A PsicAnálise PArA FoucAult: ontologiA ou HermenêuticA?[1]

Carolina de Souza Noto[2]

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo discutir o estatuto que Foucault confere à psicanálise. Em As palavras e as coisas, de 1966, Foucault condena todo tipo de reflexão que procura conferir estatuto ontológico à finitude humana. Nesse sentido, faz-se necessário investigar se a crítica que Foucault endereça à psicanálise depois de 66 se dá nos mesmos termos que a crítica feita às analíticas da finitude. Ou seja, trata-se de entender se a acusação de que a psicanálise não passa de mais um “dispositivo de sexualidade” a serviço do biopoder está fundada na ideia de que a psicanálise supõe uma ontologia. A ideia da psicanálise como ontologia, contudo, é uma tese recusada por Foucault em alguns escritos da década de 50 e 60. Nesse período, o filósofo defende que a psicanálise é antes de tudo um método hermenêutico e não uma teoria geral sobre o homem. Assim, se é verdade que as teses genealógicas finais de Foucault sobre a psicanálise se fundamentam na visão da psicanálise como ontologia, deparamo-nos com um problema: afinal, a psicanálise, para Foucault, consiste ou não numa teoria sobre o ser do homem?

PALAVRAS-CHAVE: Foucault. Psicanálise. Ontologia. Hermenêutica. Finitude.

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Nosso ponto de partida é uma curiosa homologia existente entre o primeiro e um dos últimos textos publicados de Foucault. A primeira publicação é de 1954 e constitui uma introdução a Sonho e Existência, de Binswanger; já a publicação tardia diz respeito ao livro O cuidado de si, de 1984, cujo primeiro capítulo se intitula “Sonhar com os próprios prazeres”. A proximidade entre os escritos de 54 e de 84, porém, não se deve simplesmente ao fato de ambos se indagarem sobre um mesmo objeto, o sonho, mas, essencialmente, ao fato de os dois textos abordarem um mesmo problema filosófico: o problema da interpretação. Dizer que do início ao fim do trabalho de Foucault é possível notar um interesse pela questão da interpretação não significa afirmar que o filósofo tenha abordado essa questão sempre da mesma maneira. Ao que tudo indica, se, na década de 50, nosso autor ainda está fortemente marcado pela fenomenologia existencial, na década de 80, ele parece tê-la superado. Isso, se levarmos em conta a dura crítica que Foucault endereça à fenomenologia, principalmente em As palavras e as coisas, de 1966, e a necessidade insistente do filósofo em se desviar desse tipo de reflexão filosófica. Nesse sentido, se a noção de interpretação, na introdução ao livro de Binswanger, é claramente apresentada pelo viés da fenomenologia existencial, a concepção de interpretação que interessa a Foucault, em seus últimos escritos, deve escapar dos moldes daquilo que o filósofo chama de analítica da finitude.

De acordo com Foucault, a análise existencial colocada em prática pelo psicólogo suíço Ludwig Binswanger  (1881-1966), elucidada em seu livro Sonho e Existência, de 1930, opera uma inflexão na fenomenologia. Essa inflexão, devido a sua preocupação de encontrar os fundamentos ontológicos para uma reflexão concreta do homem, consiste em transformar a fenomenologia em antropologia. Nesse sentido, a antropologia desenvolvida por Binswanger deve ser entendida, nas palavras de Foucault, como “[...] reflexão ontológica que toma por tema maior a presença do ser, a existência, o Dasein.” (FOUCAULT, 2001a, p. 94). A antropologia aqui, portanto, não se confunde com uma reflexão meramente empírica, tal como aquela que serve de modelo para uma psicologia empírica que tem em vista o homo natura. Não. Binswanger não faz uma descrição positiva dos fatos humanos, descrição experimental e naturalista que colocaria a psicologia ao lado das ciências naturais, mas procura encontrar o próprio fundamento ontológico da existência concreta dos homens. Desse modo, arremata Foucault, para a psicologia existencial, trata-se de fazer uma analítica da existência, de encontrar “[...] a estrutura transcendental do Dasein, da presença no mundo.” (FOUCAULT, 2001a, p. 94).

Todavia, se a antropologia filosófica de Binswanger não se confunde com uma antropologia fisiológica, tampouco ela deve ser compreendida como uma especulação filosófica pura sobre as formas do a priori. Afinal de contas, nota Foucault, o fato humano que interessa a Binswanger diz respeito à existência concreta do homem, ao “[...] conteúdo real de uma existência que se vive e se experimenta, se reconhece ou se perde no mundo, que é a um só tempo a plenitude de seu projeto e o elemento de sua situação.” (FOUCAULT, 2001a, p. 94).

Nem psicologia empírica, nem filosofia transcendental pura. A antropologia filosófica de Binswanger consiste, antes, numa reflexão sobre as formas da existência do homem, sobre as condições ontológicas da existência ou ainda sobre os modos de ser da existência. De um lado, ela não se limita a uma observação empírica do homo natura, na medida em que se pergunta pelos fundamentos ou pelas condições de possibilidades do homem; por outro, ela não se configura como uma investigação puramente formal, pois sua atenção se volta para a existência e para o concreto. Mas, afinal, o que isso tudo tem a ver com o sonho e com a interpretação?

Ora, o sonho, dirá Foucault, seguindo o texto de Binswanger, é um meio privilegiado para se falar da estrutura existencial. Como o sonho nos ensina algo sobre os modos de ser da existência? É aqui que a noção de interpretação entra em cena, afinal, é por meio da interpretação dos sonhos que se chegará aos modos de existência que neles se expressam.

Em um artigo de 1957, “La psychologie de 1850-1950”, Foucault afirma que a história da psicologia é marcada por um importante acontecimento, no final do século XIX: a descoberta do sentido (FOUCAULT, 2001b, p. 148). Até então, assegura o filósofo, a psicologia consistira numa empreitada, sempre malograda, de emparelhamento com as ciências naturais. Procura no homem relações quantitativas, leis matemáticas e hipóteses explicativas; para tratar de sua gênese e desenvolvimento, toma o homem naquilo em que ele se iguala aos outros animais e aplica nele os mesmos métodos das ciências da natureza.

Contudo, logo se percebeu que era preciso dar “novo status” e “novo estilo” à pesquisa em psicologia,  afinal de contas, vê-se que o homem não tem tanta precisão objetiva como os demais seres naturais. Ao contrário: percebese que ele é, antes, um ser de contradição; um ser que vive, mas adoece; que aprende, mas erra; que trabalha, mas não se adapta. Nesse sentido, a psicologia do desenvolvimento (que investiga as falhas do desenvolvimento), da adaptação (que quer compreender as situações de não adaptação) e da memória, da consciência e do sentido (que procuram respostas para os momentos de esquecimentos, de inconsciência e de perturbações afetivas) giram em torno do mesmo problema: encontrar um fundamento para as contradições humanas. Confirma nosso autor (FOUCAULT, 2001b, p. 150):

A psicologia contemporânea é, em sua origem, uma análise do anormal, do patológico, do conflitual; uma reflexão sobre as contradições do homem consigo mesmo. E se ela se transformou em uma psicologia do normal, da adaptação, do ordenado, é de uma maneira secundária, como que por um esforço para dominar as contradições.

Entretanto, no interior disso que Foucault chama de “psicologia contemporânea”, que iria de 1850 até o momento em que ele escreve (por volta de 1950), há diferentes tipos de estudos. E, apesar de se constituir como um ramo do saber distinto das ciências positivas, a psicologia, muitas vezes, continuou tendo em vista os esquemas de análise das ciências da natureza. E isso por meio de três caminhos distintos: a) por meio de um modelo físicoquímico; b) por meio de um modelo orgânico; c) por meio de um modelo evolucionista. Será somente no final do século XIX, com a descoberta do sentido, que a psicologia, enfim, poderá se livrar definitivamente da relação com as ciências naturais e criar um método próprio de análise.

De acordo com Foucault, o que há de comum entre Janet, Dilthey, Husserl, Freud, Jasper e Binswanger é que todos eles estão preocupados em desvencilhar a psicologia de um estudo sobre as determinações da natureza; querem compreender o homem, não naquilo em que ele se iguala aos outros animais, em seus processos e funcionamentos naturais, mas em seu caráter específico, isto é, em sua produção de sentido e significado.

Ora, dirá Foucault, o que faz Husserl? Husserl quer compreender “[...] o sentido imanente à experiência vivida.” (FOUCAULT, 2001b, p. 155). E Freud? Freud está igualmente preocupado em compreender a gênese de uma significação; não pretende explicar a doença mental a partir de uma análise causal do funcionamento do corpo humano, mas compreendê-la como produção de sentido.

E se, por um lado, trata-se de investigar como produzimos e atribuímos sentido e significação às nossas experiências, por outro lado, é preciso também pensar de que modo esses sentidos se manifestam e como podemos interpretálos. No texto introdutório a Binswanger, Foucault aponta uma interessante proximidade entre Freud e Husserl: A interpretação dos sonhos, de Freud, e as Investigações lógicas, de Husserl, são contemporâneos. O livro de Freud é publicado em 1900, o de Husserl, em 1901, e, de acordo com Foucault, a grande questão de ambos os textos dá-se justamente em torno da relação entre imagem e significação/sentido: se as imagens não são simples formas sensíveis, mas possuem algum sentido, é preciso compreender de que modo elas adquirem uma significação e como é possível interpretá-las. Vejamos, então, como Foucault apresenta Freud e Husserl, no interior dessa discussão sobre imagem, sentido e interpretação.

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Para Foucault (2001a, p. 97) Freud faz do sonho o sentido do inconsciente O mundo das imagens do sonho está habitado pelo desejo inconsciente. Nesse sentido, Freud deu ao sonho e às suas imagens o estatuto da palavra. Isto é, deu-lhes uma significação. No entanto, se muitas imagens oníricas têm sentido na medida em que remetem a algum desejo, Freud não deu conta de compreender a linguagem própria dos sonhos. Ou seja, deu ao sonho o estatuto da palavra, não o da linguagem; compreendeu sua semântica, porém, não explicou sua sintaxe. Nesse sentido, compara Foucault, o método de interpretação dos sonhos de Freud é similar a uma arqueologia das línguas perdidas que procura o sentido das palavras de uma língua cuja gramática se ignora. Nesses casos, deve-se contentar com um método que só confirma o sentido pela probabilidade, que toma as imagens como códigos secretos a serem decifrados. Um método, enfim, que só chega a uma ligação “eventual”, “contingente” e “possível” entre imagem e sentido; um método em que “[...] o ato expressivo em si mesmo nunca é reconstituído em sua necessidade.” (FOUCAULT, 2001a, p. 99). Em suma, conclui Foucault, em 1954, não há em Freud uma psicologia da imago enquanto estrutura imaginária. A psicanálise, arremata nosso autor, “[...] nunca conseguiu fazer falar as imagens.” (FOUCAULT, 2001a, p. 101)[3]. Essa será propriamente a tarefa da fenomenologia. Mesmo que ela ainda não tenha compreendido a sua linguagem, “[...] a fenomenologia conseguiu fazer falar as imagens.” (FOUCAULT, 2001a, p. 107). 

Ao que tudo indica, a fenomenologia não se contentou, como a psicanálise, em fazer um “recorte de signos objetivos” e atribuir-lhes sentido a partir das “coincidências da decifração” (FOUCAULT, 2001a, p. 106). O que Husserl fez, segundo Foucault, foi justamente problematizar a relação entre imagem e sentido; para Husserl, essa relação não é evidente e, para compreendêla, foi preciso compreender o próprio ato significativo por meio do qual toda significação é possível, ato por meio do qual o conteúdo imaginário (imagem) se liga necessariamente a um conteúdo ideal (sentido)[4].

De acordo com o primeiro escrito de Foucault, o problema de Freud foi o de não ter elaborado suficientemente a noção de símbolo. O pai da psicanálise teria compreendido o símbolo onírico de maneira simples e confundido índice e significação. Por um lado, as imagens oníricas são consideradas simbólicas, na medida em que são índices ou fazem alusão a algo que não é manifesto (acontecimentos vividos anteriormente, estruturas implícitas, experiências que permaneceram silenciadas); por outro lado, as imagens em conjunto possuem um sentido intrínseco: o desejo incestuoso, a regressão infantil, o retorno narcísico.

Seria justamente a distinção entre índice e significação que Husserl teria cuidado de apresentar na Primeira Investigação, das Investigações lógicas. Resumidamente, podemos dizer que o índice é um signo que não possui um significado em si. Foucault nos lembra do exemplo husserliano dos buracos na neve que, para uns, não passam de buracos, mas para um caçador, pode indicar uma lebre. O índice, portanto, seria um tipo de signo que, para ser significante de algo, depende de uma situação objetiva: é para um caçador que acaba de ver uma lebre fugir que os traços na neve são signos dela. A palavra “lebre”, por outro lado, não é um índice, mas um “signo autêntico”, diz Foucault. Não é preciso nenhuma situação objetiva para o signo “lebre” designar o animal que aposta corrida com a tartaruga (FOUCAULT, 2001a, p. 103).

Ora, enfatiza Foucault, Freud não distinguiu com clareza aquilo que, nos sonhos, simplesmente tinha sentido por designar ou remeter a uma situação objetiva vivida (“os elementos de indicação”) e “os conteúdos significativos” propriamente ditos, isto é, os “signos autênticos”, que devem possuir um sentido imanente à própria experiência onírica. É verdade, nota Foucault, que Freud reconheceu um direito de significação às imagens oníricas. Contudo, continua o filósofo, o sonho, para o pai da psicanálise, não passa de uma rapsódia de imagens. Nesse sentido, em Freud, o sonho só tem “direito psicológico” e não aponta para uma “experiência imaginária” propriamente dita (FOUCAULT, 2001a, p. 109).

E se, por um lado, Husserl dá um passo além da psicanálise, “ao fazer as imagens falar”, compreendendo o ato por meio do qual uma imagem se liga com necessidade a um sentido, ele tampouco foi capaz de encontrar um fundamento ontológico para esse mesmo ato e nos fornecer uma explicação acerca da experiência imaginária. É esse o passo ulterior que teria sido dado por Binswanger.

Para o psicólogo suíço não se trata mais de pensar o sonho nem como expressão de vividos psicológicos, nem tampouco a partir de uma análise formal dos atos que possibilitam em geral a significação. Trata-se, antes, de encontrar no sonho a própria estrutura ontológica da existência humana.

De acordo com Foucault, a concepção de sonho de Binswanger está ligada a certa tradição que tende a pensar a imaginação como forma específica de conhecimento que conhece a transcendência (Foucault fala de Schelling, Novalis e Herder, mas também de Espinosa e Malebranche). Nesse sentido, a experiência onírica consiste numa experiência imaginária que liga o homem a uma verdade transcendente. Mais do que a uma verdade psicológica, por meio do sonho e da imaginação nos ligamos com as verdades do mundo. Confirma Foucault (2001a, p. 116): “[...] o sonho, como toda experiência imaginária, é um índice antropológico de transcendência [...] é ao mesmo tempo revelador do mundo em sua transcendência”. E, na medida em que a existência é o próprio movimento de transcendência, movimento da liberdade em direção ao mundo, o sonho, enquanto experiência imaginária, revela justamente esse movimento originário do existir: “O sonho em sua transcendência, e por sua transcendência, desvela o movimento originário por meio do qual a existência em sua irredutível solidão se projeta na direção de um mundo.” (FOUCAULT, 2001a, p. 118). A cosmogonia do sonho, arremata Foucault (2001a, p. 119), “[...] é a origem da própria existência”. No sonho, vemos entrar em cena “[...] a liberdade mais originária do homem” (FOUCAULT, 2001a, p. 121). Nesse sentido, o sonho representa “[...] toda a odisseia da liberdade humana” (FOUCAULT, 2001a, p. 121). Assim, se, por um lado, no estado de sono, a consciência dorme, por outro lado, assegura Foucault, a existência acorda. É precisamente a essa estrutura antropológica da imaginação e, por conseguinte, do sonho, que nem Freud, nem Husserl chegaram.

Freud, entretanto, afirma Foucault, percebeu os limites de suas interpretações dos sonhos. No relato do famoso caso Dora, Freud teria se dado conta de que os sonhos não seriam simplesmente expressão de experiências passadas, mas que indicariam algo de mais profundo. Em 1954, esse elemento mais profundo seria, para Foucault, justamente o drama de toda a existência: o movimento da liberdade em direção ao mundo. Nesse sentido, o sujeito do sonho ou o sujeito que sonha, em Freud, seria ainda, aos olhos de Foucault, somente um “quase sujeito”; um sujeito constituído que, no sonho, revive sua história individual e suas experiências passadas e insconscientes.

Diferentemente seria o sujeito do sonho em Binswanger; o sujeito do sonho aqui não é só um sujeito constituído por certa história individual, mas é, sobretudo, um sujeito constituinte; um sujeito que, como todos os outros sujeitos humanos, possui o modo de existir da liberdade. É esse sujeito constituinte e universal que importa resgatar na interpretação dos sonhos de Binswanger. Essa interpretação não se limita a compreender as imagens do sonho, porém, quer compreender o próprio movimento da imaginação; não quer encontrar para cada imagem ou conjunto de imagens um sentido inconsciente correlato, mas encontrar nos sonhos o próprio movimento de transcendência da imaginação e da existência. Nesse sentido, podemos até falar em “[...] redução transcendental do imaginário” (FOUCAULT, 2001a, p. 145), afinal de contas, coloca-se entre parênteses as imagens oníricas a fim de pensar o próprio movimento da imaginação; movimento que se caracteriza não como ato intelectual na direção de um ente ideal, mas coincide com o próprio movimento originário da existência. A redução transcendental do imaginário, em Binswanger, não nos coloca diante de um ato puro do pensamento, mas diante do próprio modo de ser da existência. Trata-se aqui mais de ontologia do que de fenomenologia.

 Ao interpretar os sonhos, portanto, o psicólogo existencialista deve estar atento ao movimento, imaginário e existencial, de trajetória em direção à liberdade, à completude e à totalização; movimento que evidencia o modo de ser da existência em suas dimensões temporais e espaciais essenciais (FOUCAULT, 2001a, p. 133, 141, 145). Nesse sentido, o psicólogo deve atentar para as oposições manifestas entre perto/longe, ascensão/queda, inferior/superior, claro/escuro, já que são essas oposições que indicam “[...] as dimensões essenciais da existência” (FOUCAULT, 2001a,  p. 133): dimensões espaciais que marcam a oposição entre o eu (perto, claro e inferior) e o mundo transcendente (longe, escuro e superior) e dimensões temporais que marcam a oposição entre o atual e o devir, entre a morte iminente (queda) e a esperança de liberdade (ascensão).

Vê-se, então, o quão longe de Husserl e de Freud está Binswanger, no que diz respeito à reflexão sobre o sentido. Para o psicólogo existencialista, a relação entre imagem e significado não deve ser analisada em termos puramente formais e intelectuais do ato significativo, tampouco ser pensada à luz da história psicológica de cada um. As imagens oníricas apontam, antes, para certo modo de ser da imaginação (Foucault alude mesmo a uma “analítica ontológica da imaginação”), modo de ser este que equivale ao modo de ser da existência. Com isso, podemos sustentar que o sentido do sonho deve ser interpretado como sendo o próprio sentido da existência.

Assim, ao passo que, em Freud, como vimos, o sonho só adquiria “direito psicológico”, é somente com Binswanger que ele ganha o estatuto existencial; o sonho, para Binswanger, além de ser uma experiência psicológica é, acima de tudo, uma experiência imaginária e, por conseguinte, existencial. Desse modo, em seu texto introdutório a Binswanger, Foucault aponta as insuficiências tanto de Freud quanto de Husserl no que tange à fundamentação da psicologia. Nem um nem outro encontrou um fundamento ontológico que fosse capaz de explicar o sentido que está por trás das imagens, assim como da imaginação.

No entanto, se no texto de 54 Foucault parece ter encontrado na psicologia existencial um tipo de análise que poderia servir de suporte às interpretações da clínica e ao tratamento das doenças mentais, não demorará muito para o filósofo problematizar o suposto fundamento das  analíticas existenciais. A posição privilegiada da psicologia existencial, no que concerne ao “sistema de interpretação”, logo se transformará em alvo privilegiado de crítica. Toda a discussão em torno da confusão entre empírico e transcendental, esboçada em alguns textos da década de 50,  assim como na tese História da loucura e na tese complementar sobre a antropologia de Kant, de 1961, e sistematizada em As palavras e as coisas, de 1966, cuidará de desqualificar a hipótese inicial de Foucault de que a analítica existencial consistia numa boa solução para o problema do sentido e da interpretação.

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De maneira bastante sucinta, podemos dizer que o problema apontado por Foucault na analítica existencial diz respeito a sua pretensão ontológica. Como vimos, o filósofo indica que o que marca a ruptura entre Binswanger, de um lado, e Freud e Husserl, de outro, é o caráter ontológico que a investigação do psicólogo suíço pretende ter. Seguindo os passos de Heidegger, Binswanger pretendia compreender a estrutura ontológica do ser no mundo, ou seja, pretendia fazer uma ontologia da existência. Nesse contexto, toda produção de sentido deve ser pensada tendo em vista o sentido da existência humana; a interpretação dos sonhos, por exemplo, deve apontar, acima de tudo, para os modos de ser e de existir do homem.

Mas enquanto, em seu primeiro artigo que serve de introdução ao livro de Binswanger, uma ontologia da existência era, aos olhos de Foucault, o único tipo de reflexão capaz de fundamentar as ciências do homem, mais tarde, a partir provavelmente da leitura que o filósofo fizera do livro de Julles Vuillemin, L’héritage kantien et la révolution copernicienne: Ficthe, Cohen e Heidegger, de 1954, a inflexão ontológica que Heidegger dera à filosofia transcendental de Kant e que fora levada adiante pela psicologia existencial será vista como contraditória e problemática. Afinal de contas, querer compreender a estrutura ontológica do ser no mundo é querer, com as palavras de Lebrun, tomar uma verdade de fato como uma verdade de razão (LEBRUN, 1989, p. 44); é querer dar estatuto de necessidade àquilo que é da ordem da contingência, dar estatuto de transcendental àquilo que é da ordem da facticidade.

Em 1984, no primeiro prefácio que Foucault escreve para o segundo e o terceiro volumes da “História da sexualidade”, publicado somente na edição inglesa do livro, ele volta a comentar qual teria sido o “erro” das analíticas existenciais que pretendiam encontrar a estrutura ontológica do ser no mundo. Segundo nosso autor, esses tipos de análise pretendem falar da existência como se ela fosse uma estrutura atemporal e universal; como se o homem existisse no mundo sempre da mesma maneira. Para Foucault, a analítica existencial apresentava uma “insuficiência teórica” no que diz respeito à elaboração da noção de experiência (FOUCAULT, 2001c, p. 1398). Insuficiência que não dava conta de compreender o caráter histórico da experiência existencial, de compreender que em cada momento da história existimos de uma maneira diferente. Ao fazer ontologia, a analítica existencial deixava de lado a história e não dava conta “[...] de pensar a historicidade mesma das formas da experiência.” (FOUCAULT, 2001c, p. 1398).

Assim, se, no texto de 54 sobre Binswanger, a analítica existencial ainda era aos olhos de Foucault um modelo teórico interessante para uma reflexão sobre o homem, mais interessante do que o modelo psicanalítico de Freud e o fenomenológico de Husserl, não demorará muito, insistimos, para ela também tornar-se alvo de crítica. E, diante das críticas à fenomenologia existencial sustentadas por Foucault até seus últimos escritos, podemos nos perguntar se os problemas apontados pelo autor, no texto de 54, tanto à psicanálise freudiana quanto à fenomenologia husserliana, não teriam sido revistos ou até mesmo invalidados, já que o modelo em relação ao qual essas teorias se mostravam insuficientes fora desqualificado. Com poucas palavras: será que, depois da crítica à analítica existencial, Husserl e Freud não poderiam ser reabilitados? Por ora, interessa-nos pensar se a psicanálise, a partir daquilo que o próprio Foucault comenta dela, é ou não afetada pela crítica endereçada às analíticas existenciais, isto é, se a psicanálise, aos olhos de Foucault, faz ontologia e se consiste numa antropologia.

De imediato, somos levados a afirmar que a psicanálise, para Foucault, não cai nas armadilhas das analíticas da finitude. Em 1966, no livro em que o filósofo sistematiza sua crítica ao antropologismo e humanismo das ciências humanas, tanto a psicanálise quanto o estruturalismo são apresentados como alternativas a essas ciências que pretendem obter uma representação daquilo que é impossível ser representado, a finitude humana (ou o modo de ser finito e circunstancial do homem), e que estão longe de pretender dar um contorno ontológico à alienação constitutiva do homem. No final do livro, Foucault é enfático: “[...] nada é mais estranho à psicanálise que alguma coisa como uma teoria geral do homem ou uma antropologia.” (FOUCAULT, 2002a, p. 521). Além disso, já em 1964, numa conferência sobre Nietzsche, Foucault indica que aquilo que anos antes (no texto sobre Binswanger) lhe parecia uma insuficiência da psicanálise, era agora, a seu ver, uma virtude: a ausência de uma ontologia. Ao comentar a noção de interpretação em Freud, Foucault deixa claro que, para o psicanalista, não existe sentido último a ser descoberto; não existe verdade última acerca do modo de ser do homem a ser desvendada pela interpretação analítica.

No entanto, se até a década de 60 (com exceção do texto introdutório a Binswanger) os escritos de Foucault sobre a psicanálise tendem a ser elogiosos, já que ela, aos seus olhos, se distancia das “ilusões antropológicas” das demais ciências humanas, a partir da década de 70, parece haver uma mudança no modo de Foucault pensar a psicanálise. Desde então, a psicanálise aparecerá envolvida nas malhas do biopoder que toma o sexo como objeto privilegiado de dominação. E se, nesse período, as críticas foucaultianas à psicanálise apontam prevalentemente para as relações de poder que estão por trás do saber de Freud, é preciso investigar quais seriam as configurações teóricas da psicanálise que sustentariam a tese de que ela funciona como um “dispositivo de sexualidade”.

iV

Para que a tese final de Foucault sobre a psicanálise se sustente, talvez seja preciso supor que a psicanálise consista numa ontologia;  que ela pretenda, sim, dizer a verdade última do modo de ser do homem e que existe, sim, um sentido último a ser interpretado nos sonhos, nos atos, nas falas: a verdade do desejo sexual. Essa hipótese, contudo, contraria as teses de Foucault da década de 60, as quais asseguravam que a psicanálise não era uma antropologia; que a interpretação dos sonhos, em Freud, nunca nos coloca diante do sentido último do ser do homem. Mais ainda: essa hipótese faz com que a psicanálise, ao invés de consistir numa “contraciência” que se opõe às ciências humanas que buscam conhecer a verdade do homem como ser constitutivamente alienado de si mesmo, se configure ela também como uma analítica da finitude.

Em um artigo de 1985, intitulado “Uma arqueologia inacabada: Foucault e a psicanálise”, Renato Mezan propõe uma interpretação para a última leitura foucaultiana da psicanálise. Mezan entende que, em A vontade de saber, Foucault, apesar de afirmar que sua pesquisa sobre a sexualidade funcionaria como uma arqueologia da psicanálise, realiza, na verdade, uma genealogia da teoria de Freud. O autor nota que, nesse livro de 76, Foucault em nenhum momento se refere a todo o aparato conceitual que apresentara em seu livro sobre o método arqueológico: nada de regras de formações discursivas que funcionam como condições de existência para certos enunciados, nada sobre as formações de objetos, as modalidades de enunciação, os conceitos e as estratégias teóricas, por fim, nada sobre os sistemas de transformações (MEZAN, 1985, p. 113). Ao contrário, insiste Mezan, o argumento central de Foucault, em A vontade de saber, está no registro da continuidade. Continuidade em relação a quê? Em relação a certa estrutura de poder que remonta à Idade Clássica (MEZAN, 1985, p. 114). É aqui, então, que A vontade de saber realizaria mais uma genealogia do que uma arqueologia; mais do que compreender as condições epistêmicas do saber psicanalítico, o primeiro volume da História da sexualidade remontaria à vontade de poder que animou o projeto freudiano e seus desdobramentos posteriores. Conclui Mezan: “O verdadeiro objeto de A vontade de saber é a teoria do poder, a crítica da sua concepção jurídico-discursiva.” (MEZAN, 1985, p. 116).

Mezan sugere que a ambivalência da figura de Freud, em Foucault, pode ser compreendida à luz da diferença metodológica entre arqueologia e genealogia. Para o autor, do ponto de vista arqueológico, Freud aparece aos olhos de Foucault como um “gênio bom”, e acrescenta que é somente do ponto de vista genealógico que o pai da psicanálise se constituiria como um “gênio maligno”. Isso talvez justificaria o descompasso existente entre o elogio da psicanálise, no último capítulo de As palavras e as coisas, e a sua crítica, no primeiro volume da História da sexualidade.

Poderíamos dizer, por exemplo, que, do ponto de vista teórico, epistêmico ou arqueológico, a psicanálise teria trazido inegáveis contribuições para se pensar a constituição do sujeito além das teorias biologistas que reduzem o sujeito a um dado da natureza. Do ponto de vista prático e genealógico, entretanto, a psicanálise, aos olhos de Foucault, manteria, tanto na figura do analista como nas demais figuras de autoridade relevantes para a constituição do sujeito (o pai e a lei), a crença em certa relação de poder que seria típica do pensamento clássico: o poder soberano que exerce sua autoridade por meio da interdição/liberação.

A partir dessa distinção metodológica, em Foucault, Mezan sugere, por conseguinte, que toda a crítica à psicanálise do livro de 76 se dá em função de um projeto mais amplo que procuraria compreender a gênese das relações de poder (o biopoder) as quais estariam por trás de certa concepção moderna de sujeito e de sexualidade. E, se Foucault foi injusto com a psicanálise, ao reduzir sua prática a uma espécie de injunção à confissão, e a sua teoria à verdade da sexualidade, tudo isso se justificaria porque, no fim das contas, Foucault precisava mostrar que ainda estamos presos a certas práticas e concepções de poder que remontam à Idade Clássica e que tomam o desejo e o sexo como objeto de dominação. Conclui, então, Mezan (1985, p. 123): “Vê-se bem, agora, por que Foucault precisa deformar a teoria psicanalítica da sexualidade e a prática psicanalítica do acesso à sexualidade: para fazê-la caber num dispositivo de investimento e controle do corpo”.

Valendo-se do próprio Foucault, no entanto, parece ser difícil sustentar a tese de que suas críticas endereças à psicanálise, a partir da década de 70, se dão somente do ponto de vista genealógico. Como se Foucault operasse diversos reducionismos na teoria e na prática psicanalítica, a fim de poder enquadrá-la em sua teoria do biopoder. E isso por uma razão simples: para Foucault, os objetos de investigação da arqueologia e da genealogia são inseparáveis; onde há teoria do poder, deve haver também uma investigação sobre o saber. Nesse sentido, afirmar que Foucault não realizou uma arqueologia da psicanálise, mas somente uma genealogia, seria um contrassenso.

Como o próprio Mezan indica em seu artigo, já em A arqueologia do saber Foucault chama a atenção para a indissociabilidade entre saber e poder. A ideia de “embreagem” seria, segundo Mezan, a noção-chave desse livro e designaria justamente o vínculo estreito entre “[...] o plano dos saberes e o plano das instituições sociais, econômicas e políticas.” (MEZAN, 1985, p. 123). Entretanto, se Mezan vê nesse vínculo entre saber/poder certa recepção em Foucault do conceito freudiano da Anlehnung (conceito que trata da ligação estreita entre pulsões sexuais e funcionamento orgânico ou entre biologia e cultura), ele parece não perceber que é esse mesmo modelo de relação que nos impede de pensar separadamente arqueologia e genealogia. Assim, se Foucault faz uma genealogia das práticas psicanalíticas (se é que é possível falar de “práticas psicanalíticas” em geral), indicando as relações de poder e os interesses políticos, econômicos e sociais que estão por trás delas, ele deve também ter em vista uma arqueologia desse saber, apontando, sobretudo, as modalidades de sujeitos ou de enunciação que são exigidas para que esse tipo de saber exista.

É possível, como sugere Mezan, que em suas considerações sobre a psicanálise da década de 70 Foucault tenha insistido mais nas relações de poder. Mas, se é verdade que saber e poder são inseparáveis, as análises foucaultianas sobre as relações de poder intrínsecas às práticas psicanalíticas devem indicar, ou pelo menos supor, as condições epistêmicas desse saber (as verdades que ele pretende fazer circular, que tipos de sujeitos são exigidos para enunciar essas verdades, quais os conceitos utilizados etc.). A questão é saber onde, em Foucault, é possível encontrar uma arqueologia da psicanálise, já que, na década de 70, o filósofo se detém mais na descrição das tramas do poder. Ora, o grande livro arqueológico de Foucault é As palavras e as coisas. Retomando, então, as configurações epistêmicas do saber psicanalítico apontadas por Foucault, nesse livro, importa pensar se elas são suficientes ou mesmo condizentes com as teses genealógicas sobre esse saber defendidas a partir da década de 70. E se, no livro de 66, a psicanálise era vista como uma contraciência que se opunha às analíticas da finitude, devemos perguntar se, anos mais tarde, o modo de Foucault pensar a psicanálise não sofreu uma torção; se, a partir da década de 70, ela não passará a ser pensada também nos moldes das analíticas da finitude. Afinal, se é verdade que a prática psicanalítica consiste numa “injunção para eliminar o recalque”, isso talvez só aconteça porque, por trás dessa prática, há toda uma teoria antropológica e humanista que a sustenta; teoria que acredita na existência de um sujeito constitutivamente alienado de seu desejo sexual, que acredita que essa alienação é imposta pela força da interdição do incesto e, por fim, que acredita que essa alienação é de alguma maneira superada pela figura de autoridade do psicanalista.

É preciso, pois, verificar se o diagnóstico genealógico que Foucault dá da psicanálise em seus últimos escritos é compatível com o diagnóstico arqueológico que o filósofo faz das ciências humanas, as quais procuram fazer uma ontologia do homem alienado. Mas essa compatibilidade entre a genealogia da década de 70 e a arqueologia da década de 60, se for constatada, se dará às custas de uma incompatibilidade: aquela da visão da psicanálise entre um momento e outro. Ou seja, se, ao contrário do que sugere Mezan, é possível encontrar uma coerência arqueológica e genealógica no último diagnóstico de Foucault sobre a psicanálise, será preciso perceber uma diferença entre o modo de Foucault pensar a psicanálise na década de 60 e na década de 70.

V

Porém, será que a diferença no modo de pensar a psicanálise, entre um momento e outro da trajetória filosófica de Foucault, significa uma contradição interna à sua obra? Pode ser que sim. Pode ser que, de fato, com o andamento de suas pesquisas genealógicas sobre o biopoder, Foucault tenha mudado seu veredito sobre a psicanálise; que, ao invés de olhá-la como um saber hermenêutico que se preocupa em descobrir os mecanismos epistemológicos envolvidos na produção de sentido, passa a vê-la como um saber ontológico que se pergunta, antes de tudo, pela verdade do modo de ser do homem. Mas pode ser também que o aspecto epistemológico e o aspecto ontológico ressaltados por Foucault na psicanálise pertençam ambos a esse saber; nesse caso, a contradição ou ambiguidade da figura de Freud se deveria ao próprio Freud. É isso o que parece sugerir Derrida.

Além de notar que Foucault apresenta a psicanálise de diferentes maneiras, num e noutro momento de sua trajetória filosófica, Derrida mostra que, no interior de um mesmo livro, a imagem que Foucault nos dá da psicanálise está longe de ser unívoca. Usando uma metáfora, Derrida afirma que Freud é para Foucault como uma “dobradiça” (charnière), que ora se abre, ora se fecha; que  serve como paradigma de um novo modo de pensar, mas que também se enquadra num modo de pensar que deve ser superado. “Alternativamente ou simultaneamente, ele fecha uma época e abre uma outra”, afirma Derrida (1992, p.150). Em História da loucura, por exemplo, insiste Derrida, Freud aparece ao lado de Nietzsche como um daqueles que soube corretamente fazer falar a loucura e que rompe com a maneira clássica de lidar com ela: associá-la à desrazão e opô-la e excluí-la da razão (DERRIDA, 1992, p. 153-155).

Contudo, se, por um lado, Freud rompe com a Idade Clássica ao dar direito de cidadania à loucura e à desrazão, por outro lado, ele se mantém preso a certas figuras do pensamento clássico: o Pai, o Juiz, a Família, a Lei, a Ordem, a Autoridade, enfim, o poder soberano. Ao confiar todos os poderes à palavra do médico, a psicanálise, por meio da situação analítica, por exemplo, introduziria os pacientes num tipo de relação de poder característico da Idade Clássica e que só se sustentaria em função de uma mistificação da figura do analista como o detentor do segredo e da verdade do paciente (DERRIDA, 1992, p. 167).

Todavia, não seria somente em relação à Idade Clássica que Freud, aos olhos de Foucault, assumiria o papel ambíguo de, simultaneamente, pertencer e não pertencer a certo modo de pensar. A posição dentro/fora de Freud poderia ainda ser pensada tendo em vista o próprio período histórico, a própria epistémê, em que ele viveu: a epistémê moderna. Segundo Derrida, a ambiguidade do pensamento freudiano no que diz respeito ao seu pertencimento à epistémê moderna pode ainda ser observada em História da loucura.

Seguindo Derrida, podemos sustentar que Freud é e não é moderno. Ele não seria moderno, porque, se a modernidade é a era da psicologia, “[...] é preciso ser justo com Freud”, como insiste Derrida, retomando uma expressão do próprio Foucault, e reconhecer que ele não fez psicologia. Se a psicologia moderna positivista e organicista tende a compreender a loucura a partir de seus sintomas corporais, como se a doença estivesse no corpo e no organismo, Freud, como nota Derrida, irá falar com a própria desrazão “[...] que fala na loucura.” (DERRIDA, 1992, p. 154).

Como vimos, já em 1957, no artigo “La psychologie de 1850-1950”, mas também em Doença mental e pernsonalidade, de 1954, Foucault ressalta que Freud superara a psicologia positivista de Jakson, por exemplo, que pensava a doença mental a partir de um modelo biológico/evolucionista do organismo, por meio de uma investigação sobre o sentido, o inconsciente e a história individual. Por outro lado, podemos dizer que Freud é moderno, na medida em que segue certa tradição da psiquiatria moderna, de Pinel a Janet. Assim como os psiquiatras, notamos já que Freud mantém intactas as relações de poder entre médico e paciente e acaba por mistificar e coisificar magicamente a doença sob as vestes de uma objetividade científica. Com essa mistificação, Freud se colocaria como o arauto dos segredos mais íntimos e das verdades mais profundas dos homens e como aquele que é detentor do poder de desfazer as alienações constitutivas dos homens. Assim, se em História da loucura, Freud, num primeiro momento, aparece como aquele que faz falar a desrazão que fala na loucura (nesse sentido, ele rompe com o pensamento clássico, o qual exclui a loucura, mas também com o pensamento moderno, que tende a pensar a doença mental no orgânico e no biológico), em seguida, ele é mais um que “[...] permanece estrangeiro ao trabalho soberano da desrazão”, mais um que não explica o que há de essencial nessa experiência (FOUCAULT apud DERRIDA, 1992 p. 170), e volta a encerrá-la numa espécie de “aprisionamento moral”, que conserva na figura do analista o poder de aprisionar/liberar (e, nesse sentido, ele reata com o pensamento clássico que não pensa a própria loucura, assim como com a tradição moderna da psiquiatria que a toma como dado objetivamente científico e que pretende controlá-la).

Mas, em que essa ambiguidade da figura de Freud assinalada por Derrida, em História da loucura, pode nos ajudar a compreender o contraste apontado por nós entre a maneira elogiosa como Foucault apresenta a psicanálise, em As palavras e as coisas, e a maneira crítica como ele a denuncia, em A vontade de saber? Ora, somos tentados a dizer que, nos dois casos, se trata do mesmo problema. Afinal, se, por um lado, Freud não é moderno, na medida em que recusa a psicologia biologista de sua época, podemos dizer que, desse modo, não tenta pensar o ser do homem nos termos das ciências naturais e, assim, não faz um antropologia ou ontologia fisiológica;  por outro lado, ao passo que Freud se aproxima do modo de pensar da tradição psiquiátrica que encerra o doente mental num “aprisionamento moral”, o pai da psicanálise acaba adotando um tipo de reflexão sobre o homem que o toma como constitutivamente alienado de si mesmo e corre o risco de cair numa analítica da finitude e, nesse sentido, fazer ontologia.

Vimos já que Renato Mezan justifica o descompasso existente entre os diferentes lugares que a psicanálise assume para Foucault, por meio da diferença metodológica arqueologia/genealogia. Derrida, por sua vez, sugere que a equivocidade de Freud e da psicanálise, para Foucault, talvez se dê em função de uma contradição que pode ser encontrada na própria obra de Freud (DERRIDA, 1992, p. 173); ou seja, que é possível encontrar no próprio Freud esse constante balançar do pêndulo, esse quiasma que o faz, a um só tempo, pertencer e não pertencer à sua época, romper e não romper com a tradição. E Derrida nota bem que Foucault, em Doença mental e personalidade, esteve atento para uma dicotomia interna ao pensamento de Freud: de um lado, há os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905, que ainda se mantêm próximo da tradição biologista, evolucionista e positivista da psicologia; de outro, há as Cinco lições de psicanálise, de 1909, que dão ênfase à história individual do paciente, ao sentido e ao inconsciente, e que seguem não tanto um modelo biologista de investigação, mas um modelo filológico.

Seria preciso investigar, então, se essa partilha interna à obra de Freud sugerida por Foucault nos ajuda a resolver nosso problema, o da ontologia. No entanto, nesse contexto, seria importante verificar se no escrito sobre a sexualidade de 1905 não só Freud mantém os prejuízos de uma psicologia biologista e evolucionista (prejuízos assinalados por Foucault, já nas décadas de 50 e 60), mas também se a ontologia que lhe é subjacente não é justamente aquela encontrada por Foucault nas ciências humanas em geral e aquela que serviria de fundamento teórico para teses genealógicas as quais tomam a psicanálise como um dispositivo que assume o poder de desalienar o outro: uma ontologia do ser natural do homem como ser constitutivamente alienado de si mesmo.

Se assim for, encontraremos, na leitura que o próprio Foucault faz de Freud, uma justificativa para o descompasso existente entre os elogios foucaultianos das décadas de 50 e 60 e as críticas à psicanálise da década de 70. No que diz respeito aos elogios e àquilo que seria aos olhos de Foucault uma “boa psicanálise”, teríamos as teorias freudianas de cunho mais epistemológico e hermenêutico que estão mais preocupadas em compreender os mecanismos de produção de sentido do que fazer uma teoria geral do homem, uma ontologia ou antropologia; do lado das críticas e daquilo que seria, para Foucault, o “gênio maligno” de Freud, teríamos a teoria da sexualidade como ontologia da finitude e da condição alienada do ser natural do homem. Além disso, na medida em que for possível dizer que, para Foucault, existem dois “Freuds”, um que faz e outro que não faz ontologia, não seria descabido propor que, mesmo na década de 70, apesar das duras críticas à psicanálise, Foucault mantém-se próximo dela. Próximo não da psicanálise que faz ontologia, mas da psicanálise que se preocupa, antes de tudo, com o processo hermenêutico e com uma teoria da interpretação que tem como princípio jamais chegar à verdade última do ser natural do homem.

Começamos este artigo lembrando que, tanto no início quanto no fim de seu percurso filosófico, Foucault se mostrou interessado pela questão do sonho e da interpretação. E se, em sua primeira publicação, essas questões estavam influenciadas mais pela analítica existencial do que pela psicanálise, talvez seja o caso de perguntar se, em seus últimos textos, ao retomar essa temática por excelência psicanalítica, Foucault se conservou afastado do modelo teórico de Freud ou se, sub-repticiamente, falou na mesma língua que ele. Se o modelo interpretativo que Foucault propõe da História é explicitamente influenciado pela genealogia nietzschiana, ele deve ter também algum parentesco com o modelo interpretativo que Freud propõe para a história individual de cada um, afinal de contas, Freud e Nietzsche, como sugere o próprio Foucault, estão lado a lado quando se trata de pensar as questões sobre o sentido não tanto a partir de uma perspectiva ontológica, que se perguntaria pelo sentido último do ser do homem, porém, a partir de uma perspectiva mais prática que se interessa em compreender como, historicamente, o sentido é produzido. Desse modo, voltando a uma questão colocada atrás, talvez seja, sim, possível sustentar que a psicanálise, não só nos textos da década de 60, mas também nos das décadas de 70 e 80, será reabilitada por Foucault. Vimos, pois, que, em suas primeiras publicações, o filósofo denuncia o déficit ontológico da psicanálise frente às analíticas existenciais e que, depois da crítica às pretensões ontológicas das analíticas da finitude, esse déficit será aquilo mesmo que, na década de 60, garantirá o interesse de Foucault pela teoria da interpretação de Freud. Aqui, contudo, seria necessário ir mais longe e nos perguntar se um método interpretativo mais hermenêutico do que ontológico não é justamente o que mantém, mesmo nos escritos de 70 e 80, um ponto de contato entre as investigações históricas do filósofo e as do pai da psicanálise.

ABSTRACT: The goal of this study is to understand the status conferred on psychoanalysis by Foucault. In The Order of Things the philosopher condemns a certain kind of reflection that aims to confer an ontological status on human finitude. It is necessary to investigate whether the critique that Foucault addresses to psychoanalysis after 1966 is framed along the same lines as the critique made of the analytics of finitude. The aim is, therefore, to understand whether or not the accusatory claim that psychoanalysis is nothing but a “sexuality device” at the service of biopower is founded on the idea that psychoanalysis presupposes an ontology. The idea of psychoanalysis as ontology, however, is a thesis that is refuted by Foucault in some texts from the 1950’s and 1960’s. In this period, the philosopher holds that psychoanalysis is, above all, rather a hermeneutic method than a general theory on man. Thus, if it is true that Foucault’s final genealogical theses on psychoanalysis are grounded on a view of psychoanalysis as ontology, we are posed with a problem: does psychoanalysis ultimately consist, for Foucault, in a theory of the being of man?

KEYWORDS: Foucault, psychoanalysis, ontology, hermeneutic, finitude.

reFerênciAs

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Recebido em 22/11/2015

Aceito em 05/01/2016



[1] http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732016000100004

[2]  Pós-doutoranda em Filosofia/USP. E-mail: carunoto@hotmail.com

[3] Sobre a oposição entre Freud e Husserl feita por Foucault, em sua introdução a Binswanger, sugerimos a leitura do artigo de Luiz Damon Moutinho, “Humanismo e anti-humanismo: Foucault e as desventuras da dialética”. 

[4] Especificamente sobre essa leitura foucaultiana de Husserl, sugerimos o livro de Marcos Nalli, Foucault e a fenomenologia, em especial o capítulo 1: “A recepção da fenomenologia da significação na proto-arqueologia de Foucault”.