Para uma Dialéctica constelar: theoDor W. aDorno à entraDa Do século XXI[1]

João Pedro Cachopo[2]

RESUMO: Interrogando-se sobre o lugar da filosofia de Theodor W. Adorno no âmbito do pensamento crítico contemporâneo, o presente artigo procura dar conta dos revezes da recepção político-filosófica da dialéctica negativa (das posturas críticas de Habermas, Lyotard ou Agamben às mais favoráveis de Jameson e Holloway) e discutir a sua relevância actual. Defender-se-á que a politização do pensamento adorniano é possível, muito embora as suas valências críticas não se restrinjam a essa possibilidade. Hoje, a dialéctica negativa funcionaria também como antídoto contra os atalhos tomados pelas correntes “voluntarista” (Peter Hallward), “messiânica” (Agamben) e “ontológica” (realismo especulativo) da filosofia, à entrada do século XXI. Contudo, atendendo a que a relação entre teoria e prática é complexa em Adorno, a sua relevância actual ressaltaria em relação com as reacções críticas que o movimento do “realismo especulativo” tem suscitado. Em diálogo com alguns dos seus interlocutores (Markus Gabriel e Adrian Johnston), sugere-se que o desenvolvimento de uma “dialéctica constelar” depende da introdução de um elemento destotalizador no seio do diagnóstico radical – a um só tempo materialista e transcendental – da dialéctica negativa.

PALAVRAS-CHAVE: Theodor W. Adorno. Dialéctica negativa. Crítica. Política. Constelação.

“O todo é o não-verdadeiro.” (ADORNO, 1951a/2003, p. 55)[3]. “A dialéctica é a ontologia da situação falsa.” (ADORNO, 1966/2003, p. 22). “É bárbaro escrever um poema depois de Auschwitz.” (ADORNO, 1951b/2003, p. 30). Eis algumas das formulações lapidares que granjearam a Theodor W. Adorno (1903-1969) uma reputação paradoxal. Por um lado, poucos questionam a radicalidade do gesto crítico adorniano; por outro lado, em virtude mais do que apesar do reconhecimento dessa radicalidade, paira sobre Adorno a suspeita – suspeita que muitos transformam em acusação – de ter permanecido distanciado da realidade que critica. Essa suspeita traduz-se, de forma mais ou menos implícita, na seguinte questão: é o diagnóstico crítico da dialéctica negativa, precisamente na medida em que reconhece o enraizamento profundo das contradições que atravessam a realidade histórica e social, compatível com a perspectiva da sua transformação? Independentemente de como se responda a essa questão, certo é que não se fará justiça à singularidade da obra de Adorno, amenizando em termos culturalistas ou sociologizantes – como fazem aqueles e aquelas que insistem nos tópicos da crítica da “indústria cultural” e da “cultura de massas” – a sua radicalidade. Desse ponto de vista, como o próprio Adorno (1966/2003, p. 191) afirmou, é provável que a reificação não passe de um epifenómeno.

No presente artigo, será sem perder de vista a questão acima enunciada – e cruzando-a com a da pertinência actual do pensamento de Adorno – que dialogaremos com alguns dos seus interlocutores póstumos, além de com outros autores cuja consideração se afigura imprescindível para debater os temas que o pensamento adorniano convoca e que o curso do tempo não tornou menos prementes.

Assim, após esboçarmos em traços gerais o panorama da recepção de Adorno desde a sua morte até aos dias de hoje (I), discutiremos as tentativas de reavaliar politicamente o pensamento crítico adorniano levadas a cabo por Fredric Jameson (1990) e, duas décadas mais tarde, por John Holloway, Fernando Matamoros e Sergio Tischler, editores de Negativity and Revolution: Adorno and Political Activism (2009) (II). Seguir-se-á uma apreciação mais detida do ponto de vista adorniano sobre a relação entre teoria e prática (III), da qual partiremos para mostrar como esta difere – e também por isso permite desconstruir – o impasse entre um certo “voluntarismo” (pensemos em Peter Hallward) e um certo “messianismo” (consideremos Agamben) que caracteriza a cena político-filosófica contemporânea (IV). Não deixando de ressalvar que Lyotard e Agamben estão menos longe de Adorno – enquanto críticos radicais da modernidade – do que dão a entender, chega-se por fim à questão crucial de saber até que pouco a radicalização do diagnóstico da dialéctica negativa não desemboca num sistema – o que nos conduzirá à hipótese de que só o conceito de constelação, por contraste com o de configuração, poderá impedir que tal aconteça (V). É o que tentaremos mostrar, não só no plano do diagnóstico crítico e em relação com a prática política, mas ainda no plano da acção filosófica – entendendo esta como intervenção crítica do pensamento sobre as suas próprias condições –, relacionando o conceito de constelação com os debates sobre o chamado “realismo especulativo” que têm marcado, desde há uma década, a discussão filosófica contemporânea (VI).

Em suma, mais do que revisitar a dialéctica negativa, trata-se de retomar o seu projecto à luz e em confronto com o presente, partindo do pressuposto de que só libertando-se de toda e qualquer doutrina, e confrontando-se com a profunda renovação do pensamento crítico contemporâneo, se poderá averiguar até que ponto a lâmina afiada do pensamento adorniano permanece capaz de rasgar novas perspectivas de análise e de acção, no mundo em que vivemos. i

Digamo-lo sem qualquer pejo: a pergunta que se nos impõe, praticamente meio século após a publicação de Dialéctica Negativa (1966), é a de saber se vale a pena, até que ponto e em que direcções, retomar o projecto filosófico-político de Adorno. As respostas dadas ao longo das últimas décadas a essa questão foram, as mais das vezes, de grande cepticismo[4]. Contudo, no caleidoscópio da recepção adorniana, não é apenas a tensão entre apreciações favoráveis e desfavoráveis que sobressai, mas também o contraste entre o que as motiva. Não há sequer, a bem dizer, consenso entre os críticos de Adorno. Deplora-se que o seu pensamento seja muito ou pouco marxista – veja-se, por exemplo, Giorgio Agamben (1978, p. 107-124), nos antípodas de um epígono de György Lukács, como Robert Lanning (2013)[5] – excessiva ou insuficientemente dialéctico – considere-se, por exemplo, Antonio Negri (2007, p. 48-55), por contraste com Robert Pippin (2005, p. 98-120) –, confiante em demasia ou não o bastante na vanguarda artística da modernidade – atente-se nos casos de Karl Heinz Bohrer (1981), em polémica com Peter Bürger (1974). Esses contrastes manifestam-se com diferentes intensidades: uns afirmam que o seu pensamento não é de todo apropriável; outros consentem que o seja ou possa ser, embora de forma pouco produtiva; outros ainda asseveram que, independentemente de quão produtiva, tal apropriação será filosoficamente limitada, cingindo-se inevitavelmente ao campo da estética.

Não é claro qual dessas versões está mais em sintonia com o(s) discurso(s) frankfurtiano(s) recentes (embora o seja, não menos hoje do que nos anos 70 do século XX, que um fosso separa a primeira das segunda e terceira gerações da Escola de Frankfurt), pois também não é claro que os autores que acentuam a vertente estética do pensamento adorniano o façam para valorizá-lo. Esse foi provavelmente o caso, na Alemanha e alhures, de autores como Marc Jimenez (1986), Christoph Menke (1991), Pierre Zima (2002), ou, no recente The Fleeting Promise of Art, Peter Uwe Hohendahl (2013), mas não foi certamente o caso de Rüdiger Bubner, que se interrogava no final dos anos 70, não sem ironia, sobre se o autor de Teoria Estética não teria ao fim e ao cabo pretendido, em termos mais gerais, estetizar a teoria – nos termos do trocadilho do seu artigo: “Pode a teoria tornar-se estética?” (BUBNER, 1979, p. 70-98). É altamente improvável que estetizar a teoria fosse a intenção de Adorno, atendendo às suas advertências contra a tentação da “pseudomorfose” (a ilusão de que a filosofia pudesse assumir a forma da arte, ou vice-versa):

A filosofia que imitasse a arte, que quisesse tornar-se, em si mesma, uma obra de arte, anular-se-ia a si própria. [...] A arte e a filosofia têm algo em comum, não na forma [Form] ou no processo de dar forma [gestaltendem Verfahren], mas num modo de proceder [Verhaltensweise] que proíbe a pseudomorfose. É através da sua oposição que ambas se mantêm fiéis ao seu próprio teor: a arte na medida em que se torna rebelde aos significados da filosofia, esta na medida em que não se agarra ao imediato. (ADORNO, 1966/2003, p. 26-27).

Seja como for, posto que o campo da estética é aquele em que a importância de Adorno é menos contestada, embora não necessariamente melhor compreendida[6], é porventura numa reapreciação da Dialéctica Negativa mais do que numa revisitação da Teoria Estética, que se joga de forma mais determinante a discussão sobre a intempestividade actual do legado adorniano nos campos do pensamento crítico e da luta política à entrada do século XXI. É esta que nos interessa primeiramente, neste artigo.

ii

Deste ponto de vista, ao procurar trazer o projecto da dialéctica negativa para o centro do debate político contemporâneo, o volume de ensaios Negativity and Revolution: Adorno and Political Activism (2009), editado por John Holloway, Fernando Matamoros e Sergio Tischler, é uma referência recente incontornável. Pouco menos de duas décadas antes, em Late Marxism: Adorno and the Persistence of Dialectic (1990), Fredric Jameson ensaiara um gesto não sem afinidades com o daquele volume. Para Jameson, a dialéctica negativa de Adorno, que não escapara a parecer obsoleta, ao longo das décadas de 60 e 70, afigurava-se no limiar entre as décadas de 80 e 90 inquietantemente actual, e justamente em virtude da radicalidade que levara ao seu enjeitamento:

[A]o cair do pano de uma década que ainda é a nossa, as profecias de Adorno do “sistema total” acabaram por se realizar de formas totalmente inesperadas. [...] pode dar-se o caso de ele ter sido o analista do nosso próprio tempo, que não viveu para ver e no qual o capitalismo tardio tudo conseguiu eliminar até à última brecha de natureza ou de inconsciente, de subversão ou de estético, de formas individuais ou colectiva de praxis e, num piparote final, todo e qualquer traço de memória do que assim deixa de existir no cenário doravante pós-moderno. (JAMSON, 1990, p. 5).

Como Jameson, os autores dos ensaios reunidos em Negativity and Revolution recusam um certo pós-modernismo (que teria vigorado ao longo das duas décadas que separam a publicação dos dois volumes), a contramão do qual a dialéctica negativa manteria a chama de um pensar filosófico irredutível à lógica cultural de um capitalismo triunfalista e belicoso. Contudo, se para Jameson a revalorização de Adorno vai a par com uma reafirmação integral do legado hegeliano-marxista[7], o espírito do volume de 2009, se não rejeita, antes pelo contrário, o legado da dialéctica, deixa-se porém pautar pela orientação anti-hegeliana da dialéctica negativa. Lê-se pois, no prefácio a Negativity and Revolution, que “[...] ao estender a rejeição da síntese hegeliana à rejeição integral da dialéctica como que se deita fora o bebé com a água do banho.” (HOLLOWAY; MATAMOROS; TISCHLER, 2009, p. 5).

Essa posição não deixa de se relacionar com o problema – que Jameson até certo ponto contorna – da relação entre as dimensões prática e teórica da crítica. É que, se a dialéctica negativa, não obstante a nem sempre amigável relação do pensamento adorniano com as exigências da praxis[8], dá de facto ensejo a um aprofundamento da crítica radical do capitalismo, dá-o – para os autores de Negativity and Revolution – ao arrepio do legado totalizante de Hegel. É contra este que a caracterização da dialéctica como “[...] consciência consequente da não-identidade” (ADORNO, 1966/2003, p. 17) se revela um ponto de partida decisivo para a sua politização.

Esse gesto interpretativo que atravessa o volume é particularmente importante para John Holloway, em cujo projecto filosófico-político a aproximação entre a teoria da dialéctica negativa e a prática do projecto autonomista – e a consequente formulação de um autonomismo negativo – vai a par com a rejeição do que considera ser o autonomismo afirmativo de Negri e Hardt. Pôr a tónica no “não-idêntico”, em detrimento de na “diferença” – como Negri, na esteira de Espinosa e Deleuze, pretende – permitiria, por um lado, sublinhar que a luta da classe trabalhadora é antes de mais uma luta contra a sua identificação enquanto tal e, portanto, pela emancipação de um fazer criativo irredutível ao trabalho abstracto[9] e, por outro lado, prevenir a crescente conivência entre a fragmentação das lutas multitudinárias e a própria engrenagem do capitalismo. A “nossa luta – afirma Holloway (2009, p. 98) – é portanto a luta da não-identidade na-contra-e-para-além da identidade”.

Essa reapropriação de Adorno, apesar de galvanizante, não está isenta de dificuldades. Afirma Holloway (2009, p. 13) , após se questionar sobre o que é afinal o “não-idêntico”, que o “não-idêntico somos nós”.[10] Ora, afirmar que o “não-idêntico” é “[...] o nós contraditório, que vive na-e-contra a sociedade capitalista, um nós não-identitário de classe” (HOLLOWAY, 2009, p. 14) é não só incorrer numa identificação ontológica e politicamente problemática, mas também esquecer que a operacionalidade dialéctica do princípio da não-identidade não pode não ter consequências sobre a possibilidade de esquematizar a priori a articulação entre pensamento crítico e acção política. Não que a dialéctica negativa de Adorno seja de antemão incompatível com o aprofundamento da questão do sujeito político. Contudo, nesse capítulo, talvez a formulação desse problema proposta por Rancière, em La Mésentente (1995), vinculada à subjectivação da “parte dos sem-parte” (desse resto universalizável em virtude justamente de não ser tido em conta na partilha policial do sensível), esteja mais próxima de poder ser articulada sem violência com o pensamento adorniano.

No cômputo geral dos contributos que integra, Negativity and Revolution põe a tónica em que é possível um uso político de Adorno. E fá-lo com sucesso. Contudo, não esgota – nem tinha de esgotar – o campo dos seus usos politicamente relevantes. Adorno pode e deve ser politizado. Simplesmente, nem todos os aspectos do seu pensamento crítico são imediatamente mobilizáveis pela acção política, e aqueles que o são não o são de forma linear. É inequívoca, de resto, a crítica esgrimida por Adorno contra o “primado da praxis” (a ideia de que a teoria se deve reger por uma preocupação sistemática com a sua tradução prática). Apesar do carácter dialéctico dessa crítica – para Adorno, a recusa do primado da praxis reverte em última instância a seu favor –, foi nela que se basearam os críticos que acusaram Adorno de se ter resignado11. Vale, pois, a pena esclarecer a posição de Adorno a esse respeito.

iii

se entendermos ‘classe trabalhadora’ como um conceito capaz de se implodir, um conceito que rompe com os seu próprios freios.”

11 Nesse contexto, é também crucial demonstrar, como faz Adrian Wilding (2009, p. 18-38), que a caricatura de Adorno que o reduz ao mandarinismo universitário não resiste a um exame minimamente sério dos seus pronunciamentos – os quais reflectem a dimensão política do seu pensamento, mesmo ou justamente quando se recusou a desempenhar o papel de guru do movimento de protesto estudantil.

Ao contrário do que tantas vezes é alegado, Adorno não advogava as virtudes do pensamento em detrimento da acção, e muito menos proclamava a superioridade ou a autossuficiência – que resultaria, diriam num uníssono suspeito Lukács e Sloterdijk, em cinismo – da teoria sobre as preocupações supostamente chãs da militância e do activismo. Ao invés, e apesar de diagnosticar a separação histórica entre teoria e prática – separação que teria como correlato epistemológico a própria cisão entre sujeito e objecto, de que o dualismo cartesiano fora a manifestação paradigmática (ADORNO, 1969/2003, p. 759) –, rejeitava a ideia de que fosse sequer possível pensar qualquer um dos termos sem o outro. Hoje, portanto, seria tão contraproducente isolar a acção transformadora do momento interpretativo, como ilusório supor que é possível unificá-los sem violência. Para Adorno, por outras palavras, o momento teórico seria vazio se nele se abstraísse da relação com a prática, tal como o momento prático seria cego se quem o acentua se obstinasse na rejeição anti-intelectualista da teoria. Por outro lado, o postulado da unidade entre teoria e prática – que, apesar de tudo, talvez fosse compreensível na época de Marx, alega Adorno (1969/2003, p. 781) – peca por constranger ambas e por escamotear os limites de um modelo que fracassou num passado recente, tendo este fracasso consistido – basta pensarmos no caso soviético – na cedência à lógica autoritária que se procurava combater e derrubar. À concepção unitária da relação entre teoria e prática deveria pois suceder a perspectiva de uma sua articulação descontínua:

Se a teoria e a praxis não formam imediatamente uma unidade, nem são absolutamente diferentes, a sua relação é de descontinuidade. [...] Não obstante, a praxis não decorre independentemente da teoria, nem a teoria independentemente da praxis. Se a praxis fosse o critério da teoria, esta última acabaria [...] por se transformar na impostura denunciada por Marx, pelo que não conseguiria chegar aonde quer; se, ao invés, a praxis se limitasse a seguir as indicações da teoria, tornar-se-ia rigidamente doutrinária e, ainda por cima, falsificaria a teoria. [...] O dogma da unidade entre teoria e praxis é, ao contrário da doutrina a que recorre, não-dialéctica: ela impinge uma unidade simples quando somente a contradição pode vir a tornar-se fértil. [...] A relação entre teoria e praxis é – a partir do momento em que se afastaram uma da outra – a de uma dobra qualitativa [qualitative Umschlag], não de transição e muito menos de subordinação. Elas mantêm uma relação polar. A máxima esperança de concretização recai sobre aquela teoria que não foi concebida como um conjunto de instruções em vista de ser concretizada [...]. (ADORNO, 1969/2003, p. 780).

Adorno, portanto, longe de anatematizar a prática para melhor louvar a teoria, opunha-se, isso sim, à subordinação de uma à outra, que acabaria por lesar a ambas. Nesse sentido, além de reconhecer a liberdade da teoria que a sua relação descontínua com a prática não obriga a esquecer, caberia notar que o facto de à luta política ser imprescindível um momento reflexivo, como Adorno acredita, não significa que a acção esteja refém das disposições normativas ou das palavras-de-ordem, que assegurariam ora a sua legitimidade social-democrática, ora a sua eficácia revolucionária. Sob esse prisma, o ensimesmamento táctico com o “problema normativo”, que anima os esforços dos frankfurtianos dos dias de hoje, está menos longe do que julga, e viceversa, da obstinação estratégica da ortodoxia marxista-leninista.

iV

Talvez o par de conceitos “negatividade” e “emancipação”, em alternativa a “negatividade” e “revolução”, esteja, apesar de aparentemente menos ambicioso, mais em sintonia com o que podemos esperar de uma releitura de Adorno. De resto, quer em termos filosóficos, quer em termos políticos, não é claro onde se detém a modéstia e começa a ambição, ou sequer qual delas é mais radical. E sê-lo-á ainda menos num tempo, como o nosso, em que a coragem de não baixar os braços não pode anular a coragem de reconhecer que nem sempre os braços erguidos puderam realizar tanto quanto desejaram. Assim sendo, se importa mostrar que um discurso voluntarista pode incorrer num certo idealismo – no sentido em que empola o que está nas suas mãos, dando o flanco ao que Adorno designou por “pseudo-praxis” –, combater esse idealismo não nos obriga a ceder ao derrotismo, nem tão-pouco a seguir pela via da negação da vontade. Tocamos em temas na ordem do dia.

Mesmo ao “preferir não” se quer algo – e, nos tempos que correm, parar para pensar, recusar-se a obedecer, é já opor a sua vontade ao curso do mundo. Nesse sentido, a resistência passiva de Bartleby, que inspirou uma concepção involuntarista ou inoperativa de política (de Deleuze a Agamben), é menos a rasura da vontade do que uma pedra-de-toque para reconhecer até que ponto a confiança no nexo entre “querer” e “poder” permanece devedora da crença num “saber” (um saber sobre o que se quer e sobre o que se pode), que os torna reféns da categoria do possível (ZOURABICHVILI, 1998, p. 335-357). É o facto de a vontade depender do possível – dirão os defensores do involuntarismo – que a torna má conselheira em matéria de política. Mas, se a aposta de Peter Hallward num “voluntarismo dialéctico” é de facto algo ingénua e problemática – ingénua, pelo modo como simplifica psicológica e sociologicamente a questão da vontade à escala individual e colectiva; problemática, pela maneira como recupera uma concepção soberana da vontade do povo[11] –, criticar o voluntarismo não implica a recusa pura e simples da vontade (sob a forma da decisão), nem anula a perspectiva de uma praxis colectiva (decorrente de um eventual comprometimento militante).

Dessa perspectiva, se o que Adorno pensou sobre a vexata quaestio teórico-prática está realmente nos antípodas das propostas de Hallward – a crítica adorniana ao “accionismo” [Aktionismus] ou à “pseudo-actividade” [Pseudo-Aktivität] desmonta avant la lettre vários dos pressupostos do “voluntarismo dialéctico” –, tão-pouco converge com os contributos de Agamben, em cujo trabalho – mesmo no mais recente, em que o aspecto político de um “poder destituinte” é posto em evidência – não é claro de que forma a aposta numa “forma de vida” dá lugar a uma política, cujo desdobramento colectivo não se veja permanentemente neutralizado por uma concepção messiânica da política. Por contraste, para Adorno, seria em virtude de poder reverter a favor da praxis, nomeadamente em termos colectivos, e não por se aliar à perspectiva de uma redenção sempre iminente, que a resistência do pensamento é afirmada contra o que o próprio Agamben (2013, p. 40ss) designa actualmente por “ontologia do comando”.

Desse ponto de vista pode até soar elogiosa, a alguém pouco inclinado para uma concepção salvífica de política, a afirmação de Agamben (2005, p. 38) – a que este recorre, entenda-se, para criticar Adorno – de que “[...] a dialéctica negativa, ao contrário do que parece, constitui uma forma absolutamente nãomessiânica de pensar”. Agamben di-lo para melhor defender que, supondo que há um “como se” [als ob] na obra de Adorno, tal “como se” permanece enredado nas teias da impotência. Segundo Agamben (2005, p. 37), que a páginas tantas sutura o aforismo final de Minima Moralia[12] com a abertura da Dialéctica Negativa[13], é porque – parafraseando essas duas passagens – a filosofia falhou o momento da sua realização que a única forma de filosofar hoje possível consiste em contemplar o mundo como este apareceria do ponto de vista da redenção. De tal modo que, assim remata Agamben sua apreciação sumária e superficial de Adorno, só pelos olhos da arte nos seria dado contemplar o mundo como se a filosofia não tivesse falhado... Mas falhou. E esse falhanço, na medida em que é inelutável, deixar-nos-ia de mãos atadas. Segundo Agamben – que neste ponto se aproxima de Habermas, apesar das profundas divergências teóricas que os separam –, a filosofia de Adorno conduziria a um beco sem saída.

Naturalmente, nem estas duas citações de Minima Moralia e da Dialéctica Negativa podem ser encavalitadas sem perda de inteligibilidade, nem o momento utópico da estética adorniana, a que Agamben faz em seguida referência, pode ser amputado da sua dimensão de promessa. Nesse aspecto, é nítido que Agamben treslê o texto adorniano[14]. Por outro lado, curiosamente, que a crítica de Agamben previna uma sobrevalorização indevida do elemento messiânico em Adorno pode constituir uma vantagem, pois confere plausibilidade ao reconhecimento de que o momento utópico da estética adorniana, apesar de a dimensão de promessa ser realmente indelével, não detém a última palavra.

Por último, resta notar que se para Adorno a promesse du bonheur da arte, a que o autor de Teoria Estética tão insistentemente faz referência, é de facto quebrada[15], é-o não tanto porque o momento da realização da filosofia falhou – com o que Adorno alude ao momento em que a transformação do mundo se seguiria à sua interpretação –, mas porque a própria modernidade fracassou de modo catastrófico. Um dos nomes desse fracasso, a que Agamben dá também extrema importância, é Auschwitz. Por isso, mas não só por isso, Agamben está provavelmente menos distante de Adorno do que gostaria de admitir.

V

A situação global à entrada do século XXI, não menos do que em meados do século XX, presta-se pouco a diagnósticos complacentes. Não deixa por isso de ser paradoxal que os autores cujo labor crítico é mais radical e nem sempre sem afinidades com o adorniano – pense-se não só em Agamben, mas também, antes dele, em Lyotard (1973, p. 115-133) – se contem, ao contrário do que seria de esperar, entre os que mais cépticos se revelaram em relação a Adorno[16]. É como se esconjurassem, criticando Adorno, o perigo a que procuram escapar: esse derradeiro, logo fatal, passo à beira do abismo. De certa forma – e já Nietzsche pensara esse problema explicitamente, ao contrastar o seu pessimismo dionisíaco com o pessimismo romântico de Schopenhauer – a radicalização da crítica enfrenta o perigo de sucumbir àquilo a que se opõe. A rejeição de Adorno permitiria exorcizar esse perigo. Por um lado, caberia agudizar a crítica; por outro, evitar o deslize fatal que se crê de boa ou má fé ser o da dialéctica negativa: a ultrapassagem desse limiar ameaçador em que a radicalização do diagnóstico se confunde com a anulação de toda e qualquer margem de manobra ou esperança.

Essa suspeita – a de que a radicalização da crítica por Adorno acaba por neutralizá-la – declina-se em diversos campos. As mais das vezes, ela labora numa apreciação parcial do texto adorniano, cuja articulação impede quase sempre o isolamento sem perda de sentido das suas formulações mais lapidares. Num plano metodológico-discursivo, e embora o trabalho do negativo conduza Adorno a constantes desvios, não faz sentido afirmar que um tal modus operandi se traduz numa fetichização de um pensar indeciso ou inconcluso. Num plano filosófico-crítico, sendo verdade que Adorno radicaliza o diagnóstico crítico, não o é que nos deixe nas mãos de pseudossoluções estético-teológicas; sejam elas de cariz positivo, como defende Habermas, ou negativo, como defende Agamben. Num plano teórico-prático, não havendo dúvidas de que Adorno recusa o dogma da unidade entre teoria e prática, isso não significa que rejeite a sua articulação.

Vimos já como o pensamento de Adorno se revela politizável, ao que acrescentámos que as valências críticas da dialéctica negativa não se resumem às consequências directas que possa ter sobre a conceptualização da praxis, sendo operativas teoricamente. Elas jogar-se-iam em oposição, quer a um certo “voluntarismo”, quer a um certo “messianismo” (e, como veremos, a um certo “ontologismo”). Mas que a dimensão política da obra adorniana se manifeste teoricamente nessas críticas (às viragens ou tendências voluntarista, messiânica, ou ontológica), não obsta a que reconheçamos como o pensamento se revela praxis não só em confronto com outros mas também no seu próprio plano. Esta é uma intuição que parece atravessar subliminarmente a obra de Adorno, e para cuja inteligibilidade contribui a oposição estabelecida por Badiou, no capítulo das suas Lições sobre o caso Wagner que dedica à Dialéctica Negativa, entre “configuração” e “constelação”.

Em termos mais gerais, poderíamos definir a Dialéctica negativa como uma filosofia que pensa o que é diferente do pensamento. [...] De um ponto de vista filosófico, não está apenas em causa a questão da diferença do objecto, mas a do acesso à diferença através daquilo que, logo à partida, é em si mesmo diferente do pensamento [...]. É também isto que importa compreender quando se afirma que a constelação toma o lugar da configuração, que, de acordo com a definição adorniana da filosofia tradicional, equivale a pensar o que configura o pensamento. Pensar a constelação será permitir que aquilo que difere verdadeiramente do pensamento emirja no seu interior. (BADIOU, 2010, p. 53-54).

Que a dialéctica negativa assuma – ou venha a assumir, como parece ser sua ambição – a forma de um pensamento constelar, e abandone o modelo da configuração, significa que lhe corresponde um exercício filosófico que inclui, mas que não se resume à tarefa do diagnóstico. Além de reconhecer a violência de um pensar submetido ao princípio da identidade, e mapear histórica e socialmente o modo como este condiciona o real, tratar-se-ia de agir sobre a sua lógica configuradora. Que o pensamento de Adorno tenha permanecido desde o início em tensão para esta possibilidade prática do pensamento, prova-o a valorização do conceito de mimesis – e a promessa subliminar de uma “racionalidade mimética” – antes de o postulado de uma dialéctica negativa como pensamento constelar ter tomado a dianteira. Que Adorno, contudo, tenha formulado e efectivado teoricamente essa possibilidade em todas as suas exigências, permanece duvidoso. É o que está na base, em última instância, das dificuldades enfrentados pelos seus leitores, nomeadamente dos que lhe são favoráveis, como é o caso de Susan Buck-Morss, que, no final de The Origin of Negative Dialectics, se questionou sobre se a totalização do método antitotalitário – que Adorno denunciara em Schönberg – não teria ocorrido também no caso da dialéctica negativa.

A verdadeira questão é saber se a tentativa adorniana de revolucionar a filosofia, tendo como modelo consciente Schönberg, sucumbiu ao destino da música deste último, saber se o seu princípio anti-sistemático se transformou em si mesmo num sistema. [...] Quando o princípio dodecafónico se tornou “total”, a dinâmica da nova música chegou a um impasse. Mas quando o método da dialéctica negativa se tornou total, a própria filosofia ameaçou ficar retida, também ela, num impasse [...]. (BUCK-MORSS, 1977, 189-190).

Estou em crer que reconhecer a legitimidade da preocupação expressa por Susan Buck-Morss não equivale a convergir com o ponto de vista habermasiano. Não se trata de considerar, como também Gillian Rose (1978/2014, p. 35-66) defende, que Adorno generalizou analítica e historicamente a teoria da reificação de Lukács, e que portanto menospreza o potencial emancipatório da modernidade. Uma crítica radical da razão e da sociedade permanece necessária – e o truque de magia que consiste em evocar uma racionalidade comunicativa imune à racionalidade estratégica não passa disso mesmo –, mas, para não ceder à lógica que procura criticar, a crítica radical levada a cabo pela dialéctica negativa terá de aplicar o princípio antitotalitário a si mesma.

Jameson (1990, p. 237), sem deixar de apostar no enfoque da crítica no todo, procura dar resposta ao problema, distinguindo entre razão analítica [Verstand] e razão dialéctica [Vernunft] (é a primeira que constitui o “todo”, todo que a segunda, na esteira de um marxismo hegeliano, permite criticar). Já os autores de Negativity and Revolution contornam-no, sugerindo – se me é permitido parafrasear Gramsci – que o (necessário) pessimismo no plano do diagnóstico crítico não é senão a outra face de um (possível) optimismo no plano da acção política. Mas, se num e noutro casos se previne o bloqueio da crítica filosófica, respectivamente, nos planos do diagnóstico (no caso de Jameson) e teórico-prático (no caso de Holloway), já no que concerne à possibilidade de uma acção crítica do pensamento sobre as suas próprias condições o problema mantém-se. Que uma dialéctica negativa à altura das exigências do conceito de constelação seja possível depende da sua resolução. Tentemos indicar uma possível via de indagação através de um curto desvio pelo debate sobre o “realismo especulativo” que anima actualmente a chamada filosofia continental.

Vi

Não deixa de ser curioso verificar que, ao pretender fazer justiça ao que difere do pensamento, a dialéctica negativa de Adorno esteja bem menos longe do que esperaríamos à partida da filosofia da diferença de Deleuze e – pensando na mais recente viragem da filosofia contemporânea – do “realismo especulativo”. O telos da dialéctica negativa – como Badiou também assinala – permanece o “não-idêntico”, o qual não é outra coisa senão, precisamente, o que difere do pensamento.

Contudo, apesar desse denominador comum, se Adorno se distingue de Deleuze quando, como afirma Alberto R. Bonnet (2009, p. 48), “[...] rejeita liminarmente qualquer esforço de emancipar a diferença da negatividade na esfera do pensamento, enquanto esta emancipação não tiver ocorrido na esfera da realidade”, não se distinguiria menos, em contrapartida, do pressuposto antikantiano que anima a crítica do “correlacionismo” levada a cabo por Quentin Meillassoux (2006) ou da object-oriented philosophy de Graham Harman (2002). Resumamos muito brevemente os termos da discussão em torno do chamado “realismo especulativo” e do trabalho de Meillassoux, que lhe serve de ponto de partida, em Après la finitude (2006).

Em face da crítica ao “correlacionismo” – definindo-se o correlacionismo pela tese de que se tem sempre já acesso à correlação entre ser e pensar, e nunca a qualquer um destes termos isoladamente –, é pois possível, se não altamente provável, que Adorno apostasse na recusa dialéctica de pensar mediante princípios, de tomar seja o que for como princípio ao invés de reconhecer a mediação recíproca de momentos opostos. Ou seja, Adorno rejeitaria muito provavelmente os termos da crítica de Meillassoux. De facto, a incompatibilidade de Adorno com os pressupostos explícitos do realismo especulativo transpira em praticamente tudo o que escreveu sobre um espectro de autores e correntes que vai de Heidegger a Bergson ou do positivismo à fenomenologia.

Todavia – atendendo à necessidade de integrar um princípio antitotalizante entre os operadores teórico-práticos de uma dialéctica negativa –, talvez aquela afinidade subliminar não seja menosprezável em detrimento da incompatibilidade ostensiva, sobretudo quando nos apercebemos de que esta nova tendência realista-especulativa – ou, pelo menos, as movimentações que ela tem gerado em seu torno – é menos antikantiana do que aparenta. Em especial, as respostas de Markus Gabriel (2011) ou de Adrian Johnston (2013) à “viragem especulativa” tornam explícito, desde logo, porque se reclamam, respectivamente, de uma “ontologia transcendental” e de um “materialismo transcendental”, como o abandono de Kant e, muito especialmente, do conceito de “transcendental”, está fora de questão. Que uma recuperação contemporânea do conceito de transcendental, cruzada com o pensamento adorniano, possa reverter a favor de uma destotalização do diagnóstico negativo da dialéctica adorniana, com vantagem para a sua reelaboração enquanto “dialéctica constelar”, é o que procurarei sugerir no espaço que me resta.

Para fazê-lo, optaria por arriscar um desvio pela reapropriação, levada a cabo por Markus Gabriel, da “teoria dos mundos” de Alain Badiou, que me parece promissora. Segundo Gabriel, muito resumidamente, a adopção do postulado da existência independente – que tão caro é ao realismo especulativo –, não nos obriga a enveredar por uma matematização da ontologia (como em Badiou ou, na sua esteira, em Meillassoux). Ao invés, em Transcendental Ontology (2011) – onde se reabilita, no contexto contemporâneo, o gesto do idealismo alemão que consiste em criticar o abandono da ontologia por Kant, sem recuar à ingenuidade das ontologias pré-kantianas – defende Gabriel (2011, p. ix) não só que é filosoficamente necessário investigar “[...] as condições ontológicas das nossas condições de acesso ao que existe”, mas também que o sentido atravessa o plano do existente como um todo, embora para pensá-lo seja necessário reconhecer a multiplicidade coexistente, mas não totalizável – sublinhe-se não totalizável –, de “domínios de sentido”. É para viabilizar esse reconhecimento que Gabriel recorre à “teoria dos mundos” de Badiou, sem deixar de a despojar, criticando-a, do dualismo ontológicotranscendental que a caracteriza.

Essa intuição, para voltarmos a Adorno, permitiria porventura reconceptualizar a teoria da reificação, já não como subsunção (nos seus estádios formal e real) do existente pelo capital, mas antes como hegemonia do domínio de sentido determinado pelo princípio da troca (enquanto ipsissimum do capitalismo) sobre outros domínios de sentido e de experiência. Que essa hegemonia não impeça a acção contra-hegemónica nos planos da prática e da teoria (e, no campo da teoria, não só no plano do diagnóstico, mas sempre com consequências imprevisíveis na prática) é o que importa sublinhar, e conduziria ao programa de uma “materialismo transcendental”, tal como será possível desenvolvê-lo actualmente na esteira do pensamento adorniano. Por tal via, seria então possível destotalizar o diagnóstico da dialéctica negativa, sem diminuir a sua radicalidade.

*

Neste artigo, tomando o pulso à recepção da filosofia de Theodor W. Adorno ao longo das últimas décadas, procurámos determinar em que medida a dialéctica negativa pode ainda constituir um ponto de partida valioso para pensar a articulação entre pensamento crítico e acção política, à entrada do século XXI. Entre outros aspectos, a possibilidade de contornar o impasse entre as correntes “messiânica” e “voluntarista” a partir da dialéctica negativa de Adorno daria testemunho da sua relevância actual. Tal não nos impediu – tanto que seria impossível entender este esforço interpretativo, nos termos de uma mera apologia – de salientar aquele que parece ser o ponto mais sensível do empreendimento filosófico de Adorno: a possibilidade de a sua dialéctica negativa ceder, no plano do diagnóstico, à lógica totalizadora que procura desmantelar. A essa luz, e trazendo à colação o debate que a recente “viragem especulativa” tem suscitado à escala internacional (BRYANT; SRNICEK; HARMAN, 2011), defendemos que a revalorização do conceito de “constelação” pode propiciar um releitura da dialéctica negativa adorniana capaz de expurgá-la desse elemento totalizador, sem que a sua ambição crítica se veja diminuída.

Como é óbvio, essa hipótese não obsta a que permaneça legítimo questionarmo-nos sobre os limites da dialéctica negativa. Mas tal questionamento – acrescentaria, para terminar – será tanto mais produtivo quanto menos supusermos que levá-lo a cabo nos exime de procurarmos ir mais longe. E é tanto mais assim quanto permanecemos convencidos, pelas razões explicitadas acima, de que o motivo subjacente à por vezes apressada rejeição do legado crítico de Adorno – a sua radicalidade a um só tempo histórica e analítica – coincide com a razão por que vale a pena retomar o seu pensamento. De que maneira, em que direcções, e até que ponto de modo desviante, permanece inevitavelmente em aberto.

ABSTRACT: Questioning the place of Theodor W. Adorno’s philosophy within contemporary critical thought, this article attempts to account for the politico-philosophical reception of Adorno’s negative dialectics (from critical appraisals by Habermas, Lyotard, or Agamben, to sympathetic ones by Jameson or Holloway) and to discuss its present-day relevance. I argue that it is possible to politicize Adorno’s work, although its critical valences go far beyond this possibility. Today, negative dialectics would provide an antidote against the shortcuts taken by ‘voluntarist’ (cf. Peter Hallward), ‘messianic’ (cf. Agamben) and ‘ontological’ (cf. speculative realism) turns/trends in twenty-first-century philosophy. However, in view of the complexity of Adorno’s appraisal of the interplay between theory and praxis, the current relevance of his thought gains plausibility by being linked with critical responses to ‘speculative realism’. In dialogue with some of its interlocutors (Markus Gabriel and Adrian Johnston), I suggest that developing a ‘constellative dialectics’ depends on the introduction of a detotalizing element within the radical – at once materialistic and transcendental – diagnosis of negative dialectics.

KEYWORDS: Theodor W. Adorno, negative dialectics, critique, politics, constellation.

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Recebido em 15/10/2015

Aceito em 29/11/2015



[1] http://dx.doi.org/10.1590/S0101-317320160001000010

[2] Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical da Universidade Nova de Lisboa E-mail: jpcachopo@gmail.com

[3] Tal como esta, e salvo indicação em contrário, todas as restantes traduções neste artigo são da responsabilidade do autor.

[4] Destaca-se, pelo menos no âmbito geográfico alemão, a resposta de Jürgen Habermas, que, em O Discurso Filosófico da Modernidade, acusou Adorno de incorrer numa “contradição performativa” (HABERMAS, 1988, p. 145), uma vez que, ao visar a própria razão, a crítica acabaria por minar os seus próprios fundamentos normativos. Para uma desconstrução crítica da acusação esgrimida por Habermas contra Adorno, leia-se o artigo de Rodrigo Duarte (1997, p. 131-143) “Notas sobre a ‘carência de fundamentação’ na filosofia de Theodor W. Adorno”.

[5] É curioso notar que, recuperando precisamente a mesma imagem de Lukács, mas inflectindo-a deliberadamente – refiro-me à imagem de um hotel à beira do abismo – Vladimir Safatle tenha chegado, em Grande Hotel Abismo: Por uma reconstrução da teoria do reconhecimento (2012), a conclusões diametralmente opostas às de Robert Lanning, em In the Hotel Abyss: An Hegelian-Marxist Critique of Adorno (2013). Para Safatle, a imagem de um Grande Hotel de nome Abgrund evoca não tanto um refúgio seguro contra a necessidade da acção, mas a alegria não isenta de perigos de um pensar verdadeiramente intempestivo.

[6] O reconhecimento da importância da estética de Adorno não está, considerado de perto, isento contradições. A menor não será a de quer os autores que se reclamam dela, quer os que a rejeitam, tendem a ver nela uma estética utópica enquadrada por uma filosofia da reconciliação. Foi uma alternativa a esta visão que procurei encetar em Verdade e Enigma: Ensaio sobre o pensamento estético de Adorno (2013), deslocando a atenção da dialéctica entre verdade e aparência (solidária com as noções de utopia e reconciliação) para a articulação entre verdade e enigma.

[7] Para Jameson, que não duvida da inseparabilidade entre Marx e Hegel, também não há dúvida de que Adorno pertence à tradição de um marxismo tardio. Os aspectos mais salientes do “marxismo” adorniano residiriam, como explica ao longo do livro e sublinha no final (JAMESON, 1990, p. 229ss), na teoria do valor e no acento na totalidade.

[8] Esta ressalva, se considerarmos o subtítulo do volume (“Adorno and Political Activism”), é tudo menos menosprezável, como veremos.

[9] Que essa luta contra o domínio do capital se revele a um só tempo uma luta pela emancipação do trabalho criativo pode conduzir à questão de saber se a diferença entre os autonomismos afirmativo de Negri e Hardt e negativo de Holloway é de facto tão aguda quanto o último supõe.

[10] Eis como prossegue Holloway (2009, p. 13-14): “A força que não encaixa, a força que contradiz toda a identificação, a força que transborda é subjectividade, nós. E quem somos nós? Somos o sujeito irredutível a qualquer definição. Podemos dizer que somos a classe trabalhadora, mas tal só faz sentido

[11] Muito resumidamente, poder-se-ia dizer que a hipótese de partida de Peter Hallward é a de que o “poder” do povo – i.e., do sujeito político universalizável, que é de facto um dado colectivo e de jure a humanidade – será tanto maior quanto mais claro, forte, global for o acento no seu “querer”, na autodeterminação da vontade colectiva. Mas esse pressuposto obriga-o a recusar tudo o que possa tornar menos óbvia uma concepção incondicionada, unívoca e estratégica da vontade colectiva. A alternativa decisiva seria, nas palavras de Hallward (2009, p. 18) , “[...] dar ou retirar poder à vontade do povo”, mas a forma dessa alternativa assemelha-se demasiado à de um revólver apontado ao peito de quem tem de decidir entre estar ou não estar do lado do povo – se me é permitido utilizar a imagem com que Adorno (1962/2003, p. 413) caracteriza, em virtude justamente do recurso à figura da alternativa, o comprometimento sartriano – sendo que a liberdade, justamente, estaria seguramente para além da possibilidade de optar entre alternativas.

[12] “A única filosofia pela qual valeria ainda a pena assumir a responsabilidade diante do desespero seria a tentativa de contemplar todas as coisas, tal como estas se apresentariam do ponto de vista da redenção [Erlösung]. O conhecimento não tem outra luz para além da que brilha [scheint] da redenção sobre o mundo.” (ADORNO, 1951a/2003, p. 283).

[13] “A filosofia, que outrora pareceu ultrapassada, mantém-se viva, porque o instante da sua realização malogrou.” (ADORNO, 1966/2003, p. 15).

[14] Para uma desconstrução da leitura agambeniana de Adorno, leia-se o artigo de David Jenemann (2009, p. 30-51) “Adorno Unplugged: The Ambivalence of the Machine Age”.

[15] “A arte é a promessa de felicidade que se quebrou.” (ADORNO, 1970/2003, p. 205).

[16] Para uma desconstrução da leitura lyotardiana de Adorno, leia-se o artigo de Dan Webb (2009, p. 517-531) “‘If Adorno isn’t the Devil, it’s because he’s a Jew’: Lyotard’s misreading of Adorno through Thomas Mann’s Dr Faustus”.