Considerações sobre a esperança em rousseau Considerations on hope in rousseaus thought

Telmir de Souza Soares[1]

RESUMO: A Carta a Voltaire representa, entre outras coisas, a resposta de Rousseau às críticas feitas pelo filósofo francês ao Segundo discurso. Se o Discurso, segundo Voltaire, deveria ser considerado como uma peça contra o gênero humano, o Poema sobre o terremoto de Lisboa poderia ser lido, segundo Rousseau, como um libelo contra a providência. Nesse sentido, a Carta oportuniza ao pensador genebrino afirmar sua crença na providência e no otimismo, elementos fundamentais que são a base da esperança. A esperança, em Rousseau, se liga tanto ao sentimento quanto à razão: fundada na providência e no otimismo, ela acalenta nosso coração face às adversidades da vida, informando-nos que tudo vai bem com o todo. A esperança se relaciona à existência, à minha existência no agora; a esperança, em Rousseau, ajuda a viver no hoje, por isso ele reclama de Voltaire a transformação da esperança em engodo. Em suma, em Rousseau, a esperança está ligada ao presente e ao futuro, à razão e ao sentimento, e, em poucas palavras, à própria busca pela felicidade. PALAVRAS-CHAVE: Rousseau. Voltaire. Esperança. Providência. Otimismo.

introdução

O terremoto de Lisboa representou um momento delicado na vida de Voltaire, que se encontrava em meio a múltiplas dificuldades de ordem pessoal. No âmbito de suas amizades pessoais, a morte de Madame de Chatelet representou grande turbulência para a vida do filósofo; quanto à impressão dos seus livros, os roubos por parte de livreiros e mesmo de impressores que, desonestos, faziam mais cópias do que as estabelecidas em contrato, vendendoas em proveito próprio, eram uma fonte de constantes aborrecimentos. A isto se somem os ataques que o pensador francês sofria à época, por conta da recepção de sua obra.

Além do âmbito pessoal, a Europa se viu movimentada por duas guerras que redefiniram seu contorno: a Guerra da sucessão austríaca (1740-1748) e a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), destruindo as ideias de um usufruto livre e sem limites dos prazeres terrestres, da luxúria, do refinamento, do gosto e dos bens materiais. Assim, ao invés de usufruir desse catecismo de prazeres, exposto principalmente no Le mondain, de 1736, os homens preferiam a guerra. Nesse cenário já desolador, o terremoto que se abateu sobre Lisboa lança mais um obstáculo ao otimismo do início do século XVIII.

Assim, o pensador francês, que no início de sua carreira compartilhava da visão de mundo de sua época, se pôs a questionar acerca das concepções filosóficas fundadas no otimismo e na concepção da existência de um mundo ordenado, baseado em um desenho inteligente do universo. Mais especificamente, suas críticas se dirigiam às concepções de Pope e Leibniz. Como prova dessa mudança, o Poema sobre o terremoto de Lisboa, de 1755, se opõe a teses defendidas pelo mesmo Voltaire, no Poema sobre a lei natural, que data de 1752 e tem ainda uma vinculação com o pensamento de Leibniz. Seus livros, como Micromegas (1739, 1752), Le monde comme il va (1746), Zadig (1747) e o Cândido (1759), são expressões dessa mudança quanto à providência; da passagem de um otimismo para um ceticismo, no que concerne às teorias que defendem o melhor dos mundos.

Voltaire, após a impressão do Poema, envia-o por um amigo comum a Rousseau, que, após ler a obra, aproveita do libelo voltaireano para fazer várias considerações sobre os argumentos vigentes no pensamento de Voltaire sobre a providência. Além disso, o Poema oportuniza ao genebrino defender-se e defender algumas de suas ideias que outrora tinham sido atacadas pelo francês.

1. das interpretações da Carta a Voltaire

O poema de Voltaire se tornou célebre não somente em função da excelência da poesia do francês, mas também por revelar as preocupações de um literato já famoso com a dor oriunda dos suplícios sofridos pelos portugueses, em face de uma tragédia recente. A despeito de ser um texto dedicado ao coração que sofre, não se propondo fazer uma análise de temas e elementos relacionados à teodiceia, o poema oportuniza uma série de reflexões sobre o pensamento vigente à época: a influência de Locke e Leibniz sobre vários pensadores, inclusive o próprio Voltaire; as dificuldades do paradigma mecanicista de Descartes e Hobbes; as pesquisas desenvolvidas por Laplace etc. 

Por seu turno, A Carta a Voltaire possibilita uma série de interpretações. Se, em seu Poema, Voltaire reintroduz o dilema proposto por Epicuro e trabalhado por Lactâncio, o qual aponta para o paradoxo existente entre a onipotência de Deus e sua benevolência, no que diz respeito à existência e recorrência do mal físico, a Carta de Rousseau pode ser lida na perspectiva de um contra-argumento rousseauniano sobre o mal. Outra perspectiva, oriunda dessa primeira, diz respeito ao estatuto efetivo da providência divina, cuja discussão estava presente nas correntes filosóficas da época e que podem ser resumidas nas seguintes posições: Deus cria e provê de forma específica para cada ser; Deus provê de modo geral, a partir das leis com as quais ele dotou a criação; ou, segundo a perspectiva mais radical, Deus não criou nada, pois nada é, sendo esta uma tese paroxista a propósito da antiprovidência fundada sobre o absurdo paradoxo de se tentar justificar o mal.

A estas teses some-se a abordagem, desenvolvida por Voltaire e Rousseau, muito embora refutada igualmente por ambos, da inexistência do mal, perspectiva oriunda da radicalização das teses do dilema proposto por Lactâncio. Em meio a esse universo, ainda abe uma última perspectiva, a qual consistia em opor o otimismo ao pessimismo/ceticismo.

As considerações ora presentes neste trabalho constituem numa discussão sobre a providência e a sua relação com a natureza, o que nos conduz a uma abordagem sobre a esperança, na perspectiva que foi adotada por Rousseau, principalmente na Carta a Voltaire.

2. dos argumentos Contra a providênCia aos argumentos em favor da providênCia: voltaire Versus rousseau

Rousseau compreende a fundo a argumentação voltaireana que, segundo ele, vai  desaguar em um profundo desespero, em um beco sem saída. Voltaire, em seu poema, após apresentar e figurar a desolação resultante das consequências do terremoto, contrapõe a essa imagem as noções e concepções vigentes que asseveravam a existência do melhor dos mundos (Leibniz), bem como propugnavam uma crença inabalável no otimismo (Pope).

Para Voltaire, o axioma que afirma tudo está bem parece estranho, após considerarmos os desastres que ocorreram na China e em Lima. Seu poema pode ser visto como um libelo contra a Providência, muito embora Rousseau se negue a classificá-lo dessa forma. Entretanto, Voltaire, apontando para o desespero contido em tais acontecimentos, contesta as concepções vigentes, negando à esperança toda razão de ser. Segundo Rousseau, Voltaire acusa a esperança de ser um engodo, colocando-a no nível dos males, da ignorância, dos defeitos; desse modo, para o genebrino, Voltaire transmuta a esperança na própria infelicidade.

O Poema se apresenta como uma ocasião para Rousseau mostrar que o terremoto não é o resultado de um mal físico, de um desordenamento do mundo, mas o resultado de um desordenamento moral. Ele aproveita, ainda, para ilustrar seu ponto de vista com as teses apresentadas anteriormente, no Discurso sobre as desigualdades, texto que foi duramente criticado por Voltaire: “A justa defesa de mim mesmo obriga-me somente a fazer observar que, ao pintar as misérias humanas, meu objetivo era desculpável, e mesmo louvável; pois mostrava aos homens como eles próprios produziam suas desgraças e, consequentemente, como podiam evitá-las” (ROUSSEAU, 2005, p. 123).

O Segundo discurso trata da miséria humana, todavia, o seu objetivo é claro para o genebrino: indicar ao homem uma saída ou, talvez, um lugar do qual ele nunca deveria ter saído: da sua relação com a natureza. Entretanto, ao mostrar os males oriundos desse afastamento, o que Rousseau de fato se propunha era apontar os desvios feitos e os possíveis caminhos a serem seguidos. Da impossibilidade do retorno à natureza, ao homem compete, ao menos, ouvir sua voz e guiar-se pelos seus princípios. Em suma, ao invés de ser um texto desesperador, o Segundo discurso é um texto sobre a esperança, que, pelo exercício do paradoxo, aponta em meio ao processo de degeneração do homem os caminhos para sua felicidade. Feito em termos de denúncia, o texto seria, de acordo com Rousseau, um libelo acerca de uma esperança possível.

Em contrapartida, o Poema de Voltaire desvela um homem miserável, iludido e em desespero. Não havendo providência, o homem existe sem esperança alguma. E, como vimos na citação acima, Rousseau, declarando o aspecto prático de seu discurso – ajudar os homens a evitar suas desgraças, a minorar seus males – toma como tarefa imperiosa e urgente defender a esperança. Assim, de uma aparentemente réplica simples, a Carta a Voltaire nos possibilita, sob o olhar da esperança, compreender algumas das teorias rousseaunianas sobre a sociedade, sobre o homem e sobre as ciências que, presentes nos Discursos, serão fundadas na Carta numa dimensão metafísicoteológica que consiste em, ao invés de pensar que tudo vai bem, pensar, de forma mais adequada ao próprio espírito da esperança, que o todo vai bem.

O desastre de Lisboa levantou a possibilidade de discutir questões que estavam relacionadas com a configuração das ideias naquele período específico (uma concepção otimista da realidade, baseada no pressuposto de um design ordenado e, portanto, benevolente do mundo), colocando-se para além do debate meramente religioso, a saber, se o terremoto havia sido a resposta divina aos pecados dos homens.

A esperança em Rousseau está associada a Deus. Um dos aspectos relevante dessa ligação pode ser encontrado na defesa do genebrino da providência divina. Gusdorf considera que, a despeito de que a Profissão de fé do Vigário saboiano não apresente nenhuma pertença eclesiástica, “[...] o mais célebre defensor do cristianismo em língua francesa é [segundo ele] JeanJacques Rousseau” (GUSDORF, 1972, p. 21).

Sabemos que muitos filósofos à época de Rousseau, embora não aderissem à fé cristã, acreditavam em Deus. De fato, desde Descartes, mais claramente falando, Deus se torna um pressuposto de vários sistemas. Mesmo Voltaire não se apresenta como ateu. Em Rousseau, Deus e a Providência tornam a vida possível, não só no âmbito da criação propriamente dita, mas no âmbito da esperança, de que decorre sua defesa, diante de Voltaire, do otimismo que este, por sua vez, condena: “Não vos enganeis Senhor, acontece tudo ao contrário do que propondes. Esse otimismo, que achais tão cruel, consola-me, entretanto, das mesmas dores que pintais insuportáveis” (ROUSSEAU, 2005, p. 122).

O otimismo serve a Rousseau de forma prática para sobreviver aos males que afligem a vida humana em sociedade: “O poema de Pope (Ensaio sobe o homem) suaviza meus males e leva-me à paciência, o vosso aguça minhas dores, leva-me às queixas e, retirando-me tudo exceto uma esperança abalada, reduz-me ao desespero” (ROUSSEAU, 2005, p. 122). Voltaire, como vemos, ao retirar toda a esperança, torna a vida humana miserável, insuportável: “[...] no lugar das consolações que eu esperava, não fazeis outra coisa senão me afligir. Dir-se-ia que temeis que eu não veja suficientemente o quanto sou infeliz; e acreditais, parece, tranquilizar-me bastante provando-me que tudo está mal” (ROUSSEAU, 2005, p. 122).

Muito embora Voltaire tenha, no prefácio do poema, cuidado de não parecer um contentor do cristianismo e, segundo alguns estudos, tenha mesmo atenuado seu poema em alguns pontos críticos, mantendo assim uma postura deísta, a leitura do texto mostra que ele havia sofrido uma grande influência ateística, em sua estada na Inglaterra, influências que vão ajudar Voltaire a “desencantar” o mundo. Em Newton, cuja filosofia Voltaire vai propagar na França, temos o desenvolvimento do que poderíamos chamar de uma religião natural baseada em uma apologética fundada sobre a ideia do universo-relógio:

Os insetos, as joaninhas, os novos participantes da história natural, representarão um grande papel no setor da literatura religiosa. De forma alternada, os peixes, as rãs, as abelhas, os bichos-da-seda, a lagarta do salgueiro, a rosa, a tulipa, mas também o fogo e a água, a tempestade e mesmo os terremotos [grifo nosso], a estrutura dos olhos, a do coração, a das mãos, ou ainda, a repartição estatística dos nascimentos e das mortes nas sociedades humanas, servirão de base à livros onde a vulgarização científica vai de par com o ensinamento religioso. (GUSDORF, 1972, p.134-135).

Nesse cenário que buscava a conciliação de todos os homens de boa vontade, sem deixar de lado os ensinamentos da religião cristã, encontraremos um novo modelo de teodiceia, o qual dá lugar à explicação dos fenômenos naturais baseada em uma concepção de previdência que se associa aos ganhos da ciência praticada à época:

Se o tema da finalidade imanente da criação não era novo, a considerável expansão das ciências da natureza lhe darão uma atualidade impressionante. A apologética produzirá um número muito grande de obras destinadas à manifestar a providência divina à partir de múltiplas formas do saber. (GUSDORF, 1972, p. 132).

Tal forma de trato da relação entre providência e de sua relação com as ciências natureza não vai estar alheia ao pensamento de Rousseau: “E o Vigário Saboiano, aluno do botanista Rousseau, pratica a Biblia naturae à qual ele se refere mais frequentemente que à Bíblia histórica” (GUSDORF, 1972, p. 135).

A grande diferença entre Voltaire e Rousseau consiste em que, para o genebrino, a esperança é um desenvolvimento do nosso ser na compreensão de uma nova ordem das coisas. Ela é capaz de nos consolar das infelicidades presentes, apontando para a providência, a qual, com sua bondade, funciona como um abrigo ao qual o homem pode recorrer em face das dificuldades de sua própria natureza, dos problemas suscitados pela vida em sua fraqueza e mortalidade, dos problemas oriundos da vida em sociedade e das infelicidades oriundas da própria natureza.

Em face de tais misérias Rousseau, como todo homem, sente-se abalado em seu sentimento interior. Entretanto, o Poema de Voltaire, ao invés de propor uma consolação, lança-o num abismo, acusando a esperança de engodo. Para o genebrino, isso não o ajuda: muito pelo contrário, torna sua vida mais desgraçada.

Servindo-se das teorias da época, Rousseau expressa de forma quase religiosa o credo das consolações:

“Homem, tem paciência”, dizem-me Pope e Leibniz. “Teus males são um efeito necessário de tua natureza e da constituição deste universo. O Ser eterno e benfazejo que te governa teria querido proteger-vos deles. De todos os planos possíveis, escolheu o que reunia menos males e maiores bens, ou (para dizer a coisa ainda mais cruamente, se necessário), se ele não fez melhor, é porque não podia fazer”. (ROUSSEAU, 2005, p. 122).

Em tais considerações, um leitor menos desavisado passaria desatento aos elementos filosóficos, às disputas e controvérsias expostas por Rousseau, acerca da providência: sobre a benevolência de Deus em relação à sua impotência; sobre a origem do mal (se Deus é bom e tudo fez bom, de onde surgiu o mal?) e mesmo sobre a existência propriamente de Deus (onde estava Deus, quando tudo ocorreu, que nada fez e que não escutou o grito das vítimas?). No início de sua Carta, Rousseau evita entrar em uma disputa aberta com Voltaire, evitando qualificar o Poema como uma obra contra a providência, muito embora o pensador francês tenha considerado o Segundo Discurso como uma obra contra o gênero humano.

Em sua tentativa de compor uma teodiceia, que, isentando Deus da tragédia, aponte as verdadeiras causas do sofrimento do desastre de Lisboa, Rousseau recorre a uma abordagem original que tem vários aspectos: querer que o terremoto fosse em outro lugar menos honorável é, de certo modo, leviano; terremotos ocorrem sobre toda a esfera terrestre; desejar que eles ocorram em lugares menos nobres, em lugares considerados inferiores que não afetem os senhores ricos é demandar que a natureza aja em favor de particularidades. Dessa forma, qual primazia teriam os lisbonenses, na ordem natural para evitar tal catástrofe? Se esta existisse, seria em si mesma imoral. A natureza não age segundo nossos caprichos, e todos a ela estão sujeitos.

Outro aspecto importantíssimo diz respeito à grande parcela de culpa dos homens, na grandeza e maximização da destruição em meio a tais fenômenos naturais. Foram os homens que construíram edifícios de grande envergadura, colando-os uns ao lado dos outros e ampliando assim em grande escala o número de vítimas. Rousseau constitui-se, com tal argumento, como um dos primeiros a delinear o lugar do homem na promoção de grandes tragédias. Ele aponta ainda para aqueles que morreram ao tentar resgatar pertences, por terem dado mais valor ao que possuíam do que à vida. Com ironia fina, ele assinala que, na verdade, estes agiram conforme os valores e costumes de sua época, pois, quando um homem nada possui, ele nada vale para a sociedade, de sorte que, nada tendo, o homem perde seu valor e não há nada, de fato, que valha a pena salvar. Uma vida sem posses equivale, em sociedade, a uma não vida. A descrição de Rousseau visava a evidenciar que o homem é que produzia suas misérias, suas desgraças e, com isso, poder mostrar como estes poderiam evitá-las.

3. sobre a esperança em rousseau

Considerando se o texto de Rousseau fala à razão ou ao sentimento, podemos conjecturar que, enquanto o texto de Voltaire, um poema, significava um grito do coração, mais do que um apelo à razão, o texto de Rousseau, uma carta, representava, em princípio, um apelo à razão. Entretanto, essa dicotomia se esvanece por completo, nos dois textos: ambos apelam à razão e ao coração, à racionalidade e ao sentimento.

O que temos de específico em Rousseau é que ele aproveita a oportunidade para dialogar com seus textos anteriores, reafirmando suas teses centrais. Nesse sentido, Rousseau tenta resolver o problema do mal, em duas frentes: na perspectiva da providência divina, a partir de uma teodiceia, e na perspectiva do homem, em uma antropodiceia. Na primeira perspectiva, Deus não é responsável pelo mal, o qual é oriundo das relações entre as coisas e, principalmente, do homem com as coisas e consigo mesmo. Pelo lado humano, Rousseau, como já o tinha feito no Segundo Discurso, considera que o mal não é originário do homem: segundo a compreensão de um pecado original, o homem não é mal em si mesmo. O mal advém na história, na relação que os homens estabelecem no seu desenvolvimento histórico. Essa observação é importante, porque, para Rousseau, o Segundo discurso teria sido considerado por Voltaire como um atentado à providência, por negar ao desenvolvimento histórico seu caráter divino, a saber, que o homem se desenvolvia conforme as próprias regras gestadas e implantas pelo criador em sua obra.

A Carta a Voltaire, a despeito de seu caráter argumentativo, pode ser lida, como o Poema sobre o terremoto de Lisboa, como um grito ao coração. Esse grito revela a necessidade da esperança como elemento fundamental da existência humana. O que pode se apresentar como uma peça apologética, retórica ou que busca a controvérsia é, na verdade, um apelo à possibilidade da esperança.

A esperança em Rousseau é um sentimento que se encontra disperso em sua obra. Podemos encontrar alguns aspectos da esperança, por exemplo, na Nova Heloísa. Esse texto estabelece uma relação entre desespero e esperança, nas relações entre Saint-Preux e Julie, a partir de um viés que liga a esperança à existência, sob uma perspectiva espiritual.

A esperança de Rousseau também se relaciona com o funcionamento da natureza. Ele tem conhecimentos precisos sobre as teorias científicas de seu tempo. Estas dão conta de uma ordem da natureza. A relação do pensamento de Rousseau com o pensamento de Leibniz varia ao longo do tempo. Em 1739, ele assume uma relação neutra com respeito às teses sobre a providência defendidas por Leibniz, em uma resposta dada a Philópolis (Charles Bonnet) acerca das críticas ao Segundo Discurso. Mas, quando ele elabora a Carta sobre o poema de Voltaire, assume a tese de Pope e Leibniz, em sua forma integral, produzindo uma apologética que se coaduna com a defesa do pensamento desses autores.

Considerações finais

Como caracterizar a esperança, em Rousseau? É ela um sentimento ou um objeto da razão? De forma sintética, podemos conjecturar que, para o genebrino, a esperança está associada tanto ao sentimento quanto à razão. A esperança é uma ponte entre dois mundos: a razão e o sentimento, a racionalidade e a crença. Mais que tudo, a esperança serve à vida. Ela é um caminho em meio às adversidades, à infelicidade, às agruras da vida. Entretanto, como vimos na Carta, a razão, cujo arrazoado demanda por seus fundamentos, pode fortalecer esse sentimento ou, por outro lado, desautorizá-lo, chegando mesmo a destruílo. Razão e sentimento seguem juntos como meio e fim da esperança.

De outra parte, a esperança se funda em Deus ou, melhor dizendo, na Providência divina; na compreensão de que, apesar dos problemas, ou mesmo em função deles e neles existe um esquema pelo qual o mundo se rege; um projeto, aliás, o melhor projeto possível, que visa não ao meu bem particular, mas ao bem do todo. Daí a crença rousseauniana de que o todo vai bem. Esse aspecto do todo se coaduna com um bem geral. O todo é maior que a parte, o mesmo gênero de argumentação que encontraremos mais tarde no Contrato social.

A esperança se liga à existência, à minha existência no agora, jamais em uma dimensão escatológica. Não vemos em Rousseau uma escatologia a propósito da qual o homem deva assumir esta ou aquela postura específica, como almejando o futuro em função das dores e das privações presentes. A esperança em Rousseau ajuda a viver no hoje, por isso ele reclama de Voltaire a transformação da esperança em engodo. Em suma, em Rousseau, a esperança está ligada ao presente e ao futuro, à razão e ao sentimento, e, em poucas palavras, à própria busca pela felicidade.

ABSTRACT: The Letter to Voltaire represents, among other things, Rousseau’s answer to Voltaire’s criticism of the Second Discourse. If the latter, for Voltaire, could be considered a work against humankind, Voltaire’s Poem on the Lisbon Disaster is, for Rousseau, a pamphlet against providence. In this sense, the Letter to Voltaire allowed Rousseau to affirm his faith in providence and in optimism, fundamental aspects of hope. Hope, for Rousseau, is linked to sentiment and reason. Founded on providence and optimism, hope calms our heart in life’s adversities, informing us than all is well for the whole. Hope is related to existence, to one’s particular existence here and now; it helps one to survive each day. Thus Rousseau complains that Voltaire has transformed hope into a fraud. Briefly, in Rousseau’s thought, hope is linked to the present and to the future, to reason and to feelings, and to the pursuit of happiness itself.

KEYWORDS: Rousseau. Voltaire. Hope. Providence. Optimism.

referênCias

GUSDORF, Georges. Dieu, la nature, l’homme au siècle des Lumières. Paris: Payot, 1972.

MARQUES, José O. de A. The paths of providence: Voltaire and Rousseau on the Lisbon earthquake. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, série 3, Campinas, v. 15, n. 1, p.

33-57, jan-jun. 2005. Disponível em:< http://www.unicamp.br/~jmarques/pesq/modern. htm. >. Acesso em: 20 mar. 2013.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Cartas a Cristophe de Beaumont e outros escritos sobre a religião e a moral. São Paulo: Estação Liberdade, 2005.2

Recebido / Received: 15/04/2015

Aprovado / Approved: 24/06/2015



[1] Doutor em Filosofia Prática pela Universidade Federal da Paraíba, com estágio doutoral na Université Catolique de Louvain - UCL, professor adjunto III na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, lotando no Departamento de Filosofia - DFI. Desenvolve pesquisas na área de filosofia política com especial atenção ao pensamento de Rousseau e a temáticas ligadas à democracia. E-mail:  telmir@gmail.com