra lei no reino senão a vontade de um príncipe, não haverá liberdade.” (SIDENY, 1996, p. 402).

Em vários momentos dos Discourses, a liberdade é caracterizada como ausência de dominação, no sentido de independência em relação à vontade arbitrária de outrem. A fim de esclarecer melhor sua concepção de liberdade, Sidney (1996, p. 17) recorre diversas vezes à condição contrária do escravo: “Liberdade consiste unicamente na independência em relação à vontade de outrem; e pelo nome de escravo nos entendemos um homem que não pode dispor de sua pessoa nem de seus bens, mas desfruta deles conforme a vontade de seu senhor.”

A sua concepção de liberdade é construída, assim, pela negação da situação de escravidão, entendida como estado de submissão e dependência em relação à vontade de um senhor: se o escravo é aquele que não dispõe de sua pessoa ou de suas posses, desfrutando deles apenas de acordo com o arbítrio de seu senhor, o homem livre é aquele que vive de acordo com sua determinação; é aquele que não está submetido, sujeito ou exposto a uma vontade arbitrária, no que concerne a sua pessoa e suas posses. Nesse sentido, a força ou a ameaça coercitiva da força não constituem as únicas formas de restrição à liberdade, como sustentavam alguns de seus contemporâneos. A condição de dependência, a qual produz servidão ou submissão, é ela mesma uma fonte e uma maneira de constrangimento. O oposto da liberdade é, por conseguinte, a dominação, num sentido forte, a dependência e a vulnerabilidade, num sentido mais fraco.

Por isso, as leis civis são consideradas constitutivas da liberdade, nem tanto porque garantem direitos, contudo, principalmente porque asseguram a ausência de dominação, ao proteger todos os membros da sociedade civil de toda e qualquer forma de submissão e de dependência em relação à vontade arbitrária de outrem.

 

V

Embora as diferenças entre as concepções de liberdade de Locke e de Sidney não sejam tão acentuadas, elas são significativas, com relevantes implicações em suas teorias políticas, como no caso das prerrogativas reais. Os realistas defenderam, no decorrer da dinastia Stuart, que o monarca inglês dispunha, além de seu poder ordinário, de um poder extraordinário, expresso em suas prerrogativas, utilizadas em casos de urgência e de necessidade para o benefício do reino. Entre essas prerrogativas, destacava-se taxar os súditos sem autorização do Parlamento, criar novas cortes judiciárias, perdoar em última instância e, principalmente, decretar, vetar ou anular as leis civis.

Mesmo sendo um adversário dos realistas, Locke defende o uso das prerrogativas reais. Em sua opinião, quando os poderes legislativo e executivo são exercidos separadamente, como nas monarquias moderadas e governos bem constituídos, um poder discricionário deve ser deixado nas mãos daquele que detém o poder executivo, no caso inglês, o rei, para que ele possa agir em casos não previstos pelas leis civis ou ainda de maneira contrária às leis civis, em situações de emergência. Os motivos elencados para essa prerrogativa do poder executivo são diversos. Primeiro, porque não há como o legislativo prever todas as circunstâncias e estabelecer leis para todos os casos, antevendo todas as situações possíveis. Depois, porque o legislativo nem sempre está reunido e pode demorar muito tempo para decretar uma lei necessária ao bem público. Outro motivo é a conveniência de optar-se, em muitos casos, pelo bem público em lugar da execução rigorosa da lei, cuja observância imediata pode muitas vezes causar danos ao bem público. Finalmente, porque é conveniente que o governo tenha o poder de perdoar infratores, nos casos em que estes mereçam o perdão, ao invés do castigo (LOCKE, 2000, p. 374-375).

Segundo Locke, como a finalidade desse poder discricionário é o bem público, não haveria motivos para que o povo se preocupasse com o seu uso, por parte do executivo, já que se tratava de um instrumento necessário para o governo agir em situações excepcionais. Nesse sentido, a prerrogativa do governo de agir fora do âmbito da lei – muitas vezes agindo contrariamente à lei fixada, em circunstâncias caracterizadas pela urgência e necessidade – é considerada indispensável para o exercício do poder político (LOCKE, 2000, p. 375).

A única questão reconhecida como problemática era a quem caberia julgar o uso correto dessa prerrogativa por parte do governo. Locke sugere que não há juiz sobre a terra para avaliar esses casos, não havendo outro remédio senão o apelo aos céus, ou seja, o único recurso que resta ao povo contra um governo que fizesse uso de sua prerrogativa, indevidamente, seria tomar em armas e enfrentá-lo (LOCKE, 2000, p. 379-380).

Diferentemente de Locke, o qual admite a prerrogativa do governo de agir na ausência de leis civis ou até mesmo de modo contrário a elas, em casos de urgência e necessidade, Sidney rejeita qualquer possibilidade de ação do governo, fora do âmbito das leis civis (SIDNEY, 1996, p. 440). Afinal, o motivo para o estabelecimento das leis civis foi justamente evitar interferências arbitrárias, seja de outros indivíduos, seja do governo, assegurando uma existência livre de toda forma de dominação e incerteza (SIDNEY, 1996, p. 400-401). Para ele, só a submissão incondicional de todos os membros da sociedade política às leis civis, inclusive daqueles que exercem o governo, permite a liberdade, pois exclui toda possibilidade de interferência arbitrária, que resulta em sujeição e dependência (SIDNEY, 1996, p. 430).

O seu principal argumento é de que, mesmo se essa prerrogativa não for exercida pelo governo, a sua simples possibilidade já compromete a liberdade. A eventualidade de o governo agir fora do âmbito das leis civis, cuja consequência é a incapacidade de prever com segurança a regra que vai guiar a ação dos magistrados civis, é suficiente para minar a liberdade. Admitir essa prerrogativa do governo é, para ele, aceitar a condição análoga do escravo, o qual vive na dependência da vontade arbitrária de um senhor; e onde há dependência à vontade de outrem, seja dócil ou cruel, não há liberdade (SIDNEY, 1996, p. 440-441).

É possível afirmar que a diferença entre Locke e Sidney, na avaliação sobre a prerrogativa do governo de estar acima das leis civis, é decorrente da maneira de conceber a liberdade. Ambos caracterizam a liberdade civil como a ausência de submissão à vontade arbitrária de outrem e a segurança de viver sob as leis às quais foi dado o consentimento. Mas Sidney considera também a simples possibilidade de submissão à vontade arbitrária do governo, que coloca os súditos numa condição de vulnerabilidade, como uma forma de restrição à liberdade civil. A sua concepção é, assim, mais ampla, pois exige que todos os membros da sociedade política, até mesmo aqueles que exercem o governo, estejam igualmente submetidos às leis civis, sem qualquer exceção.

 

 

 

Referências

BAKER, J. H. Personal liberty under the common law of England, 1200-1600. In: DAVIS, R. W. (ed.). The origins of modern freedom in the West. Stanford: Stanford University Press, 1995. p. 178-202.

BARROS, A. R. G. A liberdade republicana em Algernon Sidney. Kriterion, v. 57, n. 135, p. 601-618, 2016.

CUTTICA, C. Adam...The father of all flesh: an intellectual history of Sir Robert Filmer and his works in seventeenth-century European political thought. Florence: European University Institute, 2007. p. 4-5.

FILMER, R. Patriarcha and other writings. Edited by Johann Sommerville. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.

GRAY, C. Parliament, liberty and law. In: HEXTER, J .H. (ed.). Parliament and Liberty: from the reign of Elizabeth to the English Civil War. Stanford: Stanford University Press, 1992. p. 155-200.

GREAVES, R. L. Great Scott! The restoration in Turmoil, or, restoration crises and the emergence of party.  A Quarterly Journal Concerned with British Studies, v. 25, n. 4, p. 605-618, 1993.

HARDING, A. Political liberty in the Middle Age. Speculum, v. 55, n. 3, p. 423-443, 1980.

HARRIS, T. Lives, liberties and estates: rethorics of liberty in the reign of Charles II. In: HARRIS, T.; SEAWARD, P. (ed.). The politics of religion in restoration England. Oxford: Basil Blackwell, 1990. p. 217-242.

HOLMES, C. Parliament, liberty, taxation, and property. In: HEXTER, J. H. (ed.). Parliament and liberty: from the reign of Elizabeth to the English Civil War. Stanford: Stanford University Press, 1992. p. 122-154.

KNIGTHTS, M. London’s Monster Petition of 1680. The Historical Journal, v. 36, n.1, p. 39-67, 1993.

LOCKE, J. Two treatises of government. Edited by Peter Laslett. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.

______. Ensaios políticos. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

 

REEVE, L. J. Charles I and the road to personal rule. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. p. 9-57.

SIDNEY, A. Discourses concerning government. Edited by Thomas West. Indianapolis: Liberty Fund, 1996.

WALLACE, J. The date of Sir Robert Filmer’s Patriarcha. The Historical Journal, v. 23, p.155-165, 1980.

WOOTON, D. (ed.). Divine right and democracy: an anthology of political writing Stuart England. London: Penguin Classics, 1986. p. 168-170.

 

 



[1] Este texto faz parte de um projeto de pesquisa mais amplo financiado pelo CNPq, via bolsa PQ.

[2] Professor Associado em Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP – Brasil. E-mail: abarros@usp.br

Livre-Docente, Doutor e Mestre pela USP. Autor dos livros: A teoria da soberania de Jean Bodin (Unimarco Editora/ Fapesp, 2001), Dez lições sobre Bodin (Vozes, 2011), O conceito de soberania na filosofia moderna (Barcarolla, 2013), Republicanismo inglês: uma teoria da liberdade (Discurso Editorial/FAPESP, 2015), Ensaios sobre o republicanismo inglês (Novas Edições Acadêmicas, 2017) e Republicanismo inglês: Sidney e a semântica da liberdade (Discurso Editorial/FAPESP, 2018).

 

 

[3] Encontra-se uma exposição mais detalhada sobre a lei natural num conjunto de dissertações acadêmicas, escritas por Locke, entre 1663 e 1664, quando lecionava filosofia moral em Oxford. Essas dissertações foram publicadas pela primeira vez em 1954, num volume organizado por Wolfgang Von Leyden; e, mais recentemente, foram publicadas num volume organizado por Mark Godie, com o título Ensaios sobre a lei de natureza. Cf. Locke (2007, p. 98-165).

 

[4] Sobre a concepção de liberdade encontrada na obra de Sidney, ver Barros (2016).