TINLAND, Olivier. L’idéalisme hégélien. Paris: CNRS Editions, 2013.[1]

Danilo Vaz-Curado R. M. Costa[2]

O presente livro de Olivier Tinland, que ora se resenha, constitui uma versão modificada de uma parte de sua tese de Doutorado defendida na Universidade Paris I, no ano de 2006, publicada no ano de 2013, pelas edições CNRS. Olivier Tinland, professor na Universidade Montpellier III - Paul Valéry, é conhecido nos meios acadêmicos pelos livros Hegel, Maîtrise et servitude - Phénoménologie de l’esprit (ELLIPSES, 2003), Hegel (Points, 2011) e pelas coletâneas: L’individu (Vrin, 2006) e Lectures de Hegel (LGF/ Livre de Poche, 2005), entre outros livros.

L’idéalisme hégélien, como o próprio nome já o indica, tem por objeto o estudo do idealismo hegeliano e o propósito de explicitação das condições as quais exprimem e dão consistência à concepção de idealismo defendida e sustentada por Hegel. Tinland (p.7) demarca com Hegel, em sua Ciência da Lógica¸ que toda verdadeira filosofia é um idealismo, e se põe o problema de indagar por que nem todo o idealismo exprime uma verdadeira filosofia, para então assumir a necessidade de problematização filosófica do idealismo como fio condutor da pesquisa filosófica em geral, e da pesquisa hegeliana, em particular.

O tema idealismo é particularmente importante, pois ele designa e remete ao mesmo tempo a autores tão díspares, como Platão, Kant, Jacobi, Berkeley, Schelling, Fichte, Hegel, entre outros, e ao mesmo tempo é objeto de críticas tão dissonantes entre si, como as dirigidas por Marx e Nietzsche, que o esclarecimento filosófico e a clareza e a distinção que dele se fazem necessários e revelam por si só o mérito de uma tal empreitada conceitual em face de um modo de filosofar essencialmente objeto de contestação.

Para a explicitação do idealismo hegeliano, o livro divide-se em três capítulos, intitulados de ontologie, réflexion e idéalisme, finalizando-se por um epílogo que tematiza as condições da recepção, entre nós – os contemporâneos –, da herança e do legado do idealismo hegeliano.

A hipótese defendida é que, se o hegelianismo pode ser compreendido como um idealismo, este não pode ser entendido tomando-se por referência uma instância subjetiva cujas capacidades teóricas e práticas proviriam de uma idealização necessária do mundo real, mas do modo ao qual no referimos ao mundo e de cujo saber se refere à questão de sua própria possibilidade e validade.

Ou seja, Tinland, ao defender o hegelianismo como um idealismo, rejeita a tese de que por idealismo possa ser concebida uma instância a priori de regulação e validação do saber.

Na esteira de sua hipótese de leitura do idealismo hegeliano, Tinland (p.9) sustenta que o procedimento de justificação da possibilidade e da validade de tal idealismo repousa sobre um procedimento imanente de explicitação e não sobre uma relação de fundação, de modo que a idealidade será muito menos a consequência externa da ideia e muito mais seu modo específico de tematização e caracterização epistemológica da própria estruturação da ideia de idealismo a qual se fará apresentar.

As três perspectivas capitulares da obra – ontologia, reflexão e idealismo se justificam na perspectiva de que em cada capítulo o autor retomará um grande tema conexo ao idealismo, seja na perspectiva interna ao próprio sistema hegeliano em geral e à Ciência da Lógica, em particular, seja na perspectiva externa, na medida em que cada capítulo corresponde a um grande tema filosófico com o qual Hegel debateu, confrontou-se e tematizou, filosoficamente.

Ao dividir sua reflexão em ontologia, reflexão e idealismo, o autor defende que cada momento da Ciência da Lógica desenvolve um modo específico da reflexão filosófica, o qual primeiro apresentaremos em seus traços gerais e, em seguida, faremos uma exposição mais detalhada.

Ontologia corresponderia ao Livro do Ser e ao modo de reflexão específico da tradição da metafísica dogmática e da reflexão acerca do fundamento último como um a priori, o Ser, e seu desenvolvimento categorial.

Reflexão corresponde à crítica à tradição da metafísica dogmática e sua superação enquanto filosofia transcendental. Na reflexão, as determinações do pensamento são apreendidas em sua oposição constitutiva.

No Idealismo será apresentada a contribuição propriamente hegeliana como uma Erhebung [elevação] que é, ao mesmo tempo, uma Aufhebung [suprassunção], tanto dos modos anteriores do filosofar como da exposição e apresentação da proposta especificamente hegeliana da filosofia, qual seja, a explicitação conceitual do real enquanto ideia.

O primeiro capítulo, intitulado de Ontologia, pode ser lido na perspectiva desenvolvida no livro, em dois vieses. Um primeiro viés de leitura desse capítulo corresponde internamente, na perspectiva geral do sistema, a uma posição do pensamento frente à objetividade; nesse modo específico de leitura, todo o capítulo seria uma reflexão interna da própria tradição da metafísica dogmática acerca de seus pressupostos.

Um segundo viés ou âmbito específico se traduz por uma reconstrução e crítica que a Ciência da Lógica elabora, mediante todo o Livro do Ser, à ideia de ontologia. No âmbito externo ao idealismo hegeliano, a ontologia está associada à filosofia dogmática de Leibniz e Wolff, a qual, a partir de Kant e sua KrV, é duramente combatida pela filosofia clássica alemã. Dessa forma, esta segunda perspectiva de leitura do primeiro capítulo permite ao leitor compreender a ontologia num novo modo. E este novo é a apresentação da ontologia como sistema categorial autofundacional.

No primeiro capítulo, o autor confronta o idealismo hegeliano com as correntes ordinariamente designadas de pós-kantiana, com o intento de avaliar o valor das acusações de que Hegel haveria retomado o projeto ontológico, numa espécie de regressão pré-crítica, e renuncia explícita aos avanços decisivos da filosofia transcendental.

Na realização do almejado no capítulo, o autor demonstra que a relação da filosofia hegeliana com a metaphysica generalis se caracteriza por uma crítica dos seus pressupostos metodológicos subjacentes em constante relação com a crítica kantiana.

Dita perspectiva de enfrentamento da metafísica dogmática se estrutura como uma crítica imanente, tanto dos pressupostos dogmáticos do projeto ontológico clássico como das críticas modernas (Empirismo e Kant) a esse projeto dogmático, de sorte a invalidar o realismo especulativo ingênuo. Em conclusão, para o autor, Hegel propõe uma alternativa de crítica à metaphysica generalis fundada sobre uma concepção radicalmente diferente da filosofia transcendental kantiana e pautada por uma discursividade filosófica própria, com seus próprios critérios de justificação, validação e normas de determinação conceitual.

O primeiro capítulo, na perspectiva desenvolvida pelo autor, salienta que Hegel foi capaz de, através de sua crítica, edificar uma metafísica reformada e emancipada do suporte lógico da teoria clássica da predicação, mediante o estabelecimento das condições de desenvolvimento autônomo das puras essencialidades lógicas, superando a sobredeterminação e o condicionamento presente na perspectiva filosófica da metafísica dogmática de interferência entre a ordem das matérias (metafísica especial) e o desenvolvimento da ideia pura (metafísica geral), em direção de uma ontologia autofundacional.

No segundo capítulo da obra, o autor aprofunda a relação entre o idealismo hegeliano e o idealismo transcendental, através da análise das transformações da ideia de reflexividade no seio da filosofia pós-kantiana.

Nesse confronto dos idealismos a partir do conceito reflexividade, Tinland se apoia em Schulze e Fichte, os quais lançaram zonas de sombra sobre o projeto transcendental kantiano, e reconstrói com base principalmente em Fichte a reflexividade de maneira explicitamente autorreferencial, integrando num mesmo logos a análise metacrítica da racionalidade e suas condições de enunciação, tornando-a apta a integrar as condições transcendentais de sua própria gênese e validade.

Dita crítica centra-se sob o quadro de uma subjetividade abstrata,[3] no qual trabalha a reflexão filosófica kantiana e fichteana, com o propósito de dar conta do imbricamento real dos atos cognitivos ideais do sujeito finito num quadro natural e cultural, o qual lhe sirva de plano de fundo normativo e lhe permita articulá-los de modo processual numa estrutura portadora de racionalidade objetiva.

Olivier Tinland assume e razoavelmente demonstra que Hegel refunda o conceito de reflexão ao custo de uma orientação autorreflexiva do discurso filosófico, articulando a estrutura ontológica, agora renovada, e a perspectiva transcendental esvaziada de seu viés subjetivo abstrato.[4]

O terceiro capítulo, ao partir da radicalização da exigência reflexiva do idealismo transcendental, assume a tarefa de expor um idealismo objetivo emancipado de todo empirismo lógico e da perspectiva de um quadro referencial sistemático estruturado desde a perspectiva da subjetividade abstrata.

Para o desenvolvimento da perspectiva do terceiro capítulo, o Idealismo, Tinland assume como insuficiente o confronto com a perspectiva reflexiva de Kant e Fichte, e direciona sua reflexão em direção a Schelling. Nesse movimento, Tinland demonstra como Hegel estrutura uma concepção ampliada de idealismo, a qual não repropõe a ideia schellingniana de um idealismo como simples filosofia do absoluto, mas num idealismo do absoluto concebido enquanto espírito.

Pode-se, então, resumir o propósito mais geral do terceiro capítulo numa retomada do ideal sistemático sob uma forma explicitamente autorreflexiva que articula, de modo dialético, tanto o ponto de vista do sujeito finito do saber filosófico como o ponto de vista sobre as condições de possibilidade e validade de um tal saber.

Nesse modo de compreensão do projeto hegeliano, o idealismo supera a ideia de uma identidade vazia ou, nas sarcásticas palavras hegelianas, duma noite em que todas as vacas são pardas, em direção a um ideal-realismo absoluto.

Tinland defende, portanto, que Hegel sugere um tipo de idealismo em oposição a toda forma de realismo (lógico, epistemológico e metafísico), mediante uma teoria dialética da idealidade de toda a realidade finita. Tal perspectiva, contudo, não rejeita o realismo, mas o incorpora como momento superado.

Ao propor essa nova forma de idealismo irredutível a qualquer princípio ou fundamento e, ao mesmo tempo, imune às tematizações subjetivistas de idealização da consciência estruturada em torno de uma forma de reflexão crítica generalizada que assume o conjunto das pressuposições reais e ideais e as integra nos dois planos precedentes (ontológico e reflexivo), mediante uma perspectiva holística e processual da discursividade filosófica, Tinland acredita haver apresentado o Idealismo hegeliano, ao mesmo tempo, fiel a seus pressupostos e atualizado às pretensões da filosofia contemporânea.

A conjunção dos três capítulos, das perspectivas críticas e das reconstruções neles operadas conduz a uma nova definição do idealismo hegeliano ou, nas palavras de Olivier Tinland, de uma epistemodiceia de vocação sistemática.

Assim, tal odisseia da epistemologia – epistemodiceia – de vocação sistemática, posta ao serviço de um empreendimento de autojustificação do saber filosófico de uma metafísica autorreflexiva e dialética da experiência natural e histórica do mundo, se constituiria como o campo vivo legado pelo idealismo hegeliano.

Com alguma segurança, pode-se afirmar que o livro de Olivier Tinland, L’idéalisme hégélien, se afirmará como um importante estudo e auxiliará a renovar a reflexão acerca dos destinos da Filosofia Clássica Alemã, desde uma perspectiva metafísica, seja pela clareza no tratamento das fontes, seja pelo refinamento no desenvolvimento dos argumentos dos autores.

A tentativa de atualizar a explicitação dos conceitos da Ciência da Lógica com os aportes da fenomenologia de Husserl, com as contribuições da epistemologia contemporânea e do pragmatismo conceitual da escola de Pittsburg, faz com que o livro O Idealismo hegeliano, de Olivier Tinland, apresente uma lúcida releitura daquela que é a obra magna do hegelianismo e, ao mesmo tempo, a mais enigmática e impenetrável.

Todavia, numa análise crítica de seus pressupostos, pode-se com alguma segurança afirmar que a ordem dos conceitos, como os desenvolvidos em L’Idéalisme hégélien, assume, sem mais, a própria dicção instaurada por Hegel na Ciência da Lógica, o que reduz o potencial crítico da leitura apresentada.

Ao seguir, sem mais, a proposta hegeliana da Ciência da Lógica, o autor terminou por assumir, sem mais, os limites da época, quando Hegel tenta traduzir o seu tempo em conceitos, mas que não possuem mais valor hermenêutico para nossa época.

Por fim, pode-se concluir pelo grande valor da obra para a HegelForschung, pela riqueza da reconstrução dos temas e problemas, do amplo domínio da literatura especializada, porém, não se pode, ao mesmo tempo, deixar de registrar que a obra se coloca, em certa medida, numa tradição de autossuficiência do texto hegeliano numa clara leitura ortodoxa. 5

Book review: TINLAND, Olivier. L’idéalisme hégélien. Paris: CNRS Editions, 2013. ISBN 978-2-271-07617-5

Recebido / Received: 02/01/2015

Aprovado / Approved: 03/03/2015



[1] https://doi.org/10.1590/S0101-317320150003000011

[2] Professor da UNICAP/PE e Doutor e Pós-Doutor em Filosofia pela UFRGS. E-mail: danilo@unicap. br ou danilocostaadv@hotmail.com.

[3] Olivier Tinland utiliza a expressão egológica, termo de nítida influência husserliana.

[4] Na perspectiva desenvolvida por Olivier Tinland, o hegelianismo apontaria já à sua época como uma limitação a propostas como aquelas de Manfred Frank e de Dieter Henrich, que, enquanto membros da escola de Heidelberg, sustentam um retorno à subjetividade como conceito central da filosofia.