QUESTÃO AMBIENTAL E COLETIVO DE PENSAMENTO

 

Munir Jorge Felicio[1]

 

 

RESUMO: Para ampliar a compreensão das problemáticas ambientais atuais, este texto reúne as análises interpretativas de dois documentos, os quais, por possuírem perspectivas distintas, contribuem significativamente com o estudo da teoria fleckiana. São dois coletivos de pensamento desenvolvendo práticas científicas com intencionalidades advindas das opções teóricas e políticas, configurando um processo dinâmico de produção de conhecimento. A essência de cada um desses coletivos de pensamento consiste na ampliação e na disseminação da ideia transpessoal, por ela não pertencer, de forma exclusiva, a nenhum dos componentes do coletivo. Propiciar a troca constante de concepções interna e externamente impulsiona o conhecimento científico, cuja evolução depende do processo coletivo em que o pensamento se desenvolve por vínculos e interferências engendradas pelo condicionamento social.

PALAVRAS-CHAVE: Coletivo de pensamento. Questão ambiental. Processo de conhecimento. Estilo de pensamento. Teoria fleckiana.

 

 

 

 

Introdução

Tão ampla quanto as problemáticas ambientais são as interpretações que emergem por causa das intencionalidades e perspectivas com tendências distintas: para defender a manutenção ou para alterar a ordem existente. Dentre as diversas interpretações ocorridas durante o primeiro semestre de 2015, duas apontaram direcionamentos diferentes, configurando o que Fleck (2010) denomina coletivo de pensamento. A proposta deste texto consiste em discutir tais interpretações, almejando ampliar a compreensão sobre as problemáticas ambientais, a partir da teoria fleckiana e da concepção de questão ambiental como a que emerge do uso desproporcional dos recursos naturais, por entender, ainda, como se fossem recursos ilimitados.

Fleck (2010) afirma:

Se definirmos o “coletivo de pensamento” como a comunidade das pessoas que trocam pensamentos ou se encontram numa situação de influência recíproca de pensamentos, temos, em cada uma dessas pessoas, um portador do desenvolvimento histórico de uma área de pensamento, de um determinado estado do saber e da cultura, ou seja, de um estilo especifico de pensamento. (FLECK, 2010, p. 82, grifo do autor).

 

As duas interpretações compõem as análises redigidas em formato de dois manifestos divulgados por intermédio dos links www.ecomodernism.org/manifesto e www.uccsnal.org. O Manifesto Eco Modernista reúne as análises de diversos pesquisadores, nas quais emergem interpretações sobre a questão ambiental e sobre o desenvolvimento histórico das problemáticas ambientais, os seus desdobramentos e as suas perspectivas, configurando uma comunidade de pesquisadores interligados por um coletivo de pensamento. O outro manifesto é o UCCSNAL: Documento Constitutivo da União dos Pesquisadores Comprometidos com a Sociedade e a Natureza da América Latina. Nele, estão registradas as análises de diversos pesquisadores e seus posicionamentos sobre o desenvolvimento da ciência e, principalmente, sobre a imbricação da questão ambiental como parte do desenvolvimento científico, constituindo outro coletivo de pensamento. Portanto, são dois coletivos distintos de pensamento, por se manifestarem de formas diferentes sobre o mesmo assunto.

As problemáticas ambientais e o desenvolvimento científico e tecnológico estão presentes nas análises dos dois documentos, porém, com abordagens, proposições e temáticas próprias, advindas de práticas científicas com intencionalidades distintas. Em cada um dos manifestos, aparecem significações provenientes das opções teóricas e políticas reunidas pelos dois coletivos de pensamento. Trata-se de dois coletivos diferentes, produzindo conhecimentos oriundos de ideias coletivas, num processo de conhecimento dinâmico, como será visto a seguir. A pretensão deste texto visa a conhecer e analisar tais distinções, almejando discutir as problemáticas ambientais, a partir da teoria fleckiana, para verificar seu alcance e limite científico. Na primeira parte, o texto discute o processo do conhecimento, em que todo estado do saber depende do contexto e sofre interferências do condicionamento social. A segunda parte aborda o coletivo de pensamento, cuja gênese se origina na troca de ideias entre pessoas vinculadas por um estilo específico de pensamento. Na terceira parte, demonstra a importância do tráfego intracoletivo de pensamento, no qual as trocas de saber transitam dentro do coletivo de pensamento, impulsionando o seu desenvolvimento, ao ampliar suas abordagens.

 

Do processo do conhecimento

Para Fleck (2010), o processo do conhecimento não se estabelece pela relação entre sujeito e objeto, mas se desenvolve mediante vínculos e interferências nascidas do condicionamento social, em que

algo já conhecido influencia a maneira do conhecimento novo; o processo do conhecimento amplia, renova e refresca o sentido do conhecido. Por isso, o processo do conhecimento não é o processo individual de uma “consciência em si” teórica; é o resultado de uma atividade social, uma vez que o respectivo estado do saber ultrapassa os limites dados a um indivíduo. (FLECK, 2010, p. 81-82).

 

Os vínculos e as interferências do condicionamento social fazem parte do coletivo de pensamento e do estilo de pensamento, os quais constituem um sistema de opinião fechado – mesmo que não totalmente – pois não é o indivíduo isoladamente, mas a comunidade quem pensa nele. O estado do saber é sempre dependente do contexto e a ele subsumido pelas influências engendradas por intermédio dos vínculos, no interior da comunidade, constituindo-se num sistema harmonioso de conhecimento. Conhecer, para Fleck (2010, p. 83), significa,

em primeiro lugar, constatar os resultados inevitáveis sob determinadas condições dadas. Estas condições correspondem aos acoplamentos ativos, formando aquilo que é percebido como realidade objetiva. O ato da constatação compete ao indivíduo. Os três fatores que participam do processo de conhecimento, a saber, o individuo, o coletivo e a realidade objetiva (aquilo que é para ser conhecido), não são seres metafísicos: também são passíveis de análise, isto é, há ainda outras relações entre eles.

 

O vínculo do indivíduo com o coletivo de pensamento se efetiva através do estilo de pensamento o qual o indivíduo exerce, sem “nunca, ou quase nunca” estar consciente dele, como quer Fleck (2010, p. 84). Todavia, esse mesmo estilo “exerce uma força coercitiva em seu pensamento e contra a qual qualquer contradição é simplesmente impensável” (FLECK, 2010, p. 84). É o coletivo de pensamento que determina “o que não pode ser pensado de outra maneira” (FLECK, 2010, p. 80). E, por ser o trabalho científico essencialmente um trabalho coletivo, surge

um sistema fechado e harmonioso, dentro do qual a origem lógica de determinados elementos não pode mais ser encontrada. Alguma coisa resta de qualquer proposição: a solução ou o problema, mesmo se for apenas como problema da racionalidade do problema. Cada formulação de um problema já contém em si a metade de sua solução. Qualquer verificação futura sempre voltará apenas nos trilhos mentais existentes: nunca o futuro se livra totalmente do passado – normal ou anormal – a não ser que aquele rompa com este a partir das próprias leis de sua estrutura especifica de pensamento. (FLECK, 2010, p. 80-81).

 

A ruptura e a construção da estrutura específica de pensamento, conforme entende Fleck (2010), no processo de conhecimento, serão utilizadas, mais adiante, para ampliar a compreensão sobre as análises dos dois manifestos, no que se refere ao trabalho científico e, dentro desse, verificar a importância que cada manifesto elege, como essencial, para interpretar as causas e consequências das problemáticas ambientais atuais. Por ora, é importante constatar que as análises contidas nos dois manifestos constituem, segundo a teoria fleckiana, duas racionalidades distintas, as quais impulsionam o desenvolvimento de dois coletivos de pensamento, com proposições, características e componentes diferentes.

A ruptura e a construção da estrutura específica de pensamento ocorreram, no passado, por intermédio da confrontação efetiva aplicada entre dois coletivos de pensamento, cujas análises estão registradas na obra de Marx (1979) denominada Miséria da filosofia. Os dois coletivos de pensamento foram construídos tendo como ponto nodal as análises de Proudhon e Marx. Emergem do coletivo de pensamento da social democracia francesa as características, proposições e componentes da economia política burguesa de Proudhon, com as quais há interpretações, por exemplo, sobre a gênese do valor de uso e do valor de troca. O outro coletivo de pensamento é desenvolvido por Marx, cujas interpretações são impulsionadas pela racionalidade crítica da ciência social, integrando o coletivo de pensamento do movimento operário internacional.

Ao se deparar com as análises construídas pelos dois teóricos da obra Miséria da filosofia, como também dos dois manifestos a serem compreendidos mais adiante, é importante ressaltar que a gênese das interpretações é oriunda de ideias coletivas, às quais subsumem as ideias individuais. Para Fleck (2010), o coletivo de pensamento exerce uma coerção definida de pensamento advinda da vinculação do saber individual ao coletivo, pois “qualquer elemento ativo do saber corresponde um contexto coercitivo” (FLECK, 2010, p. 131).

A organização do processo de conhecimento visa à construção de um edifício de conhecimentos, porque “o portador do saber é um coletivo bem organizado, que supera de longe a capacidade de um indivíduo” (FLECK, 2010, p. 85). Essa organização exige uma estrutura social interligada harmonicamente, com “divisão de trabalho, colaboração, trabalhos preparativos, assistência técnica, troca de ideias, polêmicas etc. [...]. Há uma hierarquia científica, grupos, adeptos e adversários, sociedades e congressos, periódicos, instituições de intercâmbio etc.” (FLECK, 2010, p. 85).

O edifício de conhecimentos, como resultado do trabalho do coletivo de pensamento, exerce coerção individual e altera as concepções pessoais, interferindo e modificando o modo de perceber e de agir da pessoa, por intermédio do desenvolvimento do estilo de pensamento. Trata-se de um processo de conhecimento como atividade humana, por excelência, dependente das condições sociais a partir da linguagem. É exatamente dela a gênese do vínculo seminal e com ela se estabelece o acoplamento social. A linguagem engendra o que Fleck (2010) denominou circuito dos pensamentos:

Os pensamentos circulam de indivíduo a indivíduo, sempre com alguma modificação, pois outros indivíduos fazem outras associações. A rigor, o receptor nunca entende um pensamento da maneira como o emissor quer que seja entendido. Após uma série dessas peregrinações, não sobra praticamente nada do conteúdo original. De quem é o pensamento que continua circulando? Nada mais é do que um pensamento coletivo, um pensamento que não pertence a nenhum indivíduo. Não importa se os conhecimentos são verdadeiros ou errôneos do ponto de vista individual, se parecem ser entendidos corretamente ou não – peregrinam no interior da comunidade, são lapidados, modificados, reforçados ou suavizados, influenciam outros conhecimentos, conceituações, opiniões e hábitos de pensar. Após vários rodeios dentro de uma comunidade, muitas vezes um conhecimento retorna ao seu autor inicial – e até ele o vê com outros olhos, não o reconhece como sendo seu ou, o que acontece com frequência, acredita tê-lo visto na forma atual desde o início. (FLECK, 2010, p. 85-86).

 

O coletivo de pensamento consiste num pensamento que permanece circulando, sem pertencer, exclusivamente, a nenhum sujeito especificamente e, por isso mesmo, exerce influências sobre a maneira de pensar, ao obstaculizar que a pessoa pense isoladamente. Coercitivamente, não é a pessoa que pensa, mas a comunidade pensa nele. Sem esse condicionamento social e sem esse vínculo, cada vez mais estreito, entre o estilo de pensamento como subsunção ao coletivo de pensamento, o processo de conhecimento seria, praticamente, impossível, como explica Fleck (2010):

Todos esses motivos ganham importância para a teoria do conhecimento, uma vez que todo o acervo de conhecimentos e a interação mental coletiva influenciam cada ato de conhecimento que, sem eles, seria, em princípio, impossível. Qualquer teoria do conhecimento que não leva em conta esse condicionamento social de todo conhecimento é uma brincadeira. Quem, entretanto, considera o condicionamento social como um mal necessário, como uma lamentável imperfeição humana a ser combatida, não sabe que, sem esse condicionamento, o conhecimento simplesmente não é possível, e – eu diria ainda – que a palavra “conhecer” somente ganha um significado no contexto de um coletivo de pensamento. (FLECK, 2010, p. 86).

 

A linguagem, o envolvimento, as influências formam os vínculos necessários para a constituição do coletivo de pensamento. O surgimento do coletivo de pensamento se configura a partir da troca de ideias entre pessoas. Emerge entre elas o que se pode chamar de conjunto de condições, o qual realiza atrações recíprocas num envolvimento que nenhuma delas consegue captar isoladamente:

A duração maior desse estado gera, a partir de uma compreensão comum e de mal-entendidos mútuos, uma formação de pensamento que não pertence a nenhum dos dois, mas que faz todo sentido. Quem é seu portador e autor? O pequeno coletivo de duas pessoas. Quando um terceiro a eles se une, ele faz a atmosfera anterior desaparecer e com ela a força criativa particular do coletivo anterior; nasce um novo coletivo de pensamento. (FLECK, 2010, p. 87).

 

Um exemplo do desenvolvimento desses pequenos coletivos de pensamento pode ser conhecido na obra de Heisenberg. Nas etapas do desenvolvimento da física atômica descritas por Heisenberg, no livro A parte e o todo (2011), há inúmeros relatos dos encontros e conversas sobre física, filosofia, religião e política, cujo conteúdo ilustra, de forma exemplificativa, as fases do surgimento de um coletivo de pensamento. Na troca de ideias entre Heisenberg e Einstein sobre a economia de pensamento como exigência do processo de conhecimento, emergem as descrições sobre a formação do processo científico. Na apreciação de ambos, a formação das teorias científicas é resultado de uma determinada ordenação pela unidade dos fenômenos até descrevê-los de modo simples. Afirma Einstein que “inferir conceitos e coisas a partir das impressões sensoriais é um dos pressupostos básicos de todo o nosso pensamento. Logo, se não quiséssemos falar de nada além de impressões sensoriais, teríamos de nos livrar da linguagem e do pensamento.” (HEISENBERG, 2011, p. 80-81).

À medida que um grande número de personalidades de diferentes extratos sociais e distintas formações científicas se interconecta, por intermédio da troca de ideias, um determinado edifício de conhecimentos se consolida de tal maneira que a sua totalidade e unidade é “até mais estável e mais coerente que o chamado indivíduo, que se constrói a partir de impulsos contraditórios” (FLECK, 2010, p. 87). É de extrema importância e profundamente profícuo uma personalidade pertencer a vários coletivos de pensamento, segundo esclarece Fleck (2010, p. 88):

Tanto o indivíduo pode ser estudado do ponto de vista coletivo, quanto o coletivo do ponto de vista individual, sendo que, em ambos os casos, tanto a especificidade da personalidade individual quanto da totalidade coletiva somente se tornam acessíveis com o uso dos métodos adequados. [...] Não se pretende dizer que o indivíduo não teria importância como fator de conhecimento. Sua fisiologia sensorial e sua psicologia certamente são muito importantes, mas somente o estudo da comunidade de pensamento confere estabilidade à teoria do conhecimento.

 

A importância do indivíduo como fator de conhecimento consiste de ser ele o ponto nodal do estilo de pensamento. Encontra-se nele a totalidade das disposições mentais para pensar de uma maneira e não de outra. Trata-se da coerção definida de pensamento advinda das configurações sociais e das influências do contexto histórico. Apesar de cada indivíduo interpretar a realidade à sua maneira, a origem do seu pensamento não está nele, mas no meio social e na atmosfera social, já que a gênese das interpretações é oriunda de ideias coletivas. Por conseguinte, o processo de conhecimento é impulsionado pelo coletivo de pensamento, cujas nuances serão analisadas a seguir.

 

Do coletivo de pensamento

Fleck (2010, p. 154) designa “o portador comunitário do estilo de pensamento como coletivo de pensamento”. A troca de ideias entre as pessoas consiste na gênese do coletivo de pensamento e, no processo do conhecimento, o estilo de pensamento exerce coação, ao definir “o que não pode ser pensado de outra maneira” (Fleck, 2010, p. 150), estabelecendo os limites do coletivo de pensamento. Por conseguinte, o estilo de pensamento forma o coletivo e o coletivo de pensamento orienta, direciona e conduz o estilo, conforme ressalta Fleck (2010, p. 154):

Sempre temos um coletivo de pensamento, quando duas ou mais pessoas trocam idéias; são coletivos momentâneos ou casuais de pensamento, que aparecem e desaparecem a cada momento. No entanto, neles também surge uma predisposição (Stimmung) peculiar, de que nenhum dos envolvidos consegue apoderar-se de outra maneira, mas que volta com frequência assim que determinadas pessoas se reúnem. Além desses coletivos casuais e momentâneos de pensamento, há os estáveis, ou relativamente estáveis: formam-se, principalmente, em torno de grupos socialmente organizados. Quando um grupo maior existe por um tempo suficientemente longo, o estilo de pensamento se fixa e ganha uma estrutura formal. (Grifo do autor).

 

Na organização do coletivo de pensamento, as estruturas que se efetivam pelo uso da forma e do conteúdo se soerguem, com o objetivo de fechar cada coletivo de pensamento, cercando-o como se definisse e determinasse um mundo particular, como procura esclarecer Fleck (2010, p. 155):

Os coletivos estáveis de pensamento permitem uma análise mais precisa do estilo de pensamento e das propriedades sociais gerais em suas relações recíprocas. Essas comunidades estáveis (ou relativamente estáveis) de pensamento, assim como outras comunidades organizadas, cultivam um certo fechamento na forma e no conteúdo. Dispositivos legais e costumários, linguagens específicas, em alguns casos, ou pelo menos um vocabulário peculiar, fecham a comunidade de pensamento formalmente, mesmo se não for de maneira absoluta.

 

O coletivo de pensamento se constitui a partir do estilo específico de pensamento e não está adstrito nem a um grupo fixo e nem à classe social. É momentâneo ou casual, estável ou relativamente estável e, historicamente, aparece e desaparece. A racionalidade econômica como estilo de pensamento impulsiona, pelo menos desde a Revolução Industrial, o coletivo de pensamento que defende a tese segundo a qual não há alternativas ao modelo de desenvolvimento engendrado, historicamente, pelo e com o modo capitalista de produção. O melhor a fazer consiste em adaptar-se a ele, contribuindo com sua manutenção. Os pesquisadores desse coletivo estão convencidos de que a adaptação a esse sistema é quase inexorável. Esse estilo de pensamento se encontra disseminado por todo o corpo do Manifesto Eco Modernista.

A racionalidade ambiental como estilo de pensamento, distinto do anterior, impulsiona, pelo menos desde o período compreendido entre as duas guerras mundiais, o coletivo de pensamento que defende a tese para a qual o futuro da sobrevivência humana dependerá da criação de alternativas críveis e viáveis para a construção de outro modelo de desenvolvimento. A construção desse modelo dependerá da participação ativa e utópica, como condição para vislumbrar novos horizontes e engendrar uma nova ciência, não reducionista e nem funcional, por não se desenvolver atrelada e dependente dos poderes econômicos. Esse estilo de pensamento se encontra disseminado por todo o corpo do Manifesto da UCCSNAL.

Ao analisar as distinções entre os dois coletivos de pensamento, pela leitura de ambos os manifestos, torna-se importante ressaltar que suas proposições, características e componentes como estilo de pensamento são mais bem compreendidos por meio do condicionamento do pensamento advindo da comunidade social da qual fazem parte. Há claramente “uma vinculação do saber ao coletivo de pensamento, uma coerção social exercida no pensamento” (FLECK, 2010, p. 110):

O estilo de pensamento não é apenas esse ou aquele matiz dos conceitos e essa ou aquela maneira de combiná-los. Ele é uma coerção definida de pensamento e mais: a totalidade das disposições mentais, a disposição para uma e não para outra maneira de perceber e agir.

 

Fleck (2010) enfatiza que, quando um ser humano pensa, é a comunidade que pensa nele. Desse modo, a origem do pensamento vem de fora para dentro, vem das influências do coletivo, porque, no processo de conhecimento, os pensamentos circulam entre os indivíduos:

Gumplowicz se pronunciou de maneira muito marcante sobre a importância do coletivo: “O maior erro da psicologia individualista é a suposição de que o homem pensa. Desse erro decorre a eterna busca da origem do pensamento no indivíduo e das causas pelas quais ele pensa assim e não de outra maneira. A partir daí, os teólogos e filósofos fazem considerações, ou até dão conselhos, sobre como o homem deveria pensar. É uma cadeia de erros. Em primeiro lugar, aquilo que pensa no homem não é ele, mas sua comunidade social. A origem do seu pensamento não está nele, mas no meio social onde vive, na atmosfera social na qual respira, e ele não tem como pensar de outra maneira a não ser daquela que resulta necessariamente das influências do meio social que se concentram no seu cérebro”. (FLECK, 2010, p. 89-90, grifo do autor).

 

Desde a Revolução Industrial, está em pleno desenvolvimento um estilo de pensamento dinamizado pelas disposições mentais advindas da racionalidade econômica, fortalecendo o vínculo desse estilo de pensamento. A origem da racionalidade econômica se encontra no meio social, na cultura burguesa desenvolvida pelo mercado e pela mercadoria, cuja atmosfera social valoriza o desenvolvimento tecnológico, a produtividade em escala, a cooptação das estruturas públicas e a subordinação estrutural e hierárquica do trabalho ao capital.

A esse estilo de pensamento se denominou pensamento único, por causa das influências e dos vínculos dessa atmosfera social em que o consumidor vive e respira e, por conseguinte, “não tem como pensar de outra maneira”, como quer Fleck (2010, p. 90, grifos no original). É importante ressaltar também que, “quanto mais elaborada uma área de conhecimento, quanto mais desenvolvida, tanto menores as diferenças de opinião” (FLECK, 2010, p. 132). A coerção exercida sobre a mente do consumidor recai também sobre a mente do pesquisador, por intermédio do pensamento fetichizado, segundo descreve e explica Coutinho (2010, p. 40):

Na gênese do pensamento fetichizado, particularmente das correntes ligadas ao que designamos como “miséria da razão”, situa-se ainda outro fenômeno da maior importância. Pensamos na tendência da economia capitalista no sentido de burocratizar todas as atividades humanas, desde as econômicas e políticas até as mais refinadamente “espirituais”.

 

Desde o período entre as duas guerras mundiais, outro estilo de pensamento se encontra em construção, pois, como assevera Fleck (2010, p. 153), “cada descoberta é, na verdade, a recriação do mundo inteiro de um coletivo de pensamento”. Trata-se de uma nova estrutura universal do coletivo de pensamento em torno de uma ideia científica, a partir da qual “forma-se um pequeno círculo esotérico e um círculo exotérico maior de participantes do coletivo de pensamento” (FLECK, 2010, p. 157). A racionalidade ambiental possui sua raiz remota no desenvolvimento do pensamento sistêmico, na primeira metade do século XX. Segundo Capra (1996, p. 46), “por volta da década de 30, a maior parte dos critérios de importância-chave do pensamento sistêmico tinha sido formulada pelos biólogos organísmicos, psicólogos da Gestalt e ecologistas”.

Cada vez mais dinâmica e eficaz, a disputa entre esses dois coletivos de pensamento registra debates que já ultrapassaram um século, construindo ciência e interpretando os acontecimentos com perspectivas próprias e distintas. Como coletivo de pensamento, os ecomodernistas impulsionaram, através do manifesto, o avanço da racionalidade econômica, cujas perspectivas se enquadram perfeitamente em plena sintonia com a expansão do modo de produção capitalista, seu modelo de desenvolvimento social e demais desdobramentos.

O manifesto dos ecomodernistas não trata da crise de civilização e nem da crise de conhecimento, das quais a questão ambiental é parte constitutiva, guardando, com ambas, interconexões complexas e inerentes, cuja compreensão é imprescindível fora desses contornos. Utilizaram apenas uma vez os conceitos capitalismo e violência, e, mesmo assim, por força da lógica contextual. E não há, no documento, uma análise da estrutura social e tampouco a busca da gênese do capitalismo e da violência, bem como dos seus desdobramentos.

Conceitos como propriedade privada, luta de classe e conflitualidade não são utilizados para interpretar a realidade atual e muito menos as problemáticas ambientais. Os referenciais teóricos presentes nas análises dos ecomodernistas se distanciam, consideravelmente, se comparados aos adotados pelos pesquisadores que assinaram o manifesto da UCCSNAL. Por conseguinte, o fluxo de ideias entre os dois coletivos é diminuto ou quase inexistente, pois, “quanto maior a diferença entre dois estilos de pensamento, tanto menor o tráfego de pensamentos” (FLECK, 2010, p. 160). Os conceitos rejeitados pelos ecomodernistas são considerados exatamente como os mais importantes e centrais para os pesquisadores da UCCSNAL.

Os pesquisadores da UCCSNAL, reunidos em Rosário, na Argentina, impulsionaram, por intermédio do documento publicado, o avanço da racionalidade ambiental. E, pelo dinamismo desse coletivo de pensamento, expressaram suas preocupações com a expansão e a gravidade da questão ambiental como parte inerente da crise de civilização e do exercício do poder, mediante o uso da violência. Para eles, há uma crise civilizatória global

sin precedentes en todas las esferas de las actividades humanas a la que nos ha llevado el capitalismo y modelos similares que fragmentan al hombre de la naturaleza, cuyas principales manifestaciones son una inequidad socioeconómica que no cesa de profundizarse, el creciente ejercicio del poder mediante la violencia, el avasallamiento de la diversidad biológica y cultural, y un sinnúmero de desajustes ambientales. (UCCSNAL, 2015, p. 1).

 

As problemáticas ambientais na América Latina e no globo se configuram pela expansão do extrativismo e do agronegócio projetado e executado para fazer avançar o capital sobre os territórios e os seus habitantes, submetendo-os a um incessante processo de expropriação, exploração e exclusão. Luxemburg (1985, p. 246) assinala que “é somente o capital dotado dos respectivos meios técnicos que consegue executar a mágica de criar revoluções tão maravilhosas em tão curto tempo”, fazendo prosperar a produção capitalista, desconhecendo e não admitindo que se coloquem limites ao seu desenvolvimento, porque “tem de poder dispor de forma ilimitada de toda força de trabalho do globo inteiro, para com ela pôr em movimento todas as forças produtivas da face da Terra, na medida que os limites da produção da mais-valia o permitam”. (LUXEMBURG, 1985, p.249)

O inseparável imperativo da dominação do mais fraco pelo mais forte aparece nas análises de Sen (2008), o qual esclarece melhor o que ele classificou como “mundo de opulência” e de “mundo de privação”:

Vivemos em um mundo de opulência sem precedentes, de um tipo que teria sido difícil até mesmo imaginar um ou dois séculos atrás. Também tem havido mudanças notáveis para além da esfera econômica. O século XX estabeleceu o regime democrático e participativo como o modelo preeminente de organização política. [...]. Entretanto, vivemos igualmente em um mundo de privação, destituição e opressão extraordinárias. Existem problemas novos convivendo com antigos – a persistência da pobreza e de necessidades essenciais não satisfeitas, fomes coletivas e fome crônica muito disseminadas, violação de liberdades políticas elementares e de liberdades formais básicas, amplas negligencia diante dos interesses e da condição de agente das mulheres e ameaças cada vez mais graves ao nosso meio ambiente e à sustentabilidade de nossa vida econômica e social, (SEN, 2008, p. 9).

 

É outra a interpretação construída pelos ecomodernistas. Em suas análises, defendem a tese segundo a qual essa mesma humanidade se encontra, desde o século XX, numa etapa histórica denominada período do “bom antropoceno”. No manifesto há a compreensão de que o conhecimento e a tecnologia são suficientes para assegurar, não só o necessário, mas tudo o que for preciso para promover vida melhor para todas as pessoas e proteger os recursos naturais. Sustentam os ecomodernistas:

As scholars, scientists, campaigners, and citizens, we write with the conviction that knowledge and technology, applied with wisdom, might allow for a good, or even great, Anthropocene. A good Anthropocene demands that humans use their growing social, economic, and technological powers to make life better for people, stabilize the climate, and protect the natural world. (AN ECOMODERNIST…, 2015, p. 6).

 

Para esse coletivo de pensamento que impulsiona a racionalidade econômica, a, utilização do crescente poder social, econômico e tecnológico é suficiente para solucionar a questão ambiental. Os ecomodernistas entendem que essa perspectiva tem demonstrado um enorme dinamismo histórico, pois, nos dois últimos séculos, um enorme contingente populacional ficou definitivamente livre da insegurança, da miséria e da servidão. Para eles, “uma grande quantidade de seres humanos, historicamente, tanto em percentual, quanto em termos absolutos, foram libertados da insegurança, da penúria e da servidão” (AN ECOMODERNIST..., 2015, p. 9). “Historically large numbers of humans – both in percentage and absolute terms – are free from insecurity, penury, and servitude.” (AN ECOMODERNIST…, 2015, p. 9).

O manifesto da UCCSNAL interpreta essa mesma realidade de outra maneira. Entre o crescente poder social, econômico e tecnológico houve, historicamente, uma junção tão fortemente interconectada com a qual se consolidou, num pacto tácito ou explícito. Dele participou – e ainda participa – inclusive o poder político, através da cooptação das estruturais organizacionais das instituições públicas, para fazer avançar a expansão global do mercado. As barreiras clássicas limitadoras cujas funções também disciplinavam o mercado foram e ainda estão sendo eliminadas, cada vez mais, a fim de criar ou expandir espaços para o processo de mercantilização.

Na medida em que se expande, a mercantilização engendra, necessária e obrigatoriamente, a exclusão das outras formas alternativas de produção material e, principalmente, a produção de alimentos de primeira necessidade. Isso expulsa, elimina ou exclui um enorme contingente populacional, impondo, em todos os rincões do globo, a insegurança alimentar geradora de fomes coletivas. A miséria, a privação e a opressão se configuram como resultado da mecânica estrutural da expansão global, de acordo com Ploeg (2008):

O Império é um conjunto de redes mais ou menos interconectadas, cada uma das quais orientada para o planejamento e controle de grandes segmentos da sociedade. Uma das características centrais do Império é que ele estrutura e reestrutura cada vez mais as práticas concretas nestes segmentos. Através do controle sobre os mecanismos de acesso, o Império torna cada vez menos possível reproduzir práticas (e as unidades diretamente envolvidas) que estejam fora de sua esfera. Tudo se subjuga a ele – ou seja, a lógica introduzida pelo Império penetra e reina quase por toda a parte. (PLOEG, 2008, p. 112, grifo do autor).

 

A hegemonia do capital obstaculiza a reprodução de práticas sobre as quais o próprio capital perde ou, de qualquer maneira, não consegue obter controle e o domínio pleno sobre elas. Essa hegemonia se consolida, historicamente, por intermédio de dois processos complementares e interconexos: o processo da industrialização e o da urbanização. No início, o capital reuniu seus recursos para desenvolver a indústria e, com ela, produzir mercadoria. Ao solucionar sua dependência das manufaturas artesanais, retirou a indústria do campo e a instalou na cidade, desenvolvendo, a partir dela, uma espécie de ímã. Por causa das pressões do próprio capital, um contingente cada vez maior deixa o campo e se dirige para as áreas urbanas, aumentando a oferta de mão de obra para atender à demanda industrial e, simultaneamente, abrir espaço no campo para o capital desenvolver o que alguns teóricos chamam de agricultura superior, visando ao abastecimento de matéria-prima para as indústrias.

Com a amplificação do comércio, em função do aumento da produtividade industrial, emerge o dinheiro como intermediação de troca, mercantilizando as relações sociais com intensidade crescente e abrangente. De cunho positivista, as análises ecomoderstistas enaltecem esse processo de urbanização como responsável pela acomodação de mais da metade da atual população mundial. Exaltam a vida urbana como a forma de vivência ideal e perfeita, em que as relações sociais atingem seu ápice, devido aos valores da convivência urbana, principalmente no que se refere às comodidades e da excelência da qualidade de vida. Da população urbana, a maioria não tem acesso a essa excelência. Muito pelo contrário. Todavia, o manifesto é enfático:

Cities occupy just one to three percent of the Earth’s surface and yet are home to nearly four billion people. As such, cities both drive and symbolize the decoupling of humanity from nature, performing far better than rural economies in providing efficiently for material needs while reducing environmental impacts. (AN ECOMODERNISM…, 2015, p. 12).

 

As relações mecânicas destacadas pelos ecomodernistas justificam a necessária desconexão do ser humano com a natureza, ao estabelecer a excelência da economia urbana, pelo fato de ela poder e saber satisfazer melhor, e mais eficientemente, o consumo, através das trilhas da circulação, quando engendra alterações em todas as direções, como explica Santos (2006, p. 16):

A circulação ganha sobre a produção o comando da explicação, porque ganha sobre a produção o comando da vida. E essa lei se estende aos lugares. Quanto maior a complexidade das relações externas e internas, mais necessidades de regulação; e se levanta a necessidade de Estado; o Estado e os limites, o Estado e a produção, o Estado e a distribuição, o Estado e a garantia do trabalho, o Estado e a garantia da solidariedade e o Estado e a busca da excelência na existência.

 

A interpretação estabelecida pelas análises contidas no manifesto da UCCSNAL ressalta que a economia urbana não só suplantou a economia rural, como também avança com rapidez e profundidade, para destruir os componentes dos sistemas de vida rural. O crescimento da urbanização implica, necessária e obrigatoriamente, o aumento de uma realidade insustentável pela majoração dos impactos sobre os recursos naturais. No entanto, afirma Alier (2007, p. 211-212) que

se quiséssemos poderíamos viver com base numa “agricultura orgânica” porque existem tecnologias que permitem alimentar a população mundial dispensando a utilização de combustíveis fósseis. Por outro lado, as cidades grandes e prósperas estão irremediavelmente baseadas no emprego de combustíveis e na externalização dos custos ambientais. Um mundo no qual a urbanização cresce é, por conseguinte, um mundo mais insustentável. Por definição, as cidades não são ambientalmente sustentáveis. Seu território abriga uma densidade de população demasiado alta para se autossustentar.

 

As análises de Santos (2006) e Alier (2007) configuram o que Fleck (2010, p. 158) denominou “tráfego intracoletivo de pensamento”. As duas análises compartilham também a compreensão sobre a temática desenvolvida no manifesto da UCCSNAL e corroboram solidariamente o coletivo de pensamento, do qual fazem parte. Lembra Fleck (2010, p. 159) que, “quanto mais especializada, quanto mais restrita em seu conteúdo uma comunidade de pensamento é, tanto mais forte a vinculação de pensamento específica dos membros: ela ultrapassa as fronteiras da nação e do Estado, da classe e da idade”.

 

Tráfego intracoletivo de pensamento

As regras gerais do tráfego intra e intercoletivo de pensamento, juntamente com os círculos esotéricos e exotéricos, constituem os componentes fundamentais da estrutura geral do coletivo de pensamento. Desse arcabouço orgânico emerge a força coercitiva para condicionar qualquer observação independente de sua singeleza ou simplicidade. As trocas de saber que transitam dentro do coletivo de pensamento, por intermédio dessas observações, constituem a vinculação de pensamento, porque “a tendência geral do trabalho de conhecimento é, portanto: um máximo de coerção de pensamento (Denkzwang) com um mínimo de pensamento baseado na própria vontade” (FLECK, 2010, p. 144, grifo do autor).

A estrutura universal do coletivo de pensamento

consiste no seguinte: em torno de qualquer formação de pensamento, seja um dogma religioso, uma idéia cientifica ou um pensamento artístico, forma-se um pequeno círculo esotérico e um círculo exotérico maior de participantes do coletivo de pensamento. Um coletivo de pensamento consiste em muitos desses círculos que se sobrepõem, e um indivíduo pertence a vários círculos exotéricos e a poucos círculos esotéricos. Existe uma hierarquia gradual de iniciação e muitos fios que ligam tanto cada um dos níveis, quanto os diversos círculos. O círculo exotérico não possui uma relação imediata com aquela formação de pensamento, mas apenas através da intermediação do círculo esotérico. A relação da maioria dos participantes do coletivo de pensamento com as formações do estilo de pensamento reside, portanto, na confiança nos iniciados. Mas até esses iniciados não são, de maneira alguma, independentes: dependem mais ou menos, de maneira consciente ou inconsciente, da “opinião pública”, isto é, da opinião do círculo exotérico. Dessa maneira surge, de modo geral, o fechamento interno do estilo de pensamento e sua tendência à persistência. (FLECK, 2010, p. 157).

 

A troca de saber percorre o coletivo de pensamento, visando a disseminar a ideia transpessoal, tanto através do conhecimento especializado quanto pelo saber popular. Em ambos, o objetivo consiste no desenvolvimento da dependência intelectual. O conhecimento especializado é resultado do trabalho dos indivíduos participantes do circulo esotérico e se caracterizam pela formação de um grupo seleto, restrito e hermético. Sua contribuição dentro do coletivo de pensamento consiste na formação do estilo de pensamento, principalmente para condicionar a visão de mundo, criando ou ampliando o sentimento de solidariedade.

O saber popular é resultado do trabalho dos indivíduos participantes do círculo exotérico que formam a opinião pública de caráter ilustrativo e simplificado. O círculo exotérico é o lugar do grande público, onde se propaga a ideia transpessoal por intermédio de repertório amplo e difuso. A vinculação de pensamento dos indivíduos se deve ao seu envolvimento em vários círculos exotéricos e a poucos círculos esotéricos. Quando, porém, dois participantes estão

em posição mentalmente igual do mesmo coletivo de pensamento, há sempre um certo sentimento de solidariedade de pensamento a serviço de uma ideia transpessoal, o que produz uma dependência intelectual recíproca entre os indivíduos e uma atmosfera (Stimmung) comum: nenhuma questão, uma vez levantada, pode permanecer, em princípio, sem efeito; cada uma é ponderada e ocupa seu lugar dentro do estilo de pensamento. Esse companheirismo gerado pela atmosfera comum (Stimmungskameradschaft) pode ser sentido após alguns enunciados e somente ele possibilita uma verdadeira compreensão, sendo que, sem ele, as pessoas apenas desconversam. (FLECK, 2010, p. 158, grifo do autor).

 

As constantes trocas de ideias entre os participantes dos círculos esotéricos e exotéricos fortalecem as formações de pensamentos, engendrando a dependência intelectual e impulsionando a ideia transpessoal, através do tráfego intracoletivo de pensamento, cuja vinculação ultrapassa as fronteiras étnicas e históricas, conforme entende Fleck (2010, p. 158):

Todo tráfego de pensamento intracoletivo (intrakollektiven Denkverkehr), portanto, é dominado por um sentimento específico de dependência. A estrutura geral do coletivo de pensamento faz com que o tráfego intracoletivo de pensamento – pelo fato sociológico em si, sem consideração pelo conteúdo e pela legitimação lógica – leva ao fortalecimento das formações de pensamento (Denkgebilde): a confiança nos iniciados, a dependência por parte destes da opinião pública, a solidariedade intelectual dos pares, que estão a serviço da mesma idéia, são forças sociais alinhadas que criam uma atmosfera comum especifica, proporcionando às formações de pensamento solidariedade e adequação ao estilo numa medida cada vez maior. Quanto maior ficar a distância temporal e especial do círculo esotérico, quanto mais durar a mediação de um pensamento dentro do mesmo coletivo de pensamento, tanto mais seguro se apresenta. Quando o vínculo data da educação intelectual da infância, ou até mesmo de uma tradição antiga de várias gerações, ela ganha uma firmeza inabalável. (Grifo do autor).

 

As análises de Santos (2006) e Alier (2007), dentro desse contexto, se configuram como tráfego intracoletivo de pensamento, fortalecendo, com suas análises e concepções, as formações de pensamento desse coletivo de pensamento. Tais formações são importantes por ressoar, reproduzir e reconduzir a disseminação da ideia transpessoal desenvolvida também pelas análises da UCCSNAL. A ideia transpessoal é a propositura do enfraquecimento e, se possível, da mutação no estilo de pensamento capitalista vigente, por ele instaurar as bases existenciais das quais depende a manutenção da atual ordem existente.

Essa ruptura paradigmática coloca as análises de Santos (2006) e Alier (2007) como se constituíssem círculos esotéricos dentro do coletivo de pensamento, por produzir saber especializado e, portanto, “quanto mais durar a mediação de um pensamento dentro do mesmo coletivo de pensamento, tanto mais seguro se apresenta.” (FLECK, 2010, p. 158). Essa segurança se faz presente no manifesto da UCCSNAL, ao interpretar e direcionar o coletivo de pensamento para diminuir a importância do pensamento único neoliberal e propor alternativas críveis e viáveis.

As alternativas estão visíveis nas formações de pensamento das análises da UCCSNAL, ao reconhecer a importância do embate advindo do enfrentamento e da resistência histórica das comunidades locais, dos povos indígenas, do campesinato e dos moradores das periferias, uma vez que, diante da expansão do capital,

son las comunidades locales, los pueblos indígenas, los campesinos y campesinas, los recolectores y recolectoras, los habitantes de las periferias de las ciudades, quienes se están enfrentando a la destrucción de sus sistemas de vida, a la ruptura de sus redes comunitarias y al acaparamiento de sus territorios, siendo ellos, al mismo tiempo, quienes con sus luchas, sus saberes ancestrales, sus ejemplos convivenciales y su concepción del buen vivir y su organización, los que siembran semillas emancipadoras para reconstruir los paradigmas necesarios para enfrentar estas crisis. (UCCSNAL, 2015, p. 1).

 

Os saberes ancestrais, os exemplos de convivência e a respectiva concepção de bem viver, ressaltados nas análises da UCCSNAL, constituem-se em formação de pensamento e fazem parte do tráfego intracoletivo de pensamento. Contribuem com a produção e a circulação da ideia transpessoal, ao se configurar em círculos exotéricos que, dentro do coletivo de pensamento, produzem conhecimento popular. Impulsionam, por conseguinte, a expansão no coletivo de pensamento da ideia transpessoal, indicando a importância da ruptura paradigmática por intermédio do necessário embate frontal, ao levantar barreiras, tentando limitar o avanço do capital. Tais concepções e interpretações são fundamentais como tráfego intracoletivo de pensamento, por ampliar e disseminar a dependência intelectual dentro do coletivo de pensamento.

Ocorre que essa rede de troca de saber construída pelas comunidades locais, povos indígenas, campesinato e moradores das periferias não possui a devida outorga científica da academia e, por essa razão, comumente é considerada como “anomalia irrelevante”. Trata-se de “práticas sem representação teórica [...]. Assim, elas não podem ser adequadamente compreendidas, o que normalmente leva à conclusão de que não existem”, como esclarece Ploeg (2008, p. 35, grifo do autor). Essas e outras discussões sobre a cientificidade carregam toda ordem de complexidades e, por conseguinte, desafiam a mente de pesquisadores das mais diversas áreas do saber, dentre os quais se destacam as análises construídas por Morin (2010).

Morin (2010, p. 59) entende que “a ciência é impura. A vontade de encontrar uma demarcação nítida e clara da ciência pura, de fazer uma decantação, digamos, do cientifico e do não-científico, é uma ideia errônea e diria também uma ideia maníaca.” Essa contribuição de Morin (2010) se configura como mais um importante tráfego intracoletivo de pensamento, por impulsionar a disseminação de outra ideia transpessoal: desfazer as bases da concepção de ciência hermeticamente fechada em si e determinista, destruindo e/ou obstaculizando os espaços do acaso e da incerteza.

A ciência concebida como estrada principal delimitada regularmente e que se estende sem lacunas é mais bem empregada para defender a manutenção da ordem existente e está indelevelmente comprometida com as corporações capitalistas. O processo de privatização do conhecimento torna a ciência cada vez mais “poderosa e maciça instituição no centro da sociedade, subvencionada, alimentada, controlada pelos poderes econômicos e estatais”, de acordo com Morin (2010, p. 19), também elucidadas pelas análises da UCCSNAL (2015, p. 1):

Sin embargo, la generación y uso del conocimiento científico tecnológico están cada vez más comprometidos con dar respuesta a las demandas de las corporaciones que impulsan el modelo que nos ha llevado a esta crisis y cada vez menos al servicio de los pueblos. La creciente tendencia a la privatización del conocimiento en desmedro de su uso público va en consonancia con una ciencia cada vez más funcional a los intereses del corporativismo capitalista (o gran capital), tendencia que se ve reflejada en el estímulo al patentamiento del conocimiento a nivel académico y en la creciente tendencia a la privatización de entidades públicas de investigación y de educación superior.

 

As formações de pensamento engendradas pelas análises da UCCSNAL (2015), as quais se somam às contribuições de Morin (2010), Ploeg (2008), Santos (2006) e Alier (2007), fortalecem e impulsionam o tráfego intracoletivo de pensamento, ampliando a compreensão do principal objetivo a ser construído pelo coletivo de pensamento: o desenvolvimento de “um edifício de conhecimentos”, como quer Fleck (2010, p. 115). Nesse edifício, a vinculação de pensamento incentiva o quanto possível a forma compulsiva de pensar e reduz ao mínimo necessário o pensamento engendrado pela vontade própria. Entre os círculos esotéricos e exotéricos há, de forma constante, a troca de saber, vinculando a dependência intelectual e difundindo a ideia transpessoal.

 

 

Considerações Finais

A aplicação da teoria fleckiana na análise das práticas científicas de dois coletivos de pensamento ampliou a compreensão de que um edifício de conhecimentos se manterá em nível mais elevado, à medida que propiciar a troca constante de ideias e concepções, interna e externamente. O conhecimento científico evolui essencialmente como um processo coletivo no qual o pensamento se instaura mediante vínculos e interferências engendradas historicamente no e pelo condicionamento social, pois é quase impossível o indivíduo pensar isoladamente.

O trabalho científico se desenvolve por intermédio da vinculação de pensamento que se efetiva e é impulsionado pelo estilo específico de pensamento, cuja função consiste em atrelar o indivíduo ao coletivo, um atrelamento exercido com coerção interna do estilo de pensamento, visando a direcionar, definir e delimitar a maior parte das disposições mentais do indivíduo, impossibilitando-o de perceber e agir de maneira diferente ou isoladamente. A dependência do contexto e a subsunção em relação aos vínculos, no interior do edifício de conhecimentos, se constituem num sistema harmonioso e dinâmico do saber.

 

 

Environmental Matter and Collective Thoughts

 

ABSTRACT: To broaden the understanding of current environmental issues this text meets the interpretive analysis of two documents which, because of their different perspectives, contribute significantly to the study of fleckiana theory. There are two collective thoughts of developing scientific practices with intentions arising from theoretical and political options by setting up a dynamic process of knowledge production.The essence of each of these collective thoughts consists of the expansion and spread of the transpersonal idea that it did not belong exclusively to any of the collective components. Providing a constant exchange of internal and external views drives scientific knowledge which then evolves, in terms of the collective process in which thought is developed by bonds and interference engendered by social conditioning.

KEYWORDS: Collective thoughts. Environmental issues. Knowledge process. Style of thinking. Fleckian theory.

 

 

 

 

Referências

 

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[1] Pesquisador credenciado na Cátedra UNESCO Educação do Campo e Desenvolvimento Territorial, Instituto de Políticas Públicas e Relações Institucionais (IPPRI), Universidade Estadual Paulista (Unesp), São Paulo, SP – Brasil.    ORCID: orcid.org/0000-0003-4725-3788    E-mail: munirjfelicio@gmail.com

Doutor em Geografia e mestre em Educação. Membro do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (NERA), Departamento de Geografia, Unesp - FCT - Campus de Presidente Prudente, SP.