Wolff e Kant sobre ObrigaçãO e Lei NaturaL: a rejeição do Voluntarismo teológico na moral[1]
Bruno Cunha[2]
RESUMO: O objetivo deste artigo é discutir sobre os conceitos de obrigação e lei natural, tendo como referência o polêmico debate moderno envolvendo intelectualismo e voluntarismo. Em um primeiro momento, destacaremos a rejeição de Wolff ao voluntarismo de Pufendorf e sua orientação em direção ao intelectualismo de Leibniz. Conforme essa nova orientação, uma teoria da lei natural não deve basear seu conceito de obrigação na autoridade das leis (estabelecidas, em uma instância maior, como um decreto arbitrário de Deus) e em seu poder coercitivo (suscitado, na parte obrigada, como medo da punição), mas, por outro lado, unicamente na ideia de necessidade moral, interpretada como expressão da ligação natural universal dos seres racionais com o dever. Em um segundo momento, apresentaremos os efeitos dessa discussão no pensamento inicial de Kant, que, se posicionando diante mesmo de Wolff e Baumgarten, vai empreender a superação de seus predecessores, através de uma revisão conceitual do problema, a qual culminará nos pressupostos de sua doutrina ética madura.
PALAVRAS CHAVE: Obrigação. Lei natural. Ética. Direito.
Neste artigo, meu objetivo é focalizar, em um primeiro momento, a rejeição de Wolff ao voluntarismo teológico de Pufendorf e sua orientação em direção ao intelectualismo de Leibniz, mostrando, a partir disso, toda uma articulação teórica em torno dos conceitos de obrigação e lei natural dentro do debate ético moderno na Alemanha. Em um segundo momento, apresentarei a posição de Kant, desde seus escritos iniciais até suas preleções, diante mesmo dos conceitos morais de Wolff e Baumgarten, o que culminará nos pressupostos de sua doutrina ética madura.
Na aurora do pensamento alemão moderno, a importância de Christian Wolff é indiscutível. Reconhecido, por seus contemporâneos, como o grande “praeceptor Germaniae”, Wolff foi responsável por impulsionar o desenvolvimento das linhas mestras do iluminismo alemão, que são propriamente remetidas a Leibniz, através da elaboração de todo um vocabulário filosófico específico em substituição ao latim e pelo grande apelo a uma filosofia sistemática. No entanto, o que se mostra pouco evidente, mesmo hoje, é que seu pensamento sofreu algumas transformações significantes até alcançar a posição que, em consonância com a de seu mestre, seria observada em seus escritos maduros.
Em seu primeiro trabalho, Philosophia practica universalis, mathematica methodo conscripta, de 1703, é notável a inclinação de Wolff em direção à posição de Samuel Pufendorf, um conhecido oponente de Leibniz. Dentro do campo da jurisprudência, Pufendorf foi um dos mais notáveis autores alemães daquele tempo, tendo adquirido notoriedade ao ponto de sua obra se transformar em uma referência didática universitária. Em De Jure Naturae et Gentium, Pufendorf defende a concepção de que Deus deu a todas as pessoas a capacidade de conhecer, sem a ajuda da religião, os princípios fundamentais da moralidade e do direito, entendidas como leis naturais. Todavia, para o autor, devido ao advento do pecado original, nosso conhecimento natural é deficiente. Nem todas as pessoas estão aptas a reconhecer a lei nos casos particulares e, sobretudo, a agir de acordo com as exigências implícitas em seus princípios. Por isso, a maioria precisa tomá-las de uma autoridade (PUFENDORF, 1672, II. iii. 13, p. 204). De um modo geral, é com essa premissa que Pufendorf expõe seu conceito de obrigação. A força da obrigação é justificada a partir da autoridade que subjaz à lei e determina punições, em caso de transgressão. Ela reside, portanto, em seu poder coercitivo, suscitado, na parte obrigada, como medo da punição. As sanções são justificadas porque a obrigação pressupõe que as diretrizes vêm de alguém que por direito pode exigir determinado comportamento, dentro de limites que possam ser considerados justos. Assim, em um contexto mais amplo, a lei natural e a obrigação dependem da autoridade de Deus. Ele, como o supremo legislador, apresenta as leis. Nós, como súditos, somos obrigados a segui-las. Não é nossa compreensão desses princípios que nos move a ação, porque seu conteúdo, enquanto proveniente da vontade de Deus, é incompreensível. De outra maneira, é a consciência das sanções e o respeito que nos fornecem o incentivo suficiente para seguir os mandamentos de Deus apresentados como lei natural (SCHNEEWIND, 2001, p. 165).
Essa perspectiva é denominada, pela literatura do século XIX, voluntarismo teológico (SCHNEEWIND, 2001, p. 34). Os voluntaristas, dentre os quais podemos incluir Grotius, Hobbes e Descartes, acreditavam que a essencialidade de Deus para a moralidade descansa no fato de sua vontade tê-la criado por um decreto arbitrário e incompreensível. Deus, enquanto criador e mantenedor das leis, não pode estar submetido a nenhuma outra razão além daquela que diz respeito ao seu próprio arbítrio. A aceitação desse ponto de vista está claramente delineada na posição de Pufendorf, quando ele se mostra convicto de que Deus não pode estar sujeito a nenhuma lei. Não existe nada superior a Deus e, por isso, em relação a Ele não há nenhuma obrigação, porque é necessário pressupor que não há qualquer moralidade comum entre Ele e os homens. Nas palavras de Pufendorf: “[...] quem ousa pensar nisso? [...] Esses raciocínios não são claramente absurdos?” (PUFENDORF, 1672, II.iii, p. 123).
As linhas de uma concepção voluntarista, desse tipo, são claramente notáveis no trabalho inicial de Wolff. Provavelmente por influência de Pufendorf, o autor apresenta em sua Philosophia Prática, de 1703, um conceito de lei e obrigação no qual reconhece que é a ordem de uma força superior o aspecto que primeiramente é capaz de instituir qualquer condição ou lei obrigatória. Mais especificamente, o conceito de obrigação precisa considerar dois aspectos fundamentais estabelecidos a partir da inter-relação entre aquele que obriga e o obrigado, relação essa que se explicita, no que concerne ao primeiro, enquanto poder coercitivo, e, na sua contraparte, como a consequência desse poder, ou seja, como medo de punição.
A obrigação pode ser considerada em dois modos [...]. No primeiro caso, obrigação é um ato de um superior, através do qual se define a punição que é imposta aos transgressores das leis pela razão. No último, no entanto, é o medo relativo tanto à sanção penal e ao respeito perante o superior, devido à exposição à jurisprudência das leis. (WOLFF, 1755, p. 197).
Não demorou, todavia, até que o contato com Leibniz, um engajado oponente de Pufendorf, desencadeasse uma drástica mudança na orientação wolffiana. A esse respeito é especialmente importante a correspondência entre Leibniz e Wolff de 1705. Na carta datada de 21 de janeiro, Leibniz apresenta uma crítica à tese de habilitação de Wolff, desencadeando nele uma profunda crise intelectual (SCHWAIGER, 2001, p. 64). Em outra carta do mesmo ano, datada de 21 de abril, Leibniz se posiciona sobre a questão, afirmando que mesmo sem a consideração de uma força divina maior e, portanto, mesmo no caso dos ateus, a obrigação permanece válida, porque a obrigação, ao contrário da posição assumida anteriormente por Wolff, não pode ser derivável do medo de uma possível punição ou pela esperança de recompensas futuras.
Acredito que mesmo sem uma obrigação estabelecida por um superior, a obrigação permanece válida também para os ateus [...]. Eu não gostaria, com efeito, que a obrigação estivesse ligada unicamente ao medo de punição e a esperança de recompensa [...] (LEIBNIZ, 1860, p. 19).
Essas considerações foram necessárias para demonstrar que a origem da obrigação e da lei natural não pode ser estabelecida a partir da autoridade ou da decisão arbitrária de um supremo legislador. Lei e obrigação devem ser sempre fundadas exclusivamente mediante aos mais universais princípios da razão, os quais devem operar da mesma forma tanto em Deus quanto nos homens. Isso está definido de um modo bastante claro na carta com fecho de oito de dezembro, na qual Leibniz (1860) escreve a Wolff:
Você diz corretamente que a essência das criaturas depende do intelecto divino e sua existência de sua vontade. Todavia, a vontade de Deus, por sua vez, obedece à regra do intelecto, porque Deus não deseja a menos que ele esteja consciente do que é melhor a partir de seu intelecto. [...] O fato da mente estar determinada a um pensamento ao invés de outros não acontece a partir de uma decisão puramente indiferente, mas, pelo contrário, tem suas próprias razões [...] (p. 50).
Essa posição será apresentada por Leibniz publicamente e de uma forma mais detalhada, pouco tempo depois, em Monita quaedam ad Samuelis Pufendorfii principai (Algumas opiniões sobre os princípios de Samuel Pufendorf). Nesse ensaio, o autor rejeita o fundamento voluntarista de Pufendorf, para estabelecer que a moralidade não é uma criação aleatória da vontade divina. Com efeito, a garantia de qualquer obrigação é válida, não porque um estado de coisas é criado pelo medo das sanções, mas porque ela expressa uma necessidade racional, que é tão universal para nós quanto para Deus. Assim, abre-se mais claramente o caminho para se compreender a moralidade como um tipo peculiar de necessidade interna que não é meramente consequência da esfera coercitiva externa, mas expressão do autogoverno dos indivíduos. Essa condição torna-se factível devido ao fato de compartilharmos, em nossa própria esfera, dos mesmos conhecimentos racionais-morais acessíveis a Deus. Com isso, vemos delineadas, de um modo geral, as linhas fundamentais da posição dos opositores do voluntarismo, posição conhecida, dentro da literatura, também, como intelectualismo teológico e defendida no trabalho de autores modernos como Cumberland, Clark e Cudworth (SCHNEEWIND, 2001, p. 34).
Para Schwaiger (2009, p. 65), é perceptível que Wolff foi fortemente influenciado em direção a essa posição tanto pela crítica de Leibniz[3] ao seu trabalho inicial quanto pela própria defesa de Leibniz frente a Pufendorf, em Monita quaedam, obra que certamente lhe foi familiar em função das explicitas referências feitas a ela, na Acta Eruditorum. Outra evidência sobre o impacto dessa influência, como nos indica Schwaiger, é encontrada no ensaio Ratio praelectionum, de 1718, onde Wolff apresenta uma autocrítica, admitindo sua falha em distinguir, segundo sua influência inicial, a obrigação natural da civil. Essa crítica segue o mesmo caráter da inserida posteriormente no Ausführliche Nachricht, no qual Wolff admite, em oposição a Pufendorf, que o conceito de obrigação em si deve derivar unicamente da natureza de nosso espírito, permanecendo válido mesmo sem a pressuposição da existência de Deus[4]. O reconhecimento de que as leis e a obrigação partem da ordem da vontade dominante de um ente supremo, para Wolff, decreta a destruição da objetividade moral e da bondade intrínseca das ações morais. Eis as palavras wolffianas do § 137 de Ausführliche Nachricht von seinen eigenen Schrifften (1726) :
[...] tem nos sido ensinado, a partir da assumida opinião pufendorfiana, que antes da lei uma ação não é boa ou ruim, mas é concedida primeiramente através da lei. Todavia, eu estou empenhado a mostrar, na filosofia, o fundamento de tudo isso. Eu considerei, portanto, infundada esta opinião. [...] Eu considerei, todavia, que as ações livres do homem ou tendem para a perfeição da natureza humana e seu estado externo ou para a imperfeição desse [...] Portanto, é possível encontrar o fundamento da lei da natureza na perfeição da natureza humana e depois disso na perfeição do mundo. [...] na natureza do homem e nas propriedades das ações livres é fundada uma obrigação, a qual eu chamo de natural, e que deve ser reconhecida mesmo por aquele que não acredita em Deus. [...] porque eu percebi que os homens tomam a lei como um fardo, como se Deus tivesse limitado sua liberdade a partir de um mero autoritarismo; portanto, eu concebi Deus como um pai que estabelece na lei da natureza quando ele nos prescreve, o meio através do qual podemos alcançar a felicidade na terra. (p. 392-396).
Com essa posição, pois, tem-se, com Wolff, a legitimação dos pressupostos do intelectualismo teológico dentro do debate alemão sobre obrigação e lei natural. Isso se encontra bem definido na ideia geral de que “[...] a lei da natureza exige a nossa perfeição e a de nosso estado: mas, esta perfeição é o último propósito de todas as ações livres, portanto, deve o homem, que quer alcançar sua felicidade, poder alcançá-la através das forças naturais nesta vida [...]”. Em outras palavras, as forças que nos obrigam ao dever e abrem o caminho da felicidade são, por conseguinte, intelectualmente acessíveis, na medida em que estão de acordo com os padrões universais da natureza. A razão é propriamente essa capacidade de decodificar os padrões eternos e perceber as diretrizes de um mundo moralmente ordenado. Portanto, a lei moral é também uma lei da natureza, e a própria natureza humana contém em si as regras do comportamento livre como norma obrigatória das ações, em vista do bem em geral (WOLFF, 1738, § 127 ff, p. 268). Diante disso, uma teoria da lei natural não deve basear seu conceito de obrigação na autoridade das leis (estabelecidas, em uma instância maior, como um decreto arbitrário de Deus) e em seu poder coercitivo (suscitado, na parte obrigada, como medo da punição), mas, por outro lado, unicamente na ideia de necessidade moral, interpretada como expressão da ligação natural universal dos seres racionais com o dever. a posição de Kant diante do vOLuNtarismO e a articulação de um noVo conceito de ObrigaçãO
A continuidade dessa discussão foi levada adiante pelos seguidores de Wolff, os quais, envolvidos em disputas intelectuais com os discípulos de Pufendorf, buscaram uma fundamentação cada vez mais profunda e sistemática para o problema. Um esforço especialmente importante nesse sentido foi observado no trabalho de Alexander Baumgarten, que dedicou toda sua Initia philosophiae praticae primae a investigar o conceito de obrigação. Segundo Schwaiger (2009, p. 68), Baumgarten promoveu uma radicalização desse conceito em específico, porque, enquanto Wolff tratara do conceito de obligatio em apenas uma seção da Philosophia Practica Universalis, seu discípulo dedicou o tratado inteiro a esse tópico. Em proximidade a Wolff, Baumgarten (1760) define a ética como a ciência de todas as obrigações que se apresentam ao homem em seu estado de natureza e, que, portanto, podem ser conhecidas por nós sem o recurso da fé (§ 1, p. 1). Naturalmente, a diretriz básica inscrita nessa definição foi repassada ao jovem Kant, que conheceu muito dos conceitos fundamentais da filosofia prática devido ao contato com Baumgarten, cujos compêndios foram usados como referência para suas preleções de ética. Sabemos que tanto a Initia Philosophae Praticae Primae quanto a Ethica de Baumgarten foram compêndios que Kant usou em suas preleções, porque estas trazem referências claras a essas obras, além de discussões sobre tópicos concernentes à filosofia prática universal (ALISSON, 2011, p. 6). É observável que a filosofia prática de Herder é um complemento à Ethica Philosophica de 1740 (KANT, 1910, 27:871-1028)[5] e que a Initia Philosophae de Praticae Primae de 1960 também é uma referência fundamental de outras preleções (KANT, 1910, 19: 7-91).
Os indícios envolvendo alguns problemas com a questão do voluntarismo, todavia, podem ser encontrados em instâncias ainda mais primordiais do pensamento kantiano. As mais antigas reflexões de Kant em metafísica, datadas de 1753 ou 1754, e conhecidas como losen Blättern E69, D32 e D33 ou reflexões 3703- 3704-3705, revelam, através da crítica kantiana à teodiceia de Leibniz, uma aparente inclinação de Kant em direção à posição voluntarista representada por Pope. Nessas reflexões, é possível perceber que a radicalização de certos aspectos do intelectualismo teológico de Leibniz faz emergir, como Kant vai observar, um conflito insondável entre a vontade universal de Deus e a necessidade metafísica da natureza (KANT, 1910, Ref. 3705. 17:236-237). Na hipótese de Leibniz, o mal é atribuído não à vontade de Deus, mas aos defeitos necessários das coisas finitas que existem no mundo sem Seu consentimento. Na escolha do melhor dos mundos, Deus é “[...] como um marinheiro que sacrifica parte de sua carga a fim de salvar o navio e o resto” (KANT, 1910, 17:236), pois Ele apenas pode “[...] guardar, considerar, examinar” e então deliberar racionalmente em direção às melhores possibilidades, sem evitar por força de sua própria escolha que, mesmo assim, o mal aconteça. Para Kant, quando se leva em consideração a existência dessas possibilidades pré-dispostas dentro da natureza, mesmo “antes de Deus” (17:237), parece incontornável o fato de que o arbítrio divino está submetido a um “[...] tipo de fatalidade necessária” (KANT, 1910, 17:237). Assim, o sistema de Pope, que declara que tudo é bom, conquista sua preferência, porque “[...] submete toda possibilidade ao domínio de um ser original todo suficiente” [der Herrschaft eines allgnugsamen Uhrwesens], proporcionando as bases para se acreditar que “[...] a concordância universal dos arranjos do mundo, se eles podem ser reconhecidos em si e por si, alcança a mais bela prova da existência de Deus” (KANT, 1910, Ref. 3705. 17:238).
O argumento teológico das possibilidades pode ser verificado, dentro do contexto de 1750, ainda na História Natural Universal e Teoria dos Céus (KANT, 1910, 1:333-334) e igualmente, de maneira mais argumentativa, na proposição VII da Nova Dilucidatio (KANT, 1910, 1:395-396). Apesar de tudo isso, podemos sustentar, com bastante convicção, que a crítica a Leibniz não correspondeu a qualquer aceitação do voluntarismo por parte de Kant, porque é notável a emergência de sua defesa do intelectualismo teológico ainda nesse contexto e, claramente, em uma passagem da Nova Dilucidatio, quando ele reclama a necessidade da determinação racional da vontade diante do conceito de liberdade de indiferença de Crusius. Segundo ele, a liberdade de indiferença, que produz ações nascidas “ao acaso” e privadas do encadeamento de razões, é pouco digna “[...] de figurar entre as prerrogativas dos seres inteligentes”[6]. Por esse motivo, mesmo em Deus, que possui uma liberdade absoluta por estar além das cadeias de determinação, a ação é “[...] determinada por razões que incluem os motivos de sua inteligência infinita, na medida em que estes inclinam certamente a sua vontade, não procedendo de uma força cega da natureza” (KANT, 1910, 1:400).
Em 1759, no ensaio Uma tentativa de algumas reflexões sobre o Otimismo, Kant aprofunda sua resposta, escancarando sua defesa de Leibniz e tornando pública sua crítica ao voluntarismo. Kant explica que a escolha do melhor dos mundos possíveis é justificada através de razões específicas às quais o arbítrio de Deus se vincula, que se relacionam, especificamente, com a própria natureza do ser divino. “A razão para a escolha que dá existência a este mundo não foi sua particular superioridade interna, mas, em vez disso, sua harmonização a um grau mais elevado com as propriedades divinas” (KANT, 1910, 2:34). O critério último que proporciona a adequação entre a escolha divina e a existência efetiva do mundo é a ideia de uma “perfeição absoluta”. Dessa maneira, como Kant observa, não há motivos para se acreditar que a ideia de um mundo mais perfeito presente no intelecto de Deus não fosse feita real por sua vontade. Ou que Deus escolheria arbitrariamente o pior em detrimento do melhor. De acordo com ele, “[...] mesmo que fosse possível ao ser supremo ter sido capaz de escolher de acordo com a noção fictícia de liberdade que alguns tem colocado em circulação e ter escolhido o pior em detrimento ao que era melhor como resultado de um desconhecido capricho absoluto. Ele nunca teria agido desse modo” (KANT, 1910, 2:34). Essa forma de liberdade, a qual é exatamente aquela atribuída à vontade de Deus pelos voluntaristas, está propensa a banir “[...] para dentro de um nada eterno o melhor que foi possível criar”. Por tal motivo, assinala Kant, mesmo que a incapacidade de escolher entre algo diferente daquilo que se reconhece como o melhor seja “[...] uma necessidade que cancela a liberdade”, essa “[...] necessidade benevolente, que é tão favorável a nós, e da qual não pode surgir nada além do melhor”, é sempre preferível à uma escolha positiva “entre erros” (KANT, 1910, 2:34). “Se alguém fosse tão ousado a ponto de afirmar que a Suprema Sabedoria poderia achar o pior melhor do que o melhor, ou que a bondade suprema deve preferir um bem menor do que o maior, que estava igualmente ao seu alcance, eu não deveria perder meu tempo em tentar uma refutação.” Como Kant assevera, nenhum aprofundamento mais expressivo é necessário com relação à refutação de uma posição tão pouco racional como a do voluntarismo. “A filosofia é colocado em um mau uso, se for empregada em subverter os princípios da reta razão, e é pouco honrado se encontra necessário mobilizar suas forças, a fim de refutar tais tentativas” (KANT, 1910, 2:33).
Com essa posição publicamente assumida, Kant desloca a discussão da esfera dos problemas metafísicos e teológicos para os problemas próprios da obrigação moral e da lei natural. Isso é notável naquelas anotações mencionadas anteriormente, conhecidas como filosofia prática de Herder, datadas de meados de 1760. Já no início de sua leitura, Kant coloca a pergunta fundamental que antes já havia sido levantada por Wolff e Baumgarten: “Podemos, ainda sem pressupor a existência de Deus e Seu arbitrii, derivar internamente [interne] todas as obrigações?” E ele responde: “Responsio: […] Do arbítrio divino eu não posso por mim mesmo obter os conceitos pertencentes [gehörigen] ao bem” (KANT, 1910, 27:9). Ora, pois, mesmo que eu fosse capaz de conhecer a fundo o arbítrio de Deus, observa Kant, ainda sim seria problemático o modo como posso perceber, a partir dele, a necessidade segundo a qual minha vontade é orientada. E Kant pergunta-se: onde se encontra essa necessidade, se eu não derivar a obrigação da natureza da coisa? Só porque “Deus quer isso – Por que eu deveria querer? Somente porque Ele me punirá?” Portanto, se essa necessidade não existe na natureza da coisa [ex natura rei], não é possível estabelecer qualquer critério necessário para a conduta, nem mediante a punição, porque mesmo o ato de punir deve se basear anteriormente em algo, a saber, na obrigação, entendida como a expressão de uma necessidade, e não meramente na natureza do poder punitivo. Caso contrário, orientarse pelo arbítrio divino seria como prestar obediência “aos déspotas” (KANT, 1910, 27:9). A posição de Kant aqui se mostra de acordo com a dos críticos modernos do voluntarismo, que sustentavam a ideia de que os princípios voluntaristas justificavam uma concepção de comunidade entre Deus e homens e entre os próprios seres humanos baseada na tirania e no servilismo. A exigência cristã do amor a Deus e ao próximo é comprometida, quando a noção de uma comunidade moral não pode ser pensada através de princípios comuns, acessíveis a todos. Essa denúncia havia sido engendrada pelos Platônicos de Cambridge, através das palavras de Smith, as quais apontavam para a necessidade de se superar essa noção de religião como “uma obediência constrangida e forçada aos comandos de Deus”. A repugnância de Kant em relação ao servilismo, compreendido como uma dependência totalmente contrária à liberdade em que os seres racionais se submetem às ordens de outros, é um indicador de sua aceitação dos aspectos mais gerais da posição antivoluntarista (SCHNEEWIND, 2001, p.556).
É notável, na perspectiva kantiana, que a jus naturae divinum seria desprovida de qualquer fundamento, se a ação que lhe foi submetida não pudesse se ligar a uma necessidade incondicionada. O conceito de arbitrium divinum mostra-se conflitante relativamente ao de decretus absolutus, porque a moralidade, mesmo em Deus, deve ser pressuposta, correndo o risco de que sem ela todo o conceito de arbitrium divino possa desaparecer (KANT, 1910, 27:10). Por isso, “[...] a aplicação do arbitrium divinum ao factum, como um fundamento, pressupõe o conceito de obrigação […] (KANT, 1910, 27:9), e tudo se “[...] esvanece se não há moralidade como fundamento da relação e da conformidade do meu arbitrium com o de Deus”. Porque, “[...] sem uma consideração anterior de obrigação, punições surgem do nada; o que Deus dispõe é de uma mera má-vontade”. Assim, “[...] as conseqüências físicas que eu posso evitar e, então - a ação - não é mais uma transgressão” (KANT, 1910, 27:10). Como Kant salienta, em suma, sem o estabelecimento prévio da obrigação, os próprios conceitos de justiça e punição permanecem arbitrários e sem qualquer critério de avaliação quanto às leis e à conduta e, enfim, às sanções[7].
Não se trata aqui de negar os preceitos da religião natural, porque, como Kant reitera, os traços de uma Ethica rationalis exigem a consideração do arbitrium divinum, concebido, no entanto, de um modo distinto, como “[...] um fundamento da obrigação externa de nossa moralidade”. A religião natural é para a moral, apenas uma parte, mas nunca seu fundamento. Deus, como fundamento de toda possibilidade, é o fundamento de todas as coisas, mas, a partir de sua natureza e não per arbitrium. Em outras palavras, Nele já existe a moralidade e, portanto, “Sua escolha não é o fundamento”. Disso decorre que, mesmo sem o arbítrio divino, a “[...] minha ação ainda é moral” (KANT, 1910, 27:10). Dessa forma, Kant conclui assertivamente contra Pufendorf e os voluntaristas, em geral, que a “Moralidade é mais universal do que o arbitrium divinum”.
Com essa afirmação, Kant segue os passos de Wolff e Baumgarten, assumindo que a obrigação deve permanecer válida, mesmo no caso dos ateus8. Todavia, se Kant legitima sua posição a favor do intelectualismo teológico nas mesmas linhas de seus predecessores, ao mesmo tempo, já se visualiza também, em certos aspectos, sua independência em relação a eles, principalmente quanto à definição dos conceitos de obrigação e lei natural. Kant começa por diferenciar os conceitos de “jus naturae e ética”, que são, segundo ele, “muito diferentes”, uma vez que um “requer sujeições e o outro, obrigações”. A Ética é a ciência dos deveres internos (KANT, 1910, 27:13). Dessa maneira, Kant deixa indicado, no conjunto de preleções intituladas
no limiar do desenvolvimento da metafísica da moral, em meados de 1760, quando Kant sugere como solução para o problema de sua própria teodiceia, a ideia de um mundo moral ordenado com base em suas próprias regras internas, que, estando além das condições empíricas do espaço e do tempo, pode promover uma justificativa para a desarmonia visível das ações morais e suas consequências nesse mundo. Para Kant, “[...] é muito inconveniente ter de buscar refúgio em uma vontade divina extraordinária para dar conta do estado inadequado que nasce” disso. Porque o homem não está “autorizado a inventar disposições novas e arbitrárias [...], erigindo ao mesmo tempo em regra da vontade divina” (KANT, 1910, 2:337). Esse tema será tratado em outra ocasião. 8 Kant, porém, é cuidadoso ao tratar o tema e, por isso, levanta a seguinte questão: “Pode um ateu ser tolerado na sociedade?” (KANT, 1910, 27:10). Kant vai distinguir entre dois tipos de ateus, aqueles os quais ele denomina ateus in sensus privationis e define como ignorantes do conhecimento de Deus, e outros, os quais ele chama de ateus in sensus contradictorie e define como pessoas que falham no conhecimento da divindade, mesmo tendo ciência do assunto. Os primeiros, segundo Kant, não são perigosos, porque, para eles, “[...] a obrigação permanece, à parte do novo fundamento de motivação que é derivado do arbitrium de Deus, e a moralidade ainda está presente” (idem, 27:11). Os ateus que negam a Deus por falta de uma melhor convicção também não são perigosos e podem estar de acordo com a forte lei da obrigação. No entanto, aqueles que se movem nesse sentido devido à libertinagem, conforme Kant, trazem um fundamento imoral para o ateísmo e, portanto, são muito perigosos para a sociedade.
Collins, que o conceito de lei natural e de obrigação só são válidos quando necessariamente atrelados a um fundamento interno presumido a partir dessa concepção mais profunda de ética. Kant já havia anunciado, em 1764, no ensaio Investigação sobre a Evidência dos Princípios da Teologia Natural e da Moral [Preisschrift], que uma regra da obrigação é problemática, quando condicionada por um fim determinado: “[...] todas as ações são contingentes na medida em que a moral as dita sob as condições de determinados fins e não podem ser chamadas de obrigação enquanto não forem subordinadas a um fim necessário em si” (KANT, 1910, 2:298). Assim, toda regra da obrigação deve comandar e prescrever a obrigação de forma imediata, não se relacionando a um fim ou a condições estabelecidas. De acordo com isso, portanto, Kant sublinha em Collins que uma obligatio naturalis que nasce da Lex naturalis precisa ter seu fundamento tão somente na ação em si e não deve se confundir com uma obligatio positiva, produto de uma Lex-arbitraria, que tem seu fundamento na vontade de outro. Crusius havia defendido a ideia de que uma obrigação sempre deve pressupor o arbitrium altenus. No entanto, para Kant, ao contrário disso, é preciso admitir que uma obrigação só pode ser realmente necessitada por um arbitrium internum, que se baseia na “condição necessária da vontade universal”. Logo, é preciso distinguir muito bem o caráter de uma obligatio positiva em relação à naturalis. A primeira é indireta, porque não se dirige imediatamente para uma ação. Ela seria identificada, na terminologia da Preisschrift e da Fundamentação, com aquilo que Kant chama de uma necessidade dos meios ou um imperativo hipotético. Por exemplo, quando se evita a mentira devido ao medo de uma punição de Deus. Em contrapartida, há o que Kant chama de obligatio naturalis, que diz respeito a uma forma imediata e direta de determinação da ação. De acordo com isso, é errado mentir, não porque Deus proíbe, mas porque isso é ruim por si mesmo. A verdadeira obrigação moral descansa no fato de que a ação é realizada a partir de sua própria disposição interna em direção ao bem. Desse modo, “[u]ma ação deve ser realizada, não porque Deus quer, mas porque é virtuosa ou boa em si” (KANT, 1910, 27:262). É exatamente por isso que Deus a quer e nos exige a sua realização. Em consideração aos juízos morais, todos os fundamentos devem ser sempre objetivos e nunca subjetivos. Por isso, na vontade de Deus, as leis subjetivas são idênticas às leis objetivas da boa vontade universal (KANT, 1910, 27:264). A consequência disso, portanto, é que qualquer obrigação ou lei natural deve ser fundada irremediavelmente naquilo que Kant chama de “condição necessária da vontade universal”, o que, na terminologia propriamente madura, é definido como imperativo categórico.
Nesse ponto, o mencionado distanciamento de Kant em relação aos wolffianos é observado na forma de se compreender a necessidade moral, porque, para Wolff, a obrigação é nada mais do que um meio para se aumentar a plenitude ontológica do homem. Em outras palavras, a moralidade é um meio para se alcançar a perfeição natural de seus estados internos e externos (SCHMUCKER, 1961, p. 50) que incluem aqui sua felicidade, a qual é alcançada nesse mundo na forma do sumo bem. O problema se agrava quando o bem ontológico representado no conceito de perfeição, que condiciona toda a obrigação em Wolff, permanece, como nota Kant, um conceito indeterminado (KANT, 1910, 27:264). Com efeito, fica também indefinido o fundamento da volição, podendo este se vincular a qualquer fim contingente (ALLISON, 2011, p.44). Em Baumgarten, a consequência disso aparece na ideia de que imperativos não estão limitados à esfera própria da moralidade. Mas, como vimos, tais imperativos não são mais do que imperativi problematici[8], ou seja, imperativos que não indicam uma obrigação genuína, porque se vinculam a fins estranhos às verdadeiras metas morais (KANT, 1910, 27:266). Para a moral, a fórmula de Baumgarten, “busque a perfeição tanto quanto puder” e “faça o bem, omita o mal”, falha, exatamente, porque não define a natureza da perfeição em consideração ao bem que deve ser buscado e ao mal que deve ser omitido. A ambiguidade do enunciado (principium vagum) permite que a perfeição ou o bem seja considerado em relação a qualquer propósito arbitrário, seja o prazer, seja a busca pela felicidade ou mesmo outro fim contingente. Portanto, a fórmula “‘Fac bonum et omitte malum’ pode não ser um princípio de obrigação moral, porque o bem pode ser bom em uma variedade de modos para qualquer propósito dado, uma vez que é um princípio de habilidade e prudência” (KANT, 1910, 27:266). Por isso, o princípio da perfeição, nesses termos, demonstra, em relação ao princípio verdadeiro da moral, um alto grau de inutilidade.[9] Ademais, Kant destaca que, quando esse princípio deseja se referir particularmente ao bem moral, torna-se tautológico. “Uma regra tautológica é aquela que, quando acionada para decidir sobre uma questão, nos proporciona uma resposta vazia. Se a questão é o que eu faço em consideração a minha obrigação e a resposta é faça o bem e abstenha-se do mal, isto é conseqüentemente uma resposta vazia [...] (KANT, 1910, 27:265). O fato é que, isento de qualquer fundamentação ontológica mais específica, o conceito não traz nada para a moralidade além de um formalismo vazio justificado no enunciado redundante de que é bom que façamos o bem (KANT, 1910, 27:264-65)11. O conceito “[...] não fala nada do que é bom, dizendo apenas que eu devo fazer o que eu devo fazer”. Diante disso, a ética, que é uma “ciência tão cheia de tautologias [...] suplica por uma resposta”
Essa resposta, que é, propriamente, a solução para o problema da obrigação, anunciado nessas preleções, adquire, em Kant, sua forma madura na ideia de uma metafísica dos costumes e em sua concepção fundamental de autonomia da vontade. O prefácio da Fundamentação da Metafísica dos Costumes deixa entrever a necessidade da rejeição do voluntarismo e da superação do conceito de necessidade dos meios para a fundação correta das bases da obrigação. Com essas palavras, Kant introduz a questão em sua fase madura e proporciona as bases para uma nova compreensão do problema moral12. Em suas palavras: “[...] para uma lei valer moralmente, isto é, como um fundamento de uma obrigação, tem que trazer consigo uma necessidade absoluta [...] por conseguinte, o fundamento da obrigação não se deve buscar na natureza do homem ou nas circunstâncias do mundo [...] mas sim a priori, exclusivamente em conceitos da razão pura” (KANT, 1910, 4:389). Como Kant observa, a Filosofia Prática Universal de Wolff falha, exatamente, porque funda os conceitos práticos fundamentais a partir de uma hipótese geral da vontade. Sem qualquer diferenciação, ela não capta o que é propriamente moral. Por conseguinte, é necessário investigar “[...] a idéia e os princípios de uma possível vontade pura” e não “ações do querer humano em geral, as quais são tiradas, em sua maior parte da psicologia” (KANT, 1910, 4:390). Em continuação à problemática das preleções de Collins, Kant indica, então, que a regra capaz de extrair o bem da ação, portanto, não deve, como em Wolff, se
aperfeiçoarmos só pode ser moralmente válido se ligado ao imperativo categórico. Como fundamento próprio da moralidade, o conceito é tautológico. Ver Mongrovius (idem, 29:616).
11 Ver também nas preleções de Mongrovius (KANT, 1910, 27:1414).
12 Devido ao objetivo proposto, não extrapolaremos os limites de nossa questão, adentrando nas obras críticas em específico ou no significado mais profundo do conceito de autonomia.
basear nas condições externas da natureza, mas deve determinar imediatamente o comportamento. Ela é uma regra que não se relaciona “[...] com a matéria da ação e com o que dela pode resultar, mas com a forma e o princípio que dela mesma deriva” (KANT, 1910, 4:416). O que é essencialmente bom em uma ação reside em sua disposição e essa é alcançada apenas através do imperativo formal, que, em sua fórmula mais fundamental, é expresso da seguinte forma: “Age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 1910, 4:421). Todavia, é preciso notar que o imperativo categórico não é um formalismo vazio e nem uma regra tautológica, porque, em contrapartida a Wolff, ele capta o que é universal dentro da vontade e coloca isso como o fundamento absoluto do bem e da obrigação. No desdobramento interno da vontade, é ainda preciso pressupor “[...] a vontade de todo ser racional concebida como vontade legisladora universal (KANT, 1910, 4:431). E, nesse ponto, Kant deixa indicado, de forma incipiente, sua posição sobre a questão da lei natural. A legislação incondicionada da vontade, compreendida como um estado de coisas determinada por leis universais, deve ser sempre considerada, na comunidade de membros autonômos-legisladores, como uma lei universal da natureza (KANT, 1910, 4:421).
É notável que a polêmica contra o voluntarismo teológico tenha sido de fundamental importância para o desenvolvimento das teorias morais de autogoverno que emergiram desde o início do período moderno e alcançaram sua maior profundidade filosófica na concepção de autonomia de Kant. Os oponentes do voluntarismo buscaram estabelecer o postulado de que a moralidade fornece princípios universalmente válidos e que esses princípios podem ser alcançados unicamente pelas capacidades próprias do sujeito, sejam intelectuais, sejam mesmo sensíveis, independentemente de qualquer condição exterior, legitimando seu caráter autárquico. O wolffianismo afirmava que o conhecimento era capaz de transformar pelo menos algumas pessoas em agentes autogovernados, indicando as diretrizes do dever (SCHNEEWIND, 2001, p.554). Mas, esse tipo de moral aristocrática, baseada propriamente no conhecimento intelectivo, tornava a necessidade moral problemática, ao estabelecê-la como uma necessidade dos meios. Se a obrigação, já nesse ponto, não dependia da coerção e da vontade de Deus, ela, por outro lado, dependia da harmonia dos estados internos e externos do homem e da natureza, alcançada por meio da atividade intelectiva. Contudo, a necessidade de usar meios para alcançar fins não poderia explicar a necessidade moral, porque todos os nossos desejos na direção de bens específicos, mesmo os intelectuais, são sempre contingentes. Logo, as exigências do agir autônomo reclamam a capacidade da própria vontade em promulgar a sua própria lei e de concebê-la como o único fundamento da faculdade de desejar. Apenas nessas condições, nós podemos compartilhar a condição privilegiada de membros de uma mesma comunidade, na qual tanto nós como Deus somos igualmente legisladores.
ABSTRACT: This paper highlights the debate around the concepts of obligation and natural law , with reference to the controversial modern discussion involving intellectualism and voluntarism. Firstly, we highlight Wolff’s rejection of the voluntarism of Pufendorf and Wolff’s orientation toward the intellectualism of Leibniz. For intellectualism, a theory of natural law should not ground the concept of obligation in the authority of laws (established as an arbitrary decree of God) and in their coercive power (interpreted as fear of punishment), but in the idea of moral necessity, understood as an expression of the universal natural connection of rational beings with duty. We then present the effects of this discussion on Kant’s early thought. Kant undertook to go beyond Wolff and Baumgarten through a conceptual review of the problem, which culminated in the assumptions of his mature ethics.
KEYWORDS: Obligation. Natural law. Ethics. Right.
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Recebido / Received: 01/04/2015
Aprovado / Approved: 06/05/2015
[1] http://dx.doi.org/10.1590/S0101-31732015000300007
[2] Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais sob orientação do Prof. Leonardo. A. Vieira. Estagiário de doutorado na Johannes Gutenberg Universität (Mainz - Alemanha), sob orientação do Prof. Heiner Klemme. E-mail: brunohells@hotmail.com
[3] Schwaiger afirma que existem poucas dúvidas, dentro da literatura, em relação à influência de Leibniz sobre Wolff quanto à rejeição da ideia de lei natural em Pufendorf. Ele destaca os trabalhos de: CAMPO, Cristiano Wolff e Il razionalismo precritico, p. 504, e THOMANN, Christian Wolff et Le droit subjectif, In: Archives de Philosophie Du Droit 9, 1964, p. 153-174.
[4] Contra as acusações de ateísmo, Wolff vai afirmar que é possível ao ateu perceber a obrigação moral, mas a moralidade é capaz de alcançar a completude apenas quando ligada com a piedade. O ateu tem, no melhor dos casos, quando ele preenche naturalmente o dever posto pela lei natural, apenas uma moralidade imperfeita (WOLFF, 1738, § 245 ff; 250-255; 273-280).
[5] Para as citações de Kant, manteremos o formato usado pela Kantsforschung, em que é designado primeiro o volume, em referência às obras completas de Kant organizadas pela academia de Berlim, e depois a paginação. Ex: volume 27 e páginas 871-1028 (27:871-1028).
[6] [...] hoc enim pacto parum commendabiles forent entium intelligentium prärogativis.
[7] No desenvolvimento de seu pensamento, Kant demonstra uma preocupação especial com o conceito de justiça distributiva, que é a ideia de que os viciosos devem ser punidos por Deus e os virtuosos recompensados com a felicidade. Todavia, uma resposta para a questão só começa a ficar mais clara
[8] Nas preleções de Collins, Kant focaliza o que ele chama de imperativi problematici como uma regra que não carrega em si qualquer necessidade ligada à obrigação moral.
[9] Kant admite que, entre todos os princípios práticos equivocados, a perfeição se apresenta como o melhor, pois, diferente das teorias sentimentalistas e eudaimonistas, ela, pelo menos, é estabelecida sob fundamentos racionais ao invés de aspectos, tais como o sentimento e a felicidade, os quais são nocivos à fundamentação da moralidade. Ver Mongrovius (KANT, 1910, 29: 629) e Fundamentações (idem, 4:433). Mas, se, em certo ponto, Kant admite que a perfeição não é uma completa tautologia, ele destaca seu grau de inutilidade. Ver Collins (idem, 27:265). Certamente, isso se deve ao fato de que a perfeição, entendida como “a completude do homem em relação a sua força e capacidade e prontidão para alcançar todos os fins [...]” é complacente com a moral. Todavia, ela por si só não pode ser identificada com a bondade moral, que é, segundo Kant, uma qualidade (perfeição) da vontade. Por isso, a perfeição, como a capacidade de levar adiante o fim da vontade, só é indiretamente necessária a moralidade. Ver Collins (idem, 27:265-266). O dever que temos em nos